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A história da psiquiatria não contada por Foucault

The History of the Psychiatry not told by Foucault

Resumos

O artigo propõe uma revisão da abordagem da loucura e do nascimento da instituição psiquiátrica proposta por Foucault em História da loucura. A hipótese desenvolvida é de que as origens da psiquiatria moderna revolucionam a perspectiva de abordagem da loucura, ao propor ser possível dialogar com o insensato, porque o louco não é aquele que perdeu a razão. Espera-se que a crítica à obra de Foucault em questão contribua para o processo de reforma psiquiátrica em curso no Brasil.

loucura; Michel Foucault; nascimento da psiquiatria; reforma psiquiátrica


The article proposes a revision of the approach to madness and the birth of the psychiatric institution taken by Foucault in History of Madness. The hypothesis is that the origins of modern psychiatry revolutionize the approach to madness by proposing it is possible to dialogue with the insane, because the madman is not someone who has lost his reason. It is hoped that this critique of Foucault's book will be a contribution to the process of psychiatric reform currently underway in Brazil.

madness; Michel Foucault; birth of Psychiatry; psychiatric reform


ANÁLISE

A história da psiquiatria não contada por Foucault

The History of the Psychiatry not told by Foucault

Fernando Ferreira Pinto de Freitas

Professor do Departamento de Clínica, Instituto de Psicologia. Diretor da Oficina de Políticas de Saúde, Laboratório de Estudos Contemporâneos (LABORE), UERJ ffreitas@cosmevelho.com.br

RESUMO

O artigo propõe uma revisão da abordagem da loucura e do nascimento da instituição psiquiátrica proposta por Foucault em História da loucura. A hipótese desenvolvida é de que as origens da psiquiatria moderna revolucionam a perspectiva de abordagem da loucura, ao propor ser possível dialogar com o insensato, porque o louco não é aquele que perdeu a razão. Espera-se que a crítica à obra de Foucault em questão contribua para o processo de reforma psiquiátrica em curso no Brasil.

Palavras-chave: loucura, Michel Foucault, nascimento da psiquiatria, reforma psiquiátrica.

ABSTRACT

The article proposes a revision of the approach to madness and the birth of the psychiatric institution taken by Foucault in History of Madness. The hypothesis is that the origins of modern psychiatry revolutionize the approach to madness by proposing it is possible to dialogue with the insane, because the madman is not someone who has lost his reason. It is hoped that this critique of Foucault's book will be a contribution to the process of psychiatric reform currently underway in Brazil.

Keywords: madness, Michel Foucault, birth of Psychiatry, psychiatric reform.

Introdução

Haverá algo de novo a ser dito sobre a História da loucura, quatro décadas após a sua primeira publicação? De imediato não podemos deixar de reconhecer a enorme e diversificada literatura a ela pertinente e a perspectiva aberta por essa obra. Por conseguinte, como retomá-la hoje sem repetir o que já é tão conhecido pela maioria das pessoas? Além disso, estamos tão acostumados com a leitura foucaultiana da história da psiquiatria, que adotar uma outra perspectiva sugere ou um retrocesso a posições conservadoras, que se espera já estejam superadas, ou, no mínimo, uma risível pretensão inovadora.

Com a devida precaução de não ser repetitivo, pretensioso e muito menos alinhar-se a uma posição conservadora, este artigo propõe a difícil tarefa de reler a perspectiva aberta por Foucault em seu livro História da loucura. A revisão tem por fim melhor responder a questões que estão na ordem do dia. Em termos gerais, digamos que sejam três as questões motivadoras desta reflexão. A questão número um: como compreender, pensar, teorizar o 'distúrbio psíquico' no contexto de nossa reforma psiquiátrica, quando a noção de 'doença mental' parece não ser mais que mais um dos significantes mestres da 'exclusão'? A questão número dois: como investigar a história da psiquiatria no Brasil, a fim de nela buscar as experiências inovadoras, quando havemos aprendido a olhá-la como um processo de inexorável confinamento da loucura às categorias positivistas da Medicina mental — a psiquiatria? E finalmente: como agir, como intervir nos novos serviços que estão sendo criados no país segundo os princípios da reforma psiquiátrica propostos, quando, ao mesmo tempo, tem-se uma postura antipsiquiátrica considerada como a única politicamente correta? É provável que tais questões não sejam completamente respondidas aqui (se é que tais respostas caberiam num pequeno artigo como este). Mas uma coisa é certa: ao indagarmos o que Foucault teria hoje a nos dizer, mantendo seus pressupostos de quarenta anos atrás, o que na realidade queremos é passar a limpo o peso que a sua perspectiva se impõe a nós, para que, desafiando-o, possamos talvez enfrentar melhor os desafios do nosso tempo.

Neste artigo, primeiramente é apresentado o Prefácio à primeira edição de História da loucura, em que delimitam-se os principais pressupostos da tese defendida por Foucault. Em seguida é feita uma leitura crítica de 'A grande internação', indubitavelmente o capítulo fundamental da obra. Nele Foucault apresenta a 'estrutura de exclusão', cujos fundamentos foram constituídos, segundo o autor, em meados do século XVII e que determinará, também de acordo com ele, as condições de surgimento da psiquiatria, um século e meio depois.

