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O ensino da medicina na Índia colonial portuguesa: fundação e primeiras décadas da Escola Médico-cirúrgica de Nova Goa

Medical teaching in Portuguese colonial India: the creation and earliest decades of the New Goa Medical-surgical School

Resumos

As comemorações centenárias da Escola Médico-cirúrgica de Nova Goa (1942) exaltavam o seu contributo para a consolidação do império português em África. Observamos esta instituição à luz da literatura 'medicina e império', que tende a analisá-la como um instrumento para o exercício do biopoder. Esta hipótese é contestada à luz das fontes primárias sobre as primeiras décadas da escola, das quais surge um quadro de fragilidade e descaso administrativo pouco compatível com um projeto imperial para formar médicos e distribuí-los pelas colônias. Sugerimos que a fundação da escola resulta de um processo em que predominam interesses locais, numa sociedade onde os recortes 'colonizador' e 'colonizado' se diluem nos inúmeros desdobramentos da diferenciação social. A apropriação da escola pela narrativa de glorificação imperial é algo que ocorre no século XX, quando se reescreve a história colonial portuguesa.

ensino da medicina; escolas médicas; império português; Índia; colonialismo; medicina tropical


The centennial celebration of the New Goa Medical-surgical School, held in 1942, glorified the institution's contribution to the consolidation of the Portuguese Empire in Africa. I observe the School from the perspective of the literature on medicine and empire, whose analyzes tend to view it as a tool for exercising biopower. I then question this hypothesis from the perspective of primary sources on the School's first decades, which paint a picture of frailty and administrative disregard that is not very compatible with an imperial project engineered to train physicians and disperse them throughout the colonies. I conclude that the School's creation stemmed from a process where local interests dominated, in a society where the categories "colonizer" and "colonized" were diluted within the complexities of social differentiation. It was with the twentieth-century rewriting of Portuguese colonial history that the narrative of imperial glorification appropriated the School.

medical teaching; medical schools; Portuguese Empire; India; colonialism; tropical medicine


ANÁLISE

O ensino da medicina na Índia colonial portuguesa: fundação e primeiras décadas da Escola Médico-cirúrgica de Nova Goa1 1 Pesquisa desenvolvida no âmbito dos projetos FCT "Medicina tropical e administração colonial" (PLUS/1999/ANT/15157) e "Medicina colonial, estruturas do império e vidas pós-coloniais em português" (POCTI/ANT/41075/2001), com componente FEDER, integrando ainda o convênio entre o ICS e a Casa de Oswaldo Cruz "Saberes Médicos e Práticas Terapêuticas nos Espaços de Colonização Portuguesa" (IICTI(GRICES)/CNPq). Agradeço aos participantes dos projetos a discussão e os comentários, bem como à Mónica Saavedra a transcrição dos manuscritos

Medical teaching in Portuguese colonial India: the creation and earliest decades of the New Goa Medical-surgical School

Cristiana Bastos

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa Av. Prof. Aníbal Bettencourt, 9 1600-189 — Lisboa, Portugal c.bastos@ics.ul.pt

RESUMO

As comemorações centenárias da Escola Médico-cirúrgica de Nova Goa (1942) exaltavam o seu contributo para a consolidação do império português em África. Observamos esta instituição à luz da literatura 'medicina e império', que tende a analisá-la como um instrumento para o exercício do biopoder. Esta hipótese é contestada à luz das fontes primárias sobre as primeiras décadas da escola, das quais surge um quadro de fragilidade e descaso administrativo pouco compatível com um projeto imperial para formar médicos e distribuí-los pelas colônias. Sugerimos que a fundação da escola resulta de um processo em que predominam interesses locais, numa sociedade onde os recortes 'colonizador' e 'colonizado' se diluem nos inúmeros desdobramentos da diferenciação social. A apropriação da escola pela narrativa de glorificação imperial é algo que ocorre no século XX, quando se reescreve a história colonial portuguesa.

Palavras-chave: ensino da medicina, escolas médicas, império português, Índia, colonialismo, medicina tropical.

ABSTRACT

The centennial celebration of the New Goa Medical-surgical School, held in 1942, glorified the institution's contribution to the consolidation of the Portuguese Empire in Africa. I observe the School from the perspective of the literature on medicine and empire, whose analyzes tend to view it as a tool for exercising biopower. I then question this hypothesis from the perspective of primary sources on the School's first decades, which paint a picture of frailty and administrative disregard that is not very compatible with an imperial project engineered to train physicians and disperse them throughout the colonies. I conclude that the School's creation stemmed from a process where local interests dominated, in a society where the categories "colonizer" and "colonized" were diluted within the complexities of social differentiation. It was with the twentieth-century rewriting of Portuguese colonial history that the narrative of imperial glorification appropriated the School.

Keywords: medical teaching, medical schools, Portuguese Empire, India, colonialism, tropical medicine.

Introdução

Entre 1842 e 1961, a Escola Médico-cirúrgica de Nova Goa formou cerca de mil médicos, cirurgiões e farmacêuticos. Os licenciados, quase todos oriundos de Goa (ver mapa à p. 14), tinham um raio de ação limitado e não podiam exercer a profissão em Portugal ou alcançar lugares de chefia. A menos que voltassem a repetir cursos e exames no reino, restavam-lhes apenas os postos secundários nos serviços de saúde das colônias. Dado que na Índia a oferta excedia a procura, muitos desses profissionais seguiram para África (Moçambique, Angola, São Tomé, Cabo Verde e Guiné) ou para os pequenos territórios de Macau e Timor.

O cerne das narrativas sobre a saga coletiva dos médicos de Goa combina esses dois aspectos de uma forma única e aparentemente paradoxal: por um lado, realça a constante discriminação a que estavam sujeitos, por parte das autoridades portuguesas; por outro, exalta as glórias da sua contribuição para a colonização portuguesa de África. O enaltecimento do passado e da vocação imperial perpassa a historiografia do século XX sobre a Escola Médica e atinge o auge nos anos 1940–50, quando Portugal tentava manter um estilo arcaico de nação imperial num mundo que tomava outros rumos.

Cem anos de Escola Médico-cirúrgica: o contexto político

No dia 1o de dezembro de 1942, longe do epicentro da Segunda Grande Guerra que então movimentava a Europa e arrastava o mundo inteiro, mas a que Portugal insistia em alhear-se com uma posição de 'neutralidade', em Pangim, ou Nova Goa, assistia-se a uma celebração muito especial. Não era apenas a Restauração2 2 A efeméride reporta-se à restauração da independência nacional portuguesa em 1640, após oitenta anos de governo unificado com a coroa espanhola — episódio fundamental para uma ideologia nacionalista que enfatizava a identidade por oposição à Espanha. que se comemorava, mas algo de maior ressonância local: o centésimo aniversário da Escola Médico-cirúrgica de Nova Goa. Aproveitava-se o momento para fazer um balanço das glórias e vicissitudes da instituição e das vidas a ela ligadas (ver Costa, 1943a, 1943b; Escola Médico-cirúrgica,1955). Várias gerações de médicos e farmacêuticos ali formados associaram-se a esse ritual de autocelebração, organizado por uma comissão de festas de que faziam parte alguns dos que mais se empenharam na historiografia do ensino médico em Goa, como Germano Correia, mais tarde diretor da Escola Médica, lente da cadeira de história da medicina na Índia e autor de obras correlatas (Correia, 1917, 1941), e João Pacheco de Figueiredo, seu sucessor no ensino da história da medicina na Índia (Figueiredo, 1960) e último diretor da Escola Médica de Goa.

Ao longo da manhã sucederam-se discursos e vivas à escola, não faltando uma missa pelos defuntos e homenagens aos que perderam a vida no exercício da medicina. Em destaque esteve também a primeira exibição da Mocidade Portuguesa naquele território, com a típica formação de 'castelos', 'quinas' e demais simbologias paramilitares adotadas pelo regime português nos anos 1940. Entre as juras proferidas pelos seus jovens integrantes contavam-se as de "consagrar a vida à consolidação e engrandecimento do Império Português, aquém e além mar" e "lutar por obter mais e melhor por Portugal" (Escola Médico-cirúrgica, op. cit., p. 2). Das celebrações da Restauração, as hostes da Mocidade associaram-se às comemorações centenárias da escola, hasteando a bandeira e o pendão das cinco quinas. Uma simbologia comum atravessava as duas celebrações desse 1o de dezembro, pouco mais de três séculos de restauração da independência nacional e um século de existência de uma instituição tão especial como a Escola Médica de Goa: ambas convergiam na referência ao projeto de expansão e consolidação do Império, como o patenteavam os discursos, as imagens e os símbolos adotados.

A tarde prosseguiu com uma sessão solene na Biblioteca da Escola Médica, em que proferiram discursos dois dos seus mais notáveis membros: Froilano de Melo, então diretor, e Germano Correia, que o sucederia no cargo. Mas o discurso magno coube ao antigo diretor Wolfango da Silva, já no esplendor do Salão da Câmara Municipal, abundantemente iluminado e embelezado com saris, pitamboras e emblemas de medicina e farmácia. Concerto e baile avançaram noite adentro, sendo o bufê mais uma evocação do cotidiano da Escola: tal como os livros de medicina, o cardápio falava francês, com os seus Rissoles de crevettes à Testut, Poisson du jour à la École de Medicine et Chirurgie, Purée de pommes de terre à la Centenaire, Poulet truffé à l'Anatomie, Dindon braisé à la thermocauthère e o Pudding radiologique glacé.

O que estava em causa, nessa peculiar celebração do ensino da medicina européia na Índia de administração portuguesa, às vésperas da independência da União Indiana e das grandes mudanças que se seguiram à Segunda Guerra Mundial? Qual o significado dessa efeméride para a sociedade de Goa, com vários séculos de presença portuguesa e então no final de um ciclo cujo epílogo tardava em fazer-se chegar mas era inevitável? De onde vinha a tranqüilidade e aparente certeza sobre a ordem das coisas quando, ao redor, se anunciavam profundas mudanças nos regimes coloniais?

Tal alheamento aos ventos da história parece um traço distintivo do colonialismo português tardio, algo que tomaria tons tragipatéticos em 1961, quando Goa foi 'invadida', para uns, ou 'libertada', para outros, pela União Indiana. Foi também nesse ano que começaram, nas colônias portuguesas de África, as ações dos movimentos independentistas, que teriam como resposta a mobilização militar portuguesa — a guerra colonial — até 1974. Durante mais de uma década, ainda, quando o mundo assistia ao nascimento de novas nações no lugar das colônias européias na Ásia e África, Portugal persistia com uma ideologia de nação pluricontinental, eufemismo para império. Nos mapas nacionais mantinham-se os pequenos territórios indianos de Goa, Damão e Diu com o estatuto de 'província ultramarina', tais como Timor, Macau, Moçambique, Angola, São Tomé, Guiné e Cabo Verde.

