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Os desafios da alteridade: considerações sobre gênero e sexualidade entre militantes de uma ONG/Aids carioca

The challenges of otherness: thoughts on gender and sexuality among activists from a Rio de Janeiro Aids NGO

Resumos

Este artigo analisa as experiências de um grupo de ativistas do movimento de luta contra a Aids que atuaram numa ONG/Aids carioca entre 1989 e 2001. Nosso objetivo é examinar os desdobramentos do encontro entre os discursos que orientaram a atuação das ONGs perante o avanço da doença e a discriminação dos doentes: eqüidade entre os gêneros, liberdade sexual e experiências relatadas pelos militantes da instituição, no que se refere a sexualidade, gênero e Aids. Foram realizadas treze entrevistas com militantes, sendo nove soropositivos, da ONG Grupo Pela Vidda-RJ. Os entrevistados são oito mulheres, dois heterossexuais masculinos, dois homossexuais masculinos e um bissexual.

Aids; sexualidade; gênero; ONG; militância


The article analyzes the experiences of a group of activists in the AIDS movement who belonged to an AIDS NGO in Rio de Janeiro between 1989 and 2001. It examines the encounter between the various discourses that guided the action of NGOs in their battles against the advance of the disease and against the discrimination of AIDS victims: gender equity, sexual freedom, and experiences with sexuality, gender, and AIDS recounted by the institute's activists. Interviews were conducted with thirteen activists from the NGO known as Grupo Pela Vidda-RJ, nine of whom were HIV-positive. Interviewees comprised eight women, two male heterosexuals, two male homosexuals, and one male bisexual.

AIDS; sexuality; gender; NGO; activism


ANÁLISE

Os desafios da alteridade: considerações sobre gênero e sexualidade entre militantes de uma ONG/Aids carioca

The challenges of otherness: thoughts on gender and sexuality among activists from a Rio de Janeiro Aids NGO

Ana Paula V. Zaquieu

Professora de história. Rua Pernambuco 512/601 20730-030 Rio de Janeiro – RJ – Brasil anazaquieu@hotmail.com

RESUMO

Este artigo analisa as experiências de um grupo de ativistas do movimento de luta contra a Aids que atuaram numa ONG/Aids carioca entre 1989 e 2001. Nosso objetivo é examinar os desdobramentos do encontro entre os discursos que orientaram a atuação das ONGs perante o avanço da doença e a discriminação dos doentes: eqüidade entre os gêneros, liberdade sexual e experiências relatadas pelos militantes da instituição, no que se refere a sexualidade, gênero e Aids. Foram realizadas treze entrevistas com militantes, sendo nove soropositivos, da ONG Grupo Pela Vidda–RJ. Os entrevistados são oito mulheres, dois heterossexuais masculinos, dois homossexuais masculinos e um bissexual.

Palavras-chave: Aids; sexualidade; gênero; ONG; militância.

ABSTRACT

The article analyzes the experiences of a group of activists in the AIDS movement who belonged to an AIDS NGO in Rio de Janeiro between 1989 and 2001. It examines the encounter between the various discourses that guided the action of NGOs in their battles against the advance of the disease and against the discrimination of AIDS victims: gender equity, sexual freedom, and experiences with sexuality, gender, and AIDS recounted by the institute's activists. Interviews were conducted with thirteen activists from the NGO known as Grupo Pela Vidda-RJ, nine of whom were HIV-positive. Interviewees comprised eight women, two male heterosexuals, two male homosexuals, and one male bisexual.

Keywords: AIDS; sexuality; gender; NGO; activism.

No final da década de 1980, no momento em que as primeiras e tímidas conquistas do movimento de luta contra a Aids na Europa e nos Estados Unidos assumiam contornos mais promissores, tomava forma a questão da soropositividade. Aos poucos, o discurso da solidariedade passou a incluir uma preocupação crescente com as questões relacionadas ao viver com Aids. Surgiam, então, os primeiros sinais de que os soropositivos iriam conquistar espaço para refletir sobre suas particularidades.

No Brasil, já eram crescentes entre os militantes as discussões em torno da necessidade de grupos nos quais os soropositivos pudessem falar por si, quando, em 1989, foi inaugurada no Rio de Janeiro a ONG Grupo Pela Vidda (Valorização, Integração, Dignidade do Doente de Aids). A proposta principal de seus idealizadores, antigos militantes do movimento contra a Aids, consistia em transformá-lo num espaço em que os soropositivos pudessem, através do diálogo com pessoas em situação parecida, reconstruir suas vidas a despeito da doença. Para o sucesso dessa iniciativa, a convivência e o diálogo seriam os meios que propiciaram a reelaboração de valores, crenças e preconceitos que, além de levarem à culpa e à vergonha, dificultavam em muito a superação de um diagnóstico de HIV/Aids.

Seus primeiros voluntários eram, em sua maioria, homossexuais masculinos, soropositivos, com nível de escolaridade superior. Alguns haviam tido envolvimentos anteriores com partidos de esquerda e com o movimento gay. Entretanto, o espaço não era restrito aos soropositivos, mas aberto a todos que se mostravam sensíveis às questões suscitadas pela epidemia.

As atividades do GPV1 1 A partir desse trecho, a referência ao Grupo Pela Vidda será feita pela sigla GPV. são todas estruturadas sob a forma de oficinas e reuniões de convivência. Além disso, são oferecidos serviços considerados de utilidade pública, como o Disque-Aids, serviço telefônico no qual voluntários treinados oferecem informações à população sobre questões relacionadas à epidemia.

