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Aspectos históricos, sociológicos, artísticos e literários de Os sertões

Some historical, sociological, artistic, and literary aspects of Os sertões (Rebellion in the Backlands)

LIVROS & REDES

Aspectos históricos, sociológicos, artísticos e literários de Os sertões

Some historical, sociological, artistic, and literary aspects of Os sertões (Rebellion in the Backlands)

José Carlos Barreto de Santana

Professor da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) Rua São Jorge, 63 44720-770 Feira de Santana–BA Brasil zecarlos@uefs.br

José Leonardo do Nascimento (org.) Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos críticos

São Paulo, Editora Unesp, 2003, 206p.

Durante o ano de 2002 celebrou-se em grande estilo o centenário de lançamento de Os sertões: eventos comemorativos, nacionais e internacionais foram realizados; uma peça de teatro, encenada; vários foram os lançamentos de periódicos com números especiais sobre a obra e seu autor; livros foram relançados; e novos títulos vieram a lume.

José Leonardo do Nascimento reuniu, em Os sertões de Euclides da Cunha: releituras e diálogos críticos, ensaios sobre este que é considerado um dos mais importantes livros da cultura brasileira, lembrando que "Os sertões parece agir contra as nossas certezas e expectativas, contra nossos olhares condescendentes e bem intencionados sobre a história do Brasil. Nada é simples nas relações que os leitores estabelecem com esse livro monumento" (p. 7). Também não é das mais simples a tarefa de resenhar um conjunto de ensaios que percorrem espectros muito distintos das áreas de conhecimento, tais como os existentes na obra organizada por Nascimento, ao abordar temas históricos, sociológicos, artísticos, literários.

O primeiro ensaio, 'O diário de uma expedição e a construção de Os sertões (pp. 11-39) é de autoria de Marco Antonio Villa, autor, dentre outros, do livro Canudos, o povo da terra (Ática, 1995). Marco Villa utiliza como principais fontes os 34 artigos e reportagens que Euclides da Cunha escreveu entre março e outubro de 1897 para o jornal O Estado de S. Paulo e que, juntamente com os telegramas enviados da Bahia, compõem o denominado Diário de uma expedição, refazendo o que chama de "caminhos analíticos" de Euclides da Cunha entre os seus primeiros escritos sobre Canudos e Os sertões.

Utilizando de forma competente suas fontes, Marco Villa prossegue nesse ensaio uma das características dos seus trabalhos relacionados com Euclides da Cunha: a busca minuciosa dos aspectos mais controversos sobre a atuação do mesmo como historiador. Nesse 'mapeamento' são abordadas as mudanças nas avaliações feitas por Euclides da Cunha acerca de fatos e personagens da Guerra de Canudos, a exemplo das considerações sobre o general Artur Oscar, que são a princípio críticas quando escritas durante a passagem do autor por Salvador, suavizadas quando elaboradas após encontro com o militar em Canudos e acirradamente severas em Os sertões.

Também apresentam-se evidências sobre inclusões, retiradas e revisões de temas, efetuadas em diversos momentos entre as reportagens e o livro, quase sempre tendo como finalidade validar as concepções teóricas do autor de Os sertões. Assim Marco Villa ressalta a omissão, nas reportagens, da degola que os militares promoveram em Canudos e a citação da gravata vermelha diversas vezes no livro. Também ausentes nas reportagens e presentes no livro estão as críticas à República.

Villa considera que a melhor reportagem escrita por Euclides em Salvador resultou da entrevista com o "jaguncinho" Agostinho, na qual este afirma que Conselheiro prometia aos que morrem apenas "salvar a alma". Destaca que em Os sertões não há referências ao "jaguncinho" e atribui esta ausência ao fato de que

com base nas suas informações não é possível compatibilizar o modelo explicativo euclidiano com o cristianismo ortodoxo do Conselheiro, não é possível imputar ao Conselheiro o epíteto de Messias ou de líder milenarista. Como o modelo teórico, nesse caso, acabou encontrando um informante que minava sua base, Euclides resolveu o dilema: simplesmente suprimiu o garoto Agostinho, que não mentia e nem sofismava, de Os sertões (p. 23).