No capítulo 'O nascimento do asilo' são analisadas as 'origens' propriamente ditas da psiquiatria moderna. Para Foucault, havendo muito poucos documentos de valor histórico relativos a esse período, não nos restaria outra alternativa além de retomar o mito heróico de Pinel. Porém a existência de vários documentos importantes da época, abordados superficialmente ou mesmo ignorados por Foucault, permite-nos realizar uma leitura distinta daquela feita pelo mestre. A tese aqui defendida é a de que nas origens da psiquiatria moderna está a conquista de um território novo da nossa civilização: a realidade psíquica, com leis próprias de funcionamento. Seus primórdios são, de fato, bem anteriores a Pinel. Trata-se, aqui, de atentar para a história da "descoberta do inconsciente", como foi bem descrita por Ellenberger (1974); um retorno ao passado que difere do percorrido por Foucault, portanto uma tentativa de reconstrução histórica que escape do "mal de arquivo" (Derrida, 2001).

Os pressupostos de História da loucura

Antes de abordarmos o conteúdo propriamente dito do livro, é importante que se identifiquem os pressupostos com que Foucault desenvolveu seu trabalho. Sabemos que História da loucura foi sua tese de doutorado, defendida em maio de 1961 e publicada pela primeira vez, alguns meses depois, com o seu título original, Loucura e desrazão: história da loucura na idade clássica. A edição francesa posterior, de 1972, substituiu o Prefácio, manteve o conteúdo original restante e acrescentou um Posfácio, que leva ao conhecimento do público críticas de Henri Gouthier e de Jacques Derrida sobre aspectos relevantes da obra e que foi suprimido na edição de 1976. A primeira edição brasileira, publicada pela editora Perspectiva em 1978, apesar de declarar ser tradução da edição francesa de 1972, não contém o Posfácio e o Prefácio desta. Tais supressões deixaram, por muito tempo, a maioria dos leitores brasileiros sem o conhecimento da polêmica criada em torno da obra por dois dos mais respeitados intelectuais franceses da época.

A identificação dos pressupostos de História da loucura é facilitada pela leitura do Prefácio à sua primeira edição. Foucault afirma a ocorrência do que denomina "grau zero" da história da loucura, quando predominava uma indiferenciação entre loucura e razão, caracterizada por uma linguagem comum por parte desses dois estados. Tal período teria deixado de existir há muito tempo; hoje, diz Foucault, vivemos o diálogo rompido e as suas conseqüências.

O homem moderno não se comunica mais com o louco: de uma parte há o homem da razão, que delega a loucura ao médico e que autoriza apenas a relação com a universalidade abstrata da doença; de outra parte há o homem da loucura, que se comunica com o outro apenas por intermédio de razões tão abstratas como são a ordem, coação física e moral, pressão anônima do grupo e a exigência de conformidade (Foucault, 1961, p. 160).

A ruptura do diálogo entre razão e loucura foi resultado de uma "conjuração", afirma Foucault. A palavra significa, literalmente, conspiração contra uma autoridade estabelecida, conluio, maquinação, trama. Se houve uma conjuração, quem teria conjurado contra quem? A razão contra a desrazão — responde Foucault —, por meio de um "gesto constitutivo", um 'gesto' da razão que se separa da loucura, esvazia a verdade da loucura para afirmar a si própria soberanamente. Segundo o autor (op. cit., p. 159),

... nenhum dos conceitos da psicopatologia deverá, mesmo e, sobretudo, no jogo implícito das retrospecções, exercer um papel organizador. É constitutivo o gesto que separa a loucura, e não a ciência que se estabelece ... . É original o corte que estabeleceu a distância entre razão e a desrazão; quanto ao meio da razão agir sobre a desrazão para lhe retirar a sua verdade de loucura, de falta ou de doença, isso será resultante, e de longe.

Houve, portanto, um 'gesto de separação', ou seja, uma 'tomada de distância', um 'vazio instaurado' entre razão e não-razão. Como podemos identificar quando e no que consistiu a tal 'conjuração', a denunciada 'trama histórica'? Para tal investigação, Foucault desenvolveu o método 'estrutural', por ele definido como "um estudo estrutural do conjunto histórico — noções, instituições, medidas jurídicas e policiais, conceitos científicos" (idem, ibidem, p. 164). É essa estrutura, caracterizada pela 'separação', portanto pela 'exclusão', que

manterá cativa uma loucura, cujo estado selvagem não poderá enquanto tal ser jamais restituído. Apesar dessa inacessível pureza primitiva, o estudo estrutural deve ir em direção da decisão que liga e separa ao mesmo tempo razão e loucura ... . Assim poderá reaparecer a decisão fulgurante heterogênea ao tempo da história, porém inatingível fora dele (idem, ibidem, p. 164).

Quando surge a estrutura de exclusão? "Nos cento e cinqüenta anos que precederam e levaram à formação de uma psiquiatria considerada por nós como positiva" — indica Foucault. Ao constituir-se, a psiquiatria dá acabamento a um processo inaugurado com o 'gesto de separação' promovido pela razão. "Na história da loucura — afirma o filósofo — dois acontecimentos assinalam essa alteração com uma singular clareza: 1657, data da criação do Hospital Geral e da 'grande internação' dos pobres, e 1794, ano da mitificada libertação dos acorrentados de Bicêtre". Os dois marcos históricos — o decreto de fundação do Hospital Geral de Paris e o nascimento da psiquiatria moderna — são os elementos primordiais da estrutura de exclusão e encarregar-se-ão, segundo Foucault, "da passagem da experiência medieval e humanista da loucura à essa experiência que é a nossa e que confina a loucura na doença mental" (idem, ibidem, p. 165).