O impacto de suas propostas foi inquestionável. Temas tabus como sexualidade, morte, gênero e doença eram reiteradamente discutidos em suas reuniões de convivência, e o alcance das reflexões nascidas nesses encontros logo transcenderam as fronteiras da instituição e chegaram ao grande público, através de campanhas informativas, movimentos de rua e matérias de jornais. Entretanto, os porta-vozes desses discursos guardaram, grosso modo, características bem marcadas: eram brancos e universitários, e, na maioria das vezes, tinham em comum a homossexualidade. Em suma, defendiam valores e estilos de vida próprios das classes médias urbanas.

A partir da segunda metade dos anos 90, o perfil dos voluntários do GPV tornou-se bastante heterogêneo.2 2 Essas mudança na composição do GPV é um reflexo direto das transformações verificadas no próprio perfil epidemiológico da Aids, que passa a se disseminar entre heterossexuais oriundos dos segmentos mais populares da sociedade. Mulheres heterossexuais e homossexuais masculinos pobres, vindos de regiões periféricas da cidade e com baixa escolaridade, passaram a freqüentar as reuniões de convivência oferecidas pela instituição. O confronto entre hábitos, valores e experiências tão diferentes resultou em conflitos e disputas diversos.3 3 Em minha dissertação de Mestrado, trabalho mais detidamente os conflitos surgidos a partir das mudanças verificadas no perfil dos voluntários do Grupo Pela Vidda (Zaquieu, 2002). Contudo, para as finalidades deste artigo, interessa entender de que modo o contato com valores como a eqüidade entre os gêneros e a liberdade sexual, considerados próprios da modernidade e utilizados pelas lideranças do GPV para legitimar suas propostas de atuação, influenciaram as experiências relatadas pelos voluntários entrevistados no que se refere à sexualidade e à Aids.

Em nossa pesquisa fizemos treze entrevistas, divididas em duas fases, seguindo o padrão 'história de vida'. As dez primeiras foram realizadas entre 1997 e 1998. Em 2000, o conjunto foi complementado com mais três depoimentos.4 4 Das entrevistas utilizadas, dez foram feitas originalmente para o projeto de pesquisa "Da indiferença do poder a uma vida diferente: ONGs e Aids no Brasil", coordenado pela pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento, no Departamento de Pesquisa da COC/Fiocruz. Entre os entrevistados estão oito mulheres heterossexuais e cinco homens (dois homossexuais, dois heterossexuais, e um bissexual), sendo dois coordenadores de área, um coordenador de projetos, um ex-diretor financeiro e, os demais, voluntários em serviços oferecidos pela ONG.5 5 Com exceção de Dayse Agra e Alexandre do Valle, os demais nomes utilizados ao longo do artigo são fictícios.

Ao longo das entrevistas, o perfil da maioria dos entrevistados mostrou-se bem diferente do estilo de vida predominante entre as lideranças do movimento anti-Aids. Homossexuais masculinos e mulheres heterossexuais anônimos, com baixa escolaridade e pouca ou nenhuma experiência em movimentos sociais, apareceram como maioria num cenário sempre ofuscado por dirigentes oriundos das classes médias urbanas, com discursos bem mais politizados. De imediato, o contato com aquelas pessoas despertou duas questões. Como definir indivíduos que, mesmo tão diferentes entre si, se dispunham a dedicar boa parte de sua semana a um trabalho voluntário numa ONG/Aids? Como e o que pensavam esses voluntários que, se não eram os responsáveis pela imagem pública da instituição, propiciavam o seu funcionamento cotidiano, viabilizavam as manifestações de rua, enfim, garantiam, silenciosamente, que a luta contra a Aids não acabasse? As respostas para tais indagações exigem algumas considerações históricas. Assim, antes de analisar as experiências dos voluntários do GPV, é preciso reconstruir alguns aspectos da trajetória das ONGs/Aids no Brasil.

Não seria falso afirmar que o conjunto de reflexões e ações críticas despertadas pela Aids no mundo ocidental foi um reflexo da ampla crítica cultural, teórica, epistemológica e política que as formas predominantes de produção do conhecimento vêm sofrendo há algumas décadas, da qual participam a Psicanálise, o Feminismo, o movimento gay e todos os defensores do que se convencionou chamar de pós-modernismo. Os anos 60 constituíram um palco privilegiado de onde emergiram críticas ao caráter particular de categorias que, transformadas em universais, não conseguiam dar conta das diferenças. Aos poucos foi se tornando claro que os conceitos com que trabalhavam as ciências humanas eram identitários e, portanto, excludentes. Em seus textos, as feministas afirmavam que a construção do conhecimento, ao pautar-se num conceito universal do homem, que remetia ao branco, heterossexual, civilizado e originário dos países desenvolvidos, deixava de lado todos aqueles que não faziam parte desse modelo (Scott, 1992). Fortemente influenciadas por Foucault, tais críticas evidenciaram, das mais diferentes formas, que as relações de poder eram partes intrínsecas da construção do conhecimento.