Edgard Salvadori de Decca e Maria Lúcia Abaurre Gnerre assinam juntos os ensaios 'Trauma e história na composição de Os sertões' (pp. 41-62) e 'Prefigurações literárias da barbárie nacional em Euclides da Cunha, Machado de Assis e Lima Barreto' (pp. 123-47). Em 'Trauma e história...' os autores se propõem "a investigar os possíveis recursos de representação do trauma utilizados por Euclides da Cunha" (p. 46). Partindo da poesia 'Página vazia' (que o escritor registrou no álbum de uma jovem senhora quando do seu retorno de Canudos para Salvador), "como elemento fundador da narrativa para a elaboração posterior da narrativa de Os sertões" (p. 46), declaram-se intrigados com a ausência de menções, no livro, a Nietzsche — principalmente ao texto Assim falava Zaratustra — e a textos de Freud. O fato de serem escritos posteriores à obra de Euclides da Cunha não impede, segundo os autores, o cotejo entre os textos, uma vez que "as obras fazem parte de um mesmo universo de representação de determinados temas, que emerge no fim do século ... são, portanto, obras que fazem parte de uma mesma episteme" (p. 47), admitindo que "não temos, assim, uma relação entre os textos de prefiguração literária, mas tal relação também não é excluída pois certamente Euclides da Cunha foi leitor de Nietzsche" (p. 47).

O pouco rigor de Euclides da Cunha na citação das suas fontes e referências é algo admitido e discutido por vários autores, a exemplo de José Calasans, Marco Villa, Leopoldo Bernucci e do autor desta resenha, que, no entanto, buscam evidências mais consistentes do que as apresentadas nesse ensaio para firmar suas convicções sobre o tema.

Quando os autores tratam do texto euclidiano, alguns problemas saltam aos olhos mais atentos. Buscando as similitudes entre as narrativas contidas em Assim falava... e Os sertões, utilizam a montanha como "local privilegiado para a percepção do enredo que se articula" e afirmam:

é justamente na montanha que sobe Conselheiro pouco antes do início da luta: 'Galga a estrada coleante entre os declives da favela. Atinge o alto da montanha. Pára um momento... Considera pela última vez o povoado, embaixo... É invadido de súbita bondade e tristeza. Equipara-se ao 'divino mestre diante de Jerusalém'. Mas amaldiçoou... (p. 55).

Em evidente descuido, os autores confundem uma passagem clássica de Os sertões, em que Euclides da Cunha refere-se não ao Conselheiro mas ao frei João Evangelista de Monte Marciano, que visitara Canudos em missão ordenada pelos seus superiores, com a finalidade de dissolver o ajuntamento dos conselheiristas, sendo parte do texto uma citação direta do relatório do frei ao Arcebispado da Bahia.

É também problemática a afirmação: "O sertão não é descrito em momento algum da narrativa de Euclides da Cunha como paraíso, porém sua natureza é a fonte da força do seu povo em Os sertões" (p. 59). Uma das características mais evidentes do texto euclidiano é a predileção pelas construções metafóricas e antitéticas, que resultam em algumas das mais belas páginas do livro. É possível encontrar no subcapítulo IV de 'A terra' a transição entre as quadras de seca, quando a situação no sertão é "crudelíssima", e das chuvas, cujo ápice é assim descrito: "E o sertão é um paraíso."1 1 Curiosamente, o trecho em que o sertão ganha características do próprio paraíso será utilizado por José Leonardo em outro ensaio, que será abordado adiante. A este respeito, lembra Roberto Ventura: "O escritor [Euclides da Cunha] oscila entre imagens antitéticas da paraíso e inferno, de salvação e perdição, de modo a captar o caráter tenso e contraditório da história e da natureza."2 2 Roberto Ventura, 'Deus e o diabo no monstruoso anfiteatro', Tempo Brasileiro, nº 144, 2001, pp. 63-78.