A estrutura de exclusão: o cogito cartesiano

No primeiro capítulo de História da loucura Foucault nos fala da lepra, do seu significado como a encarnação exemplar do 'mal', de seu fim e dos candidatos a ocupar seu lugar. A imaginação do leitor é estimulada a transitar pela literatura e as artes em geral, a percorrer rios europeus em naus errantes que transportavam os loucos e a acompanhar as freqüentes procissões de peregrinos em busca de curas milagrosas.

O segundo capítulo, 'A grande internação', inicia-se com a apresentação do cogito cartesiano, desenvolvido na primeira das Meditações de Descartes (1983). Aos olhos de Foucault, trata-se de uma passagem decisiva: é o anunciado 'golpe de força' da razão, com a expulsão sumária da possibilidade da loucura para fora do pensamento como tal.

Vejamos a passagem do cogito que, segundo Foucault, foi determinante para a sorte da loucura no Ocidente. Descartes apresenta as razões pelas quais podemos duvidar geralmente de todas as coisas. Por que duvidar? Porque a dúvida é o método que nos liberta de toda sorte de prejuízos, preparando, por conseguinte, o nosso espírito a desligar-se dos sentidos e de tudo o que pode nos levar ao erro. Quais são os fundamentos frágeis que não suportam a dúvida? O primeiro desses fundamentos são os sentidos, portanto a sensibilidade. "Ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez", declara Descartes (op. cit., p. 86). Por isso devemos submeter à dúvida todo conhecimento de origem sensível.

Prossegue, então, Descartes: "Mas, ainda que os sentidos nos enganem às vezes no que se refere às coisas pouco sensíveis e muito distantes, encontramos talvez muitas outras das quais não se pode razoavelmente duvidar, embora as conhecêssemos por intermédio deles". Em outras palavras, Descartes está a afirmar que encontramos "talvez" muitas outras coisas de origem sensível das quais não seria razoável duvidar.

Por exemplo — continua ele — que eu esteja aqui, sentado junto ao fogo, vestido com um chambre, tendo este papel entre as mãos e outras coisas desta natureza. E como poderia eu negar que estas mãos e este corpo sejam meus? A não ser, talvez, que eu me compare a esses insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos negros vapores da bile, que constantemente asseguram que são reis quando são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura quando estão inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro ... .

Um pouco mais adiante, Descartes enuncia a frase que é, para Foucault, a mais significativa: "Mas quê? São loucos, e eu não seria menos extravagante se me guiasse por seus exemplos".

Retornemos ao texto de Descartes no ponto em que o interrompemos: "todavia, devo considerar que sou homem e, por conseguinte, que tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília". Ou seja, Descartes sabe que sonha e que, portanto, o mundo pode não ser mais real do que o seu sonho. Ele recorre à hipótese do sonho e dos seus conteúdos para alcançar os conhecimentos de origem não sensível, muito particularmente as matemáticas, cujos conteúdos são verdadeiros "quer eu esteja acordado ou a dormir", e que somente poderão ser postos em dúvida pela presença artificial do Gênio Maligno.

A respeito dessas passagens, Foucault afirma: "Na economia da dúvida há um desequilíbrio fundamental entre a loucura, de um lado, e o sonho e o erro, de outro" (Foucault, 1972, p. 57). Alguns parágrafos antes, ele indica que "Descartes não evita o perigo da loucura do mesmo modo como contorna a eventualidade do sonho e do erro".

Não é uma condição necessária ao leitor ser filósofo para que a sua leitura seja reconhecida como legítima; quem ler o Descartes da Primeira Meditação compreenderá sem dificuldades o sentido do que ele está a nos dizer. Primeiramente, que a 'dúvida' se dá sobre as 'razões naturais': os conhecimentos sensíveis. Em momento algum Descartes parece "contornar" — como afirma Foucault — a eventualidade do sonho e do erro sensível. Em momento algum admite a possibilidade de deixar de fora da dúvida qualquer conhecimento que venha dos sentidos e da composição imaginativa (como os sonhos e a pintura). Assim sendo, só é possível para Descartes haver certezas e verdades de origem não sensível e não imaginativa. Em segundo lugar, o que Descartes nos apresenta são as várias fontes de conhecimento enganoso, porque "é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos enganou uma vez". E se há algo mais ameaçador do que a loucura são os sonhos, porque, diz o filósofo literalmente, "tenho o costume de dormir e de representar, em meus sonhos, as mesmas coisas, ou algumas vezes menos verossímeis, que esses insensatos em vigília".

Se nossa leitura necessita do aval de um filósofo, não há quem seja mais bem qualificado do que Derrida. Em 1963, numa conferência pronunciada no Collège philosophique com o título 'Cogito e História da loucura', dois anos após a publicação da obra de Foucault, ou seja, quando esta já ganhava grande repercussão, Derrida criticou contundentemente a leitura que seu discípulo havia feito de Descartes (Derrida, 1967). Sem qualquer pretensão de proceder a uma exposição detalhada do rico e profundo conteúdo dessa conferência, queremos observar algumas de suas passagens que complementam a leitura de Descartes que acabamos de fazer.

A respeito da dúvida cartesiana e do que Foucault diz ter sido contornado por Descartes, Derrida (idem, ibidem, p.77; grifos do autor) argumenta:

O núcleo [da certeza] é puramente inteligível e a certeza, ainda natural e provisória, que se atinge assim supõe uma ruptura radical com os sentidos. Nesse momento da análise, 'nenhuma' significação sensível ou imaginativa, enquanto que tal, é salva, nenhuma invulnerabilidade do sensível à dúvida 'é' experimentada. 'Toda' significação, 'toda' "idéia" de origem sensível é 'excluída' do domínio da verdade, 'assim como a loucura'.