Foi nesse contexto que as minorias sociais, como os negros, as mulheres e os homossexuais iniciaram a luta pela incorporação de suas formas alternativas de interpretar o mundo (Rago, 1991). O impacto desses questionamentos abalou não somente o mundo acadêmico, como a estrutura política como um todo. Os estudos sobre as mulheres, os homossexuais e, mais recentemente, sobre a Aids são herdeiros dessas transformações. A confluência de tendências epistemológicas contemporâneas no sentido de criticar a idéia de verdade e de neutralidade do conhecimento, bem como das categorias que o sustentavam, resultou na construção de novos referenciais teórico-metodológicos, agora mais sensíveis à multiplicidade característica das experiências humanas.

O caso brasileiro não foi diferente, pois a formação expressiva de ONGs ao longo dos anos 80 também foi motivada pelas novas demandas políticas impostas aos movimentos sociais no período. Formadas por intelectuais egressos do exílio imposto pela ditadura militar, as ONGs em geral e as ONGs/Aids, em particular, acabaram por se caracterizar como espaços que buscavam uma forma alternativa de fazer política. A descrença nos grandes projetos de transformação social e a emergência de questões propostas de forma secundária pelas ideologias revolucionárias até os anos 60 – como etnia, gênero, estilos de vida e ecologia – levaram a um esvaziamento dos canais democráticos até então predominantes. Assim, não se tratava mais de projetos voltados exclusivamente para o futuro, mas de uma preocupação crescente com os impasses cotidianos e individuais, visando transformar o presente (Assumpção, 1993; Santos, 1994).

Segundo Silva (1998), uma das principais características das ONGs/Aids é o fato de serem organizadas e mantidas por pessoas diretamente envolvidas com a epidemia. Neste caso, a atuação em nada se assemelha a uma militância tal qual vemos nos partidos e sindicatos, onde se efetua uma verdadeira renúncia de si em nome da causa e, na maioria das vezes, os indivíduos envolvidos na luta são porta-vozes de uma causa definida a partir de princípios ideológicos mais gerais. Apesar de evocarem questões de interesse coletivo, seus discursos são trazidos a público em nome próprio e, muitas vezes, organizados sob a forma de testemunho.

Assim, essa autora, ao discutir a proposta política do GPV, chama a atenção para a existência de duas tendências nos seus princípios ideológicos: de um lado, uma perspectiva universalizante, caracterizada pela defesa dos direitos humanos e dos princípios democráticos, como liberdade de expressão, qualidade de vida, garantias previdenciárias e trabalhistas; e de outro, a valorização individual, expressa nas reuniões de convivência em que os indivíduos são estimulados a falar de si, sem o receio de serem expostos fora da instituição. De acordo com a autora, mesmo sem perder de vista os contornos ideológicos mais gerais do movimento, a preocupação com questões relacionadas à morte e à sexualidade acabou por transformar a vida privada numa das fontes de orientação da luta política da ONG.

Essas características gerais assumiram um caráter radical a partir da criação do GPV. O seu projeto de valorização do indivíduo e a abrangência de significados atribuídos à idéia de solidariedade acabaram sendo apropriados pelas pessoas das mais diferentes formas. Nesse sentido, participar das atividades de convivência, ir às manifestações de rua, integrar algum serviço voluntário muitas vezes se confundiram com sentimentos de compaixão, com o desejo de ajudar ao próximo ou mesmo com uma possibilidade de romper com a solidão.

Em várias entrevistas, a necessidade de apoio emocional foi apontada como a principal motivação para o ingresso na instituição. Mesmo sob pontos de vista diferenciados, todos precisavam construir um novo lugar para si e estabelecer referências compatíveis com o que se apresentava como uma nova e irreversível condição de vida. Esse sentimento de urgência sofreu variações ao longo do tempo, tendo se mostrado evidentemente mais forte nos primeiros anos da epidemia, por causa da baixíssima expectativa de vida dos doentes.

Apesar de instigados pela possibilidade de ter com quem dividir os desafios impostos pela soropositividade – que incluíam enfrentar desde o preconceito social aos efeitos colaterais da medicação usada para combater a infecção –, o medo, a vergonha e a busca por informações mais consistentes são as motivações que estão por trás das primeiras visitas.6 6 Dois voluntários afirmaram ter passado algum tempo participando de todas as atividades oferecidas pela instituição como forma de esconder da família o afastamento compulsório do trabalho, em decorrência do HIV. De início, os maiores desafios consistiam em lidar, para além dos temores relacionados às implicações clínicas da infecção, com questões imediatas, entre as quais: falar ou não falar com os familiares e com os colegas de trabalho; onde e com que médico começar o tratamento; como proceder em relação aos direitos trabalhistas.7 7 Apesar de algumas conquistas estarem consolidadas há anos – como direito ao passe-livre nos meios de transporte urbano, distribuição gratuita da medicação e criação de centros de referência para o tratamento do HIV/Aids –, a maioria dos voluntários chegam ao GPV sem nenhuma informação sobre os seus direitos. Nesse sentido, as primeiras informações colhidas na ONG surtiam o efeito de um ritual de passagem. Era como se a nova realidade, inaugurada pela descoberta do vírus, começasse a fazer sentido. Esse sentimento de re-significação da vida ganharia contornos mais precisos à medida que o tempo ia passando. Para a maioria dos envolvidos, a convivência com a Aids foi dividida em dois tempos: antes e depois do GPV. Mônica, ao falar de suas dificuldades iniciais em lidar com o diagnóstico, fez a seguinte ressalva, ao narrar sua experiência com a Aids:

Quer dizer, isso tudo foi antes ... de conhecer e vivenciar mais o Pela Vidda. Porque é incrível como existe uma transformação total... essa consciência muda, assim, de uma forma radical. Como a gente chega tão desesperançada e, de repente, as coisas passam a fazer sentido. (grifos meus)

A discussão de temas como doença e morte e a possibilidade de contar suas histórias de vida propiciaram a reelaboração da própria identidade. Não se tratava apenas de fazer a sociedade saber que é possível viver com Aids, mas, principalmente, interiorizar essa máxima defendida por Herbert Daniel. Para os entrevistados, ingressar em movimentos coletivos, ir para as ruas reivindicar serviços de saúde de qualidade e medicação gratuita eram iniciativas que atenuavam a angústia e que, aos poucos, transformavam a Aids num evento inteligível.8 8 Tal como Pollak ressaltou em pesquisa feita na década de 1980 com homossexuais franceses (1990, p. 108-11), observamos entre os entrevistados uma estreita relação entre as diferenças de classe e as formas como conviviam com a doença. Em suas narrativas ficou evidente que a posse de recursos materiais, o acesso aos médicos mais conceituados e a certeza de poder manter o tratamento em caso de suspensão da distribuição gratuita, mesmo que só por algum tempo, ajudaram a atenuar o peso dos desafios e das incertezas trazidas pela infecção. Mônica recorda sua primeira participação numa manifestação organizada para denunciar a falta de medicamentos nos postos municipais de saúde. Em sua fala torna-se evidente o efeito do engajamento político sobre a sua nova relação com a doença:

Segurei a faixa, também, com um amigo nosso. Eu acho que, pela primeira vez, ao segurar a faixa eu não estava só segurando a faixa. Eu estava dizendo para mim: "Eu tenho Aids, mas está tudo bem". Acho que, mais ou menos, pela primeira vez eu fiz as pazes comigo mesma.

A oportunidade de refletir sobre si abriu a possibilidade de reavaliações profundas da própria trajetória de vida. Essa tomada de consciência criou condições para que, guardadas as diferenças individuais, os entrevistados pudessem reivindicar um outro status social:

Se eu mudei minha cabeça todinha, eu tenho que agradecer ao Grupo porque foi ali que eu peguei todo esse suporte, essa cara que eu tenho de chegar aí na rua e dizer mesmo que tenho Aids, é pegar minha carteirinha do ônibus e entrar pela frente com a bolsa escrito Aids aqui porque eu sou associado mesmo, porque eu estou entrando no ônibus e eu tenho Aids, entendeu? (Guilherme)

Tanto que até hoje eu sou uma pessoa, assim, cabeça aberta, eu sou uma pessoa que lida muito bem com a doença, a partir do Pela Vidda. O Pela Vidda me mostrou o que era viver com Aids, que era possível, que é possível viver com Aids! (Diogo)

São muitos os trabalhos que discutem a pluralidade de mundos que convivem na sociedade brasileira. Essa produção ganha intensidade quando a análise se volta para os centros urbanos, onde as tensões entre tradicional/moderno, hierarquia/individualismo e público/privado resultam em arranjos culturais complexos9 9 Nessa perspectiva, podemos citar trabalhos baseados na análise de Louis Dumond, para quem os princípios hierárquicos e igualitários seriam os parâmetros culturais diferenciadores entre as sociedades modernas e não-modernas (Velho, 1987, 1999). e instigantes do ponto de vista analítico. Com o advento da Aids, a necessidade de entender o comportamento sexual dos indivíduos levou ao crescimento do número de trabalhos voltados para a investigação dos valores e códigos, que conformam os sistemas de gêneros predominantes na cultura brasileira. Esses trabalhos se dividem, de um modo geral, em três campos distintos de investigação. O primeiro focaliza os segmentos médios da população, onde predominaria a matriz de pensamento moderna, individualista, marcada pela valorização da subjetividade e pela defesa de direitos (Goldenberg, 1991; Corrêa, 1994). O segundo grupo se caracteriza pela produção de análises voltadas para as camadas populares, onde se destacariam visões de mundo tradicionais, marcadas pela hierarquia e por um modo de vida que não tem na valorização da individualidade a sua principal referência (C. Guimarães, 2001; Martin, 1995; Knauth, 1997; Monteiro, 2002). E, finalmente, o terceiro propõe uma perspectiva relacional, cuja análise é feita a partir da trajetória de indivíduos pertencentes a diferentes contextos socioculturais (Heilborn, 1999).

Em artigo produzido a partir de pesquisa feita com mulheres de baixa renda que utilizavam os serviços do centro de saúde da ENSP/Fiocruz, Vaitsman (1997) discutiu a rigidez das dualidades estabelecidas em torno das noções de igualdade/hierarquia e tradicional/moderno. Ao chamar a atenção para o caráter dinâmico dos universos socioculturais que convivem nas sociedades urbanas, a autora mostrou que, da perspectiva dos sujeitos, a participação em distintos contextos e jogos discursivos resulta na produção simultânea de similaridades e diferenças, que se transformam sem cessar. Nesse sentido, os valores considerados modernos ou mesmo tradicionais circulariam pela sociedade como um todo, podendo sofrer variações de acordo com condições históricas específicas.

