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Diálogos entre genética, antropologia e história

Dialogues between genetics, anthropology, and history

LIVROS & REDES

Diálogos entre genética, antropologia e história

Dialogues between genetics, anthropology, and history

Ricardo Ventura Santos

Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz e professor do Museu Nacional/UFRJ Rua Leopoldo Bulhões 1480 21041-210 Rio de Janeiro — RJ Brasil santos@ensp.fiocruz.br

Luigi L. Cavalli-Sforza Genes, povos e línguas

São Paulo, Companhia das Letras, 2003, 296p.

Em conversa recente, Marcos Chor Maio, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, chamou minha atenção para uma passagem da recém-lançada biografia de Eric Hobsbawn (2003), intitulada Tempos interessantes. O historiador dedica um capítulo a reflexões quanto às "maneiras de escrever a história", que inicia abordando tradições historiográficas da primeira metade do século XX e finda com comentários acerca do presente. Sobre este, afirma que a história humana está sendo reinterpretada a partir dos conhecimentos gerados pela paleontologia, arqueologia e biologia molecular. Através da narrativa histórica produzida na interseção dessas disciplinas, segundo ele, "sabemos agora como é extraordinariamente jovem o Homo sapiens como espécie..." (idem, ibidem, p. 326). Enfatizando o papel da tecnologia do DNA na construção desse arcabouço, complementa: "... pela primeira vez, dispomos de uma estrutura adequada para uma história genuinamente global, restaurada a seu devido lugar central, nem englobada nas humanidades ou nas ciências naturais e matemáticas, nem tampouco separada delas ..." (idem, ibidem, p. 327). Hobsbawn não se refere diretamente a Genes, povos e línguas do geneticista ítalo-americano Luigi Cavalli-Sforza para exemplificar seu ponto, mas bem que poderia: o livro é precisamente um exercício na linha esboçada pelo historiador inglês.

Cavalli-Sforza se propõe a examinar como aconteceu a evolução humana nos últimos 100-150 mil anos, a partir de análises que, priorizando a genética, trazem também subsídios da arqueologia e da lingüística. Pode-se dizer que o intuito é o de revelar como é possível realizar um exercício de 'escrever a história' através de um ângulo bastante particular, qual seja, por meio de genes, que funcionariam como 'testemunhos' de complexas dinâmicas bioculturais ocorridas ao longo de milênios. Trata-se, assim, de realizar reconstruções de eventos temporalmente distantes, não mais a partir de resquícios materiais antigos e de fora do corpo humano, como é comum nas práticas aqueológica e paleantropológica, porém oriundos de corpos humanos viventes, no que poderia ser denominado 'genética arqueológica'.

Genes, povos e línguas resultou de uma série de conferências proferidas pelo autor no Collège de France. É de certo modo uma biografia intelectual de Cavalli-Sforza, que começou a trabalhar com genética de populações humanas na década de 1950, tendo desenvolvido seus primeiros trabalhos na Europa. Em uma seqüência temporal, cada capítulo aborda um dos grandes projetos que lhe ocuparam a agenda de pesquisas nas quatro últimas décadas do século XX, divulgados anteriormente em dezenas de artigos científicos, ensaios e inúmeros livros. Especificamente, é a condensação, em uma linguagem acessível para não-especialistas, do volumoso The history and geography of human genes (Cavalli-Sforza, Menozzi, Piazza, 1994).

Genes, povos e línguas está estruturado em seis capítulos. Nos dois primeiros Cavalli-Sforza delineia sua perspectiva acerca do estudo da diversidade biológica humana. Introduz um conjunto de conceitos da genética de populações (polimorfismos gênicos, isolamento geográfico, distância genética, construção de árvores evolutivas, entre outros) que empregará adiante, bem como apresenta uma digressão sobre raça e racismo. Um ponto-chave de seu argumento é o de que o conceito de raça não é, sob a óptica científica, satisfatório para descrever a variabilidade biológica humana. Segundo ele, as características raciais são tão-somente produtos de adaptações a diferentes condições climáticas a que foram expostos os seres humanos em um passado evolutivo recente, a partir do momento em que migraram para fora da África, seu continente de origem. Cor de pele, tamanho e formato do corpo e certas características bioquímicas, por muito tempo considerados delimitadores de diferenças essenciais e profundas entre as diversas 'raças humanas', constituem um fino verniz. A variação da cor de pele é explicada como produto de processos evolutivos — os diferenciais de melanização (desde a mais intensa, nas regiões próximas do equador, às menos intensas, nas altas latitudes) evoluíram, por pressão seletiva, devido a graus diferenciados de exposição aos raios ultravioleta. Um argumento central para Cavalli-Sforza é o seguinte: o que está abaixo da superfície do corpo — ou seja, quase a totalidade da constituição genética da espécie humana — difere pouco entre as populações.