O cimento ideológico que ajudou a consolidar tal regime e a manter a complacência popular passava pela ênfase na paz que se vivia fronteiras adentro, em contraste com a turbulência do mundo exterior, argumento que não faltou no discurso de Wolfango da Silva aos médicos e farmacêuticos de Goa, naquela tarde de 1942. Contrastava o ambiente de instabilidade e conflito vivido na circundante Índia de língua inglesa com o cultivo da unidade e convergência que o abraçar dos valores nacionalistas trazia a Goa: "Enquanto lá fora se vive em lutas constantes entre a ciência e a religião, nesta abençoada terra de paz e sossego a ciência e a religião equilibram e conservam o sentimento patriótico e nacional", acentuava, evocando o caráter ameaçado do "vasto império anglo-indiano" (Escola Médico-cirúrgica, op. cit., p. 24). A que nacionalismo e patriotismo se referia o orador? A despeito da possibilidade de estar, no coração de alguns dos presentes, o tipo de nacionalismo indiano que timidamente se esboçava em prol de uma autonomia3 3 Entre a imprensa independentista destacou-se o jornal Bharat, o primeiro assumidamente hindu, fundado em 1910. Tendo ascendido com o fulgor independentista até 1926, vem a sofrer, como outros, os efeitos da repressão que se instaurou com a subida de Salazar ao poder. O Bharat era dirigido por G. P. Hegdo Dessai, advogado e farmacêutico formado pela Escola Médica de Goa, e tinha colaboradores locais como J. J. Cunha e Pandita Ram e correspondentes em Lisboa como Druston Rodrigues, Fernando da Costa e Telo de Mascarenhas, entre outros. , o que estava em causa — e era obrigatório endossar em atos públicos — era o nacionalismo português de Salazar.

Mesmo que assente na repressão, na polícia política e na censura, a lógica do regime proclamava a paz em várias direções. Num primeiro plano, Salazar acenava com o afastamento em relação aos conflitos internacionais, reiterando as promessas de paz, sossego e distância das modernices da democracia e dos distúrbios que o povo tinha experimentado com a república (1910–1926). O povo, ainda lembrado, agradecia por ser poupado de conflitos. Consolidava-se uma ideologia corporativa que negava as tensões sociais, e esboçava-se uma justificativa para as colônias que culminaria com as teses da nação indivisível e pluricontinental, embelezada mais tarde pelo lusotropicalismo de Gilberto Freyre.4 4 O luso e o trópico (Freyre, 1961) é decerto a mais institucional das explanações do lusotropicalismo e a mais claramente apropriada pelo regime de Salazar–Caetano. Sobre a análise de Freyre sobre Goa, onde supostamente o autor encontra a expressão que mais tarde vem a ser tão conveniente ao regime de Salazar, ver Bastos (2001b). Num plano mais difuso, o regime associava a pacatez que promovia às glórias do passado, pintando de cores pacifistas as ações de saque e ocupação da Expansão renascentista: Portugal seria herança dos pioneiros — os quais, por suas façanhas marítimas, teriam unido continentes, raças, culturas — e a que todos pertenciam, desde que exprimissem adesão aos valores em que tal regime se assentava.

Enquanto essas idéias eram difundidas, a possibilidade de cidadania para os povos das colônias era apertada sob enredos legislativos múltiplos, garantindo-se a sua subalternidade e precavendo-se contra idéias subversivas de emancipação. O ato colonial de 1930 (ver Rosas et al., 1996), sob a pena do então ministro Oliveira Salazar, alterava o estatuto de províncias ultramarinas para o de colônias e retirava direitos às suas populações.

Havia muito tempo que Goa fora menorizada em tal sistema, fato a que não é alheia a duplicidade de sentimentos tantas vezes patente nos discursos oficiais das autoridades goesas; essa duplicidade combinava a expressão de uma adesão ao regime e à ideologia de uma nação, em vários continentes e com várias contribuições culturais, a um ressentimento de fundo contra o descaso a que Goa era tratada pela administração portuguesa nos séculos XIX e XX. Note-se que tal duplicidade acentua-se e complexifica-se em várias instâncias, uma vez que a sociedade goesa estava longe de ser homogênea. A adesão aos valores políticos e culturais portugueses, tal como a adoção da religião católica, não anulou estruturas sociais preexistentes e ancoradas na cultura hindu, como as referências de casta discretamente onipresentes, o que levava a um desdobrar quase ilimitado de pautas de interesses e a um correlato jogo de conflitos.5 5 A imprensa goesa do século XIX é uma boa expressão dessas multiplicidades; entre as muitas polêmicas que entretêm os editores dos diversos jornais locais, destacam-se aqui e ali referências às 'castas cristãs', uma vez que, apesar de cristãos, os indianos continuavam a se referir aos grupos de proveniência — brâmanes, xátrias, sudras etc. — e através deles organizavam não apenas aspectos fundamentais da sua vida material, como alimentação e definição das atividades manuais, mas também aspectos cruciais da vida social, como a escolha de cônjuge (idealmente dentro da casta) e as regras de comensalidade. Quando visitou Goa em missão científica, perto do final da tutela portuguesa, Orlando Ribeiro6 6 Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, Orlando Ribeiro desenvolveu em Portugal a geografia humana, deixando vários discípulos e inúmeras obras. Fizeram também parte da missão a Goa Raquel Soeiro de Brito, que escreveu posteriormente Goa e as praças do Norte (Brito, 1966, 1998) e Mariano Feio, que escreveria As castas hindus de Goa (Feio, 1979). Dessa viagem Orlando Ribeiro produziu um relatório secreto ao governo, que só recentemente veio a público (Ribeiro, 1999). produziu um relatório confidencial esclarecedor sobre o desconhecimento, por parte das autoridades de Lisboa, da realidade social daquele território, que descreveu como um cadinho de diferenças e contradições e na qual a implantação portuguesa pouca espessura tinha.

Goa no império: ambigüidades e complexidade local

Tendo em conta as contradições, ambigüidades e multiplicidades que marcavam a sociedade de Goa e o fato de a governação portuguesa não ter aí raízes profundas, há que relativizar a retórica nacionalista-imperial das comemorações do centenário da Escola Médica. Esta seria, antes de tudo, o quadro simbólico em que era possível conceber a celebração, e foi nesses tons que se expressaram os diversos discursos do dia. Dominou a referência ao entrosamento com o projeto colonial. Falou-se de cem anos formando médicos que assistiam às populações locais, serviam nas colônias portuguesas de África e Ásia e, por vezes, se aventuravam a Portugal e ali prosseguiam seus estudos para se elevarem a algo mais que médicos locais e coloniais e seguirem, eventualmente, carreiras científicas ou de administração sanitária. O discurso proferido na manhã do centenário pelo dr. Francisco Barreto (Escola Médico-cirúrgica, op. cit., p. 7) continha expressivas passagens nesse sentido:

Do alto deste templo contemplai porém, as embaixadas que daqui partem. Filhos desta Escola vão daqui à metrópole, como nossos embaixadores intelectuais, enriquecidos com a cultura que aqui beberam e que com a faísca do seu génio honram e honraram o nome goês fora das fronteiras. Filhos desta Escola implantam, em sólidos alicerces, o padrão português em terras de Africa, desbravando matas, saneando zonas inóspitas, organizando campanhas sanitárias, criando institutos médico-sociais e, quantas vezes selando com o seu próprio sangue a nobre aliança indo-lusa, que cimenta o império africano!

O tema reapareceria de inúmeras formas, inclusive nas referências à boa reputação que os médicos indo-portugueses teriam mantido em África. Assim lembrou Froilano de Melo (idem, ibidem, p. 14) no discurso da tarde:

Em toda a parte por onde passei, nas Ilhas Negras e no Continente Negro, fui encontrar na tradição oral, cantada de mães a filhos, um culto de ternura por esses médicos de Goa, que, seja em palácios de magnates seja em cubatas de gente humilde, tiveram em cada lar um amigo e fizeram de cada doente um irmão!

Numa primeira interpretação, os trechos que sublinham o papel dos médicos de Goa na administração da saúde em África ajudariam a caracterizar a Escola Médica como uma 'correia de transmissão' do projeto colonial: seria uma instituição formadora dos agentes do biopoder imperial, no sentido foucaultiano, postos em situação de subalternidade, a intermediar poderes.7 7 Como se verá adiante, o enaltecimento da vocação de intermediário entre europeus e africanos é adotada pelos próprios médicos da Escola de Goa no final do século XIX, como acontece com o diretor Rafael António Pereira (1889), e transita à lógica de governação portuguesa. Tal caracterização da Escola Médica de Goa, que exploramos noutras ocasiões (Bastos 2001a, 2002), encaixa-se no projeto teórico de análise da medicina tropical como instrumento imperial, desenvolvida por historiadores e antropólogos na senda dos trabalhos de David Arnold (1988) e de Macleod e Lewis (1988).

Neste artigo pretendemos incorporar novos dados a essa perspectiva e relativizá-la. Se a análise da produção discursiva sobre a Escola Médica confirma uma interpretação que a vê como instrumento do império, o alargamento do estudo com outras fontes mostra uma realidade mais complexa e contraditória. Ainda na linha da produção discursiva, existe algo como uma contravoz de lamento e fragilidade institucional que perpassa toda a história da Escola Médica. Sempre em cheque, sempre em questão, sempre à beira de fechar, sempre subsistindo no frágil equilíbrio de direções divergentes e comprimida entre várias frentes, a própria existência da escola dependia da permanente negociação que mantinha, em simultâneo, com as autoridades portuguesas, de quem dependia formalmente, e com a sociedade local, de quem dependia substantivamente. A constatação leva-nos a uma terceira óptica de análise, de inspiração etnográfica: o estudo do cotidiano da instituição tal como se pode constatá-lo nas fontes primárias. Estas mostram — como veremos ao longo do artigo — uma instituição que articula interesses locais e coloniais, não se resumindo a ser um braço do império e contrastando com as instituições congêneres que a administração britânica desenvolveu em Calcutá e Bombaim (Arnold, 2000).

É, então, como um elo entre a sociedade local e a administração colonial que nos propomos interpretar as primeiras décadas de existência da Escola Médica de Goa, aspirando assim ultrapassar as perplexidades e paradoxos a que o seu estudo nos conduz, como a contradição entre o continuado reiterar da sua importância no império e a negligência a que a administração a votava; entre a afirmada qualidade de ensino e a reconhecida degradação pedagógica; entre as qualidades clínicas dos facultativos e a sua falta de treino; entre a iminente extinção da escola e a sua continuidade institucional; entre a projeção ficcionada de cronologias glorificadoras do passado colonial e a realidade de uma condição subalternizada dos seus atores sociais.

Por entre os discursos laudatórios do centenário não deixa de se fazer notar o conjunto de contradições a que os médicos de Goa estavam sujeitos, nomeadamente a fragilidade da sua instituição e a subalternização das suas carreiras. A situação da escola espelhava a situação da Índia no império português, há muito dada ao descaso e recuperada no século XX para efeitos simbólicos. A sua centralidade esgotara-se no primeiro ciclo imperial; seguira-se-lhe o ciclo do Brasil e, com a sua independência, algumas décadas sem política colonial. O interesse por África só se cristaliza na década de 1880, no rescaldo da conferência de Berlim e do ultimatum inglês aos territórios africanos. As crônicas de Ramalho Ortigão (s. d.) e Eça de Queiroz (1927) patenteiam a pouca estima que a geração de setenta tinha pelo império: apreciando a idéia de vender as colônias de África a outras potências européias, acrescentavam-lhe a sugestão de dar a Índia gratuitamente e não poupavam à chacota a própria Escola Médica.

