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As atividades do naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva em sua 'fase portuguesa' (1780-1819)

The work of naturalist José Bonifácio de Andrada e Silva during his 'Portuguese phase' (1780-1819)

Resumos

José Bonifácio de Andrada e Silva tem presença marcada na historiografia, de forma quase consensual, como o Patriarca da Independência, primado concedido a seu perfil de estadista e parlamentar. Contudo, ele notabilizou-se também como estudioso e pesquisador do mundo natural. Dentre outras atividades nesta área, administrou espaços governamentais portugueses ligados diretamente à mineração e à agricultura. Um destes loci institucionais foi a Intendência Geral das Minas e Metais do Reino, órgão que formulava a política de exploração mineral em Portugal no início do século XIX e realizava pesquisas no campo da mineralogia. A Intendência foi um espaço de importante produção científica no campo da mineralogia e contribuiu para a difusão das modernas idéias científicas pela sociedade portuguesa, o que ratifica a tese de que a Academia não era a única instituição produtora de ciência em Portugal.

história das ciências; história das geociências; história do Brasil; história das ciências naturais


José Bonifácio de Andrada e Silva has his presence noticed into History, towards his identification as the Patriarch of the Independence, which corresponds to his profile of Statesman and Parliamentary. However, he also became noted as a studious man and a researcher of the natural world. He managed Portuguese governmental spaces connected directly to mineralogy and agriculture. One of these institutional loci was the General Departament of Mines and Metals of the Kingdom, institution that formulates the politics of mineral exploitation in Portugal at the beginning of the 19th century and carried on researches in the mineralogy field. The Departament became an important space of scientific production in the mineralogy field, contributing to the spread of the modern scientific ideas to the Portuguese society.

Science history; Geo-sciences; History of Brazil; Natural Science History


ANÁLISE

As atividades do naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva em sua 'fase portuguesa' (1780-1819)

The work of naturalist José Bonifácio de Andrada e Silva during his 'Portuguese phase' (1780-1819)

Alex Gonçalves VarelaI; Maria Margaret LopesII; Maria Rachel Fróes da FonsecaIII

IMestre em geociências na área de educação aplicada às geociências, IGE/UNICAMP

IIProfessora da Pós-Graduação em Educação Aplicada às Geociências, IGE/UNICAMP

IIIPesquisadora do Departamento de Pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz

RESUMO

José Bonifácio de Andrada e Silva tem presença marcada na historiografia, de forma quase consensual, como o Patriarca da Independência, primado concedido a seu perfil de estadista e parlamentar. Contudo, ele notabilizou-se também como estudioso e pesquisador do mundo natural. Dentre outras atividades nesta área, administrou espaços governamentais portugueses ligados diretamente à mineração e à agricultura. Um destes loci institucionais foi a Intendência Geral das Minas e Metais do Reino, órgão que formulava a política de exploração mineral em Portugal no início do século XIX e realizava pesquisas no campo da mineralogia. A Intendência foi um espaço de importante produção científica no campo da mineralogia e contribuiu para a difusão das modernas idéias científicas pela sociedade portuguesa, o que ratifica a tese de que a Academia não era a única instituição produtora de ciência em Portugal.

Palavras-chave: história das ciências; história das geociências; história do Brasil; história das ciências naturais.

ABSTRACT

José Bonifácio de Andrada e Silva has his presence noticed into History, towards his identification as the Patriarch of the Independence, which corresponds to his profile of Statesman and Parliamentary. However, he also became noted as a studious man and a researcher of the natural world. He managed Portuguese governmental spaces connected directly to mineralogy and agriculture. One of these institutional loci was the General Departament of Mines and Metals of the Kingdom, institution that formulates the politics of mineral exploitation in Portugal at the beginning of the 19th century and carried on researches in the mineralogy field. The Departament became an important space of scientific production in the mineralogy field, contributing to the spread of the modern scientific ideas to the Portuguese society.

Keywords: Science history, Geo-sciences, History of Brazil, Natural Science History.

O estudo da trajetória de José Bonifácio de Andrada e Silva apresenta um campo apropriado — e perspectivas fecundas — de trabalho em história das ciências. Isso porque, em primeiro lugar, sua presença na bibliografia especializada se faz, de forma quase que consensual, principalmente em torno de sua identificação como o Patriarca da Independência, o que, grosso modo, corresponde ao primado concedido a seu perfil de estadista e parlamentar. Mas estas são análises que enfatizam o viés político de sua trajetória histórica, deixando de incorporar sua dimensão de naturalista.

José Bonifácio notabilizou-se não apenas como homem público, mas também como estudioso e pesquisador do mundo natural. Ele participou de viagens científicas, foi sócio de inúmeras sociedades científicas européias, publicou diversas memórias no âmbito da história natural e administrou espaços governamentais portugueses ligados diretamente à mineração e à agricultura. Desse modo, em que pese a densidade da bibliografia a seu respeito, há lacunas que estimulam o caminho da reflexão em novas direções.

O objetivo deste trabalho é resgatar o viés naturalista de José Bonifácio durante o período em que viveu em Portugal, tendo como premissa fundamental o fato de que seu perfil como filósofo natural e homem público não pode ser estudado de forma isolada. Como homem típico da Ilustração que ele era, cabe cruzar e entrelaçar os dois aspectos mencionados.

José Bonifácio na Universidade de Coimbra

José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos, em 1763. Era filho de dona Maria Bárbara da Silva e Bonifácio José de Andrada. O pai era alto funcionário da Coroa, embora também tivesse outras atividades, como o comércio, e possuía a segunda maior fortuna de Santos. Tinha outros irmãos, dentre os quais destacaram-se Martim Francisco e Antônio Carlos.

A instrução primária do menino foi dada pela própria família, destacando-se nessa tarefa seus tios padres, uma vez que as escolas primárias de Santos não tinham um ensino de boa qualidade. Juntamente com os dois irmãos, José Bonifácio foi para São Paulo com o intuito de receber uma formação que complementasse aquela recebida no âmbito familiar. Nesta cidade, freqüentou o curso preparatório mantido por frei Manuel da Ressurreição, o que lhe possibilitou os primeiros contatos com a cultura clássica. Também assistiu a aulas de gramática, retórica e filosofia, matérias indispensáveis para quem desejava estudar em Coimbra (Sousa, 1957).

Em 1780 viajou para Portugal, matriculando-se na Universidade de Coimbra, nos cursos de direito canônico e filosofia natural. Naquele espaço, ele e seus dois irmãos, membros da elite colonial, juntaram-se às elites cultas da metrópole que também ali estudavam; juntos leriam as mesmas obras e receberiam a mesma formação (Nizza da Silva, 1999).

José Bonifácio ingressou na Faculdade de Filosofia — criada no conjunto das reformas pombalinas com o objetivo de ensinar ciências naturais e ciências físico-químicas —, cujo curso regular tinha duração de quatro anos. Não havia qualquer curso preparatório, e no ensino sobressaíam os compêndios de Antonio Genovese, Carl von Linné, Petrus von Musschenbroek e a História natural de Plínio.

Durante o período em que esteve na universidade, José Bonifácio recebeu uma ampla formação. Na Faculdade de Direito cursou as cadeiras de português, direito natural, história do direito civil romano, elementos de direito romano, elementos de direito canônico, direito civil pátrio e jurisprudência. Na Faculdade de Filosofia, por sua vez, fez as cadeiras de história natural, física experimental, química teórica e prática. E na Faculdade de Matemática freqüentou o curso de geometria.

No período em que estudou em Coimbra, pôde observar o desleixo com a aplicação das medidas reformistas empreendidas por Pombal. Este fato levou-o a escrever, em 1785, juntamente com Francisco de Melo Franco, outro português natural do Brasil e que lá estudava, um poema satírico intitulado 'No reino da estupidez', em que mestres e cursos recebiam pesadas críticas.

Foi, portanto, nesse espaço institucional, de onde a reforma pombalina não conseguira varrer de uma vez só os modelos tradicionais, que José Bonifácio recebeu o título de bacharel em filosofia e leis, no dia 16 de julho de 1787 — embora o diploma só lhe fosse concedido em julho do ano seguinte. Em virtude de sua titulação, optaremos por denominá-lo filósofo natural. Isso porque a palavra cientista ainda não era usada naquela época, evitando-se assim anacronismos históricos (Barnes, 1987, p. 8). Além disso, cabe registrar que foi como filósofo que ele próprio se autodefiniu em uma de suas notas:

Eu não sou partidarista da mitosofia ou da teosofia. Sou filósofo, isto é, constante indagador da verdadeira e útil sabedoria. Deixo aos Platônicos velhos e novos o seu Autoagathon; e procuro somente conhecer os homens e as coisas pelo lado do seu uso prático, para deles adquirir o conhecimento útil (IHGB, 192, 59 H).

