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O Museu, um ator sui generis na construção do campo científico e da nacionalidade no Brasil do século XIX

The museum: a unique actor in the construction of the scientific field and of nationality in nineteenth-century Brazil

LIVROS E REDES

O Museu, um ator sui generis na construção do campo científico e da nacionalidade no Brasil do século XIX

The museum: a unique actor in the construction of the scientific field and of nationality in nineteenth-century Brazil

Luciana Sepúlveda Köptcke

Pesquisadora do Museu da Vida lsk@coc.fiocruz.br

Ana Maria Alencar Alves

O Ipiranga apropriado: ciência, política e poder, o Museu Paulista 1893-1922. São Paulo Humanitas/FFLCH - USP, 2001, 213p.

O livro de Ana Maria Alencar Alves elege como objeto de investigação o Museu do Ipiranga no período que se estende de sua criação, em 1893, até as comemorações do centenário da República, em 1922. Abarca, portanto, todo o período da administração do naturalista Hermann von Ihering e ainda os primeiros anos da administração do engenheiro Afonso d'Escragnolle Taunay. O trabalho focaliza com especial interesse a gradual transformação do Museu Paulista, ao deslocar-se do campo da história natural para o relato da história pátria. Ana Maria — ao introduzir como discussão de fundo na condução da pesquisa a análise dos processos que relacionam a genealogia e a trajetória da instituição ao cenário da história local — salienta a influência do ambiente cultural, político, social e econômico brasileiro na implantação e atuação de um modelo externo de instituição científica. Outro ponto relevante desse projeto consiste em creditar a instituição como protagonista da investigação, e não apenas como cenário.

O trabalho ganhou corpo, comenta a autora, no contexto de discussões contemporâneas da história da ciência que questionam a idéia de universalidade das ciências, oferecendo abordagens alternativas. Como as de Xavier Polanco e Dominique Pestre, que apregoam a necessidade de se investigarem os espaços e processos de institucionalização dos campos específicos das ciências em diferentes países. A relação de sinergia entre desenvolvimento científico, progresso e processo civilizatório também é comentada. Foi a partir dessas questões que se construiu o Museu Paulista como objeto de estudo.

Com base em cuidadosa pesquisa de fontes documentais, o trabalho é desenvolvido em três partes. Na primeira, a autora analisa os antecedentes da criação do Museu Paulista, discutindo a apropriação do espaço simbólico do Ipiranga como terreno de luta em que se imbricam manifestações de poder na esfera política e os interesses em jogo na constituição do campo científico brasileiro. As primeiras idéias em favor da construção de um monumento no Ipiranga surgiram logo após a independência. Durante cerca de sessenta anos não "saíram do tinteiro" (p. 35). Longo foi o caminho percorrido entre idas e vindas ao Congresso Nacional, decretos e leis para a instituição de loterias a fim de levantar verbas para o projeto e discussões públicas nos periódicos sobre o uso desses recursos. A criação de um Museu de História Natural foi a solução privilegiada, capaz de congregar as diferentes posições em jogo, concluindo a celeuma sem fim.

Pode-se argumentar que a opção por um museu, em detrimento de uma escola, um instituto de pesquisa ou um monumento, se fundamentava na capacidade particular a essas instituições de promover a visibilidade e a materialidade de valores. No caso preciso do Ipiranga, o museu contemplava simultaneamente o desejo imperial de celebrar a proclamação da Independência como marco da jovem nação brasileira e a intenção republicana de afirmar o papel da ciência e da instrução no desenvolvimento futuro de um povo 'civilizado'. O compromisso republicano com o progresso científico e social assegurou, na colina do Ipiranga, a coexistência da função de celebração e da função instrutiva e científica em uma mesma instituição. Além dos interesses políticos, o campo das atividades científicas em formação no Brasil será o outro componente a contribuir para a instituição de um museu de história natural na província de São Paulo.

Cabe lembrar que museus são formas institucionais européias de origem humanista, tipicamente modernas, herdeiras do iluminismo. Encontraram no século XIX um momento apoteótico, traduzindo, segundo Timothy Mitchell, a importância da representação no projeto positivista de apreensão e colonização da realidade (Mitchell 1991-2). Essa capacidade de representar e expor, tornando o mundo visível e ordenado, apresentava de forma instantânea e material certezas científicas e políticas. Todavia, complementa Mitchell (idem, ibidem, p. 7), museus e exposições não se limitavam a refletir essas certezas. Eles contribuíam para a sua construção.