Mas se a vida nas colônias pouco interessava às elites lisboetas, ela prosseguia alimentando os enredos sociais e institucionais que caíam sob a tutela portuguesa. Assim o ilustra a institucionalização do ensino da medicina na Índia.

A fundação da Escola Médica: antecedentes, rupturas e continuidades

A fundação da Escola Médica de Goa, em 1842, está ausente da legislação portuguesa, que só a menciona e legitima por diploma em 1847 (Conselho Ultramarino, 1867, pp. 551-8; Silva, 1844, pp. 128-35). Esta cronologia, bem como os seus antecedentes sugerem tratar-se de um ato mais diretamente ligado aos processos locais do que a determinações do governo português. Instituída e regulamentada pela portaria provincial de 5 de novembro de 1842 (Governo do Estado da Índia, 1842b, 1842c), deve a redação inicial dos seus estatutos a uma junta nomeada pelo conde de Antas, então governador da Índia, e vem na seqüência de algumas tentativas anteriores de organização de um currículo médico.8 8 Destaca-se, nestes esforços, o físico António José de Miranda Almeida, recebido calorosamente em Goa para organizar e coordenar a Aula de Medicina no Hospital. Miranda Almeida era um professor da Universidade de Coimbra cuja vida nessa cidade estava estigmatizada por escândalos pessoais (Gracias, 1914; Pita, 1996, pp. 508-11), algo que, como em tantos outros casos, foi elegantemente solucionado com uma prolongada estada na Índia. Do ponto de vista da medicina em Goa, tal estada foi muito saudada e benéfica, e o regresso do professor ao reino, em 1815, foi visto como uma interrupção dos trabalhos iniciados. As tentativas de estruturação do ensino médico prosseguiram com diversos sobressaltos, sendo brevemente coordenada pelo famoso Lima Leitão (Figueiredo, 1961), conhecido pela variedade de postos que assumiu no império e contra ele, inclusive nas tropas de Napoleão. Lima Leitão retornaria à metrópole para exercer funções políticas, deixando o projeto de institucionalização do ensino médico para a geração seguinte. A junta, nomeada a 30 de setembro de 1842 pela portaria 1.161, era composta pelo físico-mor Mateus Cesário Rodrigues Moacho, o cirurgião-mor interino João Frederico Teixeira Pinho e o médico hospitalar António Caetano do Rosário Afonso Dantas (idem, 1842a, pp. 267-8). Determinava a portaria que se regularizasse o ensino médico, civil ou militar, e que para tal se seguisse o plano de saúde pública proposto pelo físico-mor Rodrigues Moacho. Era preciso impor ordem no que se passava no campo da saúde, aparentemente caótico e desgovernado, e formalizar "um projeto de reforma do referido ensino e serviço médico do país mais acomodado às suas circunstâncias peculiares, e susceptível de introduzir, com menos embaraços, a possível ordem, e regularidade neste importante campo da administração publica" (idem, ibidem, pp. 267-8).

A resposta da Junta tornou-se o momento fundador da Escola Médica de Goa, e o nome de Mateus Rodrigues Moacho ficou para sempre vinculado a esse ato. Note-se, todavia, que este físico-mor teve de regressar quase de imediato a Portugal para assumir outros cargos. Em 1843 foi nomeado seu sucessor Francisco Maria da Silva Torres, que tomou posse em março de 1844 e permaneceu no cargo até 1849. Em conjunto com o cirurgião-mor José António d'Oliveira e o médico António José da Gama, Silva Torres propôs, em 1845, pequenas alterações na redação (Torres et alii, 1845a). A versão definitiva seria publicada na legislação portuguesa em 1847 (Conselho Ultramarino, 1867). Vale ressaltar que, nos anos de 1844 e 1845, houve destacados esforços legislativos, por parte de Portugal, no sentido de implementar o ensino da medicina nas colônias. Estes incluiriam também Cabo Verde, Angola e Moçambique, mas o ensino da medicina não se institucionalizou então nessas colônias. Se assim aconteceu em Goa, deve-se — na nossa interpretação — às caraterísticas e iniciativas da sociedade local.

Embora a memória e a tradição dêem mais relevo ao nome de Mateus Moacho do que aos seus sucessores, foi durante o período de regência dos serviços de saúde por Francisco Silva Torres que a Escola de Goa implantou-se e ganhou os estatutos que viriam a ser reconhecidos oficialmente por Lisboa. Graças aos detalhados relatórios anuais que o físico-mor dirigia ao Conselho de Saúde Naval e Ultramar, do Ministério da Marinha, e sobretudo graças aos comentários que livremente lhes acrescentava, podemos não apenas reconstituir aspectos do ambiente social e político em que a Escola se implantou, mas ter uma noção mais intimista do cotidiano dos serviços de saúde — ações, constrangimentos, representações, condições materiais e contexto. Em momentos posteriores os relatórios da Índia vieram a banalizar-se, sendo por vezes a parte descritiva uma mera cópia do ano anterior. Mas os de Francisco Torres são também uma verdadeira obra de autor, dando conta de uma sociedade fragmentada em que várias culturas e medicinas coexistem e os papéis de 'colonizadores' e 'colonizados' são plenos de ambigüidades.

Tarefas hercúleas aguardavam esse físico-mor na Índia; ou assim quis ele fazer passar no seu primeiro relatório (Torres, 1846), que só enviou em 1846, num ofício de resposta à solicitação do presidente do Conselho Naval. Conta-nos como, logo à chegada, teve de enfrentar epidemias de cholera morbus e bexigas, que o fizeram reorganizar o hospital de forma a atender às necessidades extraordinárias e ainda conceber um instituto vacínico. Durante esse período elaborou também um regulamento de saúde pública. Estava nas suas mãos a implementação geral da governança da saúde na Índia, e manifesta contar com o apoio do governo para executar o que os seus antecessores tinham deixado por fazer. Elogiando a si mesmo, justifica o atraso dos seus relatórios pela exclusiva dedicação à urgência da clínica:

Que diria com effeito o Illmo. Conselho, se lhe constasse, que o atual Físico-mór de Goa tinha respondido aos seus officios sem ter obtido os necessarios esclarecimentos para o fazer com a exactidão precisa? Que diria, se soubesse, que a Junta de Saude da India gastava o tempo em redigir Relatórios, e Regulamentos para enviar para Lisboa na ocasião, em que o Estado da India, affectado geralmente da horrivel epidemia cholera-morbus, estava no maior alarme clamando por soccorros, por hum Regulamento, que providenciasse ao tratamento dos infelizes outrora abandonados, e à propagação da epidemia?

Que julgaria de hum Chefe de Saude na India, que estava trabalhando no gabinete a redigir propostas para a Côrte em quanto os affectados de virus variolico, abandonados por todos; em quanto os Gentios entregues às mais absurdas superstições, perecião nos bosques, nos palmares, nas choças, sem alimentos, sem remédios, sem soccorro algum? Como corresponderia eu à confiança dos Governos da Côrte e deste Estado, e à do Illmo Conselho de Saude Naval, se lhes constava que o Hospital militar continuava a ter enfermarias de Cirurgia sem luz e ventilação; que a enfermaria das sarnas se achava ainda em hum logar humido (huma loja do hospital) bem distante da casa de banhos; que o depósito de Drogas jazia em hum logar, onde só penetrava a humidade, donde resultava huma enorme despeza para a Fazenda; que a Botica sem acceio, e sem ordem, continuava a ser considerada como huma triste espelunca; que a cozinha com a mais desalinhada chaminé offerecia o aspecto de hum logar lugubre e immundo; que muitas das officinas se achavão em telha vã; e que finalmente a mesquinha e mizeravel casa de banhos, só como tal se julgava, por nella estarem duas tinas de cobre?

Taes são os factos; tal foi o estado em que encontrei o serviço de saude na India Portuguesa!! Não pretendo, nem me he dado culpar alguem. Os meus antecessores muito desejárão fazer; mas eu tenho tido em meu favor a boa fortuna — a cooperação eficaz e desvelada de hum governo providente e philantropico, que conhece e procura remediar os males deste paiz.

O físico-mor reitera uma observação comum aos seus antecessores: a dificuldade em assistir aos 'gentios', isto é, às populações locais não-cristãs, desconfiadas das instituições médicas portuguesas e possuidoras dos seus próprios recursos terapêuticos. Durante décadas as estatísticas do hospital militar confirmam que a esmagadora maioria dos que ali recebiam assistência era cristã.9 9 'Cristão' pode aqui significar "apenas de baptismo", como notavam alguns dos relatórios, dizendo que muitos continuavam a reger as suas vidas "como gentios", isto é, adotando costumes mais próximos da matriz hindu. As referências cristãs e hindus, aliás, podem coexistir na prática sem contradição, como exemplifica a manutenção da estrutura de castas entre os cristãos. O etnógrafo português Lopes Mendes, por exemplo, aponta que, do total de 385.124 habitantes do Estado da Índia em 1864, haveria 555 europeus, 2.440 descendentes de europeus, 252.203 asiáticos cristãos, 127.746 gentios, 1.637 mouros, 346 africanos e 197 descendentes destes; e que "os asiáticos cristãos (vulgo nativos ou canarins) e os gentios dividem-se em castas nobres e plebéias. As nobres compõem-se de brahmanes e quetris ou charodós, e as plebeias de vaixás ou vésias e sudros", havendo ainda pariás ( farazes) resultantes do "comércio ilegítimo das diferentes castas entre si" (Mendes, 1886, p. 36). A medicina colonial era sobretudo uma medicina em enclave, de colonizadores para os colonos e para os convertidos à cultura colonial, sitiada entre múltiplas práticas médicas que nem sempre reconheciam mas com quem mantinham pontos de interação que aqui realçaremos. Se, em alguns momentos, as práticas dos 'gentios' são vistas como 'selvageria' e 'ignorância', noutras são reconhecidas como legítimas, com elementos que se poderiam aproveitar, como alguns, adiantadamente, aproveitavam, mesmo fugindo às leis da administração colonial.

Francisco Torres (ibidem) é dos que julgam ser possível conquistar os 'gentios' para a medicina e afirma tê-lo feito na sua reforma hospitalar, ao instaurar diferentes enfermarias para as diversas castas e ritos:

entreguei-me ao melhoramento do Hospital Militar, que necessitava de obras importantissimas em quasi todas as officinas; procurei d'accordo com o governo do Estado vencer os inumeros estorvos, que se offerecião ao tratamento dos Soldados Gentios de differentes castas no Hospital. Estabelecerão-se todas as enfermarias, e officinas particulares, harmonizando-se a boa hygiene com os ritos, e prejuizos daquelles individuos; conseguiu-se, o que se dizia impossivel, o que se não tinha podido obter desde o nosso dominio na Asia! Lá estão as enfermarias chêas de gentios, bem satisfeitos com o escrupulo, com que se lhes respeitão as suas crenças, e raças variadissimas.