Embora assinalando esses dois aspectos que caracterizavam o moderno pensamento científico, o pragmatismo e o utilitarismo, José Bonifácio não mencionava uma terceira atitude que também estaria presente em suas ações como estudioso — e que complementa as duas já citadas, reforçando assim a modernidade do seu pensamento: a atitude de identificar e classificar os elementos do mundo da natureza, sobretudo os minerais.

Cabe registrar que seguiremos a análise de Ferrone (1997) sobre o estudioso das ciências do século XVIII, para analisarmos a atuação de José Bonifácio de Andrada e Silva. Da mesma forma que a carreira dos estudiosos que viviam nas sociedades do Ancien Régime, a de José Bonifácio como filósofo foi caracterizada por encerrar-se completamente na fidelidade a uma espécie de dupla identidade.

Primeiro, observa-se sua adesão ao modelo do homem de ciência organicamente ligado ao Estado, que aceitava inteiramente a lógica e os valores de uma sociedade hierarquizada, estabelecida, organizada por ordens, classes e corpos diferenciados segundo dignidades, honras, onipresença do privilégio e categorias. O Estado atribuía ao estudioso das ciências honras e privilégios, conforme o costume e a lógica do Ancien Régime, que iam desde uma isenção parcial dos rendimentos à dispensa do serviço militar, à honrosa possibilidade de ser levado à presença do rei, ao recebimento de bolsas de estudo, à participação no cerimonial da Corte e nas manifestações públicas. O compromisso com o monarca e com o sistema de organização da vida intelectual assente no patronage permitia, aliás, desenvolver a fundo as potencialidades do método científico e aumentar o número dos protagonistas, em virtude dos financiamentos, das pensões, dos privilégios ampliados pelo soberano. O homem de ciência do século XVIII, no contexto do antigo regime, era basicamente um funcionário do Estado, cujas atividades eram financiadas pelos monarcas, revelando assim o pacto tácito com o poder.

Por outro lado, observa-se na prática científica do filósofo estudado a adesão e difusão do enciclopedismo, a ideologia científica do progresso, o utilitarismo e o pragmatismo, assim como a vontade e o desejo de classificar os elementos do mundo natural, traços que caracterizam o moderno pensamento científico. Ademais, cabe assinalar o fato de ele ser membro da 'República das Letras', com os seus valores cosmopolitas, uma vez que participou ativamente de inúmeras sociedades científicas e publicou trabalhos sobre suas pesquisas, que seguiam o método moderno da observação e da experimentação.

'Adquirindo os modernos conhecimentos mineralógicos': a viagem científica pela Europa Central e do Norte

No dia 4 de março de 1789 José Bonifácio, conduzido pelas mãos do duque de Lafões, ingressou na Academia Real das Ciências de Lisboa. Este espaço foi, por excelência, o centro de apropriação das idéias da Ilustração em Portugal no período mariano e de sua adequação à realidade da sociedade lusa.

Logo que entrou para a Academia, sob a proteção do duque de Lafões, José Bonifácio foi nomeado para a realização de uma viagem científica por diversos países europeus, juntamente com Manuel Ferreira da Câmara Bethencourt e Sá e Joaquim Pedro Fragoso. Para a realização deste empreendimento, o ministro Luiz Pinto de Souza baixou uma minuciosa Instrução para a realização da viagem de aperfeiçoamento técnico através da Europa (31.5.1790). Nesta foi determinado que Manuel Ferreira da Câmara seria o "chefe de Brigada", sendo responsável pela "decisão do tempo dos estudos e das viagens, do destino de cada um dos sócios, e dos sítios aonde deviam empregar-se" (Falcão, III, 1963, p. 169).

O recebimento da bolsa de estudos para a realização da viagem oferecida pelo governo português nos permite afirmar que José Bonifácio acabava por inserir-se na 'lógica do prestígio', uma vez que vivia sob a proteção do Estado (por meio de cargos, pensões, mesadas etc.). Ao passar a viver literalmente às custas da Coroa portuguesa, passava a ter uma posição privilegiada em sua sociedade — porque isso significava a proximidade com a Coroa, a participação em sua vida e o recebimento de pensões. Portanto, privilegiada porque dependente (Elias, 1995).

Na Instrução estavam listados determinados locais por onde os filósofos deveriam passar. O percurso, longe de ser delineado arbitrariamente, era estipulado pelo poder administrativo. Em segundo lugar, os participantes contariam com uma ampla rede de diplomatas em todos os locais que visitassem, facilitando a entrada e permanência nos países determinados pelo poder régio.

Primeiramente deveriam ir à França, país expoente da Ilustração européia e onde ocorreu a chamada 'revolução química', liderada por Antoine Laurent Lavoisier, assim como importante centro em que se desenvolveu a Escola de Mineralogia Cristalográfica, que teve como expoentes Romé de L'Isle e o abade René-Just Haüy. Em Paris deveriam fazer um curso completo de química com M. Fourcroy (Antoine François de Fourcroy, 1755-1809) e outro de mineralogia docimástica com M. Le Sage (Balthazar-Georges Sage, 1740-1824).

José Bonifácio fez o curso de Fourcroy, pois recebeu um certificado que atesta a sua presença em um "curso particular de Mineralogia e Química em meu laboratório [ Fourcroy ]" (Falcão, III, op. cit., p. 170). Ao freqüentar as aulas deste importante químico francês, o filósofo natural entrava em contato com as principais idéias da 'revolução química', uma vez que Fourcroy colaborou para a formulação da 'nova' nomenclatura química, baseada na teoria da oxidação e da combustão e que negava a existência do flogisto. Aceitar a nova nomenclatura significava, assim, aderir às novas idéias (Bensaude-Vincent, Stengers, 1996).

Por sua vez, o curso de mineralogia programado para ser feito com o professor Le Sage não foi realizado sob a responsabilidade deste, mas do professor Guillot Duhamel, na Escola de Minas de Paris (Falcão, III, op. cit., p. 172). Se tivesse feito o curso de Le Sage, José Bonifácio teria estudado a mineralogia docimástica, área de especialização do estudioso francês. O curso que Duhamel oferecia na Escola de Minas estava relacionado "à arte do minerador, à arte do metalurgista, à geometria elementar subterrânea, teórica e prática, ou ao tratado dos filões ou veios mineralógicos e sua disposição pelo seio da terra" (Arlet, 1991, p. 97).

Na França, foi admitido como membro correspondente da Sociedade Filomática de Paris, em sessão de 29 de janeiro de 1791, da qual era presidente Alexandre Brogniart (1770-1847). Por sua vez, a 4 de março de 1791, foi admitido como membro da Sociedade de História Natural de Paris, onde apresentou a 'Memória sobre os diamantes do Brasil', publicada pela primeira vez no ano de 1792, nos Annales de Chimie da mesma sociedade. Uma versão inglesa do mesmo artigo foi publicada no ano de 1797, no Journal of Natural, Philosophy, Chemistry and Arts de Londres.

Passando para a descrição cristalográfica, comentou as várias formas de diamantes existentes no 'Brasil'. Ao identificar cristalo-graficamente as produções diamantíferas presentes em Serro do Frio, Bonifácio fez uso de dois sistemas de classificação de minerais, o de Johann Gottschalk Wallerius e o de Romé de l'Isle. O primeiro sistema baseava-se no uso do critério químico para a divisão dos minerais e distinguia as características minerais internas das externas. Os caracteres externos que permitiriam a classificação eram cor, forma, gosto, cheiro (propriedades físicas), usos e ocorrência. Caso estas características fornecessem um quadro incompleto e incerto, utilizavam-se então as análises químicas (Guntau, 1997, p. 212).

Por sua vez, o sistema de classificação de Romé de l'Isle baseava-se nos aspectos formais do sistema de classificação proposto por Lineu, ou seja, o uso da forma do cristal para classificação e a insis-tência na hierarquia das classes minerais. Em seu Ensaio de cristalografia, de 1772, Romé de L'Isle argumentava que os cristais eram ordenados de acordo com a forma e encadeados juntos em grupos de formas secundárias derivadas de algumas primárias, por meio de partições imaginárias. Ele afirmava que os cristais eram compostos por pequenas "moléculas integrantes" salinas, elas próprias compostas por "moléculas constituintes" ácidas e alcalinas. Cada mineral possuía uma estrutura e uma composição fixadas. Portanto, mantinham-se as classes minerais então necessárias para a taxonomia lineana (Laudan, 1987, p. 76; Hooykaas, 1994, p. 56).

