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A pesquisa em saúde em São Paulo: situação atual e perspectivas de mudança

Health research in São Paulo: current status and the outlook for change

Resumos

José da Rocha Carvalheiro é coordenador dos Institutos de Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Em seu depoimento, apresenta a proposta de transformação da estrutura da Coordenação de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde no estado de São Paulo, da qual é o responsável. Ele observa que o conceito de inovação refere-se tanto aos insumos de saúde como à formulação de políticas. Destaca a importância de se redefinir o papel das instâncias intermediárias - os estados como unidades da Federação - no Sistema Único de Saúde (SUS). Reporta-se à Conferência de Ciência e Tecnologia em Saúde, realizada em 1994, observando as dificuldades para a plena institucionalização da área. Comenta finalmente as razões pelas quais se sente otimista quanto às possibilidades de afirmação do país no campo da ciência, tecnologia e inovação em saúde e os principais obstáculos para que tal objetivo seja alcançado.

institutos de pesquisa em saúde; SUS; São Paulo


José da Rocha Carvalheiro is coordinator of the São Paulo State Secretary of Health's Research Institutes. In this testimony, he proposes structural changes to the state's Coordination of Science, Technology, and Innovation in Health, for which he is responsible. He points out that the concept of innovation refers as much to policy shaping as it does to health goods. He also emphasizes the need to redefine the role of intermediary players (the states as units of the federation) within Brazil's unified health system, known as the Sistema Único de Saúde (SUS). Remarking on Brazil's 1994 Conference of Science and Technology in Health, he notes how hard it is to fully institutionalize the area under the umbrella of the federal Health Ministry. Lastly, he explains why he is optimistic about Brazil's chances to firmly establish itself in science, technology, and innovation in health, and he lists the main challenges this goal presents.

Institutos de Pesquisa em Saúde; Health Research Institutes; SUS; São Paulo


DEPOIMENTOS

A pesquisa em saúde em São Paulo: situação atual e perspectivas de mudança

Health research in São Paulo: current status and the outlook for change

Entrevista com/Interview with José da Rocha Carvalheiro

Coordenador dos Institutos de Pesquisa em Saúde do Estado de São Paulo, Programa de Pós-Graduação, Av. Dr. Arnaldo 351/1º andar, 01246-000 São Paulo — SP Brasil, jrcarval@usp.br

RESUMO

José da Rocha Carvalheiro é coordenador dos Institutos de Pesquisa da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo. Em seu depoimento, apresenta a proposta de transformação da estrutura da Coordenação de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde no estado de São Paulo, da qual é o responsável. Ele observa que o conceito de inovação refere-se tanto aos insumos de saúde como à formulação de políticas. Destaca a importância de se redefinir o papel das instâncias intermediárias — os estados como unidades da Federação — no Sistema Único de Saúde (SUS). Reporta-se à Conferência de Ciência e Tecnologia em Saúde, realizada em 1994, observando as dificuldades para a plena institucionalização da área. Comenta finalmente as razões pelas quais se sente otimista quanto às possibilidades de afirmação do país no campo da ciência, tecnologia e inovação em saúde e os principais obstáculos para que tal objetivo seja alcançado.

Palavras-chave: institutos de pesquisa em saúde, SUS, São Paulo.

ABSTRACT

José da Rocha Carvalheiro is coordinator of the São Paulo State Secretary of Health's Research Institutes. In this testimony, he proposes structural changes to the state's Coordination of Science, Technology, and Innovation in Health, for which he is responsible. He points out that the concept of innovation refers as much to policy shaping as it does to health goods. He also emphasizes the need to redefine the role of intermediary players (the states as units of the federation) within Brazil's unified health system, known as the Sistema Único de Saúde (SUS). Remarking on Brazil's 1994 Conference of Science and Technology in Health, he notes how hard it is to fully institutionalize the area under the umbrella of the federal Health Ministry. Lastly, he explains why he is optimistic about Brazil's chances to firmly establish itself in science, technology, and innovation in health, and he lists the main challenges this goal presents.