Os detalhes da sua reorganização do hospital militar confirmam o quadro que traçamos, de uma multiplicidade de sociedades que coexistem e interagem e com diferentes práticas médicas que, em certos momentos, se tocam, se comunicam e geram transformações mútuas, mas que não se fundem; pelo contrário, a interação e a troca mútua contribuíram para a manutenção de diferenças. Embora não tenha ficado no rol dos heróis fundadores do ensino da medicina em Goa, elaborado por uma historiografia interna à própria escola, Torres (ibidem) apresenta-se como grande transformador, qual um engenheiro sociossanitário que consegue intervir na difícil realidade que se lhe impõe. Não só conseguiu, nas suas palavras, atrair os gentios à assistência hospitalar, como pôs ordem no caos e na indigência que pareciam ser os serviços de saúde, sendo ele quem ali introduz instrumentos tão básicos como o termômetro e o barômetro:

... não havia no Hospital militar hum Thermometro; em todo o Estado havia hum só Barometro quebrado no gabinete da Escola de Mathematica; os ingleses publicão mensalmente em Bombaim observaçõens Barometro-thermometricas, e em Goa ignorava-se athé às minhas primeiras publicações não só a pressão athemospherica em as differentes quadras e estações do anno, mas tambem os differentes graos de temperatura!!!

Nenhuma observação, ou noticia, havia de harmonia e correspondencia entre a predominancia de certas e dadas molestias em differentes quadras com as elevações e descensos Barometro-thermometricos!! As publicações mensaes, que faço relativas ao movimento do Hospital a meu cargo, alguma cousa dizem sobre aquelle objecto, tão curioso, quanto interessante.

Mais interessante ainda, no repertório de ações desse médico, são as medidas que toma em relação a algumas das plantas usadas na Índia com fins curativos (idem, ibidem):

Pelo Brique Novo Viajante remetti à disposição de Va Exa os objectos constantes da relação. Existem neste paiz hum grande numero de plantas medicinais, que nos são totalmente desconhecidas, e das quaes o Herbolarios, e Empiricos gentios fazem uso com (dizem) effeitos miraculosos. Há todavia a maior difficuldade em as obter, por isso que do inviolavel segredo, que a este respeito guardão com todo o escrupulo, depende o interesse e subsistencia delles.

Torres assume uma política de procura de conhecimento relativo às plantas utilizadas localmente, mas queixa-se das dificuldades em obtê-las, uma vez que faziam parte dos 'segredos', algo que outros cronistas portugueses do século XIX reportam como a forma de transmissão do saber médico indígena: ausência de treino formal e transmissão dos conhecimentos de pais para filhos (Mendes, 1886, pp. 107-14). Para contornar essa dificuldade, Francisco Torres (op. cit.) usa dos meios de coação que lhe são dados:

Entretanto, tenho adoptado huma politica a este respeito, que não só me produziu as plantas, que enviei a Va Exa, mas me dará para o futuro outras muitas, que irei remettendo com os esclarecimentos convenientes, e semelhantes aos da nota relativa aos que enviei para o referido Brique. Em o novo Regulamento de Saude Publica exarou-se hum arto que tem em vista a consecução daquelles objectos, os quaes deverão ser remettidos annualmente à Junta de Saude pelos Provedores de Saude com todas as noções necessarias. É este, segundo julgo, o melhor e mais prompto meio de se conseguir o conhecimento de objectos pharmacologicos, que algum interesse nos podem offerecer, e de se satisfazer aos bons desejos, que sobre tal objecto não só Va Exa, mas tambem o Governo deste Estado, me tem manifestado.

Simultaneamente ao envio de plantas para testes no reino, ele próprio se propõe a ensaiá-las no hospital que dirige — algo que confessa ter de executar discretamente, sob pena de assustar a 'clientela' que tinha conseguido atrair ao hospital:

Tenho procurado ensaiar no Hospital com a necessaria prudencia e circunspecção algumas daquellas plantas; seja-me porem permitido declarar a Va Exa, que os taes ensaios são aqui mui dificeis em razão dos preconceitos dos doentes, e do nenhum segredo dos empregados. Os soldados, que hoje procurão o Hospital com tanta vontade e consolação, fugirião delle, se lhes constasse, que nelles se experimentavão remedios!! (idem, ibidem)

Ao final, reclamando da falta de condições locais, solicita apoio ao reino para as suas experiências com plantas curativas (idem, ibidem):

Va Exa não pode formar huma idêa da crassa ignorancia, e preconceitos, tão ridiculos, quanto miseraveis destes semiselvagens!!! O zelo e saber de Va Exa lhe ministrarão os meios de verificar no Hospital da Marinha ou no de S. José os effeitos que se atribuem às plantas, que eu daqui remetter. Rogo ao Illmo Conselho de Saude Naval toda a cooperação e auxilio para a consecução da remessa de Livros para a Escola Medica deste Estado, e que ultimamente forão requisitados no Governo da Corte pelo deste Estado; e ficarei bem satisfeito se com aquelles vier algum Manual de preparações, pois sobre este objecto nada aqui se sabe fazer com perfeição e economia.

Uma interação de fios múltiplos, portanto, aquela que se dava entre o exercício da medicina européia e o exercício da medicina local, a qual hoje podemos caracterizar como dominantemente ligada à tradição aiurvédica — designação que não era conhecida, ou tomada em consideração, pela administração médica portuguesa. Para as autoridades eram ritos gentílicos, dos quais se poderiam aprender pontualmente alguns segredos farmacêuticos das plantas, passíveis de operacionalizar e integrar na farmacopéia portuguesa — algo que se tentou pelas décadas afora, legislando, procurando adaptar ou domesticar a aplicação terapêutica das plantas indianas.

Esses fios múltiplos não se traduzem no simples esmagamento da tradição local pela imposição do saber e das técnicas européias, mas tampouco se traduzem no reconhecimento daquela. Para melhor caracterizarmos a interação entre os saberes europeus e locais, observemos algumas das formas de legislar e implementar a lei.

A Escola Médica de Goa: a frágil consolidação de um poder atenuado

Até aos anos 1840, a habilitação de médicos era conferida por carta passada diretamente pelo físico-mor. Aulas de medicina e cirurgia eram ministradas nos hospitais, sem que formalmente existisse uma instituição escolar. A partir de 1842, decretada a fundação da Escola pelas autoridades de Goa, os esforços portugueses dirigiram-se no sentido de consolidar o ensino da medicina européia, racional e científica, mesmo que em meio a muitas dificuldades. Em julho de 1845, em conjunto com José António de Oliveira e António José da Gama, Francisco Torres (Torres et alii, 1845b) dirigia algumas notas ao governador-geral, em que fazia uma breve apreciação do ensino médico recém-iniciado:

O Conselho tem as mais bem fundadas esperanças de que em breve a Medicina racional e Philosophica occupará em breve neste Estado o lugar que a illustração e o progresso das Sciencias lhe tem offerecido em tôdos os paises da Europa.

A regularidade da Escola, o bom methodo de ensino, a adopção de bons compendios, o zêllo dos Lentes; a aplicação e recursos intellectuais da maioria dos actuais Alumnos, assegurão-nos aquelle resultado.

... todos os differentes ramos das Sciencias Medico-Cirurgicas são estudos nesta Escola e os compendios correspondentes são pela mór parte os adoptados nas Escolas do Reino, os quaes à copia e clareza de ideias reunem a attendivel circunstancia de se acharem a par do estado actual das sciencias.

A biblioteca, digamos, era um projeto de boas intenções. Eram conhecidos os livros que a deveriam compor, mas a sua falta é assinalada nos muitos ofícios com encomendas ao reino.

O Conselho lamentando a falta de compendios que sobremaneira obstava ao adiantamento dos alumnos teve a satisfação de ser attendido na sua apresentação por Va Exa o Sr. Governador Geral, que se dignou requisital-os da Corte. Huma participação que ultimamente recebi do digno Presidente do Conselho de Saude Naval me anuncia que em breve chegarão a esta Escola. Estes compendios ministrarão aos Alumnos o conhecimento das Theoricas; e os Gabinetes, e Enfermarias do Hospital as da prática medico-cirurgica (idem, ibidem).

Quanto ao ensino de anatomia, este era feito à custa de estampas anatômicas em substituição aos cadáveres, ditos escassos — por mais bizarro que pareça num lugar como a Índia oitocentista, onde a morte grassava tanto que, na Índia inglesa, tinha servido de suporte material para o florescer da patologia mórbida entre os médicos da Companhia das Índias Orientais.10 10 Mark Harrison, Morbid Pathologies, comunicação apresentada no Seminário de Pós-graduação em Ciências Sociais, ICS, fevereiro de 2003.

O Gabinete ou Theatro Anathomico já se acha fornecido dos objectos mais necessarios para o estudo prático da organização humana, e a falta de cadáveres, que a boa sorte deste Hospital ocasiona naquelle Gabinete vai ser compensada pela acquisição das Estampas e Anathomicas em talhe natural, mais acreditadas, que o Conselho, a dispendio do seu pequeno cofre, manda vir de Lisboa (idem, ibidem).

A falta de cadáveres é vista como decorrência natural das poucas mortes ocorridas no hospital; porém, noutros momentos, os relatores dão indicações de que também estavam em causa razões de natureza cultural, ora por resistência a consentir no ato por parte "de gentios e mouros", ora por repulsa pela aproximação aos cadáveres humanos, acentuada pela aversão a corpos segregados por castas e religiões.

Quanto ao ensino da farmácia, Francisco Torres (ibidem) dá-nos uma descrição positiva dos meios existentes:

A Botica bem fornecida deste Hospital, e o seu Laboratório offerece aos Alumnos um bom Gabinete, para o estudo prático das espécies pharmacologicas e das preparações pharmaceuticas.

Finalmente, apontava aquilo que excede onde tudo o mais falta — as doenças, ao vivo e a cores, nos doentes que as encarnam (idem, ibidem):

As Enfermarias de Cirurgia ministrão ao estudo da clinica cirurgica casos mui variados de Pathologia interna, e de Medicina operatória. Operações de grande e pequena cirurgia são ali praticadas; e a boa fortuna há permitido que os velhos embotados instrumentos de Cirurgia, que ainda hoje occupão exclusivamente o Gabinete operatório do Hospital, sejão em poucos mezes substituidos por outros, que segundo as participações da Corte, são para aqui remettidos.

As Enfermarias de Medicina offerecem hum variado estudo de clinica medica; e não só as molestias communs a todos os paizes, mas tambem as peculiares a este clima, e as predominantes nos differentes quadros, e estações do anno, são ali estudadas praticamente pelos Alumnos.