O uso de sistemas de classificação tão distintos na prática científica de José Bonifácio de Andrada e Silva não era apanágio apenas deste filósofo natural. José Vieira Couto, outro estudioso da filosofia natural daquela época, em sua prática científica de classificação dos minerais, também utilizava diversos sistemas de classificação (Silva, 2002, pp. 72-4). Tal tendência pode ser explicada pela formação de ambos os personagens na Universidade de Coimbra, espaço que se caracterizava por apresentar um enfoque eclético e pragmático.

Da mesma forma que Couto, também um estudioso da mineralogia, José Bonifácio foi aluno do paduano Domenico Vandelli, primeiro lente de química da Universidade de Coimbra e também professor de história natural, assim como principal expoente do subgrupo de naturalistas da Academia Real das Ciências de Lisboa, de cujos quadros participava o filósofo natural. Na Universidade de Coimbra, Vandelli seguia o método de Lineu nas cadeiras em que lecionava.

Após o período na França, os filósofos dirigiram-se, seguindo a Instrução, para Freiberg, na Saxônia, centro mais avançado em mineração e estudos correlatos da Europa, além de sediar a primeira academia de minas do mundo, a Bergakademie Freiberg. Deveriam freqüentar o curso de minas daqueles distritos, assim como assentar naquele local "praça de mineiros, para adquirirem todos os conhecimentos práticos". Ambos receberam autorização da Superintendência das Minas para seguir pelas "obras de mineração e as instalações de depuração e lavagem a elas pertencentes" (Falcão, III, op. cit., p. 173). José Bonifácio assistiu ao curso de orictognosia e geognosia dado pelo professor Abraham Gottlob Werner, de quem se tornaria discípulo (idem, ibidem, p. 176).

A geognosia (literalmente, 'conhecimento da terra') era o campo da mineralogia relativo à classificação das massas das rochas e suas relações espaciais. Os geognostas, como eles próprios se chamavam, tentavam definir e descrever as formações que seriam reconhecidas para além de uma simples região, alcançando escalas globais. A tarefa de reconhecer formações em diferentes locais e, assim, fazer a classificação tão aplicável quanto fosse possível foi tentada empiricamente por diferentes critérios (Rudwick, 1997).

Abraham Gottlob Werner foi sem dúvida o responsável pela institucionalização da geognosia. Ele não foi o criador desta ciência, uma vez que ela era o resultado científico de um saber muito mais antigo, originário da Europa Central e da Suécia, sendo que outros autores já haviam usado a expressão em suas publicações (Ellemberger, 1994, p. 246). Para o saxão, a geognosia era uma subdivisão da mineralogia. Ela distinguia-se da mineralogia geográfica, que estudava a distribuição das rochas e dos minerais pela superfície, e da orictognosia, o conhecimento das substâncias 'fósseis' do subsolo.

Uma vez formado em Freiberg, José Bonifácio partiu em direção a outras regiões de minas da Saxônia e Boêmia, e a outras localizadas na Hungria e na Áustria. Em sua visita à cidade de Berlim, na Prússia, foi admitido como membro da Sociedade dos Amigos da Natureza de Berlim, no dia 17 de janeiro de 1797.

A seguir foram em direção à Hungria, pois receberam autorização para visitar as minas e usinas metalúrgicas locais (Falcão, III, op. cit., p. 176). Na Áustria estiveram, na Caríntia e Estíria e visitaram as salinas de Gmünden.

Partiram depois para várias regiões da Itália. Neste país José Bonifácio fez importantes contatos científicos, como, por exemplo, o físico Alexandre Volta, em Pávia, na província de Turim. Ao visitar as montanhas Euganei, no sul de Pádua, escreveu uma memória lida na Academia Real das Ciências de Lisboa, dissertação que se encontra atualmente perdida, sobre a sua viagem geognóstica aos montes Eugâneos, no território de Pádua. Nesta memória, Andrada seguia as idéias netunistas do geognosta alemão Werner, que afirmava que a água dos mares era o agente principal da formação da crosta terrestre, em contraposição ao escocês James Hutton, defensor da corrente de pensamento denominada plutonista, que enfatizava a ação interna como a responsável pela formação das rochas. A opção do filósofo pelas idéias netunistas aparece nessa memória, em que defendia uma gênese sedimentar para as rochas da região: "... fundado em observações mineralógicas, diversifico da opinião de Strange, Ferber, Fortis e Spallanzani, que atribuem origem vulcânica às rochas que formam estes outeiros" (Falcão, I, op. cit., p. 145).

Após a vista à Itália, os filósofos deveriam ir às minas de Ekatharinemburgo, na Rússia, o que não ocorreu, assim como não foram à Inglaterra, onde deveriam visitar as minas da Escócia e do País de Gales. Também não foram à Espanha, visitar sobretudo as minas de Almadén. Contudo estiveram nos países nórdicos. Na Suécia, Bonifácio recebeu autorização para "penetrar as usinas de ferro e de prata, bem como ter ingresso nas minas desses metais", além de ter visitado Svenska Bergslagen, região da Suécia Central rica em minas e minérios (Falcão, III, op. cit., p. 172). Cabe registrar que Bonifácio foi admitido como membro da Real Academia de Ciências de Estocolmo, no dia 25 de outubro de 1797 (idem, ibidem, p. 183).

Já na Dinamarca, na cidade de Kungsberg, Bonifácio visitou as usinas de ferro e de prata, bem como as minas desses metais. Em relação à Noruega, sabemos que ali esteve, pois recebeu autorização para ir da Suécia àquele país. Contudo não obtivemos informações sobre suas atividades científicas no local.

Sobre a viagem pelos países nórdicos, Bonifácio escreveu a memória Exposé succinte des caractéres et des propriétés de plusieurs nouveaux minéraux de Suéde et de Norwége, avec quelques observations chimiques faites sur ces substances.

O documento consiste na descrição das espécies minerais pesquisadas pelo autor durante suas viagens pela Suécia e Noruega, enviada a monsieur Beyer, inspetor de minas em Schneeberg. Ao todo descrevia 12 espécies minerais, sendo quatro até então desconhecidas e as demais, oito variedades de minerais. Para tais pesquisas, como o próprio Andrada afirmou, foi de extrema importância a ajuda do professor Abilgaard (Peter Christian Abilgaard, 1740-1801), que o auxiliou nas análises em Copenhague. A descrição dos minerais foi feita seguindo a "sua própria maneira, assim como os resultados das análises que já havia feito de alguns deles, junto com os outros, que no momento são o objeto da minha ocupação, e daqueles que o professor Abilgaard havia se comprometido em fazer as análises em Copenhague" (Falcão, I, op. cit, p. 87).

Embora Bonifácio tenha anunciado que as descrições dos minerais estavam baseadas em seu próprio método, este diferia pouco dos utilizados pelas escolas cristalográficas da época e por Werner, que descreveu os minerais com base em suas propriedades e características externas.

Abraham Gottlob Werner também foi o grande responsável pela classificação do reino mineral. Rejeitando a aplicação ao reino mineral do sistema de classificação proposto por Lineu para o vegetal, baseado no sistema sexual das plantas, o mineralogista saxão afirmou que os minerais deveriam ser classificados de acordo com sua composição, uma vez que nela residia a característica essencial. Os minerais seriam classificados levando-se em conta suas características externas e sua composição química (Laudan, op. cit., p. 81).

No ano de 1774, Werner publicou uma obra intitulada Sobre as características externas dos minerais, em que apresentava uma técnica para identificar os minerais por meio dos sentidos humanos. Entre elas estavam forma, superfície, brilho externo, fratura, forma dos fragmentos, transparência, traços, cor, dureza, flexibilidade, adesão à língua e som. Descreveu as características individuais dos minerais de forma detalhada e subdividiu-as de uma maneira que as maximizava segundo a utilidade da identificação. Apenas para a cor vermelha, Werner distinguiu 13 variedades diferentes.

Werner estava convencido da importância das características externas, não apenas para a identificação dos minerais, mas também para o estudo da sua composição. Alegava que, se a aparência de um mineral muda quando sua composição química é alterada, devia haver uma correlação entre esta química e as características externas. Por outro lado, reconhecia que as características externas não podiam formar a base de um sistema natural. Ele estava convencido, em definitivo, de que os sistemas minerais deveriam ser baseados na composição química e nas propriedades e características externas.