Keywords: Institutos de Pesquisa em Saúde, Health Research Institutes, SUS, São Paulo.

Gostaria de começar essa nossa conversa perguntando a respeito da proposta de mudança de nome da Coordenação dos Institutos de Pesquisa em Saúde do Estado de São Paulo para Coordenação de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde. O que significa em termos de uma nova visão para os institutos de pesquisa ?

Existem duas maneiras de analisar, de encarar essa proposta. Uma é mais administrativa, de vinculação à estrutura da secretaria das diversas unidades que se dedicam formalmente à pesquisa; a outra diz respeito a todo o processo de reformulação administrativa das secretarias estaduais. Os aspectos meramente administrativos dos interesses envolvidos nessa questão eu preferia não analisar e me deter apenas no aspecto conceitual, abrangendo as funções essenciais da saúde pública e, na complexidade da estrutura do sistema de saúde brasileiro, o papel destinado às instâncias intermediárias. Para mim, essa é a questão mais relevante.

Os institutos de pesquisa não só no Brasil, mas na América Latina como um todo, obedecem a um paradigma típico do final do século XIX, começo do século XX, que não vou analisar com maior profundidade pois a Casa de Oswaldo Cruz e a revista História, Ciências, Saúde — Manguinhos têm feito contribuições da maior profundidade nessa área. Mas os institutos, à semelhança dos institutos de São Paulo na área agrícola, como o Instituto Agronômico de Campinas, e na área da saúde, o Instituto Adolfo Lutz, o Instituto Butantan, o Instituto Pasteur, o Instituto Emílio Ribas, que é o mais antigo de todos (é de 1882, tem 120 anos) são instituições que têm uma larga trajetória, uma larga tradição e, obedecendo ao padigma pastoriano, foram formulados para dar respostas a problemas que afligiam a sociedade numa determinada época. Certas instituições criaram uma cultura que foi mais intensa no que diz respeito à pesquisa básica e à produção de insumos. O Instituto Butantan, por exemplo, diferente do Instituto Emílio Ribas, determinou recentemente a formulação de uma estrutura mais voltada para a pesquisa clínica. Já o Instituto Adolfo Lutz, esteve no começo do século XX no centro da discussão. Buscava-se definir se a estrutura deveria ter uma formulação mais científica, no sentido de uma pesquisa básica bacteriana, ou mais clínica. Acabou desenvolvendo-se para apoior a vigilância epidemiológica e a vigilância sanitária, dedicando-se à bromatologia e à pesquisa relacionada com o controle químico e biológico de produtos de interesse da saúde. Passou a funcionar como uma espécie de Laboratório Central de Referência em Saúde (LACEN) — todos os estados têm um LACEN —, e o Intituto Adolpho Lutz, eu diria é um LACEN diferenciado.

O que o diferencia ?

Uma estrutura do porte do Adolfo Lutz, que tem milhares de servidores, é regionalizado, tem pesquisadores científicos, mais de 150 doutores, PhDs, enfim, é uma estrutura de grande complexidade e dá apoio à vigilância epidemiológica e à vigilância sanitária, mas não é apenas um LACEN. A proposta fundamental da Secretaria de Estado de Saúde de São Paulo é a criação de uma agência de controle de doenças que equivocadamente, em alguns momentos, tem se referido ao Instituto Adolfo Lutz, com toda a complexidade que ele tem, como uma estrutura destinada simplesmente a dar apoio às necessidades da vigilância, o que, a meu ver, é um completo equívoco. Mas isso tem implicações que escapam ao meu poder de argumentação, são decisões de cunho administrativo e político. Se tenho alguma influência é na discussão do que se espera do nível intermédiário, e quando estou falando em nível intermédiário, estou me referindo aos níveis estaduais.

O sr. se refere ao papel dos estados no processo de implantação do Sistema Único de Saúde ?