As 'Prefigurações literárias...' pretendem "abordar algumas inter-relações entre a confecção da obra Os sertões e os escritos de outros autores que, de maneira direta ou indireta, fazem referência aos acontecimentos de Canudos ou que, na forma de paródia, reescre-veram a tragédia euclidiana" (p. 123), baseando-se, para tal finalidade, em textos de Machado de Assis publicados no jornal Gazeta de Notícias e no conhecido romance de Lima Barreto, O triste fim de Policarpo Quaresma.

De Euclides da Cunha os autores utilizam principalmente os artigos 'A nossa Vendéia' e Os sertões, analisando-os a partir das influências exercidas por Victor Hugo, uma leitura correta porém sem inovações em relação ao que já foi estudado pela ampla fortuna crítica euclidiana, que aliás merece algumas referências vagas aos "comentadores de Euclides".

É bem construída a análise das crônicas machadianas, mostrando como o renomado escritor teve uma visão bem menos preconceituosa sobre o Conselheiro e a Guerra de Canudos e revelando também, como já acontecera com o texto euclidiano, uma influência muito forte de Victor Hugo.

Quanto à obra de Lima Barreto, O triste fim de Policarpo Quaresma, os autores a resgatam como uma recuperação literária sob forma de paródia de Os sertões e do próprio Euclides da Cunha. No que me parece um interessante insight, e reconhecendo que as pistas são indiretas, Policarpo Quaresma é comparado, ao mesmo tempo, com a figura do Conselheiro e, digamos, seu construtor Euclides da Cunha, sugerindo-se que a formação cientificista e nacionalista deste foi a base da elaboração barretiana.

Berthold Zilly, tradutor de Os sertões para o alemão, escreveu o ensaio 'Uma crítica precoce à 'globalização'' e uma epopéia da literatura universal: Os sertões de Euclides da Cunha, cem anos depois' (pp. 63-72), no qual se propõe a analisar a atualidade do livro no mundo globalizado.

A Guerra de Canudos é apresentada como um empreendimento muito moderno, que contou com amplo apoio internacional, tendo o governo brasileiro recebido créditos, tecnologia militar e até apoio de grande jornais do mundo, tudo amparado por paradigmas teóricos e interpretativos construídos na Europa.

Recorrendo a uma imagem comum nos textos que tratam sobre o autor de Os sertões, Euclides da Cunha é percebido como um ideólogo republicano e fortemente marcado pelas concepções cientificistas da época, "cada vez mais cede lugar, no decorrer das descrições e narrações do seu livro, ao observador direto e empático, ao 'narrador sincero', que representa a realidade social e histórica por meio de um 'consórcio da ciência e da arte', tendendo cada vez mais para essa última" (p. 65), realizando uma crítica à prática e à retórica da modernização autoritária do seu tempo que é também autocrítica.

A existência de Os sertões teria impedido que a Guerra de Canudos caísse no esquecimento, e raramente é encontrada na história da literatura uma identificação tão intensa entre um segmento da realidade e sua representação, o que permitiria que "uma parte atrasada, carente, marginalizada do Brasil de repente se transfigur[e] ... em região virtualmente modelar do país e até da história universal" (p. 72).

Nísia Trindade Lima assina o ensaio 'A sociologia desconcertante de Os sertões' (pp. 73-98), no qual, analisando o artigo 'Da independência à República' e Os sertões, procura mostrar como se dá a superação, na obra euclidiana, do determinismo, quer racial ou geográfico.

Baseando-se em Wanderley Guilherme do Santos, a autora identifica em Euclides da Cunha a presença de uma matriz dualista que se preocupa em indicar as contradições e polaridades e os caminhos possíveis para a superação destas. Considera que tal abordagem resulta em uma "antecipação dos argumentos das análises contemporâneas mais consistentes sobre a formação do Estado Nacional do Brasil" (p. 77).

Ao enfocar as partes de Os sertões intituladas 'O homem' e 'A luta', Nísia Lima realiza boa análise de uma das questões centrais da obra, a que trata do 'insulamento' do sertanejo e das conseqüências daí resultantes. A autora destaca: "O que torna o texto [de Os sertões] mais desafiador, especialmente pelo contraste com o arcabouço cientificista da obra, é a constante referência ao imponderável, à surpresa, como se fosse possível, pela via da ciência, captar o sentido da permanente transformação" (p. 91).