Por meio do diagnóstico de combinações específicas de qualidades e baseado em características externas, os tipos minerais poderiam ser reconhecidos rapidamente e por métodos relativamente simples. Werner tornou-se muito famoso e foi considerado, por algum tempo, o supremo mestre de um método de identificação incomparável na mineralogia. Com seu trabalho estabeleceu uma perfeita versão do método histórico natural de identificação mineral e, simultaneamente, uma metodologia para a mineralogia como disciplina, que começou a emergir como ciência distinta da história natural (Laudan, op. cit.).

Além de Werner, o cristalografista francês Romé de l'Isle (1736-1790) também dispôs um conjunto de características externas como determinantes das espécies minerais. Entre elas estavam a forma cristalina, a dureza e o peso específico. Contudo o trabalho deste homem de ciência francês difere do trabalho do saxão pelo fato de aplicar o sistema de classificação de Lineu ao reino mineral.

Bonifácio, ao descrever os minerais, baseou-se em propriedades e características externas como cor, peso específico, forma dos fragmentos, textura, transparência, brilho, presença de 'formas cristais', clivagem e local de ocorrência, ou seja, as mesmas utilizadas por Werner e Romé de l'Isle em seus diferentes sistemas de classificação.

Os quatro minerais descritos pela primeira vez na memória,de acordo com as suas características e propriedades externas foram:

Espodumênio (Li Al [ Si2 O6 ])

Cor: branco esverdeado;

Peso específico: 3,218;

Dureza: risca o vidro e é riscado pelo quartzo;

Formas cristais: [não menciona];

Clivagem: sólidos de clivagem romboidal;

Transparência: pouco transparente;

Textura: lamelar;

Brilho: do tipo madrepérola;

Local de ocorrência: encontrado na formação de ferro da Ilha de Utö (ao sul de Estocolmo).

Petalita (Li [ Al Si4 O10 ])

Cor: rosa.

Peso específico: 2,620;

Dureza: risca o vidro;

Formas cristais: {não menciona];

Clivagem: [não menciona];

Transparência: bordas pouco transparentes;

Textura: foliada;

Brilho: comum e brilhante, com um pouco de esplendor

Local de ocorrência: encontrado próximo à Ilha de Utö, Sala e Fingruvan, próximo a Koppaberg, na Suécia.

Criolita (Na3 AlF)

Cor: branca como a neve;

Peso específico: 2,9698;

Dureza: risca a calcita, riscada pela fluorita;

Formas cristais: [não menciona];

Clivagem: sólidos de clivagem cúbico;

Transparência: [não menciona];

Textura: espesso e bastante folheado;

Brilho: pouco brilhante;

Local de ocorrência: Groenlândia.

Escapolita (um grupo de minerais semelhante ao grupo de feldspatos da classe dos plagioclásios, constituindo uma série de cristais mistos);

Cor: branco amarelado ou branco acizentado;

Peso específico: 3,680-3,708;

Dureza: risca o vidro;

Formas cristais: forma colunas quadriláteras quase retangulares;

Clivagem: sólidos de clivagem romboidal;

Transparência: pouco transparente;

Textura: lamelar;

Brilho: pouco brilhante; brilho externo do tipo vítreo;

Local de ocorrência: encontrado nas minas de ferro próximo a Arendal, na Noruega.

Com a descoberta dos quatro novos minerais e sua descrição — escapolita, criolita, espodumênio e petalita —, Bonifácio passou a pertencer, em 1800, a um grupo de mineralogistas reconhecidos, como I. Born, A.G. Ekeberg, R. J. Haüy, A.G. Werner, por ter descoberto toda uma série de novas espécies, em um período em que a mineralogia estava especialmente em ascensão. O reconhecimento do trabalho de José Bonifácio ocorreu no ano de 1868, quando o mineralogista americano J. Dana, em sua homenagem, deu o nome de Andradita à granada de ferro e cálcio (Ca3 Fe2 (SiO4)3) (Guntau, 2000, p. 269).

A Academia Real das Ciências de Lisboa

A viagem científica foi sem dúvida de extrema importância para o reconhecimento da trajetória de José Bonifácio como homem de ciência, não só em Portugal como nos meios científicos e universitários dos principais países europeus. Mas, seria o espaço da Academia Real das Ciências de Lisboa que, como afirmou um dos seus biógrafos (Sousa, op. cit., p. 66), "lhe abriria os caminhos de uma carreira de filósofo e lhe traria a glória e muitas decepções, o puro gozo intelectual e todas as matérias reservadas aos que excedem a carreira comum".

A academia foi criada por iniciativa de dom João Carlos de Bragança, segundo duque de Lafões e, tio de dona Maria I, que havia se ausentado da nação lusa durante o governo pombalino e assim pôde observar o estado da ciência em outros países europeus, como a França e a Inglaterra. Ao regressar, considerou de extrema importância a necessidade de se criar uma academia de ciências como as existentes naqueles países — a Royal Society (1662), em Londres, e a Académie Royale des Sciences (1666), em Paris —, para que se fomentasse a cultura científica em Portugal. O plano de criação da academia e seus estatutos, foram elaborados em conjunto pelo duque de Lafões e pelo naturalista abade José Correia da Serra, outro que estivera fora durante o período pombalino, e apresentado à dona Maria I, que deu parecer favorável a 24 de dezembro de 1779. A rainha tornar-se-ia, em 1783, a protetora da academia.

A instituição estava dividida em três classes, duas de ciências, ciências da observação — meteorologia, química, anatomia, botânica e história natural; e ciências do cálculo — aritmética, álgebra, geometria, mecânica e astronomia) e uma de belas-letras, que se deveria dedicar ao estudo dos vários ramos da literatura portuguesa. Cada uma das classes tinha oito sócios efetivos, além dos sócios supranumerários, honorários e correspondentes. Possuíam um observatório matemático, um laboratório químico e dois museus de história natural, ou seja, espaços voltados para as pesquisas no campo da história natural e baseadas na observação e experimentação.

A academia publicava as Memórias, estimulando e promovendo a produção intelectual nos mais variados campos, como mineralogia, agricultura e economia, assim como estudos que tratavam de produtos naturais como algodão, oliveira, vinha, castanheiras e carvalhos, entre outros. Por meio das Memórias, realizou-se um verdadeiro levantamento da natureza do Reino e da Colônia. Os autores refletiam sobre os obstáculos que impediam a nação lusa de se igualar aos países europeus de além-Pirineus e remédios sugeriam para superar esta defasagem econômica.

O corpo acadêmico era constituído por um grande número de associados, de orientações e ofícios, como reis, clérigos, naturalistas, proprietários de terras, ministros, professores e colonos de várias posses ultramarinas, devendo assim a academia ser compreendida não de uma maneira uniforme e coesa, mas como uma agremiação que resultou de diversas correntes ou estilos de pensamento. Contudo um elemento lhes era comum: o projeto de esclarecimento da sociedade portuguesa.

Nesse espaço ganhou destaque o paduano Domenico Vandelli, que abraçou o ecletismo do reformismo ilustrado, pelo qual se posicionou em favor de algumas idéias do mercantilismo, adotando tanto os princípios fisiocráticos italianos e franceses como os princípios da economia clássica inglesa (Novais, 1984, p. 108). Na academia, Vandelli era como o principal expoente do subgrupo da vertente naturalista-utilitarista (Munteal Filho, 1993). Ele e os componentes deste subgrupo — composto por figuras de expressão junto aos mecanismos decisórios do Estado português e com formação básica em medicina, química e história natural — esboçaram uma 'visão de mundo' que centrava no domínio da natureza a alternativa para o processo de superação, por Portugal, da defasagem econômica com relação à Europa das Luzes.

Vandelli e esses naturalistas partilhavam do princípio de que se deveria realizar um profundo inventário da natureza nas colônias, natureza que seria estudada em estabelecimentos científicos como os jardins botânicos e museus de história natural, por meio dos métodos de classificação e dissecação. Por outro lado, o conhecimento da natureza estava diretamente relacionado à política fomentista do governo mariano e joanino, pois acreditava-se que as produções naturais da colônia ajudariam na recuperação econômica do Reino e valorizava-se a agricultura baseada nas práticas científicas de orientação pragmática, que viam na natureza tropical uma fonte geradora de riqueza. A natureza colonial deveria ser cientificamente conhecida e explorada, de modo a contribuir com a industrialização portuguesa.