Sim. No processo de implantação do SUS, com a estratégia de descentralização traduzida pela alternativa municipalizadora, os municípios estão adquirindo uma relevância muito grande, tornam-se gestores plenos, exercendo a sua soberania como ente constitucional, e o nível estadual tem que se repensar. Isso do ponto de vista da assistência, do ponto de vista da vigilância. A meu ver, o que deveria se debater e ter como pano de fundo é toda essa discussão que se trava naOrganização Mundial de Saúde e da Organização Pan-Americana da Saúde de funções essenciais, de uma discussão que pudesse atribuir aos níveis estaduais um papel relevante, não apenas no âmbito da prestação de cuidados individuais, assistência médica, mas também naquilo que diz respeito à participação de microrregiões e municípios. Seguramente, o Estado tem que representar um papel saliente no estabelecimento de um processo regulatório no fluxo dos recursos financeiros, associado ao fluxo das próprias pessoas que vão ser atendidas. De um lado, há o controle de doenças, através dos mecanismos da vigilância epidemiológica, a vigilância aos casos ocorridos. Há também o estabelecimento de mecanismos de vigilância de fatores de risco, que estão sendo confundidos, na discussão que se está travando, com o papel das agências reguladoras. Eu estou muito preocupado com a maneira como essas coisas estão sendo conduzidas, sem um debate de maior profundidade.

Nos anos 1930, esse debate se travou no país inteiro, mais ainda em São Paulo, em particular através da Faculdade de Saúde Pública, transformada em Instituto de Higiene, com a discussão da integração sanitária. Os grandes nomes da saúde pública paulista da época temiam que as ações de natureza coletiva fossem engolidas fatalmente pelas ações individuais, pela medicina. Ricardo Bruno Mendes Gonçalves analisa isso na sua tese de doutoramento, quando defende que a epidemiologia, como tecnologia processual de organização, tem que subordinar a clínica, e o inverso não é possível.

Suas observações referem-se a um conjunto de questões vinculadas à área de saúde coletiva. Quais são as implicações para os institutos de pesquisa ?

Se para a área de saúde coletiva vejo que esses aspectos estão sendo encarados de uma maneira, eu diria quase irresponsável, a área específica da pesquisa está sendo simplesmente desconsiderada. Em São Paulo, freqüentemente, resssurge a idéia de que os institutos existentes deveriam ser incorporados às universidades. Na atualidade, a Secretaria de Meio Ambiente extinguiu a secretaria dos institutos. Antes, o Instituto Florestal, o Instituto de Botânica e o Instituto Geológico tinham uma coordenadoria, como na área da saúde existe essa coordenação. Ela foi extinta no governo atual e os institutos ficaram diretamente ligados ao gabinete do secretário, que é um ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP), professor Goldenberg.

Fala-se claramente em incorporar o Instituto de Botânica à USP. Joga-se na lata do lixo, de uma certa maneira, toda a história que essas instituições construíram e as tratam como se fossem meras instituições de pesquisa semelhantes à universidade, como se a sua proposta de atuar na sociedade não fosse da sua essência. Por outro lado, quando se pensa na estrutura da Secretaria da Saúde, em transformar uma instituição como o Adolfo Lutz em um apêndice do controle de doenças, desconhece-se que ele tem realmente uma estrutura e uma complexidade muito maiores. Em algum momento haverá bom senso e alguém vai começar a analisar as propostas que estão sendo feitas, sob alguns aspectos. Primeiro: que papel vai desempenhar o nível estadual, o nível intermediário na estrutura do SUS? Segundo: no caso de São Paulo, que além de ter tido no passado assistência direta, e é difícil se desfazer de estruturas complexas, há uma certa relutância em transferi-las diretamente para os municípios. No caso dos Institutos de Pesquisa, não faz sentido imaginar que se poderia dar a essas instituições complexas, o mesmo tratamento que se poderia dar a um laboratório comum de realização dos ensaios, de exames clínicos, laboratoriais que permitissem orientar a atuação clínica individual ou a atuação da vigilância epidemiológica. Diante dessa situação de grande complexidade, nós aproveitamos para colocar em discussão um tema que também é recorrente tanto ao nível nacional, no Ministério da Saúde, nas associações científicas, ABRASCO, SBPC, [EFESG], e no caso do estado de São Paulo, também tem sido muito analisado, que é como organizar a ciência, a tecnologia e a inovação na área da saúde. Isso é um desdobramento das preocupações ao nível internacional, no Fórum Global de Pesquisa em Saúde, com discurso aparentemente colonialista.