Essa circularidade de valores foi marcante em todos os depoimentos. Se as ONGs/Aids podem ser consideradas expressões de uma visão moderna da realidade, o mesmo não se pode afirmar em relação aos valores apresentados por seus membros. Mais do que uma condição clínica, a soropositividade para o HIV impõe aos indivíduos um novo status social. Lidar com essa nova condição exige um longo processo de elaboração, que envolve desespero, solidão, culpa e medo da morte. Todos esses sentimentos são agravados pela desinformação sobre a doença. Diante de tantas dúvidas, só a morte aparece como uma certeza irrefutável: "Então, quando você descobre, se desestrutura, porque você não sabe nada. Você só sabe que mata" (Mônica).

Contudo, superada essa fase, as estratégias para dar sentido e significado à nova condição seguem cursos diferentes. Neste caso, a história pregressa de cada um é fundamental no sentido de favorecer ou não um maior equilíbrio daquele momento em diante. As pessoas que se sentiam 'moralmente' próximas da doença, como os homossexuais e as prostitutas, ou mesmo as mulheres que apresentavam uma vida sexual mais ativa, tendem a apresentar, passado o impacto inicial, uma atitude de maior enfrentamento. Nas outras, o medo de ser associado a uma vida promíscua acaba por gerar, especialmente nos casos assintomáticos, mais apreensão do que a doença propriamente dita (C. Guimarães, 1996; Knauth, 1997). Nos casos de Márcia, que se contaminou numa relação extra-conjugal, e Maria, que viveu durante alguns anos da prostituição, a clareza quanto à forma de contaminação garantiu que a elaboração do impacto do diagnóstico fosse, a despeito da culpa, um pouco mais rápida.10 10 Dayse Agra, coordenadora do Grupo de Mulheres, afirmou que, entre as mulheres soropositivas que passaram por suas reuniões, quase todas responsabilizaram o parceiro pela infecção. Estas mulheres eram, normalmente, as que mais tempo levavam para reconstruir suas vidas. Em sua dissertação de mestrado, Kátia Guimarães (1996) mostrou como a dificuldade de muitas mulheres em elaborar a sua condição sorológica estava diretamente associada a certa concepção de feminilidade, que investe as mulheres com um suposto status de pureza, passividade e fragilidade. Tomando como base as suas reflexões, não estou me referindo a uma banalização ou mesmo ausência de sofrimento diante da contaminação, mas, sim, a uma maior capacidade, entre as mulheres que apresentam certa autonomia nos modos de gerir sua sexualidade, de conferir inteligibilidade à contaminação.

Eu estava desesperada, não era por causa do HIV ... eu acho que procurei e encontrei ... Eu sabia de onde ele tinha vindo, eu sabia que eu estava, como estava e por que eu estava. Então eu estou disposta a enfrentar isso... (Márcia, grifo meu)

Não é que eu encarei a Aids com muita calma, muita serenidade. Eu não fui uma mocinha que saiu de casa virgem, casou, teve o primeiro marido e tal, talvez se eu tivesse sido assim a minha cabeça hoje não estava assim. Eu teria me revoltado ... Mas a minha vida não foi regrada, eu não fui santa. Eu pintei, eu bordei, eu desbordei. ... Eu procurei ... involuntariamente, mas eu procurei hoje em dia estar com Aids ... pela vida que eu levei, pelos amantes que eu tive. (Maria, grifos meus)

Essa proximidade ainda é maior entre os homossexuais. De acordo com Terto Jr. (1997, p. 52-3), a insegurança e a busca de recursos para administrar melhor as questões relacionadas à Aids tornaram-se, a partir dos anos 80, mais mobilizadoras para os homossexuais do que as questões ligadas à busca ou afirmação de uma identidade gay. A longa convivência com a epidemia, através da perda de amigos ou do medo cotidiano de estar contaminado pelo vírus HIV, transformou a Aids numa preocupação constante para essa população.

Eduardo, homossexual soronegativo, lembrou os longos períodos em que viveu em depressão, após a morte de um antigo parceiro sexual. Afastados havia algum tempo, Eduardo só veio saber da condição sorológica do ex-parceiro quando este já apresentava os sintomas da doença, em 1992. Apesar de se sentir amedrontado, relutou em fazer o exame, ao mesmo tempo em que começou a ter uma série de complicações de saúde, em decorrência do estresse emocional. Em 1994 decidiu fazer o teste, cujo resultado foi negativo. Mesmo assim, a preocupação com a Aids não diminuiu, pois a partir de então passou a fazer, anualmente, dois testes anti-HIV. Quando questionado sobre os motivos que o levaram a incorporar o teste em sua rotina, Eduardo deu a seguinte resposta:

Eu acho que não existe nenhum gay, nenhum homossexual consciente que se sinta fora, não vulnerável. Eu acho que nós nos sentimos, não por sermos promíscuos ou não casados, ou por estarmos sempre freqüentando locais que geram uma facilidade maior pra transa, pra sexo, não. É porque eu acho que a coisa estigmatizou mesmo, sabe? Veio para a gente, não veio pra pais de família, pra mulher, pra criança, veio pra viado mesmo. Na época, a gente tinha essa coisa muito introjetada na cabeça da gente. (grifo meu)

Dado o alcance dessas representações, um diagnóstico positivo para o HIV coloca em questão a própria identidade sexual da pessoa contaminada. Entre os homens – homossexuais ou não –, o diagnóstico passa a servir como uma declaração pública de homossexualidade. Essa tendência não variou muito ao longo do tempo. Dayse Agra recorda sua angústia ao saber do diagnóstico do filho. Desesperada com a falta de recursos médicos disponíveis na época – seu filho recebeu o diagnóstico em 1986 –, ainda se via preocupada com as condições que o levaram a se contaminar:

Àquela época, também o que me pesava muito era aquilo: só dá em homossexual... Será que era? Será que não era? Por que era? Por que não era? Ele tinha namorada? Ele não tinha namorada? Ele se interessava? Ele brigava? Ele não ficava muito tempo? E aquilo tudo na minha cabeça...