Em seguida, Ana Maria apresenta a atuação da administração Ihering, introduzindo os diversos aspectos da vida de uma instituição museal no século XIX. Realiza um levantamento das múltiplas atividades do museu sob essa administração, que aparecem classificadas, pela autora, segundo as funções assimiladas àquele estabelecimento, seja, a instrução pública, a produção de conhecimento científico e a exaltação da província paulista na memória nacional. São cobertas as atividades relativas à formação e ordenação das coleções e ao estudo destas, voltado tanto para a ciência pura quanto para a sua aplicação, principalmente no campo agronômico. As atividades referentes à publicação da Revista do Museu Paulista, a participação em certames científicos, as parcerias institucionais realizadas e as atividades de instrução e vulgarização das ciências também são registradas.

A autora expõe as diferentes áreas de estudo das ciências naturais presentes no museu — botânica, zoologia, antropologia, geologia —, e aponta a instituição como "precursora" da ecologia, pois foram numerosos os ofícios de Ihering defendendo a preservação das matas, pedindo proteção para a área dos saltos do Iguaçu e apelando em favor da criação de um parque nacional na área. Registra, ainda, a presença da história mesclada às coleções científicas, embora de forma discreta.

Deve ser valorizado o relato dos fazeres cotidianos do museu e os atores envolvidos, com o qual nos presenteia a autora, desvelando a miríade de atividades que procuravam trazer para a prática os grandes propósitos da instituição. Nesse exercício de registro são igualmente expostos processos e relações que contribuem para sinalizar contradições e frustrações entre o que se deseja e o que se consegue realizar. Essas contradições sugerem pistas de estudo e exigem aprofundamento para a elaboração de uma análise interpretativa, apontando para uma rica agenda de pesquisa para a historiografia dos museus.

Como exemplo ilustrativo, resgatamos a menção feita às conferências públicas. Ensejadas para estimular a comunicação com as massas, essas atividades responderiam à atribuição de contribuir para a instrução pública (p. 128). Todavia, as poucas experiências realizadas nesse sentido foram menos no museu e mais no campo de suas relações com outras instituições (p. 129). Solicitadas por universidades ou associações científicas, são testemunhos de uma relação entre pares, ou, no máximo, representam uma iniciativa de cunho formativo para estudantes de nível superior, público referido como "seleta assistência".

O esforço de compreensão dos processos de produção e circulação do conhecimento e das práticas e usos sociais relativos às suas instituições solicita uma análise que integre simultaneamente intenções e práticas cotidianas. No caso acima exemplificado, a disposição institucional parece não encontrar retorno junto ao público. Mas a que fatores podemos efetivamente imputar esta frustração? Conferências eram realizadas em instituições afins? Qual a resposta do público nas outras instituições? O teor das conferências considerava interesses e questões pertinentes fora do âmbito estritamente acadêmico? Como eram divulgadas? O diferente perfil dos públicos era considerado (operários, famílias, escolares de nível fundamental)?

Assim, em diversas passagens de seu texto, Ana Maria aponta situações em que constata fatos geradores de variada agenda de investigação. Outro exemplo instigador refere-se ao apogeu e declínio da relação entre o museu e as escolas, analisados a partir do registro dos serviços prestados pelo primeiro e do registro das solicitações do segundo (p. 99-103, 154-156), nos dois períodos analisados. Constata-se a desaceleração das trocas com as instituições escolares durante a administração Taunay, mas este fato na verdade se inicia já durante a fase anterior, acentuando-se durante o período de crise da administração Ihering. A que se pode atribuir esse arrefecimento da visita escolar? A iniciativa das visitas era fruto de políticas públicas, havia obrigatoriedade ou algum apoio financeiro às visitas? Com relação à leitura das fontes, os ofícios trocados entre escolas e museus foram registrados de modo sistemático, cobrindo a totalidade de ocorrências, ou apenas esporádico?