Por quê?

A proposta deles é correta. Acho que vale a pena apostar nela pelas coisas que têm sido feitas, do estabelecimento de quais são os grandes problemas de saúde da humanidade como um todo no presente momento, como se estabelecem prioridades de pesquisa em saúde, mas aí a tal proposta passa a ter um discurso paternalista, de colonialismo intelectual absolutamente inaceitável para um país como o nosso.

Desconhecem as tradições...

O discurso deles é que são setenta bilhões de dólares, aproximadamente, investidos todo ano em pesquisa e saúde. Então, apenas dez por cento são aplicados para atingir doenças das quais sofrem noventa por cento da humanidade. Por isso é o chamado 10/90, apenas dez por cento desses dez bilhões de dólares são aplicados em [conexão] com doenças que atingem noventa por cento... Alguns dizem até que é 5/95, e já se chega a falar em 3/97. Ou seja, apenas três por cento dessa soma fabulosa de recursos... Agora, é uma ingenuidade. Sérgio Arouca na sua tese de doutoramento, O dilema preventivista, quando analisa o modelo de prevenção, diz a mesma coisa. Quer dizer, você pensar nisso como valor de uso elimina, obscurece o pensamento como valor, valor de troca, como valor econômico, substancial. Não adianta nós irmos com essa inocência paternalisticamente. Por isso que eu digo que é colonialista, o que pode parecer é um pouco pesado demais, mas no fundo é isso. É pensar nesses coitados que estão excluídos... Mas, enfim, é um movimento importante, acho que a gente tem muito que se beneficiar da metodologia que eles propõem, e isso foi incorporado na primeira Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde, que teve um documento organizado pelo Carlos Morel, à época presidente da Fiocruz.

Morel coordenou, porque ele e vários de nós fazemos parte desse movimento internacional. Algumas dessas idéias impregnaram a Confêrencia Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde. Não puderam ser concretizadas porque a proposta era que existisse uma Secretaria Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde. Isso não foi possível. Deu-se uma importância muito pequena, foi preciso uma luta muito grande para que ela fosse levada em nível de departamento, e agora com a nova administração, finalmente cria-se uma Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, na qual ciência e tecnologia propriamente constituem um departamento, mas com uma perspectiva que se realize finalmente... Isso que nos moveu para fazer em São Paulo esse trabalho, enquanto se desencadeia um processo de verdadeiro desmanche...

A proposta de transformação da Coordenação dos Institutos de Pesquisa em Coordenação de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde é uma resposta...

O presidente da Fiocruz, Paulo Buss, quando soube do que se pretende fazer em São Paulo ficou atônito e disse: "Eu digo no país inteiro que o melhor exemplo é o de São Paulo, onde os institutos estão todos concentrados num esforço de mostrar que são estruturas que produzem cientificamente e que estão à disposição do sistema de vigilância epidemiológica e sanitária. E que podem servir como os grandes orientadores dos laboratórios distribuídos na rede inteira que se dediquem a testes que orientem atendimento médico individual."

Nós estamos no meio de uma proposta de extrema complexidade, absolutamente equivocada na simplificação excessiva com que querem tratar a questão. E a idéia de desencadear esse esforço foi para preservar uma das funções essenciais da saúde pública no nível do estado de São Paulo, acompanhando o que está se fazendo agora no Ministério da Saúde: organizar a área de ciência, tecnologia e inovação. Em inovação geralmente pensa-se apenas nos produtos materiais, e aí tem que ver com o que faz a Fiocruz, por exemplo, com o Instituto Butantan, na parceria que nós temos. Mas quando eu penso em inovação, não sei se vou ter sucesso em vender estas idéias, também penso no que fazia a Secretaria de Políticas de Saúde no Ministério da Saúde, quando João Yunes era o secretário e formulava novas propostas de política.