Um comportamento parecido verifica-se em Guilherme, ao comentar a angústia que sentiu, em 1990, ao se dar conta de que a divulgação do diagnóstico tornaria pública a sua homossexualidade, até então não revelada. Como mostra Pollak (1990), a capacidade dos homossexuais em assumir a contaminação depende diretamente da forma como eles lidam com sua homossexualidade. Assim, naquele momento, mais do que a Aids, o medo da associação Aids/homossexualidade era o que mais assustava Guilherme. Sem encontrar outra alternativa, optou pelo isolamento, afastando-se de todos os amigos do trabalho:

E junto com o HIV a tua sexualidade [vem] junto, né? Os que desconfiavam que eu era gay iam ter a confirmação. Então eu perdi todos os meus amigos, me afastei de todo mundo, simplesmente fiquei sozinho... (grifo meu)

Ao contrário dos homossexuais masculinos, nenhuma das entrevistadas enfatizou a Aids como uma questão que as preocupava. Todas afirmaram sentir-se imunes à epidemia, não chegando, sequer, a pensar com maior seriedade sobre o assunto. Por isso, no caso das soropositivas, a confirmação do diagnóstico era seguida de uma grande perplexidade que, muitas vezes, custava a ser superada. Afinal, como era possível ter uma doença que, durante os anos 80, era associada a homens ricos e famosos? Lúcia recorda os primeiros dias após o diagnóstico, ocorrido no final dos anos 80, quando procurava em seu corpo os sinais físicos da doença que a assemelharia ao Cazuza, personalidade pública, bissexual assumido, cuja imagem tornou-se o símbolo – ou mesmo a corporificação – da Aids na sociedade brasileira:

Aí eu fui para o banheiro, fiquei horas me olhando no espelho. Tirei a roupa toda, fiquei me olhando, me olhando, me olhando... para ver se tinha mancha, se tinha alguma coisa de errado... alguma coisa que dissesse para mim "você tem Aids", porque eu estava procurando o Cazuza, mas eu não achava, entendeu?

As informações médico-científicas sobre a doença divulgadas pela imprensa contribuíram para a construção de um rígido perfil "das pessoas potencialmente contaminadas pela Aids" (Knauth, 1997, p. 191). Deste, os heterossexuais estariam supostamente excluídos. Assim, determinados comportamentos deixavam bem marcados os que estavam em risco e os grupos terminantemente protegidos. Esses discursos conformaram, na população em geral, a imagem da Aids como uma doença em algumas situações próxima, em outras distante.

Todos os entrevistados – homens e mulheres – que se definiram como heterossexuais afirmaram que, antes do diagnóstico, só ouviam falar da Aids nas manchetes de jornais e nos noticiários da televisão, quando ficavam chocados com o aspecto físico apresentado por aqueles que já haviam desenvolvido a doença. Entretanto, a preocupação com a doença era logo substituída por problemas cotidianos mais imediatos. A certeza de que a epidemia era uma ameaça apenas para aqueles que ousaram subverter os comportamentos considerados padrões tranqüilizava a todos os que não se viam enquadrados nesse perfil. Alexandre do Valle, heterossexual soronegativo, ilustra bem essa lógica, ao lembrar como se sentia em relação à Aids antes de trabalhar no GPV: "Mas, eu nem posso dizer que eu me sentia imune, porque eu não pensava nisso o suficiente para dizer: 'Ah, eu sou imune a isso'. Era uma coisa, eu transava... com mulher... então, isso não era uma questão para mim.

Esse comportamento entre heterossexuais masculinos foi, às vezes, reforçado pela certeza de que "se sabe com quem se anda". A garantia estaria numa certa capacidade seletiva, numa habilidade na escolha das parceiras. João, heterossexual, ao ser perguntado sobre a forma como havia se contaminado, afirmou não ter nenhuma idéia:

Porque eu era... – eu era, não, ainda sou – eu gosto, assim, de amizades, de reunir pessoas ... Então, eu sempre tive um grupo muito fechado ... Eu sou, eu sou muito seletivo. (grifo meu)

A mesma percepção da doença aparece também na fala de Mônica, contaminada numa relação heterossexual:

É, existe uma negação muito grande por trás de tudo o que representa a Aids. Uma associação à vida promíscua: "Ah! Que é isso? Quem tem Aids é homossexual que vai transar em saunas...", ou então, é... mulheres que têm vida... digamos assim, irregular, livre, irregular moderninha, entendeu?