Francisco Torres (ibidem) termina a apreciação da Escola com um comentário positivo sobre os seus alunos:

Finalmente, com muita satisfação posso asseverar que mór parte dos Estudantes desta Escola reune ao estudo a aplicação, a perspicácia e prudencia medica. No anno lectivo próximo passado teve o Conselho da Escola o prazer de observar a placidez e intelligencia, com que alguns daquelles estudantes coadjuvarão seus mestres na prática de amputação, reduções de fracturas11 11 O realce no tratamento de fraturas ao estilo europeu deve ser confrontado com o que, cem anos mais tarde, quando das comemorações do centenário da Escola, afirmou Wolfango da Silva no seu discurso de veterano: durante anos tinha persistido a crença que as medicinas locais eram mais aptas para tratamento de fraturas e que muitos com esse problema se dirigiam aos curandeiros locais, em vez de procurarem os médicos. e huma representação de muitos habitantes desta cidade recentemente dirigida a Sa Exa o Snr. Governador Geral, abona cabalmente os progressos que na clinica medica vão fazendo aquelles estudantes, progressos que muito estimulão o nosso zêlo e efficacia no ensino Medico-Cirurgico.

Esta terá sido a primeira apreciação da escola por um físico-mór que, de imediato, elaborou um novo plano curricular. Neste se decretava que a escola deveria ter exclusividade na habilitação de médicos e cirurgiões na Índia portuguesa — exceção feita aos que eram formados pelo reino. O curso compunha-se de quatro anos, em que deveriam ser ministradas as cadeiras de (1) anatomia e fisiologia, (2) matéria médica, farmácia e higiene, (3) patologia cirúrgica e medicina operatória, (4) patologia geral e patologia interna, (5) clínica cirúrgica e arte obstetrícia e (6) clínica médica e noções gerais de medicina legal. Os professores seriam os facultativos do serviço de saúde, que entre si repartiriam as disciplinas — de que eram "lentes proprietários" — e outros cargos ligados à escola, como o de bibliotecário, secretário e tesoureiro. O diretor era, estatutariamente, o físico-mor, podendo este ser substituído pelo cirurgião-mor. A escola deveria dispor também de biblioteca, gabinete anatômico, casa de dissecações e laboratório químico-farmacêutico. Os alunos deveriam ter 16 anos, aprovação em gramática latina, filosofia racional e moral, bem como "inteligência de livros franceses".12 12 Quando as Reais Escolas de Cirurgia de Lisboa e Porto foram fundadas, por alvará de 25 de junho de 1825, os requisitos para admissão ao primeiro ano das escolas médicas eram apenas a comprovação de que o candidato tinha mais de 14 anos e conhecimentos em língua latina e lógica (Motta, 1878, p. 7).

Anos mais tarde, em 1853, José António d'Oliveira (1853), cirurgião-mor em exercício na falta de físico-mor, descreve a Escola Médica funcionando regularmente, com 62 alunos, e cada um dos facultativos do quadro lecionando duas cadeiras. Também esses relatórios, que vão crescendo em pormenor, são uma importante fonte para se conhecer a sociedade goense e confirmam um quadro de culturas múltiplas a coexistirem e se tocarem, interagindo sem se absorverem mutuamente. Oliveira trata vários assuntos; compara o quadro de saúde da Índia ao das outras províncias ultramarinas, onde os facultativos teriam mais privilégios com menos trabalho, alimentando a linha de lamento contra uma subalternidade reconhecida que vemos atravessar boa parte da literatura sobre a Índia portuguesa no século XIX. Em termos mais factuais, fala-nos da cólera que assalta o estado, das formas de alojar os soldados de diferentes ritos no hospital, com enfermarias de medicina e cirurgia para soldados cristãos, inferiores e oficiais, mais duas para soldados e presos do rito gentílico, num total de noventa vagas. Nos comentários sobre a limpeza do hospital, dá-nos pistas sobre o seu entendimento acerca da sociedade local:

As latrinas, situadas no tôpo d'um corredor com o qual communicam apenas as Enfermarias, não tem canno algum que as prenda com o rio, sendo necessario deixar de fazer-se a limpeza d'ellas duas vezes por dia, serviço este de que n'este paiz de castas só os Cafres se encarregão, bem como do despêjo dos vazos das enfermarias, que não tem communi-cação immediata com o mencionado corredor, que conduz às latrinas.

Mais adiante (idem, ibidem), oferece-nos outros tantos elementos sobre as relações entre o poder sanitário e as práticas de venda de plantas associadas às medicinas locais:

As Provincias de Salcete, e Bardez estão cheias de curandeiros, e Boticas clandestinas, que as Delegações, compostas do Administrador do Concelho respectivo, de um Vereador da Camara Municipal e de um Facultativo nomeado pela Junta de Saude toleram; e não só toleram, mas até muitas vezes succede que os dous primeiros recorrem nas suas doenças a estes impiricos, que protegem, ate porque ás vezes são seus proprios parentes, ou de seus amigos: do mesmo modo e pela mesma razão procedem os Regedores.

O mal não estaria só na proximidade entre boticários e delegados, muitas vezes vizinhos, amigos e parentes que entre si se protegiam; o problema seria também o de uma justiça inoperante (idem, ibidem):

Quando por denuncias ou por algum documento, que faça prova, que venha parar à Junta de Saude, esta manda à Delegação proceder às investigações precizas; e autuar os infractores dos Regulamentos sanitarios, rarissimas vezes esta acha motivo para tal; se porem, succede fazer-se auto, vai para o Juiz de Direito, que tem sido quase sempre os substitutos, à falta dos proprietarios, e pelos mesmos motivos que a Delegação, lá ficam ad eternum, e mais se não falla d'elles.

Se a Junta censura nos seus officios as authoridades locaes, responde-se que os conselhos são muito grandes, e que as multiplicadas obrigações dos Administradores do Concelho não promettem que elle possa attender a tudo.

E quanto aos Juizes, — o poder judicial he independente — e o resultado de tudo isto é que nesta parte continua sempre o maior abuso.

Esta situação era tanto mais grave, aos olhos do relator, quanto ocorria no coração cristão e lusófilo de Goa: Salcete e Bardez, além das ilhas, onde se situava Pangim. Nas chamadas Novas Conquistas, só anexadas no século anterior, a situação seria muito pior, isto é, muito mais débil seria a implantação da medicina. Nessas províncias nem sequer havia facultativos, a não ser os cirurgiões militares de dois corpos, estacionados em Bicholim e Pondá. Não havia "nem uma única Botica, sendo estas Provincias extensissimas, e grande a sua população, ainda que gentia pela maior parte" (idem, ibidem).

Interessante também é analisar alguns dos tratamentos de que dá conta, como

As pleuro-pneumonias, e as hepatites são muito frequentes; mas muito menos que as dysenterias, cuja razão de mortalidade tão grande como era, fazia com que se considerasse esta doença a mais mortifera de todas se se exceptuarem a cholera e as bexigas; hoje a sua mortalidade esta na razão de 1 1/2:14 ou 6 4/5:100. O tratamento mais empregado consiste principalmente em ipecacuanha, rhuibarbo, opio, e calomelanos, ou combinados sob diversas formas. (idem, ibidem)

Mais uma vez nos é dado um aspecto da situação do serviço de saúde em Goa. Ao tempo, 59 dos facultativos em exercício no local já tinham se formado na Nova Escola Médico-cirúrgica. Conviviam com uma série de outros prestadores de serviços de saúde: médicos de licença concedida à antiga, pelo físico-mor; cirurgiões, farmacêuticos e boticários, parteiras e sangradores:

Há em todo o Estado de Gôa 135 Facultativos, inclusive os do Quadro de Saude, dos quaes 59 são habilitados na Nova Eschola, 73 tem cartas passadas na Secretaria Geral do Governo, em consequencia d'um exame previo perante uma Comissão, nomeada pelos antigos Fisicos-mores, e se intitulão — Medicos por S. Magestade Fidelissima — e 3 são do Quadro da Provincia (idem, ibidem).

Há alem daquelles, 6 intitulados Cirurgiões, que tem carta pela Secretaria Geral do Governo.

Pharmaceuticos habilitados na Eschola há apenas 5 e com carta antiga passada pela Secretaria Geral do Governo há mais 14; estes são praticos, ignorantes dos mais simples rudimentos da profissão. — A Junta de Saude tem permittido a alguns individuos, que tenham alguma pratica de Botica, e mediante um leve exame, licenças temporarias, para abrirem botica em localidades, aonde a sua falta se torna sensivel, attenta a falta que há de pharmaceuticos habilitados.

Há tambem 11 Sangradores, e 21 Parteiras, que tem licença, em consequencia de exame, que prestaram perante a Junta de Saude.

Mas a diversidade de práticas não acabava nesta lista; havia ainda os praticantes de medicinas indígenas, e note-se que as categorias envolviam alguma porosidade, trocando-se práticas e identidades. Refere-se Oliveira (ibidem) aos "médicos dos gentios", que a maioria da população preferia aos médicos de estilo europeu. Dos segredos terapêuticos 'gentios', baseados na flora local, dá o cirurgião-mor mostras de conhecer minimamente. Finalmente, também os médicos facultativos, os legítimos, se convertiam por vezes a tais terapias, "dando em mezinheiros":

Os Gentios tem seus medicos a que recorre; contudo algumas vezes, posto que raras, procuram a nossa medicina. Estes medicos lá tem seus segredos, compostos quase sempre de vegetaes indigenas, ou exoticos, pela maior parte purgativos, diureticos, e rubefacientes.

Immenso há tambem o numero de charlatães, até alguns Facultativos se tem dado em mezinheiros, possuidores de remedios com propriedade de curar pthisicas, hydrophobias, tetanos, e cancros de que todavia raras vezes se escapa com vida.

Para esse chefe de serviço, as práticas terapêuticas localmente consagradas não eram algo a apagar sumariamente, como condição para o exercício da medicina européia; pelo contrário, muitas das receitas indígenas poderiam ter aproveitamento na clínica, uma vez sujeitas à apreciação científica (idem, ibidem).

As plantas que tenho enumerado são as que com menos trabalho poude conhecer: inumeraveis são as que nascem neste paiz. E para poder exercer a paciencia, e talento d'um Botanico bem experimentado por alguns annos, não faltarião difficuldades, que de sobejo se offerecem ellas na Historia Natural, ainda aquellas, que se tem cançado no seu estudo. Na medicina domestica usam-se algumas substancias, que só se conhecem pelo nome, que tem no paiz, que lhes dão tambem os Curandeiros.

José António de Oliveira dá vários exemplos de tais plantas: o Ammont Vell e Menuqui, plantas "empregadas com maravilhosos resultados contra as mordeduras de cobras", trepadeiras de que não se conhece o fruto nem a flor; o Curó branco e negro, arbóreo cuja casca seria utilizada para as "febres intermittentes de todos os typos"; e ainda, na mesma linha terapêutica, o Aycar ("planta animal, antiperiodica") e o Gaimery amargo, "succedaneo da quina". Para as disenterias fala do Guararute adstringente; e menciona também o Suty-candy, um resolvente que se empregava em endurecimentos externos.