Nesse espaço de discussão científica e sociabilidade intelectual, o filósofo natural José Bonifácio publicou diversas memórias científicas. Em seus escritos,colocava a ciência como algo que podia ser útil para a sociedade do império colonial português. Por 'ciência útil' devemos entender o conjunto de matérias que possibilitariam a solução ou a transformação da realidade vivida até então. José Bonifácio acreditava que o papel da ciência não se restringia ao processo de conhecimento, mas transcendia-o, pois tinha o poder de transformar a sociedade. Ele procurava tornar público os conhecimentos que produzissem meios de combate às doenças, possibilitassem a introdução de novos cultivos, permitissem baratear certos produtos e, contribuíssem para a preservação da natureza, entre outros.

Em seus trabalhos científicos, a ciência tinha como função social resolver problemas. A utilidade era a vértebra de sua concepção de ciência. Esta encontra-se a serviço do homem, da sociedade. Para ele, a ciência era prática, aplicada, devia ajudar a resolver os males que imperavam na sua época. Sua função era semear idéias úteis pela sociedade. Como ele próprio afirmava, "se das minhas idéias se quiser tirar proveito, folgarei infinito de ser útil" (Falcão, I, op. cit., p. 48).

A intensa difusão de conhecimentos científicos que há na obra de José Bonifácio deve ser entendida como um verdadeiro planejamento racional de ações voltadas para o futuro e para projetos prospectivos baseados em análises históricas sistematizadas e atualizadas. As memórias publicadas eram parte de um planejamento estatal para superação da crise, o que mostra a tomada de consciência, pelo autor, da situação em que Portugal se encontrava no momento. E — o que justifica a análise particular de cada uma das Memórias da sua fase portuguesa — José Bonifácio observava como o econômico, o político e o científico são indissociáveis.

Em uma nota reafirmou a necessidade da aplicação do conhecimento científico em prol da sociedade: "Desde que eu começei a pensar que as ciências eram um emérito fútil quando não se aplicavam ao bem público, não pude deixar de espantar-me vendo o desleixo dos sábios e o pouco caso que faziam do bem público" (IHGB, 192, 36, fl. 4).

Essa preocupação com a utilidade da ciência, ou melhor, com o conhecimento científico destinado ao uso e aperfeiçoamento da humanidade, mostra a presença das idéias baconianas nas memórias escritas por Bonifácio. Mostrava-se ele, assim, amplamente conectado ao pensamento científico moderno, uma vez que buscava tornar o conhecimento científico algo prático e útil.

Ao propor que a ciência devia gerar utilidades para a sociedade, contribuindo para solucionar os problemas que nela existissem, acreditamos que ele partilhava da utopia do pensamento ilustrado, a concepção de que o conhecimento científico contribuiria para o aperfeiçoamento das sociedades, tornando-as melhores e perfeitas (Manuel, Manuel, 1979).

A divulgação das pesquisas científicas de José Bonifácio em memórias, anais, revistas, periódicos, boletins etc. demonstra claramente a presença no seu pensamento do ideal ilustrado de 'esclarecimento', a função 'educadora' que os sábios e letrados deveriam cumprir na sociedade.

Em suas memórias científicas, o principal objeto de estudo era a natureza. Para conhecê-la, Bonifácio submetia-a à observação e à experimentação. A natureza era a sua grande aliada na luta pelo conhecimento revelado. Ele buscava encontrar no reino natural os princípios que regiam o mundo e procurava arrancar o seu segredo, submetê-lo à luz do entendimento e penetrá-lo com os poderes do espírito. A natureza seria o locus perfeito para o exercício da sensibilidade e da razão.

José Bonifácio estudava os três reinos do mundo natural — animal, vegetal e mineral — por meio de suas características intrín-secas, identificando, classificando, ordenando e fazendo uma sistematização taxonômica de cada espécie natural. Partia da observação detalhada dos fatos para estabelecer a classificação, para encontrar assim na natureza as suas próprias leis, e seguia, como já mencionamos, uma variedade de sistemas de classificação, como os de Lineu, Werner, Wahlerius, Lamarck e Brotero.

Em suas memórias transparece uma perspectiva bastante otimista dos elementos do mundo natural. As produções deste eram vistas como fonte de conhecimento, e portanto deveriam ser conhecidas cientificamente. Mas também as entendia como fonte de riquezas, porque seriam capazes de gerar lucros para que a Coroa portuguesa fomentasse sua economia e industrialização. Por ele a natureza era encarada de forma quase divina, como produtora de riquezas e como 'mestra' da própria vida (Munteal Filho, Kury, 1995, p. 116).

A cadeira de metalurgia na Universidade de Coimbra

Além do espaço institucional da Academia Real das Ciências de Lisboa, José Bonifácio também desenvolveu atividades de pesquisa no campo da história natural em outras instituições portuguesas.

Pela carta régia de 21 de janeiro de 1801, o príncipe regente dom João determinou que a cadeira de agricultura da Universidade de Coimbra fosse separada da cadeira de botânica do curso de filosofia. Esta última voltava a ser incorporada à zoologia e à mineralogia na cadeira de história natural. Pela mesma carta régia, dom João criou a cadeira de metalurgia, que deveria ser ensinada no quarto ano do curso de Filosofia, juntamente com a de agricultura.

Para lente da cadeira de metalurgia foi nomeado o filósofo José Bonifácio de Andrada e Silva, pela Carta Régia de 15 de abril de 1801. A justificava para tanto encontrava-se no fato de ele ter viajado "como pensionário meu [dom João] por espaço de dez anos, com conhecido aproveitamento, por países em que esta ciência [metalurgia] principalmente se cultiva, observado a natureza em grande, e estudado todas as práticas que lhe são relativas". Na mesma carta, dom João nomeava-o quinto lente da Faculdade de Filosofia, conferia-lhe gratuitamente o grau de doutor na mesma faculdade e, além do ordenado de quinhentos mil-réis próprio do quinto lente proprietário, receberia a quantia de trezentos mil-réis a cada ano, pelos "penosos trabalhos das viagens que fez continuadas pelo longo espaço dos referidos anos a fim de se habilitar para o meu Real Serviço" (Ata de 15.5.1801, 1978, p. 264).

Não encontramos qualquer regulamento ou programa da cadeira de metalurgia em nas coleções de manuscritos que estão nos arquivos e bibliotecas pesquisados. Por sua vez, pelo que está registrado nas atas das reuniões da Congregação da Faculdade de Filosofia, sua participação foi bem pequena. Em uma das que esteve presente, a reunião de 25 de maio de 1808, foi um dos que propôs a adoção do Traité elementaire de minéralogie, de Alexandre Brogniart, para ser o compêndio de mineralogia (ibidem, p. 321).

José Bonifácio também foi encarregado de elaborar as instruções para uma expedição filosófica da Universidade de Coimbra. O príncipe regente encarregou o dr. Luiz Antonio da Costa Barradas de realizar uma viagem pela capitania de Pernambuco. Nessa empresa, o dr. Barradas deveria remeter para a universidade, mais precisamente para o Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico, as coleções que recolhesse de produtos e plantas, com suas descrições competentes. O responsável pelas instruções dessa viagem filosófica foi o dr. José Bonifácio, que as elaborou em 10 de dezembro de 1806 (Loc.: BN Manus. 5,4, 11, folha 1).

Recordemos que o envio de expedições filosóficas para os domínios ultramarinos, sobretudo para o Brasil, fazia parte das iniciativas do governo mariano no sentido de promover um maior conhecimento sobre as produções naturais das colônias. Os naturalistas responsáveis por essas viagens deveriam ir ao local estipulado, recolher as espécies naturais que encontrassem e, depois, enviá-las aos estabelecimentos científicos lisboetas, onde seriam experimentadas, aclimatadas e tornadas úteis ao Reino português. Neste caso, as instituições científicas que deveriam receber as remessas dos produtos da viagem do dr. Barradas seriam o Gabinete de História Natural e o Horto Botânico, ambos da Universidade de Coimbra, espaços por excelência de pesquisa e classificação dos produtos do mundo natural.

Além de ter elaborado as instruções, o lente de metalurgia mostrou todo o seu conhecimento sobre os produtos do mundo natural da colônia americana ao elaborar uma lista imensa com nomes de peixes, aves, mamíferos, anfíbios, madeiras, frutos, raízes, entre outros, que o dr. Barradas deveria tentar coletar e enviar ao Gabinete de História Natural e ao Horto Botânico.