Ou seja, não há qualquer exclusão especial da loucura do domínio do cogito, porque nada do sensível escapa à dúvida. E Derrida acrescenta: "Nada há de espantoso, a loucura não é um caso particular, e não é, aliás, o mais grave de ilusão sensível que interessa a Descartes".

No que se refere à extravagância da loucura na dúvida cartesiana, Derrida (idem, ibidem, p. 79; grifos do autor) comenta:

Não se trata aqui, para Descartes, de determinar o conceito da loucura, mas de se servir da noção corrente de extravagância para fins jurídicos e metodológicos, para pôr questões de direito concernentes 'somente' à verdade das idéias. O que é necessário se prestar atenção é que, 'desse ponto de vista', quem dorme ou o sonhador é mais louco que o louco. Ou ao menos, o sonhador, com respeito ao problema do conhecimento que interessa aqui a Descartes, está mais longe da percepção verdadeira que o louco. É no caso do sonho e não da extravagância que a totalidade absoluta das idéias de origem sensível torna-se suspeita ... .

Fizemos essa breve incursão no terreno da filosofia porque Foucault nos obriga a isso. Com efeito, não podemos deixar de formular algumas questões. Loucura é o mesmo que erro? Por que Foucault escolheu Descartes e não outro filósofo para integrar a estrutura da exclusão? Digamos que tenha sido porque, com Descartes, inaugura-se a filosofia moderna. Mas se esse filósofo não deu à loucura o estatuto atribuído por Foucault, por que a ênfase em afirmar que a loucura é excluída do cogito cartesiano? E mesmo admitindo-se que a Primeira Meditação teve tamanha importância para o estatuto da loucura na modernidade, o que o pensamento filosófico de Descartes tem a ver com o decreto da fundação do Hospital Geral, com a 'grande internação', ou mesmo com a libertação dos acorrentados de Bicêtre, um século e meio depois? Considerando-se o método estrutural tal como é definido por Foucault, o que o autoriza a reunir, no mesmo 'conjunto histórico', o cogito cartesiano, um decreto administrativo, o mito de Pinel em Bicêtre e a internação dos pobres de Paris? Para que tais elementos sejam organizados metodicamente e mantenham uma interação, espera-se que sejam regidos por determinadas normas ou leis. Como os elementos com os quais Foucault trabalha se inter-relacionam? E esses mesmos elementos identificados por Foucault, não poderiam eles serem organizados segundo um outro princípio (regra ou lei), como o da crescente diferenciação e autonomia das esferas do "mundo-da-vida"? (Habermas, 1987).

A estrutura da exclusão: a criação do Hospital Geral

A exclusão tem, para Foucault, um elemento estrutural 'jurídico-policial'. Trata-se do decreto de fundação do Hospital Geral de Paris, em 1650. A respeito, Foucault afirma: "Ao primeiro olhar, trata-se apenas de uma reforma — unicamente, de uma reorganização administrativa. Diversos estabelecimentos que já existiam são agrupados sob uma única administração ... . Todos são, contudo, afetados aos pobres de Paris" (Foucault, 1978, p. 60). Trata-se, portanto, de uma medida administrativa, com o objetivo de reorganizar as relações da sociedade francesa com os 'mendigos'. Foucault observa que a medida nada tem a ver com uma política de assistência em saúde, mas sim de "uma instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa mesma época" (idem, ibidem, p. 60).

Foucault coletou dados empíricos e reuniu-os conforme o seu critério de determinação estrutural: a exclusão. E chama a nossa atenção para um dado surpreendente: a cada cem habitantes da cidade de Paris, mais de um esteve internado por alguns meses. Uma vez que entre os internados também se encontravam loucos, ele conclui estar aí a prova da conjura dos poderes contra a loucura:

É entre os muros do internamento que Pinel e a psiquiatria do século XIX encontrarão os loucos; é lá — não esqueçamos — que eles os abandonarão, sem deixarem de glorificar por terem-nos 'libertado'. A partir do século XVII, a loucura esteve ligada a essa terra do internamento, e ao gesto que lhe designava como o seu lugar natural (idem, ibidem, p. 59).

O que os historiadores têm mostrado é que nesse período, entre os séculos XVI e XVII, ocorreu, por um lado, um processo de 'reorganização da caridade', uma mudança no modo como a Igreja e o Estado lidavam com o 'lugar sagrado' reservado aos pobres e, por outro lado, uma reordenação das políticas de 'ordem pública' diante do enorme aumento de 'vagabundos' (hoje denominados 'população de rua') — a perambular pelas cidades européias. A esse propósito, Postel e Quétel (1987, p. 101) aludem:

... como conseqüência dos sem-teto, os poderes públicos acrescentaram a severidade dos editos de proibição que, de alguma forma, já existiam há muito tempo (encontramos uma proibição de mendicância dos vagabundos válidos no Código de Teodósio, de 382, e numa decisão capitular de Carlos Magno). Não obstante, é um discurso novo o que aparece nas classes dirigentes no começo dos tempos modernos, que aponta para a reorganização da caridade com base numa seleção rigorosa dos bons e dos maus pobres, quer dizer, dos válidos e dos inválidos. Fenômeno europeu que conduz os próprios papas a decretar no século XVI a proibição de mendigar sob pena de prisão, de exílio, de galeras e a pensar na criação de um gueto para os pobres da Cidade Eterna.

Como causas dessas iniciativas, os autores apontam uma conjunção de determinantes, dentre elas as profundas mudanças no modo de produção econômica, com a passagem de um sistema feudal para um sistema capitalista, a lógica capitalista de trabalho e de lucro, a crescente urbanização das sociedades européias e a renovação da caridade, por exemplo.