Ayrton César Marcondes é o autor do ensaio 'A terceira expedição' (pp. 99-122), com o qual pretende trazer novas luzes sobre os "valorosos membros" dessa expedição militar contra Canudos — principalmente no que diz respeito à participação do seu tio-avô, o coronel Moreira César, comandante da mesma — vítimas, segundo o autor, de historiadores que repetem à exaustão os seus descalabros, recontando um mesmo discurso apenas com algumas variantes. A tarefa é, sem sombra de dúvida, hercúlea.

Segundo se depreende da leitura do ensaio, o veredicto sobre Moreira César foi dado em Os sertões por Euclides da Cunha, que o representaria como "personagem do mal". Preliminarmente, e apoiando-se no livro Canudos, o povo da terra, de autoria de Marco Villa, Os sertões é apresentado como um livro grandioso, porém danoso para o conhecimento histórico sobre Canudos. Em seguida é levantada uma questão sobre a possibilidade de ter havido "algum ranço de natureza pessoal de Euclides da Cunha contra Moreira César", embora o autor advirta que esta questão nunca será respondida. Posteriormente a defesa de Moreira César é feita por meio de interpretações sobre episódios envolvendo o coronel, notadamente os relacionados à sua participação durante o governo de Floriano Peixoto, com destaque para a Revolução Federalista em Santa Catarina, na tentativa de mostrar como incorretas ou exageradas as notícias sobre o envolvimento do coronel no assassinato do jornalista Apulcro de Castro ou na execução de prisioneiros.

Embora não pairem dúvidas sobre o poder que teve e tem o texto euclidiano para o estabelecimento da história oficial sobre as questões relacionadas a Canudos, mesmo a historiografia mais crítica a ela não traz grandes mudanças no que diz respeito ao coronel Moreira César. Visitando o citado Canudos: o povo da terra verifica-se que, em se tratando da 'terceira expedição', suas fontes não são euclidianas, e no entanto é afirmado que o coronel "destacou-se na repressão à Revolução Federalista devido ao abuso da violência, ficando conhecido pela alcunha de corta-cabeças, pois ordenava a cruel degola dos prisioneiros" (p. 157). Também é descrito como um comandante truculento até na sua relação com os civis da capital baiana, obrigados a carregar as bagagens dos soldados (sob a ameaça, por parte do coronel, de aplicar pranchadas nos recalcitrantes). Mesmo a competência militar de Moreira César é posta em xeque, uma vez que suas decisões foram fundamentais para o fracasso da expedição contra Canudos.

Concordamos com Ayrton César; nunca saberemos se existiu algum ranço de natureza pessoal de Euclides da Cunha em relação a Moreira César. Mas seguramente nunca será de responsabilidade apenas do texto euclidiano ou dos seus repetidores a fama do seu tio-avô. Ao fim e ao cabo, o texto de César não nos livra da sensação de um ranço seu, de natureza familiar, em relação ao texto euclidiano.

Antoine Seel é tradutor de Os sertões para o francês (juntamente com o brasileiro Jorge Coli) e assina o ensaio 'Por trás das palavras: fluxos e ritmos em Os sertões' (pp. 149-72), em que discute a importância, para o tradutor, de apreender em primeiro lugar não a grandeza do texto euclidiano, mas o seu ritmo, os "seus movimentos, ínfimos ou grandiosos, mínimos ou enfáticos" (p. 149), enfim a própria vida do texto.

As últimas traduções de Os sertões para o alemão, francês e holandês têm sido bastante festejadas nos seus respectivos países, que as têm brindado com críticas elogiosas e prêmios literários. Em alguns relatos feitos pelos tradutores toma-se conhecimento das dificuldades inerentes à empreitada. No caso desse ensaio de Antoine Seel, chama a atenção o seu deleite ao se deparar com os detalhes construtivos da narrativa euclidiana, o que o aproxima, por exemplo, de um dos melhores textos sobre este assunto, o livro Fato e fábula (Eduam, 1999), de Lourival Holanda.