Inovação no campo das políticas?

Inovação da proposta política. Coordenei um grupo que fez um brain storm; éramos cerca de 14 pessoas e produzimos um documento na área de ciência e tecnologia. Estava o Reinaldo Guimarães, tem até um documento que foi encaminhado e que seria submetido a um fórum mais amplo, que é o mesmo que se fez com a violência. Cecília Minayo reuniu um grupo para um brain storm e uma vez produzido um documento, foi criado um fórum ampliado. Devia ter umas duzentas pessoas, e daí saiu um documento que foi entregue ao ministro, que o submeteu ao Conselho Nacional de Saúde. Se implementou ou não implementou é outra história. A rigor, não se implementou como se esperava, mas constitui a base da política nacional de combate à violência. Quando penso na inovação, na Secretaria de Estado da Saúde, não penso apenas em uma inovação de kits diagnósticos, vacinas etc. Penso também em que ela pode ser o local de formulação de políticas, de programas novos e de pelo menos tentar organizar isso. Esta é a perspectiva com que nós estamos trabalhando. Temos discutido isso em um fórum, onde estão o Instituto Butantan, a Fundação do Remédio Popular (FURP), que não pertence à atual coordenação dos institutos de pesquisa bem como a Fundação Oncocentro.

Administrativamente, essas instituições não estão vinculadas à atual Coordenação dos Institutos de Pesquisa, mas nesse processo, entendido como transição, ficaram subordinadas tecnicamente a uma comissão que está tratando da formulação dessa proposta da agência de controle de doenças. Equivocadamente, está cuidando de doenças transmissíveis; está se transformando numa espécie de caçadores de micróbios, coisas desse tipo, em uma perspectiva absolutamente em descompasso com o perfil epidemiológico da população brasileira. A situação é complexa. Disse que tinha dois planos de análise possíveis. No plano da análise político-institucional está difícil imaginar como é que vai se dar, mas no plano das idéias acredito que teremos sucesso em pelo menos fazer avançar uma reflexão de maior profundidade a respeito do que é essa área.

Nós temos o Instituto Butantan que é da estrutura da administração direta da Secretaria de Estado da Saúde e, paralelamente temos uma fundação de direito privado que é a Fundação Butantan, que opera fundamentalmente na área do relacionamento comercial com o Ministério do Exterior. Acho que aí deixa muito a desejar. Eu seria incapaz de imaginar que se poderia fazer uma apropriação de custos dos nossos produtos. O Estado põe uma quantia para infra-estrutura que não é contabilizada no preço final do produto. Então, acho que uma das complicações é esta, mas isso tem solução, pode-se tranqüilamente propor o aprimoramento das estruturas gerenciais para que elas se transformem. No caso de São Paulo, elogia-se muito a estrutura da Fundação do Remédio Popular (FURP). Não conheço com profundidade, mas é uma fábrica e ela tem que se comportar como uma fábrica. Acho que essa é uma discussão importante. Bio-Manguinhos, na estrutura da Fiocruz, corresponderia à estrutura de produção do Butantan. Mas o Butantan, além disso, tem toda a sua estrutura de pesquisa básica, que é uma espécie de Instituto Oswaldo Cruz (IOC), que também se liga à universidade. Essas questões deveriam ser equacionadas de uma maneira mais clara... De resto, isso está sendo feito. Possivelmente, já deve constar de alguns dos depoimentos: o esforço que está sendo feito em um projeto de prospecção para os próximos dez, 12, 15 anos...

Isso em nível federal?