Durante o tempo em que esteve na universidade, Bonifácio pôde observar como andava o funcionamento da instituição. Suas observações não diagnosticaram um bom desenvolvimento das ciências naquele espaço institucional. Tendo estudado e conhecido as principais escolas de minas da época, como Freiberg e Paris, pôde observar a defasagem que havia entre aquelas e a "reformada Universidade de Coimbra", sobretudo no campo das ciências naturais. Em notas pessoais e cartas a importantes "homens da viradeira", como dom Rodrigo de Souza Coutinho, expressou toda a sua insatisfação em relação ao ensino praticado pelo corpo docente conimbricense e a administração universitária.

Para além das queixas, Bonifácio teve sempre um reduzido número de alunos, cerca de cinco por ano, e as verbas para a compra de equipamentos para a realização das aulas práticas e das pesquisas foram sempre bastante minguadas. Também não tinha o museu científico da universidade uma boa coleção mineralógica, que, como ele próprio afirmou, "servisse e valesse coisa alguma".

Portanto, pelo que podemos observar nos documentos da época, parece que Bonifácio não foi feliz no seu empreendimento de tentar criar e institucionalizar a cadeira de metalurgia na Universidade de Coimbra. Os empecilhos postos pela própria universidade, assim como aqueles relativos a ausência de verbas e apoio governamental foram fatores importantes para a falta de sucesso de tal empresa. Mesmo assim entendemos a atitude de criar a cadeira de metalurgia como um esforço das autoridades portuguesas em tentar colocar a universidade em pé de igualdade com aquelas de Além-Pirineus, uma vez que arregimentou para esse fim "mr. D'Andrada", filósofo que havia viajado pelas nações 'ilustradas' da Europa e adquirido os principais conhecimentos metalúrgicos da época. José Bonifácio foi jubilado da cadeira de metalurgia no dia 29 de julho de 1813 e, por decreto de 12 de outubro de 1822, foi desligado da universidade, três anos após o seu regresso para o Brasil.

Pode ter sido após o insucesso da cadeira de metalurgia, apenas uma mera hipótese, que José Bonifácio redigiu um manuscrito no qual apresentava uma série de fatores que impediam o desenvolvimento das ciências naturais em Portugal. Entre essas causas estavam: a falta de museus, gabinetes de física e laboratórios; a ausência do estudo das ciências naturais no plano de educação dos jovens; a falta de sociedades econômicas e patrióticas para espalhar as luzes; o péssimo estado das ciências naturais na Universidade de Coimbra; a não-extração, ou má mineração dos metais; e o pequeno número de imprensas e de governadores hábeis para abrir estampas (Dolhnikoff, 1998, pp. 340-1). Todos esses fatores, na visão do autor, contribuíam para a não-prosperidade das ciências naturais em Portugal, impedindo assim que o país superasse a situação de defasagem cultural-científica no qual se encontrava em relação aos países de Além-Pirineus.

"Associando os estudos científicos à administração pública das minas e bosques": a associação do perfil de filósofo natural e homem público na trajetória do ilustrado José Bonifácio de Andrada e Silva

A grande atuação que o filósofo natural José Bonifácio vinha tendo no âmbito da Academia Real das Ciências de Lisboa despertou a atenção de alguns de seus membros, como dom Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro da Marinha e Ultramar, que admirava o trabalho do Andrada e via nele o homem indicado para a realização de seus projetos. Assim é que ele foi chamado para criar a cadeira de metalurgia da Universidade de Coimbra, participando ativamente da Ilustração portuguesa. Juntamente com esse cargo, assumiu outros na vida pública portuguesa, como o de intendente geral das Minas e Metais do Reino, membro do Tribunal das Minas, administrador das antigas minas de carvão de Buarcos, entre outros.

A partir desse momento, passou a ter de dividir seu tempo entre os estudos científicos e os cargos estatais, sobretudo aqueles relativos à esfera administrativa portuguesa. Em outras palavras, o perfil de filósofo natural e o de homem público passaram a caminhar lado a lado na história de vida do personagem, não podendo ser dissociados. Não são duas carreiras diferentes ou sucessivas, mas, durante toda a sua estada em Portugal, ele levou simultaneamente uma vida de funcionário do Reino e uma vida de naturalista. José Bonifácio era um típico representante dos laços estreitos que se criavam durante o reformismo ilustrado português mariano e joanino entre os sábios e o governo, como já assinalamos.

Essa cooptação dos naturalistas pelo Estado, sobretudo no final do século XVIII, permite observar a valorização daqueles que detinham o conhecimento científico e técnico, sobretudo para dar parecer sobre os mais variados assuntos econômico-administrativos. Em síntese, isso demonstra o reconhecimento do poder da ciência pelo Estado (Matos, 1998).

No período da 'viradeira', ocorreu uma forte identificação entre ciência e política, ou melhor, entre aqueles que produziam o conhecimento científico e os que eram capazes de arregimentar apoio e recursos financeiros necessários ao desenvolvimento das ciências. O Estado burocrático português arregimentou os naturalistas da Academia Real das Ciências de Lisboa com o intuito de acumular várias tarefas, entre as quais se podem destacar o mapeamento, o diagnóstico, o conhecimento e a orientação de políticas direcionadas ao levantamento das riquezas naturais, ou melhor, das 'produções naturais' do território português e de todo o seu império ultramarino. Esse fato permite observar o quanto a academia, por meio das suas propostas de caráter científico, estava extremamente conectada ao Estado português (Munteal Filho, 2001, pp. 48-9 ).

Exemplo disso é o caso de arregimentação do naturalista José Bonifácio de Andrada e Silva pelo ministro da Marinha e Ultramar, dom Rodrigo de Sousa Coutinho, para ocupar uma série de cargos públicos estatais no campo da esfera administrativa. Dom Rodrigo não pouparia esforços para gastar os recursos necessários à pesquisa das produções naturais do Reino de Portugal, sobretudo os minerais, e para a preservação de matas e bosques.

José Bonifácio foi nomeado intendente das Minas do Reino de Portugal pela Carta Régia de 18 de maio de 1801. Pela mesma carta foi encarregado de dirigir e administrar as "Minas e Fundições de Ferro de Figueiró dos Vinhos". Para tal, seria condecorado com uma "beca honorária com o predicamento de primeiro banco", e ficaria mantida a pensão de oitocentos mil-réis de que havia gozado durante o tempo das suas viagens pela Europa. Ainda na mesma carta, ficava encarregado de estabelecer e firmar o ensino da cadeira de metalurgia na Universidade de Coimbra durante o período de seis anos. Após esse tempo, ficaria unicamente ocupado da Intendência das Minas e Metais, assim como das de Figueiró dos Vinhos, e da abertura das minas de carvão de pedra.

Por sua vez, pela carta Régia do príncipe regente de 1º de julho de 1802, o naturalista José Bonifácio foi arregimentado para assumir a direção da administração das sementeiras e plantações nos areais das costas portuguesas, que começou por Couto de Lavos. Essa carta vinha associar a administração das matas e bosques à das minas, na pessoa do naturalista José Bonifácio, homem que viajara por diversos países europeus e havia feito contato com os modernos conhecimentos científicos relacionados a esses ramos da administração pública. Esse fato mostra a importância que o Estado burocrático português dava aos filósofos naturais, e, no caso em questão, a necessidade de minas e bosques serem regulados por princípios científicos, com o objetivo de promover a utilidade pública.

Um novo regimento para o funcionamento das minas e estabelecimentos metálicos do Reino foi mandado criar pelo príncipe regente, em função da criação da intendência e da nomeação de José Bonifácio. O alvará de 30 de janeiro de 1802 definiu a competência do intendente geral das Minas e Metais do Reino e sua respectiva área de atuação.

O intendente geral seria o diretor e administrador das Minas e Ferrarias de Portugal, estando a ele subordinadas todas as pessoas e oficiais que nela prestassem assistência e trabalhassem, assim como todos os indivíduos empregados nas minas e estabelecimentos minerais portugueses, fossem eles funcionários do rei, fossem de companhias particulares de mineração e apuração. Além de administrar as minas, também ficava encarregado da direção e administração de bosques e matas.