Ao considerar os diferentes atores e interesses envolvidos na criação e atuação da instituição, no intuito de compreender as relações entre o museu, o saber a que deu lugar e a sociedade da época, a autora compõe um quadro rico em informações sobre a natureza complexa do funcionamento das instituições museais. Permite assim, ao leitor, aproximar-se das rotinas, atividades científicas e educativas, do quadro profissional (como o viajante naturalista e o zelador) que povoavam essas instituições. Registra as estratégias ensejadas para aumentar o número de visitantes do museu (e a preocupação com o público), assim como entrevê a importância e a natureza, no século XIX, das atividades voltadas para o público escolar.

Ficam patentes algumas particularidades do Museu Paulista com relação a seus contemporâneos: o Museu Goeldi, o Museu Nacional, o Museu Paranaense. A primeira e mais notória, coloca Ana Maria, refere-se à metamorfose do museu de ciências naturais para museu histórico, iniciada no decorrer da administração Taunay. Tal processo foi realizado ao longo dos anos, com a transferência de suas coleções de ciências naturais para outras instituições. As coleções botânicas partiram em 1927 para o então criado Instituto Biológico. A de zoologia, em 1939, transferiu-se para o Departamento de Zoologia da Secretaria de Agricultura (p. 181). Finalmente, em 1963 o museu foi incorporado à Universidade de São Paulo, e o processo de transformação encontrou-se totalmente concluído após a transferência das coleções de arqueologia e etnologia, no âmbito do decreto de unificação dos museus e órgãos afins da Universidade de São Paulo, em 1989.

Outra particularidade desse museu diz respeito ao modelo de organização privilegiado na administração Ihering, com referências explícitas ao norte-americano George Brown Goode, diretor do Museu Nacional dos Estados Unidos e uma autoridade em museus de história natural (p.83). A influência norte-americana nos museus se estendeu igualmente ao Velho Mundo, no limiar entre o século XIX e primeiros anos do século XX, dando ênfase ao interesse pelo público e às ações educativas na organização interna das coleções e no modo de expô-las. Notamos que, aparentemente, foi o modelo europeu o privilegiado em instituições congêneres no Brasil, como, por exemplo, no Museu Nacional de História Natural do Rio de Janeiro. Conhecer e compreender as circunstâncias da escolha e da implantação desses modelos nos museus constitui, sem dúvida, um item de pauta pertinente para a discussão sobre a genealogia e trajetória dessas instituições.

Com relação à crise do Museu Paulista, que antecede a transição entre a administração de Ihering e a de Taunay, a autora sugere, como perspectiva para uma análise compreensiva, o contexto da guerra de 1914-1918 e o antigermanismo. Entretanto, não há provas conclusivas, embora a guerra tenha certamente contribuído para a diminuição das verbas destinadas ao museu, situação generalizada mundo afora. Argumenta também que o naturalista pode ter caído em desgraça política, em razão de sua posição contrária ao desmatamento de florestas nacionais ameaçadas por madeireiras.

Ainda procurando explicar a crise, considera o descompasso entre o modelo científico vigente e a organização material dos museus, situando a crise do Museu Paulista na pauta da situação crítica dos museus de história natural europeus, constatada por Ihering, durante viagem feita em 1907. Em 1915, Ihering observava que o Museu Paulista não se encontrava com as adaptações consideradas necessárias para se tornar um museu moderno. Era uma instituição especializada, com coleções separadas, mas, de resto, faltava investimento.

Segundo o naturalista, a inadequação entre a organização material dos museus e sua finalidade, ou seja, a instrução e o progresso da ciência, foi apontada como a causa mor da falta de prestígio de algumas instituições européias (p.141). Ihering observou a dificuldade da maioria dos museus europeus em implementar as 'inovações', como a divisão entre coleção de estudo e coleção didática e a organização destas em "agrupamentos determinados pela convivência sob as mesmas condições físicas e biológicas e pela relação que mantinham na natureza e com a natureza, ... obedecendo às novas exigências do atual estado das ciências" (p. 142).

Sinalizamos, nesse sentido, segundo o historiador da ciência John Pickstone, que a atuação científica dos museus europeus e norte-americanos na segunda metade do século XIX, seguiu um modelo epistemológico abrangente, caracterizado como analítico, museológico ou diagnóstico (Pickstone, 1994). Os museus apresentavam os objetos de suas coleções em grupos que procuravam ilustrar relações, cuja análise visava evidenciar processos subjacentes, contribuindo para a redação de uma "gramática geral da natureza" (idem, ibidem, pp. 113, 117). Esse modelo, que deveria substituir paulatinamente o grande 'inventário da natureza', encontraria nos museus um espaço estratégico de articulação, produção e visibilidade.