É nesse contexto que ocorre o decreto de criação do Hospital Geral de Paris, em 1656. Não nos esqueçamos de que a palavra hospital vem do latim hospitalis, que significa ser afável e caritativo para com os hóspedes e, também, a casa que serve para acolher pobres e peregrinos por tempo limitado (cf. Da Cunha, 1986).

O objeto do hospital geral é dar acolhida indistintamente a todos os vagabundos: os mendigos válidos são sem dúvida a presa privilegiada, porém os anciãos, as crianças, os sardentos, os epilépticos, os loucos e, de maneira mais geral, os enfermos recebem acolhida de igual modo. Também nisso, a dimensão caritativa não deve ocultar-se em proveito da única perspectiva repressiva (idem, ibidem, p. 105).

Com respeito aos insanos, os autores chamam a atenção para um detalhe relevante:

Duas categorias de enfermos haviam sido até então rechaçados regularmente dos hospitais e hospícios: os que padeciam enfermidades venéreas e os insanos. Os primeiros por causa de seu contágio tanto físico quanto moral, os segundos porque incomodavam demasiado a seus próximos. Seja como for, o discurso que se vai preparando desde o século XVI, sobre a necessária reorganização da caridade, menciona no sucessivo de maneira explícita aos pobres insanos (idem, ibidem, p. 105).

A criação de Hospitais Gerais nos diversos países da Europa merece, portanto, uma leitura mais cuidadosa, porque dizer pura e simplesmente ter se tratado de um conluio da razão e de seus representantes não esclarece por que, nesse período, houve um crescimento de tal monta de mendigos. Paris tinha, na época, de quatro a cinco mil mendigos internados, para uma população estimada em cerca de quarenta mil mendigos e vagabundos de todo tipo. Ademais, o número de insanos internados não consistia um exagero, pois não ultrapassava dois mil em todo o reino francês, para uma população em torno de vinte milhões, no final do século XVII (idem, ibidem, pp. 102, 105).

Ao reforçar o mito de Pinel, Foucault nega a história

Chegamos afinal ao nascimento propriamente dito da psiquiatria. Foucault inicia o capítulo 'O nascimento do asilo' afirmando: "As imagens são conhecidas. São familiares a todas as histórias da psiquiatria, onde têm por função ilustrar essa era feliz em que a loucura é enfim reconhecida e tratada segundo uma verdade que não tinha sido enxergada durante tanto tempo" (Foucault, 1978, p. 459). A seguir transcreve, até de forma incomum ao seu estilo, duas longas citações. A primeira refere-se ao papel filantrópico dos quacres, na figura de Tuke. A segunda reproduz o célebre encontro de duas figuras legendárias: de um lado, Couthon, o temido representante da Revolução Francesa, e , do outro, o humanista e destemido Pinel, o 'Libertador dos Loucos'. Frente a essas imagens míticas, Foucault (idem, ibidem, p. 460) assim se posiciona: "Inútil as recusar. Resta-nos bem poucos documentos mais válidos. Além disso, elas são tão densas em sua ingenuidade para não revelar muito daquilo que não dizem." E completa: "Na ausência de documentos históricos válidos, resta-nos o mito". Para Foucault, portanto, em face da inexistência de fontes documentais consistentes, seria legítimo estudar o nascimento da psiquiatria tomando-se como referência o mito.

Podemos atribuir a Gladys Swain (1978), em sua tese de doutorado em medicina, defendida em 1977 e publicada com o título Le Sujet de la folie, o mérito de haver analisado detalhadamente, pela primeira vez, a fabricação do mito Pinel, os motivos e os autores responsáveis por tal falsificação histórica. Em nota de rodapé que ocupa três páginas, Swain esmiuça a fabricação do mito. Em resumo, a autora confere ao filho de Pinel, Scipion Pinel, a autoria de boa parte do conteúdo do mito. Pinel não teria tido, de fato, qualquer responsabilidade na sua construção, e seus escritos chegam mesmo a lançar por terra essa hipótese.

Na primeira edição do Tratado médico-filosófico sobre a alienação e a mania — conhecido simplesmente por Tratado — há uma pequena alusão, em nota, sobre a substituição do acorrentamento dos insensatos, "os mais extravagantes e os mais furiosos do hospício de Bicêtre", pelo uso da camisa-de-força, sem contudo esclarecer sobre as circunstãncias de tal substituição (Tratado, 1801, p. 190). Na segunda edição da obra, Pinel reconhece expressamente que "alguém que não ele" havia dado fim ao sistema de carceragem:

Não é sem lamentar profundamente que eu não pude ver (durante o exercício de minhas funções a título de médico de Bicêtre durante os primeiros anos da revolução) o fim feliz desse costume bárbaro e rotineiro; mas eu estava por outro lado tranqüilo, e eu me repousava sobre a habilidade do administrador desse hospício [Sr. Pussin] (Pinel, 1809, p. 201).

Mais adiante, Pinel afirma:

Ele [Sr. Pussin] conseguiu com êxito dois anos após [o início da experiência], e jamais nenhuma medida foi tão bem acertada e seguida com um sucesso tão marcante. Quarenta infelizes alienados, que gemiam sob o peso dos ferros há uns mais ou menos longos anos, foram postos em liberdade, apesar de todos os temores manifestados pela Administração central, e se tem permitido que andem livremente pelos corredores, contendo apenas os movimentos dos seus braços com a camisa de força: a noite eles ficavam livres em seus pavilhões.