O interregno na chefia de saúde da Índia acabaria com a chegada de um novo físico-mor vindo de Coimbra, e novamente se altera o tom dos relatórios. Onde Oliveira enumerava diversidades e parecia evitar julgamentos, passamos a ter comentários expressivos que informam tanto sobre os objetos descritos como sobre a personalidade e o posicionamento de quem escreve — o que, no caso de um físico-mor da Índia, ajuda a compreender a teia de nexos e desencontros que governava a sociedade local.

Em 1854 chegava à Índia aquele que viria a ser o seu último físico-mor: Eduardo de Freitas e Almeida. O cargo de físico-mor seria substituído, em 1868, pelo de chefe dos serviços de saúde, mas Eduardo de Freitas e Almeida mantém até ao fim o título com que foi nomeado para a Índia. Idiossincrático, prolixo e acutilante, esse médico coimbrão exerce comentário e crítica sobre tudo que o rodeia — dos habitantes, "imundos por natureza", em seus "casebres asquerosos", à própria Escola Médica que vem dirigir.

Em quanto à Eschola, temos apenas huma ridicula casa para Aula, porque o Hospital que está em bom sitio, e não he muito máo, he pequeno, he nesta mesma Casa ou pequena sala que se fazem as rarissimas dissecções, porque, como o Hospital Militar, e huma grande parte destes são Gentios ou Mouros, e estes não consentem que os seus cadaveres sejão dissecados, segue-se que poderá haver trez a quatro cadaveres, e a dissecção faz-se em uma mesa de madeira. (Almeida, 1854)

No ano de 1856, Freitas Almeida parece mais compreensivo em relação às dificuldades da escola. Sobre os comentários apontando que os médicos saídos de uma escola "que se pavoneia com o pomposo título de Escola Médica", com apenas três professores e alunos insuficientemente preparados, talvez não fossem mais que "larvas habilitados com carta de impunidade" (idem, 1856), o físico-mor sugere que o mal não está nos professores, pois os seus colegas, "todos trez filhos da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa", são bastante aptos, "fazem honra aos seus mestres" e esforçam-se por ensinar, embora sem bons resultados. Argumentando que "ninguém faz mais do que pode", enumera os problemas cotidianos que os assolam: a regência excessiva de cadeiras, demasiadamente densas; o uso das quintas-feiras (dia de descanso escolar à época) para as juntas de saúde, muito concorridas, chegando a juntar "40 a 60 empregados militares, civis, e eclesiasticos", em busca de dispensa de serviço a pretexto de "uma indigestão ou constipação" que lhes rendessem os dias de convalescença necessários para resolver os seus negócios privados; o fato de o pequeno número de professores se ver, na maior parte do tempo, reduzido em razão de pelo menos um deles ter de se ausentar para fiscalizar, de dezembro a abril, os hospitais e as boticas das províncias do norte; tarefas de rotina anual como o balanço da botica, ou extraordinárias como a assistência nas epidemias e assaltos de cólera. Exemplifica com o seu caso (idem, ibidem):

Pela minha parte tenho alem da regencia de duas cadeiras, em que tenho de explicar Materias que nas outras Escolas fazem objecto de quatro, a Direcção da Escola, Presidencia da Junta de Saude Civil e Militar, e por consequencia a correspondencia com o Governo e todas as authoridades Civis e Militares, e a Inspecção do Hospital e Botica. Temos geralmente um curso de Pharmacia, porque o 1o Pharmaceutico rege a Cadeira respectiva, e os Alumnos frequentão na Escola as Cadeiras que pertencem a este curso: vindo deste modo este trabalho complicar mais o Serviço de Botica e augmentar os cuidados do Primeiro Pharmaceutico.

Freitas e Almeida não é tão complacente com os alunos como tinham sido os seus antecessores, que nunca deixavam de elogiar as qualidades e os méritos dos locais. Acha duvidosa a sua preparação e a avaliação a que são sujeitos (idem, ibidem):

Aos Alumnos que se dedicão à Medicina, exigem-se-lhes as certidões dos Exames de Latim, Frances, Philosofia, 1o anno Mathematico, e agora de Phisica e Chimica, mas como são feitos estes exames pela maior parte? Pelos próprios Mestres, que como quase todos os Professores Régios, são Padres, jurão in verbo sacerdotes que os Alumnos sabem das Materias, que lhes ensinarão, mais do que o próprio Salomão: ora se esta formula de juramento tem hoje hum valor muito diminuto entre nós, aqui vale ainda muito menos.

Segundo o físico-mor, grande parte da responsabilidade por tal situação cabia ao clero, que preparava mal os alunos — e aproveitava para fazer uma pequena digressão agredindo essa classe, que abundaria em excesso pelas terras da Índia, preferindo arrastar-se por casa a ir servir noutros lugares. Maus hábitos de aprendizagem, como o papaguear da lição, viriam da influência dos padres; e persistiria pela vida fora o grande cisma entre uma aprendizagem escolástica e a experimentação prática. Perante tal estado de coisas, não seria justo reprová-los com critérios mais rigorosos, uma vez que tinham sido privados do desenvolvimento das capacidades básicas de aprendizagem (idem, ibidem).

Os Alumnos geralmente são applicados, e mesmo alguns tem alguma intelligencia, mas como começão o seu tirocinio com muito poucos elementos, ou para melhor dizer, como a sua educação litteraria começa superficialmente, ficão superficiais em tudo: papagueião menos mal a lição, mas como o tempo he pouco, e os Mestres não podem fazer-lhe comprehender certas cousas, nem mesmo elles tem os elementos necessarios para os comprehenderem, por falta de principios, ficão sabendo muito pouco: mas possuidos de hum orgulho espantoso, intitulando-se Doutores Medicos, não há forças que os fação pegar em huma lanceta para sangrar, e para isso he necessario chamar o Sangrador!!! Ora aqui espero eu huma pergunta de V. Exa. — se elles não sabem para que os approvão? — mas eu respondo a isto — com que direito havemos de nós reprovar os Alumnos que não sabem o que nós lhes não ensinamos, já por falta de tempo, já porque elles não estavam habilitados para o aprenderem?

E resume, com um comentário negativo, a fraca e débil qualidade da Escola, sitiada num cenário em que todos parecem preferir os curandeiros, com quem as autoridades eram coniventes (idem, ibidem):

Pelo bem resumido esboço que acabo de fazer da Escola Medico-Cirurgica de Goa verá V.Exa. que esta no estado em que está he huma verdadeira Utopia, e tanto isto he verdade que os habitantes deste Estado lhes fazem a devida justiça, porque havendo 73 filhos da Escola e 77 que tem as suas cartas concedidas pelos antigos Phisicos-mores ou mesmo por graça de Sua Magestade, apenas elles são empregados nos Corpos Militares e Praças; porque quase todos se tratão com os curões, a que elles aqui chamão herbolarios, que não podem ser perseguidos pela Junta de Saude, porque são protegidos pelas proprias Authoridades, que não querem outros; primeiro porque confião mais nelles, e em segundo lugar porque lhes pagão huma redicularia

Este pequeno trecho é particularmente revelador, uma vez que retrata realisticamente os termos do 'pluralismo médico' vivido ao tempo em Goa: na verdade, a medicina européia era uma entre várias e ocupava uma posição minoritária, a que recorriam sobretudo os portugueses. A passagem seguinte (idem, ibidem) reforça este ponto, recordando que, ainda por cima, os serviços médicos eram mal pagos ou compulsivamente gratuitos:

e aqui apenas se tratão comigo e collegas da Escola os nossos Patricios, e alguns Mestiços, mas estes ordinariamente só depois de se terem tratado com os herbolarios, e para alguma Junta, que serve só de apparato, porque como nada pagão, fica-lhes barato esse Sacramento, pois só chamão quando já estão sem remedio, e este o motivo porque a clinica aqui não nos rende cousa alguma: porque aos nossos Patricios não levamos dinheiro, os outros, as poucas vezes que nos chamão, não nos pagão.

Em tais circunstâncias, ser médico na Índia parecia-lhe pouco dignificante e nada compensador. Por conseguinte, a Escola Médica seria uma inutilidade que criava desemprego de doutores e uma sobrecarga na demanda dos mesmos por cargos públicos que pouco tinham a ver com a clínica (idem, ibidem).

Ponderadas pois todas as circunstancias da conservação da Escola Medico-Cirurgica com a organização que tem, eu julgo-a mais prejudicial ao Estado do que proveitosa, porque aqui há a mania de ser Doutor, mas estes Doutores, não ganhão pela sua Profissão o sufficiente para comerem, e depois massacrão o Governador para os despachar inclusivamente Mestres de primeiras lettras, e são outros tantos cidadãos perdidos, porque enobreados com o titulo, já se não dedicão às fontes de riqueza da agricultura e comercio, de que tantos resultados poderião tirar, e no que serião muito mais uteis a si e aos seus patricios.

É um acumular de desencantos que transparece nos relatórios seguintes desse físico-mór. Em 1861 parece evidente a situação de enclave. Os médicos militares não dominam sequer a língua nativa, queixa-se o físico-mor, razão por que são ainda mais enganados e roubados por quem os rodeia, e o hospital não pode ser devidamente governado: "na sua mesma presença [do diretor] se podem fazer estravios e traficancias a que esta gente é tao propensa, como temos observado nas arrematações, que se fazem perante a Junta de Saude das Drogas medicinais do paiz para sortimento da Botica do hospital" (Almeida, 1861).

Durante anos, as queixas e críticas vão-se sucedendo, assim como os regulamentos e reestruturações curriculares da Escola Médica. Continuam as queixas sobre a falta de condições, os pedidos de livros e manuais, a inexistência de cadáveres para as dissecações anatômicas, a resistência local a tais práticas, a falta de recursos humanos e materiais, a falta de condições de exercício para os facultativos ali formados, a sua permanente subalternização aos médicos da metrópole, as suas mais fracas condições relativamente aos que exerciam até em África.

Mais de uma vez as referências indicam que os formados pouco trabalho tinham, que ninguém ganhava e que os locais preferiam outras medicinas, percebendo-se entretanto que muito do que movia a Escola de Goa não era propriamente a medicina, mas uma aquisição de estatuto social obtido por um título acadêmico; que pouco interessava, para muitos, se a anatomia era aprofundada e praticada, se a clínica era bem exercida, mas que a muitos interessava, sem dúvida, o estatuto que a escola conferia, convergindo na instituição o conjunto de equívocos de coexistência que, na nossa opinião, caracterizam a sociedade goesa do século XIX.