Sim, mas esse projeto inclui o Butantan, o Adolfo Lutz, que inclui a FURP. E aí é que reside a segunda dificuldade. Uma delas vai se obviar na medida em que se tornem mais transparentes essas deficiências de organização e de gestão e se viabilize mais esse intercâmbio entre os produtores nacionais, através do estabelecimento de redes e de prioridades para um determinado tipo de desenvolvimento. No entanto, existe um constrangimento tecnológico, uma barreira, e não acredito que a gente possa vencê-la com facilidade. Isso é muito claro na área de medicamentos, na maneira, na arquitetura de extrema complexidade, feita com programas sofisticadíssimos de computador, para desenvolver produtos de síntese. Isso na área de medicamentos já vinha há muito tempo. A área de vacinas continuava a ter uma tecnologia da idade da pedra, em comparação com os avanços da tecnologia na área de medicamentos de síntese. Isso agora começa, como dizia Noel Rosa, a ter ingresso na modernidade —... "o revólver teve ingresso na modernidade...", aquela música em que respondia ao desafeto que queria lhe bater: "Agora o revólver teve ingresso e você não me bate mais." Então, neste caso, o que teve ingresso foi a sofisticação do desenvolvimento tecnológico, em que os grandes complexos farmacêuticos gastam milhões, bilhões de dólares não apenas nas suas estruturas de pesquisa, mas associados à área de biotecnologia, associados à pequenas empresas de densidade tecnológica extremamente grande. Esse é o grande gargalo que nós vamos ter que enfrentar: a sofisticação na área de medicamentos. Fazer a engenharia reversa hoje, fazer a pirataria de um produto de síntese de medicamentos já não deve ser tão simples quanto era no passado, em que essas coisas eram produtos naturais purificados, e aí uma vez purificados, os radicais eram colocados de uma maneira diferente. E agora começa a ter essa mesma sofisticação na área de vacinas.

O senhor considera possível para um país como o Brasil obter sucesso nessa área?

Eu acho que a gente vai ficar correndo atrás durante bastante tempo deste desenvolvimento mais sofisticado que o primeiro mundo já tem na área desses produtos, e nós devíamos pensar como nos capacitarmos para fazer isso. Fora da área de vacinas, já se sabe que os fatores de coagulação são a galinha dos ovos de ouro. Quem já conseguiu fazer isso em engenharia genética, biotecnologia, não vende a patente, não troca... é a galinha dos ovos de ouro. O resto do mundo, o Brasil inclusive, continua com seus fatores de coagulação com pressionamento de plasma. Perseguir uma tecnologia própria, para obter esses fatores de coagulação, deveria merecer um esforço... Dizem que é possível, mas é possível treinando pessoas, e esse treinamento demora, talvez uns seis, oito, dez, 12 anos. E quando isso ocorrer possivelmente nós já estaremos ingressando em outra tecnologia.

Não tenho tanta certeza, mas acho que este é um dos pontos que eu identifico como uma dificuldade plenamente superada, esse ponto de uma gestão melhor, melhorar a nossa capacidade de negociação: transferência de tecnologia, reconhecendo patente. E a outra, que eu acho que é mais séria. O primeiro mundo, da mesma forma que está fazendo nos medicamentos de síntese, vai fazer nas vacinas, nos imunobiológicos, nos produtos de biotecnologia, na área da saúde em geral, uma sofisticação que acho que vai ser muito difícil acompanhar.

Eu queria saber também, com a sua experiência e trajetória de epidemiologista, do ponto de vista epidemiológico, quais seriam as prioridades nesse campo da imunização para que orientassem esse esforço de desenvolvimento tecnológico?