Como bem observa Swain, foi necessário o Tratado ter caído em total esquecimento, e seu conteúdo praticamente apagado da história, para que o mito pudesse ser inventado. Até mesmo Foucault contribuiu para esse processo. Dada a importância desse fato, tomamos a liberdade de citar um trecho longo da obra de Swain (op. cit., p. 90), como contraponto à extensa citação feita por Foucault sobre a questão.

O espanto é mais considerável ainda quando, deixando de lado os antigos médicos envolvidos com as suas origens, cuja preocupação primeira não havia sido a exatidão em matéria de informação histórica, a gente se volta para um historiador mais recente, tão eminente e preparado quanto Michel Foucault, para constatar a sua ignorância ou seu silêncio deliberado sobre essa passagem, portanto crucial em sua pureza. O que nos diz ele, após ter citado longamente o relato de Scipion Pinel e sublinhado, é verdade, a parte da imagem e o peso da legenda? Que essas imagens, 'é inútil recusá-las. Restam-nos poucos documentos mais válidos' (Foucault, 1978, p. 484). Resta-nos assim mesmo um documento de primeira mão, curiosamente esquecido: o testemunho direto e formal do principal interessado, tanto menos suspeito por ser o contrário de uma de suas reivindicações de prioridade diante das quais não podemos constatar que Pinel tenha recuado.

Após lembrar o artigo curto de Peyrillier, de 1950, em que o autor chama a atenção para o que o próprio Pinel havia escrito, Swain evidencia as intenções de Foucault:

Sem parecer futricas de bastidores, nos será permitido ajuntar que a omissão é mais surpreendente ainda quando as referências de Foucault são manifestamente referências à segunda edição do Tratado, onde figura precisamente a versão de Pinel que nos reportamos — ainda que ele diga estar a citar conforme a primeira edição do ano IX. Mas a falta de concordância das paginações trai a sua verdadeira fonte, como, aliás, já foi evidenciado por Postel. Contentemo-nos de uma indicação a mais: na página 511 de História ele cita a p. 458 do Tratado. Ora, o texto da primeira edição compreende ao todo 304 páginas. Mas a referência é exata se tratando da segunda edição. Essas observações, de resto, procedem em linha direta dos ensinamentos metodológicos do próprio Foucault, da sua denúncia salutar da insuficiência de idas às fontes entre os seus antecessores e da relevância de uma consulta exata dos textos originais.

Ao contrário do que declara Foucault, há documentos de grande importância para uma melhor compreensão do que se passou à época. Bons exemplos deles encontram-se no livro de Postel (1998), em que está reunida bem mais de uma dezena de artigos escritos por Pinel, que vão desde aquele sobre o encontro de Pinel com o magnetismo animal, de 1784, aos artigos de 1786 a 1792, publicados na Gazette de Santé e na revista Médecine Éclairée (estes últimos do período em que Pinel trabalhou na casa de saúde Belhomme, quando aperfeiçoou o "tratamento moral", que aprendera com alguns autores ingleses), até os artigos do período Bicêtre, escritos entre 1793 e 1795, em momento capital e decisivo da sua carreira. Incluem-se também as cartas do seu enfermeiro Pussin à administração geral dos hospitais de Paris, vários escritos que nos indicam claramente o percurso de Pinel, um texto sobre a mania e o "tratamento moral", que prefigura o essencial das futuras monografias do médico, lidas na Société Médicale d'Émulation, e as duas primeiras seções da primeira versão do Tratado.

Por que Foucault subtraiu de sua história da psiquiatria documentos tão valiosos? O fato é que, voluntária ou involuntariamente, o filósofo preferiu empregar o que Barthes (1957) havia observado alguns anos antes: o mito como 'naturalização' do acontecimento histórico, como resultante 'não-politizada' de um 'esvaziamento do processo histórico' na sua intensidade significativa e propriamente dialética.

O que Foucault deixou de reconhecer

Pinel diz da sua experiência com os maníacos: que o exemplo dos alienados — dominados durante seus acessos "pelo furor extremamente impetuoso, e por um instinto sanguinário, que eles próprios sentem um grande horror" — ele o confrontou com o fato de não apresentarem "nenhum distúrbio, nenhuma desordem nas suas idéias, nada extravagante na imaginação" (Tratado, 1801). Por ter a periodicidade maníaca chamado a sua atenção, é muito provável que Pinel tenha sido levado a considerar, como sinônimos, os termos 'alienação mental' e 'mania intermitente', no título da primeira versão do Tratado. A exemplo do que ocorre com a mania periódica, é possível que a alienação mental seja marcada, em geral, pela distância relativa do louco em relação à sua loucura, por uma reserva subjetiva que o impede de ser tomado completamente pelo seu distúrbio. Porque o indivíduo não se encontra tomado por completo pela loucura, porque não perdeu de todo as suas faculdades mentais, porque há algumas afetadas e outras não, porque os acessos são por sua vez periódicos — por todos esses fatores é que o tratamento mental é possível.

Um acesso de mania — escreve Pinel (idem, ibidem, p. 21) — oferece todas as variedades (da alteração das funções do entendimento) que se poderia buscar pela via da abstração. Tanto essas funções são todas juntas abolidas, enfraquecidas, ou vivamente excitadas durante os acessos; tanto essa alteração ou perversão atinge apenas uma ou várias entre elas, enquanto que outras adquiriram um novo grau de desenvolvimento e da atividade que parecem excluir toda a idéia da alienação do entendimento.