Uma vez fornecido esse conjunto de conteúdos teóricos e metodológicos, nos capítulos seguintes (três a cinco) o autor parte para o cerne do livro, que é a análise das imbricações entre arqueologia/história, lingüística e genética na busca de reconstruir e compreender a história evolutiva da espécie humana. Debruça-se sobre questões acerca de onde e quando os Homo sapiens surgiram, como se dispersaram pelo mundo, como se deram as relações entre os diversos subgrupos ao longo dessa primeira diáspora africana e assim por diante. O volume de informações que o geneticista aborda, em uma série de estudos de caso, é enorme. Seus exemplos dizem respeito aos chamados Eva e Adão africanos — originalmente personagens bíblicos e de origem criacionista que, curiosamente, tornaram-se ícones de modelos genéticos de origem da espécie humana (não-criacionistas, de inspiração evolucionária darwiniana), atrelados às análises do DNA mitocondrial e do cromossomo Y, respectivamente —; à origem e à expansão da agricultura e sua relação com a genética humana; à comparação entre filogenias de línguas e genes, entre muitos outros. No sexto e último capítulo, talvez o menos satisfatório da obra, Cavalli-Sforza explora as relações entre transmissão cultural e evolução, em alguns momentos com um certo ar de superficialidade e mesmo ingenuidade sobre a dinâmica social.

Além das interpretações sobre a história humana a partir da genética, o livro de Cavalli-Sforza é de interesse pelas conexões que estabelece com as idéias de alguns pensadores influentes de áreas como antropologia e biologia evolutiva, para citar apenas dois exemplos. Ainda que não explicitamente, vê-se em Genes, povos e línguas ressonâncias, parciais ou não, das idéias de dois expressivos autores em princípio tão distintos: Lévi-Strauss e Darwin.

Com o primeiro, apesar de citado uma única vez, nota-se um compartilhamento da crítica quanto à veracidade do argumento da superioridade racial, na linha desenvolvida pelo antropólogo em Raça e história (Lévi-Strauss, 1970), produzido no contexto pós-holocausto e publicado originalmente pela Unesco. Ao longo de todo o livro, Cavalli-Sforza enfatiza que a história humana foi constituída por repetidos eventos de trocas e fluxo de ordem genética, cultural e tecnológica, o que guarda proximidade com o argumento de Lévi-Strauss de que as chamadas grandes civilizações (em particular a civilização ocidental) desenvolveram-se a partir de múltiplos pilares e contribuições dos mais diferentes povos, através de uma "história cumulativa" e da "colaboração das culturas", nos termos do antropólogo.

Quanto a Darwin, as referências a ele por Cavalli-Sforza são mais freqüentes e explícitas. Em A origem do homem e a seleção sexual (Darwin, 1974), de 1871, o naturalista inglês buscou aplicar sua teoria evolutiva na elucidação das origens da espécie humana, bem como na compreensão da emergência e disseminação de sua diversidade biológica. Na ausência de um registro fóssil minimamente satisfatório, Darwin argumentou que possivelmente a linhagem humana havia evoluído na África, pois lá estavam as outras espécies (gorilas e chimpanzés) que lhe são filogeneticamente mais próximas. Procurou também explicar as diferenças morfológicas entre as "raças humanas" (que atribuiu à "seleção sexual"), bem como escreveu sobre a existência de diferenças profundas entre elas, de caráter, inteligência e capacidade de civilização, um lugar-comum no ambiente vitoriano do naturalista, na segunda metade do século XIX. Se há dissonâncias entre Cavalli-Sforza e várias formulações darwinianas, por outro lado Genes, povos e línguas lida com questões que vêm ocupando um lugar central na biologia evolucionária ao longo do último século e meio, algumas das quais tratadas a fundo pelo próprio Darwin à luz dos conhecimentos científicos de seu tempo.

Como não poderia ser diferente, o livro de Cavalli-Sforza está longe de ser uma obra isolada, do ponto de vista intelectual e histórico. Genes, povos e línguas atrela-se a uma influente tradição humanista da biologia e da genética da segunda metade do século XX, tradição esta que viu no esvaziamento científico do conceito de raça um elemento importante na estratégia de contraposição aos pressupostos racistas, incluindo a idéia de superioridade racial. A historiadora da ciência Donna Haraway (1989, pp. 197-203) refere-se à chancela da ciência genética no nascimento da proposta de um "homem universal no pós-Segunda Guerra, biologicamente certificado para a igualdade e para os direitos de uma cidadania plena", o que exemplifica com base na análise das declarações da Unesco sobre raça, no início da década de 1950. É plausível afirmar que, em Genes, povos e línguas, Cavalli-Sforza ecoa esse compromisso, reverberando-o através da genética na era do DNA.