Nas décadas que se seguem a situação se agravou. A regência de João Stuart da Fonseca Torrie, de 1871 a 1885, é recordada como um tempo de poucos recursos e grandes esforços do pessoal; os quatro lentes que asseguravam o ensino em todas as cadeiras estavam, muitas vezes, afastados em missões médicas, chegando-se ao paroxismo de, em certos momentos, ser o diretor a concentrar a totalidade do ensino.13 13 Em 1871, Ramalho Ortigão ironiza a situação em uma d' As farpas, citando o diálogo de um viajante inglês que fora parar à Escola Médica de Goa. Ao perguntar ao guarda pelo lente de anatomia, foi-lhe respondido que estava fazendo a barba, assim como o lente de patologia, de fisiologia e de matéria médica. Pensando o inglês que todos eram muito dedicados à barba, constata mais tarde que o então diretor, João Stwart da Fonseca Torrie, era o lente de todas as cadeiras (Ortigão, s. d., p. 137). Décadas mais tarde, nos discursos do centenário da escola, Wolfango da Silva narra ter sido do tempo em que todos faziam a barba simultaneamente, porque todos eram um só A degradação continuou com o avançar do século, e a escola esteve muitas vezes prestes a ser fechada, como ainda se recomenda perto do final do século no relatório do inspetor César Gomes Barbosa (1897). Mas note-se que, durante a década de 1890, quando os governos portugueses começavam a promover a ocupação colonial de África no rescaldo do ultimatum inglês, delineava-se a tese sobre a vantagem de ter, na Índia, uma instituição formadora de médicos coloniais, vistos como intermediários entre a medicina metropolitana e as populações autóctones e orientados para servir em África e na Ásia.

É o próprio Rafael António Pereira, o primeiro goês a ascender ao cargo de chefe do Serviço de Saúde, que desenvolve os argumentos, em relatório de 30 de outubro de 1889, e os transcreve integralmente no relatório de 1891. Nota que, tanto pelo clima e dificuldade de aclimatação como pela fraca remuneração e outros fatores de ordem cultural, as colônias são destinos pouco atraentes para os médicos formados no reino — aliás, escassos mesmo para provimento interno —, razão por que deveria haver uma outra escola "pela qual se apure nas colônias um pessoal que preveja de prompto e sem interrupção a taes necessidades" (Pereira, 1889). Porém aponta que "a sede d'esta escola não pode deixar de ser a Índia", pois

Não há outra possessão portugueza em que a perspicacia da intelligencia, a sagacidade do espirito, a tendencia dos seus habitantes promettam melhor colheita d'elementos susceptiveis de maior aproveitamento nas sciencias (idem, ibidem).

Às qualidades intelectuais dos indianos somar-se-iam seus atributos físicos e psicológicos: "a indole paciente", garantia do "desprendimento necessario para o exercicio da profissão medica nas colonias africanas, onde o indio leva a vantagem de rezistencia ás influencias d'aquelles inhospitos climas a que se adapta muito melhor que o europeu" (idem, ibidem).

Assumindo as teorias evolucionistas então em vigor, Rafael Pereira (ibidem) situava os naturais da Índia em algum lugar entre os africanos e os europeus, na marcha para a civilização:

ao colonizador incumbe a obrigação de trazer o indigena ao seu convivio, de o fazer participante da civilização a que todo o homem é chamado e á qual uns attingem mais cêdo, outros mais tarde. Ora, essa elevação do africano impõe a irmanação que o europeu não pode alimentar directamente pela absoluta opposição do seu caracter e costumes, mas sim, por intermediarios que sirvam de élos para os extremos da cadeia. Esses intermediarios, Portugal só os encontra na Índia onde se podem recrutar todos os elementos precizos nas diversas espheras da actividade humana: sciencias, arte e religião instromentos primarios, senão os unicos da verdadeira civilização.

A Índia seria o segredo para melhor colonizar África: poderia fornecer os quadros ideais para desempenhar certas funções que se revelavam mais difíceis aos europeus. Nesse jogo ganhariam todos, segundo Rafael Pereira (ibidem):

Lucrariam assim todos os tres: a metropole, pelo exercicio da una missão de dirigir e superintender; a Africa pelo benefico influxo d'aquelles elementos e a India pela franquia de novos horizontes para as suas aptidões e para o seu aperfeiçoamento moral e material.

E tal missão seria particularmente apropriada para os médicos, justificando a missão da escola e Goa no seu todo:

sabido como é que a profissão medica é particularmente inflexiva sobre o espirito das populações, sóbe de importancia a missão que os facultativos habilitados pela escola-medica de Gôa, terão de exercer nos destinos d'aquella parte da nação, e evidencia-se melhor a necessidade da escola cuja importancia desde já é manifestada pelo numero de facultativos que ella annualmente habilita como demonstra o mappa estatistico junto, em cifra não excedida pelos habilitados na de Lisbôa. Seria pois falta grave não proporcionar á escola medico-cirurgica de Nova-Gôa condicções de corresponder ao alto fim a que as circunstancias a destinam. Assim como resulta ser d'inteira justiça poupal-a e os discipulos que ella habilita, aos remoques de que estão sendo alvo. Nem estes nem aquella os merecem felizmente por não serem culpados dos factos que os occasionam. (idem, ibidem)

Será este, precisamente, o argumento que salvará a Escola da extinção. Nos debates parlamentares de 1902, o médico e deputado Miguel Bombarda toma a defesa dos médicos de Goa evocando o papel crucial que tinham e poderiam vir a ter na colonização de África, mencionando alguns feitos do passado e projetando as glórias do futuro. É então que se decidem os destinos das duas pequenas escolas extracontinentais: a do Funchal, na ilha da Madeira, criada para 'domesticar' e disciplinar as práticas populares, trazendo aos seus praticantes algum treino convencional da medicina e cirurgia (Silva, 1945); e a de Goa, resultante, como vimos, de uma complexa interação entre fatores locais e colonais. A frase lapidar de Bombarda (1902, p. 95) — "A Escola do Funchal, tudo a condena. A de Nova Goa, tudo a salva" —, com que encerrou o seu discurso de defesa da existência de uma escola médica colonial, viria a ser rememorada por gerações e gerações de médicos goenses.

A Escola reconfigurou então os seus papéis e, concomitantemente, reconfigurou-se a sua ideologia. O serviço nas colônias africanas, ainda que pouco apreciado pelos facultativos de Goa, passou a ser fundamental na constituição identitária da escola, e consolidou-se o desenvolvimento das disciplinas relevantes para o exercício da medicina nos trópicos.14 14 Algumas das contribuições de maior destaque são as de Froilano de Melo, no campo da parasitologia e do estudo da lepra, com inúmeros artigos publicados em revistas internacionais. Froilano de Melo não apenas foi professor e diretor da Escola, mas também presidiu a Câmara de Pangim e representou a Índia no parlamento português. Por todo o século XX, a Escola de Goa formou médicos que viriam a ter um intercâmbio contínuo com o campo da medicina tropical no continente. É no século XX, também, que se desenvolve uma historiografia orientada para realçar o papel da escola de Goa na colonização portuguesa de África, algo que, por alguns períodos, se confundiu com a apologia do império. Assim se viu nas comemorações centenárias com que abrimos este artigo. Porém, uma vez mais, não nos iludamos: o visível é apenas uma pequena parte da história

NOTAS

Brito, Raquel Soeiro de Goa e as praças do Norte. Lisboa: Junta de Investigações do Ultrama

Governo do Estado da Índia 1842a. Boletim do Governo do Estado da Índia, no 45, 3/10/1842.

Governo do Estado da Índia 1842b Boletim do Governo do Estado da Índia, no 51, 14/11/1842.

Governo do Estado da Índia 1842c. 'Projecto de reforma de saúde para o Estado da Índia'.Boletim do Governo do Estado da Índia, no 51, 14/11/1842, suplemento.