Segundo a abordagem de Pinel, o acesso da mania periódica parece funcionar como matriz no seio da qual diferenciam-se e separam-se as futuras espécies da alienação. Para bem ilustrar o que acaba de ser dito, vale a pena uma rápida incursão histórica ao ano de 1794, mais especificamente a uma correspondência entre Pussin, então administrador de Bicêtre, e os representantes da Comissão das Administrações Civis e dos Tribunais, bem como a uma descrição clínica dos internos feita por Pinel, anexada à carta de Pussin. As cartas revelam que a Comissão havia solicitado a Pussin que mantivesse os internos em liberdade. O administrador responde, então, que tal medida já havia sido tomada com uma parte dos internos, porém era impossível estendê-la a todos por motivos de segurança, para a qual reclamava recursos. A Comissão solicita reiteradas vezes a Pussin a lista completa dos internos; Pussin recusa-se a atender o pedido, mas sua resposta é acompanhada pelo Quadro Geral dos Loucos de Bicêtre, redigido por Pinel (Postel, op. cit., pp. 222-25). Esse texto está dividido em três partes: segundo a natureza das "causas ocasionais"; segundo "o tipo particular da mania"; e segundo "o caráter ou maneira de ser habitual" dos doentes. Nele vê-se com clareza que o conceito de mania intermitente é a referência central, a estrutura a partir da qual se articulam uns com relação aos outros os diferentes tipos de alienação. A esse respeito, Swain (op. cit., p. 112; grifos da autora) comenta:

Tal é a originalidade profunda da classificação elaborada por Pinel: ela não 'justapõe' as entidades determinadas segundo critérios externos (como a etiologia ou a localização — do lado das faculdades como é hoje); ela 'articula' as espécies entre elas no interior de uma totalidade ela própria significante enquanto que totalidade, em função de critérios exclusivamente internos a essa totalidade.

O que Hegel (1970, p. 376-7), afirmará, poucos anos depois da primeira edição do Tratado, diz muito do impacto das idéias de Pinel sobre o pensamento ocidental: "A loucura — diz ele — não é em nada a perda abstrata da razão, nem sob o aspecto da inteligência, nem sob aquele do poder e da sua responsabilidade". O que Pinel havia revelado pela clínica, Hegel enuncia à maneira do filósofo: "A loucura é um simples desarranjo, uma simples contradição no interior da razão, que continua presente". O louco não escapa para um além onde ele encontraria, na sua regra subjetiva, o pleno acordo com ele próprio. Ele não se afasta da esfera do pensamento comum. Ele entra em "oposição e contradição" consigo próprio, "de tal sorte que seu estado é um transtorno e um infortúnio do espírito". Hegel afirma, ainda, que Pinel foi responsável por duas importantes proezas: a "de haver descoberto esse resto de razão nos alienados e maníacos, e de ter aí descoberto como contendo o princípio da sua própria cura" (idem, ibidem, p. 409).

Foucault não reconheceu o lugar atribuído à mania intermitente na gênese da psiquiatria, o que resultou num equívoco epistemológico com conseqüências graves. A lição que a mania intermitente nos traz, diz Pinel, está na sua própria intermitência. A alienação mental não pode ser considerada como ausência completa da razão ou das demais faculdades mentais, ao menos no caso da mania intermitente. Vemos que tal proposição contraria um dos pressupostos básicos de História da loucura: a conjuração da razão contra a loucura, realizada na instituição psiquiátrica. Um alienado mental que sofra da mania intermitente goza plenamente das suas faculdades mentais; ele não perdeu a razão, salvo quando é vítima de acessos de mania, que se manifestam de forma descontínua, com interrupções, em lapsos de tempo mais ou menos duradouros. A alienação é, portanto, "um episódio na vida" do sujeito do qual se é suscetível de sair, mesmo que ocorra ciclicamente. Se a alienação não é completa — como se acreditava antes —, é porque, mesmo durante os acessos de mania, devem subsistir faculdades mentais que permitem, posteriormente, o retorno ao estado normal.

Não foi por acaso que a primeira edição do Tratado teve tamanha repercussão; ela esgotou-se em pouco tempo e experimentou traduções imediatas para publicação em outros países. A partir de Pinel, a loucura pode ser tratada porque é possível 'dialogar' com o insensato. Assim, ao contrário da tese da exclusão, defendida por Foucault, com Pinel estabeleceu-se o acesso ao alienado mental. Com o nascimento da psiquiatria foi aberto o caminho para a reintegração, no círculo comunicativo, do alienado, tido até então como completamente encerrado, fechado, internado na sua estranheza com respeito a si próprio e aos outros. E como Swain e Gauchet (1980) demonstraram brilhantemente em La Pratique de l'esprit humain, o destino da loucura no Ocidente moderno constitui uma ilustração exemplar do processo de redefinição do lugar da alteridade, que, no processo orientado pela igualdade, vem desfazendo uma após outra as figuras do que é exterior ao humano.

Conclusões

Foucault equivocou-se. Reconhecer hoje tais equívocos é revisar uma leitura e contribuir para o deciframento de um mito, o que, aliás, preconizava o próprio Foucault, sempre empenhado tenazmente a libertar-nos de mitos a partir dos quais forjamos a nossa identidade. Um outro mestre, Roland Barthes (1957), ensinou-nos também que todo mito é uma linguagem roubada, uma palavra despolitizada.

Como observamos no começo deste artigo, uma releitura de História da loucura só tem validade sob a condição de traduzir-se numa busca para melhor entender os desafios do nosso tempo. Vejamos, então, alguns aspectos dessa reflexão.