Três são os maiores ritmos euclidianos, identificados pelo tradutor francês: o ritmo da ruptura, da surpresa; o ritmo da violência, da brutalidade; e o ritmo da febre, da refrega, que designa e denuncia. Vejamos um deles, como ilustração e convite ao leitor para que deseje apreciar os demais.

Seel observa que Euclides da Cunha pretendia conferir à sua obra o tom de uma seqüência de descobertas, o que explicaria a presença das mutações bruscas, dos saltos qualitativos. Assim, "o texto se abre brusca-mente, se interrompe, balança. Como uma falha súbita, como um rasgo. A descrição, majestosa, precisa, científica, desdobrando suas complexidades, rompe-se de repente sobre uma abrupção, uma ravina" (p. 150). Este ritmo seria facilmente presenciado na descrição do primeiro contato (a descoberta) com a natureza do sertão, em 'A terra': "E o observador que seguindo este itinerário deixa as paragens em que se revezam, em contraste belíssimo, a amplitude das gerais e o fastígio das montanhas, ao atingir aquele ponto estaca surpreendido... / Está sobre um socalco do maciço continental, ao norte".3 3 Euclides da Cunha Os sertões,São Paulo, Ática, 1998 (edição crítica de Walnice Nogueira Galvão).

José Leonardo do Nascimento brinda os leitores com o ensaio 'O cosmo festivo: a propósito de um fragmento de "A terra''' (pp. 173-90), uma bela análise de Os sertões, feita a partir de um trecho do livro.

A passagem escolhida trata do momento da transição cíclica entre o inferno do sertão seco e o paraíso do sertão após as chuvas, o cosmo festivo do título do ensaio "é um momento, sucede à seca, é a intromissão do tempo na descrição do espaço e desenha uma temporalidade específica da existência sertaneja, marcada pela intercadência entre as quadras áridas e as deslumbrantes ou, para empregar uma expressão utilizada pelo autor, entre as épocas do 'verde' e da 'magrém'" (p. 175). Para Nascimento, "a arquitetura da narrativa euclidiana é transparente neste fragmento de Os sertões, parágrafos longos entrelaçados por frases curtas e explicativas ... . Este fragmento compendia a escrita euclidiana em geral e denota a linha de força do seu pensamento" (p. 176).

O autor do ensaio analisa traços da sintaxe euclidiana, identificando nela inicialmente uma sucessão quase invariável — a ação, os locais e, finalmente, os agentes: "disparam pelas baixadas úmidas os caititus esquivos; passam em varas, pelas tigüeras, num estrídulo estrepitar de maxilas percutindo os queixadas de canela ruiva; correm pelos tabuleiros altos... as emas velocíssimas... " (p. 177). Em seguida esta sintaxe é modificada, os atores precedem as ações e a agitação amaina-se: "as seriemas e as sericóias cantam nos balsedos... as suçuaranas pulas nas macegas altas... " (p. 178). A variação da sintaxe dá origem a uma simetria entre movimento e fixidez: os que se agitam e os que estão parados.

As aliterações em r, presentes no texto euclidiano, são vistas como procedimentos poéticos que o enriquecem com traços grossos e cores quentes e acentuam o tumulto: "a sonoridade acoplada ao significado de 'estrídulo estrepitar de maxilas percutindo' esboça uma hipérbole, e assim fere os sentidos do leitor da mesma forma que o conteúdo semântico de 'percutir' é acentuado pela percussão dos vocábulos" (pp. 179-80).

O ensaio nos permite ainda compreender como a descrição da natureza sertaneja revisita "um tópos tradicional da descrição da natureza de origem clássica, embora magnificamente presente na literatura medieval, estendendo-se mesmo até o século XVI" (p. 181).

Nunca é demais lembrar que a primeira parte de Os sertões é considerada a mais hermética de um conjunto que, no seu todo, não é de fácil leitura. Alguns autores vêm chamando a atenção para a importância de 'A terra' como uma espécie de índice narrativo do restante do livro. José Leonardo mostra que esse hermetismo é mais aparente do que real e o quanto a sua travessia paga em prazer aos leitores que desassombradamente a realizem.