É também produtivo refletir sobre o livro de Cavalli-Sforza com referência aos modelos de interação entre ciências sociais e biológicas, podendo-se tomar como comparação aquele proposto pelo zoólogo Edward Wilson (1980), popularizado como sociobiologia nos anos 1990 e recentemente reintroduzido como psicologia evolucionária. O geneticista sugere uma relação que se pode dizer horizontal entre genética, por um lado, e ciências humanas e sociais (representadas sobretudo pela arqueologia e lingüística), por outro, cada uma delas ajudando a elucidar dimensões específicas, sem 'subjugações' a princípio. No cenário imaginado por Cavalli-Sforza, todas essas disciplinas convergirão em uma teoria comum, e subjacente a esta deve haver uma só história; todas apresentam lacunas, esperando-se que a síntese das três ajude a eliminar as brechas. Essas simetria e complementaridade não se fazem presentes na proposta teórica da sociobiologia. Nas palavras de Wilson, em meados dos anos 1970, parecia razoável antecipar que a sociologia e as outras ciências sociais, assim como as humanidades, viriam a ser reformuladas e incorporadas à biologia evolutiva no futuro. Assim, Genes, povos e línguas traz elementos adicionais para a infindável e nem sempre fácil discussão sobre as relações entre biologia e ciências sociais que, longe de arrefecer, parece estar ganhando impulso com a saliência da genômica no momento histórico atual.

Chama a atenção que Cavalli-Sforza, ainda que impregnando suas análises com dados históricos e antropológicos, não se refira à intensa controvérsia em que se viu envolvido ao longo dos anos 1990. No texto de orelha do livro, abaixo de sua foto, consta que o geneticista dirigiu o chamado Projeto da Diversidade do Genoma Humano (conhecido como HGDP), "um programa para produzir linhas de células provenientes de diversas populações indígenas do mundo inteiro" (p. 99) e que disponibiliza essas amostras para pesquisadores. Acusações de biopirataria e de biocolonialismo, bem como questionamentos de ordem ética ligados ao estabelecimento dessas culturas de célula (que chegaram a alcançar povos indígenas no Brasil) inviabilizaram a realização do HGDP como originalmente planejado (cf. Santos, 2002). Os debates em torno deste projeto apontam para as complexas reações entre ciência, genética e sociedade no mundo atual, no âmbito das quais a recepção do conhecimento científico e eventuais respostas de movimentos sociais são moduladas por contextos socio-históricos e políticos específicos, cujas influências transcendem em larga medida as fronteiras dos laboratórios.

Genes, povos e línguas reúne, em suas três centenas de páginas, reflexões densas, geradas durante décadas de atividade científica de seu autor e do grupo de pesquisadores que em torno dele gravitou e gravita. Para os não-especialistas funciona como uma porta de entrada para a obra de Cavalli-Sforza e, pelo que esta representa, para algumas das fascinantes (e por vezes tensas) relações entre antropologia e genética, entre ciência e sociedade. Como afirma Hobsbawn (op. cit., p. 326), "... por meio da biologia molecular e evolutiva, da paleontologia e da arqueologia, a própria história humana está sendo transformada, está sendo reinserida no arcabouço da evolução global... o DNA a revolucionou". Resta aguardar para ver se a perspectiva proposta pelo geneticista — essa maneira tão idiossincrática mas também universal de 'escrever a história' — vai de fato romper os círculos mais próximos da genética e da biologia e iniciar um efetivo diálogo com as ciências humanas e sociais, algo que ainda está por vir.

BIBLIOGRAFIA

Cavalli-Sforza, L. L. e Menozzi, P., Piazza, A. 1994 The history and geography of human genes. Princeton, Princeton University Press.

Darwin, C. 1974 A origem do homem e a seleção sexual. São Paulo, Hemus Livraria Editora.

Haraway, D. 1989 Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science. Nova York, Routledge.

Hobsbawn, E. 2003 Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo, Companhia das Letras.

Lévi-Strauss, C. 1970 'Raça e história'. Em Unesco (org.). Raça e ciência, 1. São Paulo, Editora Perspectiva.

Santos R. V. 2002 'Indigenous peoples, postcolonial contexts and genomic research in the late 20th century'. Critique of Anthropology, 22: 81-104.

Wilson, E. 1980 Sociobiology: the abridged version. Cambridge (MA), Harvard University Press.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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