É verdade que o discurso hegemônico da psiquiatria contemporânea parece estar alicerçado sobre princípios que negam a especificidade da 'realidade psíquica' no homem, princípios estes de natureza filosófica identificados historicamente como positivistas, pois buscam no biológico, no orgânico, no físico, em suma, na 'bio-poese', as justificativas racionais para a aliança quase que onipresente entre a psiquiatria e a poderosíssima indústria farmacêutica. Se Foucault pretendia denunciar essa racionalidade, melhor seria, a nosso ver, que tivesse demonstrado, com sua indiscutível capacidade intelectual, como a realidade psíquica foi e tem sido, historicamente, 'excluída' do discurso da psiquiatria contemporânea.

Na obra de Pinel, o fundador da psiquiatria moderna, há explicitamente a prevalência do moral sobre o físico, como podemos constatar apenas pelos títulos de alguns de seus artigos que precederam o Tratado. 'Observações sobre um gênero particular de perda de esperma, complicada por uma afecção dos pulmões' é um artigo de 1787, em que ele aponta os efeitos do moral sobre o físico, particularmente como o que é da ordem moral em seu paciente (o que hoje denominaríamos 'depressivo') mantém a enfermidade no peito (provavelmente a tuberculose) e pode provocar o escarro com sangue. Em 'O acesso da melancolia não é sempre freqüente e mais a se temer durante os primeiros meses do inverno?', outro artigo também de 1787, Pinel nos fala, como o título indica, dos efeitos nefastos do início do inverno sobre o desencadeamento dos acessos melancólicos e o aumento das tentativas de suicídio nessa época do ano. Um artigo de 1789, 'Observações sobre o perigo que experimentam as mulheres que recentemente pariram as emoções vivas da alma', pode ser, hoje, facilmente remetido às chamadas "psicoses do puerpério", em que são evidenciadas as repercussões do moral sobre o psíquico.

Por que o termo 'moral'? Qual é o papel da 'moralidade' no discurso do nascimento da psiquiatria? Sabemos que é um conceito ambíguo. Nos dicionários filosóficos, o termo remete "ao que concerne aos costumes, sejam as regras de condutas admitidas numa época, numa sociedade determinada" (Inwood, 1997), mas também ao que se refere ao estudo filosófico do bem e do mal, designando, portanto, o que é conforme à moral, o que visa à ação e ao sentimento, por oposição à lógica ou ao intelectual. Em conformidade com a tradição filosófica da sua época, Pinel alinha-se explicitamente àqueles que atribuem ao qualificativo 'moral' um tratamento que surge dos métodos psíquicos, em oposição às diversas terapêuticas orgânicas, físicas, medicamentosas da medicina mental. Tradição essa que nos leva à trajetória de Charcot, ao nascimento da psicanálise, à obra de Lacan, mas também ao pensamento de Laing, Cooper e Basaglia, representantes da antipsiquiatria ou de uma radical alternativa à psiquiatria.

Não é menos verdade que a instituição psiquiátrica está dominada pela hegemonia do modelo asilar de assistência, e Foucault denunciou tal supremacia resgatando a racionalidade desta, desde um século e meio antes do nascimento da psiquiatria moderna. Porém o filósofo abstraiu-se de abordar a loucura sob o ponto de vista moral, nos termos como os sujeitos históricos a concebiam na época, mesmo com toda a sua ambigüidade. Pinel acreditava que, transformando o contexto físico e social do alienado, seria possível tratá-lo. Em seu tempo, o asilo era o melhor meio de isolar o alienado dos condicionantes adversos ao seu bem-estar. As pretensões de poder do alienista sobre o alienado correspondiam às pretensões da sociedade (moderna) de ser senhora de si mesma, decidir o seu destino, buscar nela própria os seus fundamentos, ser soberana sobre o bem e o mal.

Teremos já superado a crença de que, transformando o contexto social — quer dizer, institucional —, estaremos enfrentando o 'objeto' da psiquiatria? Os fundadores da psiquiatria moderna acreditavam no "tratamento moral". Se traduzirmos essa expressão para a linguagem contemporânea, podemos dizer que eles acreditavam fortemente no poder da 'socialização', ao mesmo tempo a causa e o meio de tratamento dos distúrbios psíquicos. Ao longo de todo o século XIX e até bem pouco tempo, o modelo asilar foi concebido com uma exemplar 'máquina de socializar'.

No passado, julgava-se não haver laboratório melhor para investigação e prática dos princípios de socialização do que o espaço concentrador representado pelo asilo. Se compararmos a utopia de muitos dos reformistas contemporâneos com aquela, hoje amplamente reconhecida como autoritária, temos de reconhecer as dificuldades para distinções claras entre elas. Quando se defende, hoje, uma assistência psiquiátrica que englobe todos os aspectos da existência humana da clientela, que abranja todas as dimensões da vida cotidiana, como alimentar-se, dormir, relacionar-se com outros indivíduos, criar laços, amar, divertir-se, trabalhar, além de ser atendido por um clínico; quando se sustenta como terapêutica a instauração de um quadro coletivo que seja multiplicador de energias e promotor da sociabilidade; quando se pretende êxito lá onde o asilo fracassou, por meio da substituição dessa instituição, lugar zero de trocas sociais, pela multiplicidade extrema das relações sociais — o que estamos propugnando, no que diz respeito a novos significantes?

A 'exclusão' não é um tigre de papel!

Recebido para publicação em dezembro de 2001

Aprovado para publicação em maio de 2003

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004

Histórico

  • Recebido
    Dez 2001
  • Aceito
    Maio 2003
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