No que se refere à prevenção, mesmo quando a recusa em usar o preservativo é reconhecida como o fator que resultou na contaminação, a condição heterossexual e a opção pela monogamia, no caso das mulheres, transformam o diagnóstico num evento circunstancial. É como se apenas alguns tipos de comportamento, como as relações anônimas e freqüentes, levassem à infecção pelo vírus. Nos relacionamentos estáveis, a não utilização do preservativo não era considerada, pelo menos antes do diagnóstico, um comportamento de risco.11 11 Em pesquisa junto a mulheres de baixa renda que faziam tratamento ambulatorial num posto de saúde da cidade de Santos, em São Paulo, Martin (1995) verificou esse mesmo padrão de comportamento.

Pesquisas feitas com mulheres de baixa renda mostraram como os rígidos códigos morais que rondam a sexualidade feminina, e que fazem da ignorância e da passividade em relação à Aids um valor simbólico, reforçam a sua exposição ao risco (C. Guimarães, 1996, p. 298-9). Nesse caso, a ausência de discursos em torno da sexualidade e do sexo entre mulheres pertencentes às classes populares explicaria, em parte, a dificuldade em incluir a Aids entre as suas preocupações cotidianas. Todavia, a partir da fala de Mônica, jovem de classe média, moradora na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, podemos inferir se esse silenciamento em torno do sexo e da sexualidade é restrito às mulheres de baixa renda. Ou ainda, se a existência de certa elaboração sobre sexualidade e direitos reprodutivos garante a adoção de práticas de sexo seguro (Heilborn, 1999, p. 55-6):

Porque é uma situação diferente: eu peguei Aids... por uma circunstância... eu não procurei exatamente, eu acho que ninguém procura conscientemente a Aids. Mas, por atos meus... Por não ter usado a camisinha por qualquer circunstância, por ter acreditado que eu conhecia os meus parceiros... (Mônica)

Vários trabalhos já apontaram a tendência em diferenciar o risco de contaminação a partir do status moral de cada mulher. Nesses casos, apenas as prostitutas e as mulheres 'fáceis' estariam sujeitas ao vírus ou mereceriam estar contaminadas (Knauth, 1997; Vermelho et al., 1999). Essa tendência assumiu expressão radical em uma passagem da entrevista de Maria. Tendo trabalhado como profissional do sexo por alguns anos, Maria descobriu-se contaminada mediante o diagnóstico de seu terceiro filho, anos depois de abandonar a 'pista'.12 12 'Pista' é a forma como as profissionais do sexo se referem aos pontos de prostituição localizados nas ruas. Logo depois, descobriu que a sua filha de cinco anos também era portadora do vírus. Ao longo da entrevista, fez questão de ressaltar que, por seu comportamento, sabia ter procurado se contaminar com o vírus da Aids. No entanto, quando abordada sobre sua percepção do risco, Maria fez uma clara distinção entre a época em que vivia da prostituição – quando, ela ressalta, estaria em risco – e depois, quando virou uma "senhora honesta", ao ir morar com o pai de sua filha. Ao seu modo de ver, daquele momento em diante seria impossível contrair a doença. Recordando o momento do diagnóstico, ela nos conta que chegou a questionar o médico, afirmando sua surpresa com o que, aos seus olhos, parecia um resultado impossível: "Olha, mas eu tenho um marido só. Não existe possibilidade de eu ter essa doença". Segundo ela, sua reação naquele momento respaldou-se na mídia, que associava a Aids aos grupos de risco: "Porque na época, na televisão, o que se comentava era que só prostituta e viado pegavam ... Então, eu era uma mulher casada, tinha marido e três filhos".

Todos os entrevistados apontaram os espaços de convivência oferecidos pela instituição como fundamentais para o redimensionamento de valores associados à sexualidade. Entretanto, sabemos que ao interagir com novos contextos socioculturais, os indivíduos trazem um acúmulo de vivências em mundos distintos que, ao se interpenetrarem, ganham a marca singular de cada um. Isso explica por que, mesmo sob a influência de novas experiências, seus discursos se mantêm entrecortados, simultaneamente, por rupturas e permanências de valores e códigos culturais apreendidos ao longo da vida (Vaitsman, 1997).

Pelo que se pôde perceber, as identidades de gênero de todos os entrevistados foram conformadas em contextos sociais conservadores e silenciosos no que se refere à sexualidade. Joana, professora de história, teve a confirmação de seu diagnóstico em 1994, aos 58 anos de idade. Aquele período, considerado a "segunda fase de sua vida", fora marcado pelo divórcio e pelo início de uma vida sexual mais livre, conquistada após anos de um casamento infeliz. Intelectualizada, passou por anos de terapia, em que buscava delinear sua individualidade e construir valores mais compatíveis com a vida que desejava levar. Durante a entrevista, Joana recordou os conflitos em que viveu, desde a infância, até romper – parcialmente, como ressalta – com os valores nos quais foi educada:

O conflito era dentro de mim. Eu fui uma pessoa muito respeitável ... fora essas coisinhas de namorico e... de fazer algumas coisinhas na escola, eu nunca cometi nenhum desvario, nenhuma coisa que... a sociedade pudesse condenar, digamos assim, a sociedade lá onde eu vivia, a minha família e tudo, entendeu? Não tinha o quê. A contestação era assim muito dentro de mim, uma coisa de revolta, por que eu tenho que fazer isso? Por que ao invés disso, eu não faço isso? Era muito forte, digamos assim, a educação que eu tive ... eu terminava me submetendo.

