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Carta do editor

CARTA DO EDITOR

Esta coletânea de artigos resulta dos esforços de colaboração científica entre Brasil e Portugal desenvolvidos pela Casa de Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, e pelo Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa. As duas instituições têm estruturas e compromissos muito semelhantes no âmbito da pesquisa e do ensino de pós-graduação, mas agendas científicas e disciplinares diferentes, ainda que complementares: a Casa de Oswaldo Cruz está orientada para o estudo da história e a preservação da memória das ciências e da saúde no Brasil, ao passo que o Instituto de Ciências Sociais combina disciplinas e projetos mais diversificados e independentes uns relação aos outros. O interesse comum por história social e etnográfica das práticas médicas levou-nos a conceber o projeto bi-institucional "Saberes médicos e práticas terapêuticas nos espaços de colonização portuguesa". A equipe inicial contava com Luiz Otávio Ferreira, Fernando Sergio Dumas dos Santos, Luiz Antônio Teixeira e Tania Maria Fernandes, da Casa de Oswaldo Cruz; Cristiana Bastos, Ricardo Roque, Mónica Saavedra e Maria Manuel Quintela, do Instituto de Ciências Sociais. Com o apoio de nossas respectivas instituições, da Fundação para a Cência e Tecnologia (FCT), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Instituto para a Cooperação Científica e Técnica Internacional (ICCTI) — atual Gabinete de Relações Internacionais da Ciência e Ensino Superior (GRICES) — pudemos efetuar diversas missões no âmbito do convênio e apresentar versões preliminares de alguns dos artigos em seminários que ocorreram em Lisboa (2001) e em Petrópolis, no Rio de Janeiro (2002). Novos pesquisadores aderiram ao grupo original, e estamos certos de que os resultados ora apresentados serão um exemplo para outros projetos de colaboração, análises comparativas e discussões conjuntas de resultados.

Neste momento, oferecemos um conjunto de explorações ao tema da história das práticas e saberes médicos, com referenciais empíricos diversos e a preocupação comum com o estudo dos momentos de transição — momentos esses que envolvem sempre disputa, apropriação e rejeição de saberes — sejam eles a implantação do paradigma bacteriológico, a institucionalização do ensino médico, a generalização da vacina antivariólica ou outro qualquer. Os textos ora publicados mostram que não é simples e pacífica a substituição de umas práticas por outras, rendidas ao progresso do saber: todos os processos de transição revestem-se de complexos enredos político-sociais que nos esclarecem sobre as sociedades em que transcorrem, e sobre a própria natureza das mudanças em curso no conhecimento médico e nas relações de poder.

Na primeira seção, temos três diferentes entradas na intimidade desses processos. Cristiana Bastos examina, de perto, o cotidiano do Serviço de Saúde da Índia portuguesa, no século XIX, e critica a narrativa heróica que a ideologia nacional-colonialista do século seguinte emprestou à Escola Médica de Goa, mostrando uma realidade feita de fragilidades e negociações, e uma sociedade de enredos contraditórios, que desafiam o retrato clássico da dominação colonial. Luiz Antonio Teixeira estuda a discussão acerca do caráter palustre ou tifóide das "febres paulistas", e ao fazê-lo, nos proporciona verdadeiro thriller sobre os processos de micro-política, a que não faltam a instituição das academias e grupos de influência na formação de consenso num momento crucial para a história da medicina, o da implantação do paradigma bacteriológico. Por sua vez, Tânia Salgado Pimenta mostra que a Fisicatura-mor no Rio de Janeiro convivia com variados expedientes de cura e numerosos entendimentos sobre o que era doença.

A segunda seção examina o modo como se corporifica a difusão dos saberes médicos e científicos nos séculos XVIII e XIX em determinados contextos sociais e políticos. O estudo de Luiz Otavio Ferreira sobre a imprensa médica brasileira, na primeira metade do oitocentos, mostra as relações de proximidade entre os interesses comerciais, políticos e científicos que permitiram a institucionalização do periodismo médico. Robert Wegner estuda o caso curioso da vasta produção editorial do Arco Cego, em Lisboa, e sua difusão no Brasil, e discute as relações metrópole-colônia e a narrativa de conquista dos espaços interiores pela civilização. Lorelay Kury leva-nos ao âmago da transição da mera coleta de espécies naturais para sua domesticação em sistemas de conhecimento.

Na terceira seção, vê-se como a história inspirada na antropologia e sociologia do conhecimento abre horizontes para assuntos aparentemente fechados pela história convencional da medicina, como acontece com a varíola. Tania Maria Fernandes leva-nos às contradições e fragilidades do conhecimento médico ao tempo da sua consolidação institucional, examinando os pronunciamentos da Academia Imperial de Medicina a respeito da vacinação e da própria varíola. Mónica Saavedra demonstra que, para a Índia colonial portuguesa, há que matizar a dicotomia entre uma opção nativa pela variolização e uma imposição da vacina pelas autoridades sanitárias do império. Ricardo Roque elabora densa análise no terreno da sociologia do conhecimento científico a partir de um aparente fait divers esquecido na história do combate à varíola: um tratamento goês para esta doença "traduzido" de uma prática indígena.

Na quarta e última seção, os artigos tratam das práticas que se definem em oposição ou por contraste aos caminhos da consolidação do saber médico central. Para Timothy Walker, as perseguições a curandeiros pela Inquisição portuguesa setecentista não podem ser estudadas sem referência ao crescente poder dos médicos, que os viam como concorrentes. Maria Manuel Quintela examina o termalismo enquanto prática terapêutica que oscila entre a condição marginal e científica atribuída pela medicina clínica e disciplinas circundantes, como a hidrogeologia, fazendo a autora interessante estudo comparado do termalismo em Portugal e no Brasil.

O que oferecemos aqui é apenas o início de uma caminhada promissora — a de alargarmos os horizontes respectivos através de estudos cruzados, em diálogo, convergência ou contraste na área das ciências sociais em saúde. Esperamos alcançar nossos objetivos e presenciar a multiplicação destes esforços.

Cristiana Bastos

Luiz Otávio Ferreira

Tania Maria Fernandes

Editores convidados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    2004
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