Recebido para publicação em agosto de 2003

Aprovado para publicação janeiro de 2004

  • Almeida, Eduardo de Freitas e 1861 Ofício de 4-6-1861 ao dr. Manoel Rodrigues de Bastos, do Conselho da Saude Naval e Ultramar. Arquivo Histórico Ultramarino, Sala 12, Índia, Serviços de Saúde, Maço 1987.
  • Almeida, Eduardo de Freitas e 1856 Ofício de 8-2-1856 para Ignacio da Fonseca Benevides, presidente do Conselho da Saúde Naval e Ultramar. Arquivo Histórico Ultramarino, Sala 12, Índia, Serviços de Saúde, Maço 1987.
  • Almeida, Eduardo de Freitas e 1854 Ofício de 11-7-1854 para Ignacio da Fonseca Benevides, presidente do Conselho da Saúde Naval e Ultramar. Arquivo Histórico Ultramarino, Sala 12, Índia, Serviços de Saúde, Maço 1987.
  • Arnold, David 2000 Science, technology, and medicine in colonial India Cambridge, Cambridge University Press.
  • Arnold, David (ed.) 1988 Imperial medicine and indigenous societies Oxford, Oxford University Press.
  • Barbosa, César Gomes 1897 Relatório da Inspecção ao Serviço de Saúde do Estado da Índia. Arquivo Histórico Ultramarino, Sala 12, Serviço de Saúde da Índia, maço 1988.
  • Bastos, Cristiana 2002 'The inverted mirror: dreams of imperial glory and tales of subalternity from the Medical School of Goa'. Etnográfica, VI(2), pp. 59-76.
  • Bastos, Cristiana 2001a 'Doctors for the empire: the Medical School of Goa and its narratives'. Identities, 8(4), pp. 517-48.
  • Bastos, Cristiana 2001b 'O espelho de Goa: paradoxos do pantropicalismo lusófilo de Gilberto Freyre. Em Amélia Cohn, Aspásia Camargo e Boaventura Sousa Santos (org.), Brasil-Portugal: entre o passado e o futuro o diálogo dos 500 anos Rio de Janeiro, ECM, pp. 133-48.
  • Bombarda, Miguel 23.3.1902 'Escola de Nova Goa'. A Medicina Contemporânea: Hebdomanario Portuguez de Sciencias Medicas, série II, t. V.
  • Brito, Raquel Soeiro de 1966 Goa e as praças do Norte revisitadas Lisboa: Comissão Nacional para as 1998 Comemorações dos Descobrimentos Portugueses
  • Conselho Ultramarino 1867 Boletim do Conselho Ultramarino: legislação novíssima, vol. I (1834-1851). Lisboa: Imprensa Nacional.
  • Correia, Alberto Germano da Silva 1947 História do ensino médico na Índia portuguesa nos séculos XVII, XVIII e XIX Bastorá: Rangel.
  • Correia, Alberto Germando da Silva 1917 História do ensino médico na Índia portuguesa Nova Goa: Imprensa Nacional.
  • Costa, Pedro Joaquim Peregrino da 1943a 'Médicos da Escola de Goa nos quadros de saúde das Colónias (1853-1942)'. Boletim do Instituto Vasco da Gama, vol. 57, pp. 1-43.
  • Costa, Pedro Joaquim Peregrino da 1943b 'Médicos da Escola de Goa nos quadros de saúde das colónias (1853-1942)'. Boletim do Instituto Vasco da Gama, vol. 58, pp.1-66.
  • Escola Médico-cirúrgica 1955 Comemorações centenárias (1842-1942) Bastorá: Tipografia Rangel.
  • Feio, Mariano 1979 As castas hindus de Goa Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar.
  • Figueiredo, João Manuel Pacheco de 1961 A vida acidentada do físico-mór Lima Leitão, mestre de medicina em Goa e em Lisboa Porto: Tipografia Sequeira.
  • Figueiredo, João Manuel Pacheco de 1960 'Escola Médico-Cirúrgica de Goa: esboço histórico'. Arquivos da Escola Médico Cirúrgica de Goa, serie A, fasc. 33, pp. 119-237.
  • Freyre, Gilberto 1961 O luso e o trópico: sugestões em torno dos métodos portugueses de integração de povos autóctones e de culturas diferentes da europeia num complexo novo de civilização, o luso-tropical Lisboa: Comissão Executiva das Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique.
  • Gracias, José António Ismael 1914 'Fisicos-Móres da India no Seculo XIX. Memoria historica'. O Oriente Português, vol. XI, no 11-12, pp. 255-78.
  • MacLeod, Roy, & X Ismael 1988 Disease, medicine, and empire: perspectives on Western medicine and the experience of European expansion. London, Routledege.
  • Mendes, A. Lopes 1886 A Índia portugueza Lisboa, Imprensa Nacional.
  • Motta, Eduardo Augusto 1878 Bosquejo historico da Escola Medico-Cirurgica de Lisboa Lisboa, Imprensa de J. G. de Sousa Neves.
  • Oliveira, José António de 1853 Relatório do estado das repartições de saúde do Estado da Índia,11-7-1953, para Ignacio da Fonseca Benevides, do Conselho de Saúde Naval e Ultramar. Arquivo Histórico Ultramarino, Sala 12, Índia, Serviços de Saúde, Maço 1987.
  • Ortigão, Ramalho s. d. As farpas, X. Lisboa, Clássica Editora.
  • Queiroz, J. M. Eça de 1927 Uma campanha alegre Lisboa, Chardron.
  • Pereira, Rafael António 1889 Relatório de 30-10-1889, Arquivo Histórico Ultramarino, Sala 12, Índia, Serviços de Saúde, Maço 1988.
  • Ribeiro, Orlando 1999 Goa em 1956: relatório ao governo Org. e introd. Suzanne Daveau, pref. Fernando Rosas. Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
  • Rosas, Fernando, Brito, J. M. Brandão de (org.) 1996 Dicionário de história de Portugal do Estado Novo Venda Nova, Bertrand.
  • Silva, António Delgado da 1844 Colecção oficial da legislação portugueza, redigida pelo desembargador António Delgado da Silva Anno de 1842 e seguintes. Lisboa, Imprensa Nacional.
  • Silva, António Delgado da 1843 Colecção oficial da legislação portugueza, redigida pelo desembargador António Delgado da Silva Legislação de 1843 em diante. Lisboa, Imprensa Nacional.
  • Silva, Fernando Augusto da, padre 1945 A antiga Escola Médico-Cirúrgica do Funchal. Breve monografia histórica Funchal, Tipografia Esperança.
  • Torres, Francisco Maria da Silva 1846 Oficio de 21-4-1846 para Bernardino António Gomes, presidente do Conselho da Saude Naval e Ultramar. Arquivo Histórico Ultramarino, Índia. Serviços de Saúde, Ofícios dos empregados, 1840-1868, Maço no 1987.
  • Torres, Francisco Maria da Silva, Oliveira, José José de; Gama, Antônio José da 1845a Regulamento para a Escola Médica de Goa. Arquivo Histórico Ultramarino. Índia, Serviços de Saúde, maço 1987, ofícios dos empregados, 1840-1868.
  • Torres, Francisco Maria da Silva; Oliveira, José Antônio de; Gama, Antônio José da 1845b Anexo ao Regulamento para a Escola Médica de Goa, Doc. no de 5, Arquivo Histórico Ultramarino, Índia, Serviços de Saúde, Ofícios dos empregados, 1840-1868, Maço nº 1987.
  • 1
    Pesquisa desenvolvida no âmbito dos projetos FCT "Medicina tropical e administração colonial" (PLUS/1999/ANT/15157) e "Medicina colonial, estruturas do império e vidas pós-coloniais em português" (POCTI/ANT/41075/2001), com componente FEDER, integrando ainda o convênio entre o ICS e a Casa de Oswaldo Cruz "Saberes Médicos e Práticas Terapêuticas nos Espaços de Colonização Portuguesa" (IICTI(GRICES)/CNPq). Agradeço aos participantes dos projetos a discussão e os comentários, bem como à Mónica Saavedra a transcrição dos manuscritos
  • 2
    A efeméride reporta-se à restauração da independência nacional portuguesa em 1640, após oitenta anos de governo unificado com a coroa espanhola — episódio fundamental para uma ideologia nacionalista que enfatizava a identidade por oposição à Espanha.
  • 3
    Entre a imprensa independentista destacou-se o jornal
    Bharat, o primeiro assumidamente hindu, fundado em 1910. Tendo ascendido com o fulgor independentista até 1926, vem a sofrer, como outros, os efeitos da repressão que se instaurou com a subida de Salazar ao poder.
    O
    Bharat era dirigido por G. P. Hegdo Dessai, advogado e farmacêutico formado pela Escola Médica de Goa, e tinha colaboradores locais como J. J. Cunha e Pandita Ram e correspondentes em Lisboa como Druston Rodrigues, Fernando da Costa e Telo de Mascarenhas, entre outros.
  • 4
    O luso e o trópico (Freyre, 1961) é decerto a mais institucional das explanações do lusotropicalismo e a mais claramente apropriada pelo regime de Salazar–Caetano. Sobre a análise de Freyre sobre Goa, onde supostamente o autor encontra a expressão que mais tarde vem a ser tão conveniente ao regime de Salazar, ver Bastos (2001b).
  • 5
    A imprensa goesa do século XIX é uma boa expressão dessas multiplicidades; entre as muitas polêmicas que entretêm os editores dos diversos jornais locais, destacam-se aqui e ali referências às 'castas cristãs', uma vez que, apesar de cristãos, os indianos continuavam a se referir aos grupos de proveniência — brâmanes, xátrias, sudras etc. — e através deles organizavam não apenas aspectos fundamentais da sua vida material, como alimentação e definição das atividades manuais, mas também aspectos cruciais da vida social, como a escolha de cônjuge (idealmente dentro da casta) e as regras de comensalidade.
  • 6
    Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, Orlando Ribeiro desenvolveu em Portugal a geografia humana, deixando vários discípulos e inúmeras obras. Fizeram também parte da missão a Goa Raquel Soeiro de Brito, que escreveu posteriormente
    Goa e as praças do Norte (Brito, 1966, 1998) e Mariano Feio, que escreveria
    As castas hindus de Goa (Feio, 1979). Dessa viagem Orlando Ribeiro produziu um relatório secreto ao governo, que só recentemente veio a público (Ribeiro, 1999).
  • 7
    Como se verá adiante, o enaltecimento da vocação de intermediário entre europeus e africanos é adotada pelos próprios médicos da Escola de Goa no final do século XIX, como acontece com o diretor Rafael António Pereira (1889), e transita à lógica de governação portuguesa.
  • 8
    Destaca-se, nestes esforços, o físico António José de Miranda Almeida, recebido calorosamente em Goa para organizar e coordenar a Aula de Medicina no Hospital. Miranda Almeida era um professor da Universidade de Coimbra cuja vida nessa cidade estava estigmatizada por escândalos pessoais (Gracias, 1914; Pita, 1996, pp. 508-11), algo que, como em tantos outros casos, foi elegantemente solucionado com uma prolongada estada na Índia. Do ponto de vista da medicina em Goa, tal estada foi muito saudada e benéfica, e o regresso do professor ao reino, em 1815, foi visto como uma interrupção dos trabalhos iniciados. As tentativas de estruturação do ensino médico prosseguiram com diversos sobressaltos, sendo brevemente coordenada pelo famoso Lima Leitão (Figueiredo, 1961), conhecido pela variedade de postos que assumiu no império e contra ele, inclusive nas tropas de Napoleão. Lima Leitão retornaria à metrópole para exercer funções políticas, deixando o projeto de institucionalização do ensino médico para a geração seguinte.
  • 9
    'Cristão' pode aqui significar "apenas de baptismo", como notavam alguns dos relatórios, dizendo que muitos continuavam a reger as suas vidas "como gentios", isto é, adotando costumes mais próximos da matriz hindu. As referências cristãs e hindus, aliás, podem coexistir na prática sem contradição, como exemplifica a manutenção da estrutura de castas entre os cristãos. O etnógrafo português Lopes Mendes, por exemplo, aponta que, do total de 385.124 habitantes do Estado da Índia em 1864, haveria 555 europeus, 2.440 descendentes de europeus, 252.203 asiáticos cristãos, 127.746 gentios, 1.637 mouros, 346 africanos e 197 descendentes destes; e que "os asiáticos cristãos (vulgo nativos ou canarins) e os gentios dividem-se em castas nobres e plebéias. As nobres compõem-se de
    brahmanes e
    quetris ou
    charodós, e as plebeias de
    vaixás ou
    vésias e
    sudros", havendo ainda
    pariás (
    farazes) resultantes do "comércio ilegítimo das diferentes castas entre si" (Mendes, 1886, p. 36).
  • 10
    Mark Harrison,
    Morbid Pathologies, comunicação apresentada no Seminário de Pós-graduação em Ciências Sociais, ICS, fevereiro de 2003.
  • 11
    O realce no tratamento de fraturas ao estilo europeu deve ser confrontado com o que, cem anos mais tarde, quando das comemorações do centenário da Escola, afirmou Wolfango da Silva no seu discurso de veterano: durante anos tinha persistido a crença que as medicinas locais eram mais aptas para tratamento de fraturas e que muitos com esse problema se dirigiam aos curandeiros locais, em vez de procurarem os médicos.
  • 12
    Quando as Reais Escolas de Cirurgia de Lisboa e Porto foram fundadas, por alvará de 25 de junho de 1825, os requisitos para admissão ao primeiro ano das escolas médicas eram apenas a comprovação de que o candidato tinha mais de 14 anos e conhecimentos em língua latina e lógica (Motta, 1878, p. 7).
  • 13
    Em 1871, Ramalho Ortigão ironiza a situação em uma d'
    As farpas, citando o diálogo de um viajante inglês que fora parar à Escola Médica de Goa. Ao perguntar ao guarda pelo lente de anatomia, foi-lhe respondido que estava fazendo a barba, assim como o lente de patologia, de fisiologia e de matéria médica. Pensando o inglês que todos eram muito dedicados à barba, constata mais tarde que o então diretor, João Stwart da Fonseca Torrie, era o lente de todas as cadeiras (Ortigão, s. d., p. 137). Décadas mais tarde, nos discursos do centenário da escola, Wolfango da Silva narra ter sido do tempo em que todos faziam a barba simultaneamente, porque todos eram um só
  • 14
    Algumas das contribuições de maior destaque são as de Froilano de Melo, no campo da parasitologia e do estudo da lepra, com inúmeros artigos publicados em revistas internacionais. Froilano de Melo não apenas foi professor e diretor da Escola, mas também presidiu a Câmara de Pangim e representou a Índia no parlamento português.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2007
    • Data do Fascículo
      2004

    Histórico

    • Aceito
      Jan 2004
    • Recebido
      Ago 2003
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