Patrícia Cardoso Borges é autora do último ensaio, 'A interpretação d'Os sertões, ontem e hoje' (pp. 191-204), e começa mal ao afirmar: "Há cem anos era publicado o livro que entusiasmaria e intrigaria toda uma geração. Euclides da Cunha escreve Os sertões depois de ter sido por cinco anos o correspondente do Estado de S. Paulo na Guerra de Canudos" (p. 191). Evidentemente trata-se de um descuido, e provavelmente a autora deve estar se referindo aos cinco anos passados entre o final da Guerra de Canudos, em 1897, e a publicação de Os sertões, em 1902.

Em seguida é explicitada a intenção de "entender e analisar a primeira recepção crítica d'Os sertões, assim como sua recepção mais recente, ou seja a dos últimos anos do século XX e as primeiras do século XXI. Como o livro de Euclides foi recebido? Como o leram?" (p. 191). O artigo escrito por José Veríssimo no dia 3 de dezembro de 2002, a primeira das críticas, é tomado como referência de uma recepção elogiosa que se espalhou nas críticas dos demais contemporâneos da primeira edição do livro.4 4 As primeiras críticas a Os sertões foram reunidas e publicadas em 1904 pela editora Laemmert sob o título Juízos críticos. Em 2003 José Leonardo do Nascimento e Valentim Faciolli organizaram uma nova edição da obra, acrescentado-lhe um texto de autoria de José Campos Novaes (publicado inicialmente na revista do Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas) e o discurso feito por Sílvio Romero durante a recepção de Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras, em 1906. Não consta na edição atual o parecer do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre a proposta de sócio de Euclides da Cunha. A autora faz menção à resposta de Euclides para Veríssimo, julgando ter este ali explicitado seu entendimento de que sua obra, sendo alicerçada em bases científicas, destinaria à literatura o papel de ornamento. Na verdade esta é mais uma leitura feita pelo crítico Luiz Costa Lima — a partir do livro Terra ignota (Civilização Brasileira, 1997) — e menos o que pretendia Euclides da Cunha, que ressalta o consórcio entre ciência e arte, sem estabelecer para esta nenhum papel de ornamento.

Das primeiras críticas a autora passa incontinente às mais atuais, realizando uma leitura superficial de um trabalho de Silviano Santiago e outro de Walnice Nogueira Galvão. A seguir faz uma apreciação crítica sobre Os sertões, e o resultado é um texto marcado por saltos e descontinuidades.

Os sertões de Euclides da Cunha: releitura e diálogos críticos reúne ensaios diferenciados tematicamente, englobando desde aspectos históricos a sociológicos, artísticos e literários. Tal amplitude torna árdua a tarefa de resenhá-lo, mas ao mesmo tempo permite ao leitor uma visão panorâmica da construção e interpretação da obra euclidiana.

  • 1
    Curiosamente, o trecho em que o sertão ganha características do próprio paraíso será utilizado por José Leonardo em outro ensaio, que será abordado adiante.
  • 2
    Roberto Ventura, 'Deus e o diabo no monstruoso anfiteatro',
    Tempo Brasileiro, nº 144, 2001, pp. 63-78.
  • 3
    Euclides da Cunha
    Os sertões,São Paulo, Ática, 1998 (edição crítica de Walnice Nogueira Galvão).
  • 4
    As primeiras críticas a
    Os sertões foram reunidas e publicadas em 1904 pela editora Laemmert sob o título
    Juízos críticos. Em 2003 José Leonardo do Nascimento e Valentim Faciolli organizaram uma nova edição da obra, acrescentado-lhe um texto de autoria de José Campos Novaes (publicado inicialmente na revista do Centro de Ciências Letras e Artes de Campinas) e o discurso feito por Sílvio Romero durante a recepção de Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras, em 1906. Não consta na edição atual o parecer do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sobre a proposta de sócio de Euclides da Cunha.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      Dez 2004
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