Todavia, considerando o testemunho de Ihering de 1907, tal modelo não estaria implementado sincronicamente de forma hegemônica em todas as instituições. Ao contrário; entre projeto, intenção e implementação houve descompasso. Cabe notar igualmente que, ainda naquele século, conviveram diferentes modelos para as ciências da vida, e, de certa forma, o desenvolvimento da ciência experimental fragilizou a capacidade das instituições museais de produzir "provas científicas" ("legitimization of research evidence", Macdonald, 1999). Ao mesmo tempo afirmou como papel social para os museus a validação da ciência junto ao público, ou, ainda, "o entendimento público da ciência" ("the public understanding of science", idem, ibidem, p. 13). Obviamente essa análise, realizada a partir de olhar retrospectivo de um historiador do final do século XX, exclui o sentimento de morosidade e os processos particularizados das transformações, assinalados no depoimento de um ator contemporâneo ao processo (Ihering, op. cit.).

Finalmente, a proposta para reorganizar a exposição do Museu Paulista, apresentada em 1911, para reverter o quadro crítico, não pôde ser efetivada por Ihering, que abandonou a cena tristemente, sob acusações de irregularidades administrativas, tendo sido demitido oficialmente em agosto de 1916. A crise em questão foi, por um lado, política, tecnocientífica e financeira, na convergência de fatores endógenos e exógenos ao museu.

Concluindo a última parte de seu trabalho, ao apresentar a administração Taunay, a autora faz questão de salientar, não um projeto personalista de transformação da instituição, mas fatores contingentes que pontuaram a metamorfose do museu. Embora tivesse mantido as atividades de história natural, o museu foi se caracterizando cada vez mais como locus da história pátria. Note-se o peso das festividades do centenário da independência no espírito da administração de Taunay, bem como interesses mais localizados, referentes à valorização da importância histórica do estado de São Paulo como argumento no embate de forças do cenário político republicano.

O livro de Ana Maria, além de contribuir para uma melhor compreensão do cenário institucional das ciências no Brasil no período em questão, sugere diferentes perspectivas ou agendas para uma história social dos museus, focalizando os usos e as práticas relacionados à instituição, ou ainda identificando elementos para uma história ou sociologia dos seus profissionais (diretores, curadores e outros).

A autora consegue explicitar com situações concretas as relações entre tendências internacionais e apropriações locais, enquanto harmoniza em sua narrativa aspectos e forças políticas, científicas e sociais, trazendo elementos para uma leitura mais complexa do objeto analisado.

Vale ressaltar a inegável contribuição da história da ciências para a historiografia brasileira sobre os museus. O historiador francês Dominique Poulot, ao comentar a situação da reflexão histórica sobre os museus em seu país, aponta que, semelhante à situação constatada por Ana Maria no Brasil, trata-se de um quadro heteróclito. Ana Maria comenta tratar-se de um "mosaico composto por obras de diversos tipos" (p. 23). Poulot salienta que os museus não se beneficiaram de uma releitura crítica da história, pois eram considerados objetos de investigação sem interesse, na qualidade de instituições povoadas por minúsculas elites.

O Ipiranga apropriado é certamente uma boa referência para o leitor interessado em conhecer e refletir sobre os espaços de produção e apropriação do conhecimento científico e da cultura em São Paulo, entre os séculos XIX e XX, mas também, de forma particular, sobre a natureza do papel dos museus nesses processos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Macdonald, S. (org.) 1999 'Exhibitions of power and powers of exhibition - an introduction to the politics of display'. The politics of display, museums, science, culture, London, Routlegde, p. 1-24.

Mitchell,T. 1991-2 Colonizing Egypt. Berkley/Los Angeles, California University Press.

Pickstone, J. 1994 'Museological science? The place of the analyticalcomparative in the nineteenth-century Science, technology and medicine'. History of Science, 32 (2), p. 111-38.

Poulot, Dominique 1995 'Bilan et perspectives pour une histoire culturelle des musées'. Publics et Musees, (2), Lyon, PUL, p. 125-45.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jul 2004
  • Data do Fascículo
    Abr 2004
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