Contudo, no ano de 1804, por Decreto de 4 de maio, a administração das minas e estabelecimentos mineiros do Reino foi entregue à direção da Fábrica das Sedas e Obras das Águas Livres. Esse decreto anulava as amplas atribuições e poderes concedidos ao Intendente para superintender em tudo que dissesse respeito as minas, ferrarias, bosques e matas, concedidos pelo Alvará supracitado de 1802. Diniz (1939: 31) justificou tal ato em função da demissão de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, organizador da Intendência Geral das Minas e Metais do Reino, e inspetor geral das mesmas, do cargo de ministro da Fazenda, presidente do Real Erário, e amigo pessoal de José Bonifácio. Luiz de Vasconcelos e Sousa lhe sucedeu na presidência do Real Erário e entregou a administração mineira à direção da Fábrica das Sedas.

No âmbito da intendência, José Bonifácio esforçou-se por tentar encontrar no subsolo português dois elementos de extrema importância, sobretudo com o advento da Revolução Industrial: o ferro e o carvão.

O carvão mineral sob a forma de coque veio substituir a madeira, combustível e material estrutural básico de todas as civilizações anteriores. Esse novo elemento caracterizava-se por ser mais barato e por eliminar as crises periódicas de combustível que, no passado, sempre haviam obrigado as nações a moverem-se em busca de florestas por cortar. Os principais centros industriais deslocaram-se para a vizinhança de centros carboníferos, e houve uma melhoria no processo de exploração do carvão mineral, com a utilização de máquinas a vapor para retirar a água acumulada nas minas.

Por sua vez, o uso do ferro, sobretudo o do ferro fundido, veio substituir a produção de ferro por redução do minério, processo que deixava o produto cheio de impurezas e difícil de refinar. A falta do carvão vegetal necessário para fundir grandes quantidades de metal também foi um dos fatores da mudança. O ferro fundido era utilizado principalmente na manufatura de armas, em especial na de canhões.

José Bonifácio apresentou à Academia de Ciências algumas memórias mineralógicas. Nesses textos ele apresentava as atividades práticas de mineração nas regiões que pesquisava, assim como descrevia minuciosamente os minerais, o local onde estes eram encontrados e sua importância para o desenvolvimento da nação portuguesa.

Essas memórias relacionavam-se ao cargo estatal que Andrada exercia como intendente geral das Minas e Metais do Reino. Até então, as 'artes mineiras' — ou seja, desenvolvimento, lavra, tratamento e fiscalização das explorações das minas — haviam estado sob a alçada do Corpo de Oficiais de Artilharia (Ferreira, 1988, p. 30). Pela primeira vez o cargo era ocupado por um filósofo natural dedicado à pesquisa e investigação da natureza mineral.

Nas memórias evidencia-se a tentativa de seu autor de inventariar o 'estado da arte' da mineração em Portugal. Nelas Bonifácio mapeava os problemas existentes na atividade mineradora e apresentava propostas para superar os entraves existentes ao seu desenvolvimento. O filósofo tentava fazer um levantamento extenso e pormenorizado das riquezas minerais presentes no solo português e destacava suas potencialidades para a nação. A mineração, ao lado da agricultura, constituía a base fundamental das riquezas permanentes do Estado luso.

Por meio das suas memórias científicas, destacadamente as mineralógicas, José Bonifácio ajudou a criar e a sustentar uma 'rede de informação' (Domingues, 2000) que permitiu ao Estado do período da 'viradeira' conhecer de forma mais aprofundada e precisa todo o território português, ou seja, reconhecer os limites físicos da soberania, bem como as potencialidades econômicas do território administrado. Todas as informações fornecidas pelo naturalista e recebidas pelos dirigentes do Estado deveriam contribuir para o conhecimento global do espaço luso.

As informações presentes nas memórias do naturalista José Bonifácio não se destinavam a fins meramente administrativos, nem alimentaria uma ciência especulativa ou teórica. O saber científico tinha um caráter eminentemente prático, pois a ciência que ele praticava tinha como fim ser útil. As descrições e amostras de produtos, sobretudo os minerais, recolhidos durante suas viagens de campo por diversos pontos do território português destinavam-se não só à inventariação, catalogação e classificação das espécies, ou ao reconhecimento das potencialidades naturais. Deveriam contribuir para o desenvolvimento econômico do Reino, para o incremento das indústrias, das manufaturas e do comércio, entre outros fatores.

As informações científicas contidas nas memórias de Bonifácio estavam baseadas na observação e na experimentação. O conhecimento científico, para ele, devia ser prático e experimental. A ciência que o entusiasmava era aquela de matriz baconiana, que tinha como função resolver problemas práticos. A essa característica juntava-se o fato de ele sempre fazer análises prospectivas em seus estudos e propor a necessidade de utilizar os recursos naturais de forma planejada e racional, pois eles apresentavam grandes potencialidades econômicas para o Estado português. Dessa forma, pode-se afirmar que o conhecimento científico estava integrado a um programa que, desenvolvido na Intendência das Minas e Metais do Reino e publicado em memórias na Academia Real das Ciências, tinha repercussões na ciência, na economia e na política.

As memórias elaboradas por Bonifácio se referiam a trabalhos práticos concretos, descritos nos menores detalhes. Elas explicitavam como essa política portuguesa de aproveitamento racional dos recursos naturais, sobretudo os minerais, foi efetivada e posta em prática pela Intendência das Minas, locus de produção científica e que ajudava a criar e sustentar as 'redes de informação'. As memórias mineralógicas constituíram verdadeiros estudos analíticos das potencialidades minerais do país, por meio de exames cuidadosos de detalhes, de trabalhos de campo, de mapeamentos acoplados às informações históricas obtidas tanto de documentos de arquivos como de ruínas arqueológicas — que muitas vezes datavam da ocupação romana do território português ou dos antigos reinados. Originavam-se também do conhecimento empírico acumulado pelos lavradores, habitantes 'rústicos' do local. Isso representa que a política da intendência parecia priorizar as regiões de algum modo já conhecidas, com potencialidades minerais a serem checadas, confirmadas e, mais uma vez, exploradas racional e cientificamente.

A quantidade de minerais identificados por José Bonifácio em seu trabalho na intendência vinha ao encontro de uma política estatal que tinha como objetivo a produção mineral. Em função disso, ele examinou as ocorrências de diversos minerais, como ouro, chumbo, ferro e prata, entre outros.

Quanto à prática científica de José Bonifácio, observamos que, no campo da mineralogia, ele seguiu o common sense dessa ciência, no período do final do século XVIII e início do século XIX, inserindo-se em suas correntes principais tanto pelos termos que empregava como pela metodologia de trabalho. Ele preocupava-se em descrever, identificar e classificar os materiais minerais em seu local de ocorrência, dando ao seu trabalho um caráter geográfico no qual o trabalho de campo adquiria papel essencial.

Uma outra característica de sua prática científica foi a ênfase na observação das regularidades permanentes. A prática científica de José Bonifácio, analisada pelo exame das memórias, insere-se em uma tradição de pesquisa que buscava relatar o que Kenneth Taylor (1988, p. 2) chamou de "regularidades permanentes". O estudo de tais regularidades, também denominadas "condições gerais ou constantes" ou "regularidades de disposição", era uma prática dominante nos trabalhos geológicos do século XVIII, estando presente em Buffon, Louis Bourguet, Nicolas Desmarest, Horace Benedict de Saussure, Jean-André Deluc, entre outros. O interesse em identificar e estudar as regularidades refletia o empirismo habitual da época, assim como o desejo de generalizações, de se criarem leis no domínio da geologia. Os autores citados estavam preocupados em estudar os grandes traços dos continentes e dos mares: altura, localização, orientação e espessura das montanhas, o movimento das águas dos mares e dos rios, a disposição das camadas estratigráficas, os minerais presentes em tais camadas, entre outras regularidades. Cabe ressaltar ainda que, nos trabalhos desses autores, imperava o estudo das regularidades estáticas, entendidas como conseqüência de um processo, e não como suas causas, a explicação de como um determinado fenômeno ocorreu.

José Bonifácio enfatizou, em suas memórias, as regularidades estáticas, buscando sempre apontar o local das minas, fazer a descrição do terreno, identificar os materiais que o formavam, a quantidade de minerais, como estavam contidos nas camadas estratigráficas, cor, forma, tamanho, peso e dureza, se estavam em profundidade ou superfície. Estas são as principais regularidades observadas pelo filósofo em suas dissertações.

Embora não tenha se dedicado enfaticamente às reflexões teóricas sobre a formação da crosta terrestre, o que mais lhe interessava era conhecer as potencialidades econômicas dos minerais, para, assim, ajudar a resolver os graves problemas econômicos que Portugal enfrentava naquele momento.