Acho que temos condições de construir uma rede suficientemente bem estruturada, que nos permita sentinelas suficientemente capazes. Agora, as coisas essenciais estão dadas nesse terreno, especialmente de agentes imunizantes. Salvo as doenças emergentes, e eventualmente algumas do passado, que retornam, e para as quais ainda não existem mecanismos propostos de controle, a maioria dos outros já está mais ou menos equacionada, até com a complexidade que muitos deles têm. Sei lá, volto àquela questão inicial do valor dos laboratórios de referência, que eles não podem — estou falando especificamente do Laboratório Adolfo Lutz — ser concebidos única e exclusivamente como laboratórios para dar suporte à vigilância epidemiológica e sanitária, com técnicas consagradas. Eles têm que se adequar — e o Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS) nesse particular, teria um grande papel — à possibilidade da detecção, da caracterização molecular de novos agentes, ou da modificação, da transformação dos agentes convencionais. Enfim, eu acho que nós temos hoje condições adequadas de entrar no mercado, até internacional... Primeiro, ganhar a independência, a tão sonhada auto-suficiência, que se preconizou na década de 1970 e começou na década de 1980: a produção de imunobiológicos, para doenças em que os grandes pólos de desenvolvimento tecnológico dos países centrais já se desinteressaram. Alguma coisa da ordem de 70 a 80% dos produtos de imunização usados no mundo são produzidos em países fora do eixo Estados Unidos — Japão — União Européia, em países como o nosso, o que é bastante, mas são as vacinas convencionais, DTP, sarampo, pólio, as vacinas do Programa Ampliado de Imunizações (PAI), que é o nosso PNI — o PNI vai além disto. Eu acho que há um espaço para nós mantermos o nosso esforço de produção, competindo com os que são iguais a nós, na Coréia, na Índia, na China. O que dificilmente conseguiremos rapidamente é o nosso ingresso nestas áreas de maior sofisticação, que tem que ver com as doenças emergentes e com as transformações complexas das antigas, que reermegem ou se transformam.

A tuberculose, por exemplo?

Para a tuberculose, ainda falta uma vacina melhor que a BCG, que tem um limitado poder de controle da doença pulmonar — pelo menos no Brasil se reconhece que tem um valor questionável para o seu controle, e agora há propostas de desenvolvimento de vacinas diferentes: Aids, o HIV...

Da hepatite também, não é?

Há várias formas de hepatite, hepatite C, dengue, enfim, há uma série de doenças. O Butantan desenvolveu uma vacina para a hepatite B, que tem que ser aprimorada. É uma tecnologia avançada, mas ainda não incorpora o trabalho de arquitetura molecular, digamos assim, que já é feito há algum tempo nas moléculas químicas dos medicamentos, e que agora começa a ser feito também com alto grau de sofisticação nos antígenos e imunizantes. Primeiro, precisamos nos consolidar naquilo que já temos condições de fazer, e nos credenciar para, pelo menos, estar acompanhando o desenvolvimento desses outros setores, sonhando que a pesquisa básica propriamente dita, ou a pesquisa estratégica voltada para a solução de problemas com forte conteúdo de pesquisa básica, venha a apresentar alguma coisa que nos equipare aos grandes produtores de conhecimentos nessas áreas. São rios de dinheiro, centenas, milhares de profissionais com doutorado, o diabo a quatro, que estão envolvidos no mundo inteiro na perseguição de coisas desse tipo. Não é a nossa meia dúzia de PhDs que vai... Não estou sendo pessimista, pelo contrário, sou otimista. Teremos condições naquilo que há de convencional nesta área, nos credenciarmos, ou seja, sermos auto-suficientes, disputar com os mercados, termos boas perspectivas. Mas, ao mesmo tempo, deve-se enfatizar a possibilidade de irmos gerando tecnologia porque nós não podemos ficar o tempo todo dependendo de transferência de tecnologia, com pagamento de royalties, de reconhecimento de propriedade intelectual de outros, que fazem mecanismos de transferência tão longos, que, quando terminam, eles já avançaram.

Ficha técnica

Entrevistado: José Carvalheiro

Local e data da Entrevista: 8 de agosto de 2003, São Paulo

Entrevistadora: Nísia Lima

Transcrição: Claudia Peçanha da Trindade

Edição: Ruth B. Martins

Revisão: Cristina Britto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2004
  • Data do Fascículo
    2003
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