José Bonifácio foi um naturalista que se caracterizou pelo ecletismo e pragmatismo, características do pensamento ilustrado do século XVIII. O próprio Voltaire afirmava: "Meu amigo, sempre fui eclético." E assim também agia Bonifácio, que bebia em todas as fontes e tirava delas sempre o melhor, deixando de lado aquilo que não considerava de utilidade imediata. Um exemplo claro desse ecletismo era a utilização, pelo autor, de diferentes sistemas de classificação dos minerais, como os de Lineu, Wallerius e Werner, o que lhe permitiu classificar inclusive quatro novos minerais, como já comentamos. A recorrência a diversos sistemas era necessária para que ele pudesse conhecer e identificar os produtos minerais úteis aos interesses da Coroa portuguesa.

A despedida

Na sessão de 24 de junho de 1819 da Academia Real das Ciências de Lisboa, Bonifácio apresentou um discurso que teve um tom de despedida, pois naquele momento ele deixava o "antigo Portugal", que lhe havia adotado como filho, para o "novo Portugal", onde havia nascido. Portanto, passados 36 anos da sua chegada ao Reino, Bonifácio voltava aos seus "pátrios lares da montanhosa, mas amena Província de São Paulo" (Falcão, I, op. cit., p. 445).

A referência ao Brasil como um 'novo Portugal' permite afirmar que o país não era mais visto pelo autor como uma mera extensão do Reino, mas como a sede do 'novo' Império lusitano: a partir da transferência da Corte no ano de 1808, o Brasil tornara-se a nova sede da Coroa portuguesa.

No discurso, Bonifácio tentou 'deslembrar-se' das almas degeneradas que procuraram às vezes atrapalhar o seu patriotismo e seus bons desejos, e descreveu sua história durante o tempo em que esteve no Reino, construindo a sua própria 'memória'.

Ele a iniciou pelos estudos jurídicos e filosóficos na Universidade de Coimbra e relatou sua entrada para Academia Real das Ciências de Lisboa, logo após a formatura, dando início à carreira nas letras. No ano de 1790, teve de se ausentar da academia, por ter sido designado pela rainha dona Maria I para viajar pela Europa com o intuito de aprofundar seus conhecimentos nos ramos da química, mineralogia e geologia. Dessa viagem relatou ter honrado, entre as nações e sábios da Europa, "o nome de Acadêmico e Português" (idem, ibidem, p. 446).

O retorno a Portugal coincidiu com sua nomeação, no ano de 1801, para o cargo de intendente geral das Minas e Metais do Reino, o que acabou por afastá-lo da corporação por alguns anos. A esse cargo se juntariam outros, mostrando a valorização desse ilustrado sábio colonial pelos homens dirigentes lusos e sua participação de forma ativa na Ilustração portuguesa. Sua volta à academia ocorreu no ano de 1809. Em junho de 1812 tomou posse como vice-secretário da instituição e, com a morte do primeiro-secretário, assumiu este posto.

O discurso, proferido após a vinda da família real para o Brasil, permite observar a identificação do autor com a idéia de um grande império português centralizado na América. Estadistas como dom Rodrigo tinham como missão precípua a fundação de um novo império que teria como sede o Rio de Janeiro e que deveria impor-se sobre as demais capitanias (Dias, 1986). Para esse trabalho contaram com a colaboração e o empenho dos ilustrados coloniais, ganhando destaque, entre eles, José Bonifácio, imbuído de idéias reformadoras, mas sempre no intuito de orientar a Coroa e não de romper com ela (Maxwell, 1999).

A vinculação do letrado com a idéia de um Império centrado nos trópicos é registrada nesse discurso de 1819, no qual José Bonifácio deixou clara a sua opção política pelo projeto de dom Rodrigo. Primeiramente afirmou jamais ter "desonrado o nome de Português e acadêmico", mostrando um sentimento de nacionalidade que apontava para uma "nação luso-brasleira".

Em um segundo momento, quando buscou explicitar a referência à 'emancipação' do Reino do Brasil após o ano de 1808, com-preendeu-a como realidade concreta e conseqüente de sua conversão em sede do Império. José Bonifácio reconheceu a condição de 'emancipação' do Reino do Brasil em relação ao sistema de dominação colonial. Tal condição só poderia ter sido adquirida a partir da transferência da Corte e de sua instalação na cidade do Rio de Janeiro, a abertura dos portos e a elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal e Algarves. Assim comentou o naturalista: "Consola-me igualmente a lembrança de que da vossa parte pagareis a obrigação em que está todo o Portugal para com a sua filha emancipada, que precisa pôr em casa, repartindo com ela das vossas luzes, conselhos, e instruções" (Falcão, I, op. cit., p. 472).

Cabe também ressaltar que essa idéia de emancipação não implicava separação da metrópole, mas estreita união com Portugal. Esse modelo de emancipação sem solução de continuidade mantinha os laços de compromisso entre as duas partes constitutivas da monarquia portuguesa e, ao mesmo tempo, a autodeterminação na gestão dos interesses do Brasil. A antiga colônia, como afirmou Lyra, "mantinha os laços de amizade e de 'afeto natural' para com a 'mãe pátria'" (Lyra, 1994, p. 143).

A seguir José Bonifácio afirmava as potencialidades do Brasil para o desenvolvimento do 'novo' Império lusitano centralizado nos trópicos, deixando clara a opção pelo projeto político de dom Rodrigo:

E que país, esse Senhores, para uma nova civilização e para novo assento das ciências! Que terra para um grande e vasto império! Banhadas suas costas em triângulo pelas ondas do Atlântico; com um sem-número de rios caudais, e de ribeiras empoladas, que o retalham em todos os sentidos, não há parte alguma do sertão, que não participe mais ou menos do proveito que o mar lhe pode dar para o trato mercantil, e para o estabelecimento das grandes pescarias. A grande cordilheira que o corta de norte a sul, o divide por ambas as vastas fraldas e pendores em dois mundos diferentes, capazes de criar todas as produções da terra inteira. Seu assento central quase no meio do globo, defronte e à porta com a África, que deve senhorear, com a Ásia à direita, e com a Europa à esquerda, qual outra região se lhe pode igualar? Riquíssimo nos três reinos da natureza, com o andar dos tempos nenhum outro país poderá correr parelhas com a nova Lusitânia (Falcão, I, op. cit., p. 144).

O ano de 1808 sem dúvida representou uma profunda mudança no quadro da dominação colonial portuguesa. O Rio de Janeiro se tornou efetivamente a nova sede da metrópole. Com isso, as antigas relações entre Brasil e Portugal foram invertidas. O primeiro tornava-se a sede da monarquia portuguesa, enquanto o segundo perdia a função de pólo dinamizador do sistema e passava a depender cada vez mais do primeiro, uma vez que aqui seria o local de edificação do "grande e vasto Império". Como afirmou Souza (1999, p. 57), "Portugal tornou-se colônia do Brasil".

Na parte final do discurso, o filósofo comentava o que o Brasil necessitava para ser o centro do 'novo' Império e utilizava a expressão "monarquia brasílica" (Falcão, I, op. cit., pp. 472-3), e não Império lusitano, utilizado por Souza Coutinho. Sugeria assim uma certa 'naturalização' da Corte na nova sede da monarquia, já que ali ela se fixava e não pretendia mais sair.

José Bonifácio, naturalista ligado aos interesses do Estado, despedia-se da nação portuguesa com a consciência de ter despendido um grande esforço na contribuição para o processo de institucionalização das ciências naturais em Portugal, ao atuar em instituições de pesquisa e universitárias particularmente voltadas para a mineração. Suas memórias científicas, fruto de seus trabalhos práticos na intendência, foram o exemplo maior dessa contribuição. Por outro lado, ele tentou modernizar a administração das minas e de matas e bosques, buscando tornar a Intendência das Minas do Reino de Portugal uma empresa competitiva e capaz de operar como as instaladas em regiões da Saxônia, Freiberg, França, Itália, entre outras. Tudo isso foi feito tendo sempre em mente ser o "mais humilde e fiel súdito português".

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES DOCUMENTAIS

I - Manuscritos de José Bonifácio

Manuscritos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB):

II - Documentos publicados

II - Livros, artigos e teses

Recebido para publicação em maio de 2003

Aprovado para publicação em janeiro de 2004

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  • Relação de livros ingleses, franceses e portugueses S.l., s.d. Loc.: IHGB Doc. 60 L. 191.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2004

Histórico

  • Aceito
    Jan 2004
  • Recebido
    Maio 2003
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