Deste modo, chegar a certa inversão não garante que o modelo considerado padrão tenha a sua legitimidade efetivamente questionada. Márcia lembra sua infância no subúrbio do Rio de Janeiro, quando mantinha um comportamento "fora dos padrões". Sua forte identificação com o que considerou próprio do mundo masculino gerava conflitos e fazia que não fosse bem vista pela família. No entanto, a sua preferência pela companhia de homens vem matizada por expectativas bastante tradicionais com relação ao comportamento masculino. Em sua fala os homens são, por excelência, os protetores. E é com base nesse tipo de atributo associado à masculinidade que ela justifica sua escolha: "Então eu tinha muitos amigos homens, eu estava sempre no meio deles, mas entre eles mesmo não tinha nada, eram meus amigos mesmo, cuidavam de mim".

Já os homens que não se enquadram no modelo viril associado à condição masculina experimentam situações de grande sofrimento. Mais do que ter desejo sexual por uma mulher, os homens têm que apresentar certos desempenhos – práticas, gostos, valores –, verdadeiros rituais que comprovem, para ele e para os seus pares, a sua masculinidade. Alexandre do Valle, coordenador de projetos do GPV, lembra dos sofrimentos vivenciados na adolescência por conta de seu estilo de vida e de seu aspecto físico, que o excluíam do "padrão do macho brasileiro".

E isso era uma questão para mim, quando eu era adolescente. E era uma questão de bastante sofrimento, também. Porque, embora não tivesse a coisa do desejo ... primeiro que eu nunca fui, exatamente, garotinho padrão para absolutamente nada ... Eu não sou, exatamente, o macho brasileiro. Eu detesto jogar futebol. Odeio, com todas as minhas forças. Não era nenhum garanhão, na época de adolescência, tive até uma iniciação sexual, relativamente tardia ... O viadinho da turma, não sei o quê, várias vezes era eu.

Terto Jr. (1997) chama atenção para a complexidade da cultura sexual brasileira, que abre espaços para que os homens tenham relações homoeróticas sem que tal prática resulte em discriminações sociais. Para o autor, essa relativa tolerância faz da homossexualidade algo previsível na vida dos homens sem que, com isso, eles sejam questionados em sua identidade sexual. Ao contrário de outras culturas, na sociedade brasileira é o modelo heterossexual/hierárquico, organizado em torno dos papéis ativo/passivo e homem/mulher, que molda, grosso modo, a construção e a percepção da homossexualidade (Green, 2000, p. 27-9). Apesar das conquistas alcançadas pelas políticas de afirmação de identidade, que garantiram visibilidade a outros padrões de relacionamentos homossexuais, como os parametrizados por princípios de igualdade, a grande maioria da população brasileira continua enxergando o homossexual como aquela figura afeminada, que deseja ser mulher. Lúcia, ao explicar os motivos que permitiram a convivência entre as mulheres e os homossexuais masculinos no GPV, afirmou: "A gente se acostuma ... e aí viramos todos mulheres. Porque todo gay tem um lado muito mulher. Então virou tudo mulher e todo mundo se entende".

Dayse Agra, ao lembrar de sua primeira visita ao GPV, também fala de suas impressões sobre a homossexualidade masculina:

Aí, veio um rapaz me atender ... e eu já também tinha discriminação. Esperava um homossexual me atender e era mesmo um homossexual. Mas um homossexual parecido com o Herbert Daniel, vestido normalmente, sem desmunhecar, como eu achava que seria... (grifo meu).

Mesmo entre os homossexuais, esta tendência ainda não foi completamente superada. Eduardo, que desde o início dos anos 90 está envolvido na luta pela inclusão social dos homossexuais, se considera um defensor da identidade homossexual. Entretanto, ao traçar as diferenças entre os homossexuais e os heterossexuais masculinos, adotou uma definição generalizante das experiências homossexuais, além de ter reforçado as representações que vêem a homossexualidade a partir de estereótipos associados ao universo feminino:

Eu acho que o gay é uma pessoa de uma sensibilidade para determinadas coisas que o homem, dessa cultura heterossexual, nunca liga. Para ele é despercebido ... Por exemplo: é difícil você ver num cara heterossexual assim um certo detalhismo ou, às vezes, uma identificação com essa coisa da cultura e de artes ... Detalhismo na vida, sabe? Decorar casa, arrumar a irmã que vai se casar. Porra, qual é o cara heterossexual que vai ter todo cuidado com a irmã que vai se casar? E eu tive. E eu sou assim, com a minha família. (grifos meus)

Quando o assunto são os homens, é notória a forma como a percepção do comportamento masculino é expressa em alguns depoimentos. Mesmo com relação à homossexualidade, o que aparece como mais importante nas expectativas de algumas mulheres é a manutenção de um conjunto de atributos 'másculos', por excelência. Sensível a tais características da cultura brasileira, Green (2000, p. 26) destacou as contradições que tais representações ocultam. Mesmo considerando a forma como figuras femininas e afeminadas como Clóvis Bornay, Clodovil, Rogéria e Roberta Close são aceitas, sem restrições, nos círculos da alta sociedade brasileira, o autor mostra como essa 'tolerância' é relativa. Ao personificarem o oposto da virilidade esperada dos homens brasileiros, essas pessoas servem como contrastes que, 'apesar de engraçados', não devem ser imitados. Nesse sentido, mais do que desconcertar, essa aceitação serve para reforçar, ainda mais, o sistema de gêneros, rigidamente construído. Rosa, mãe de um soropositivo, sugere algo próximo dessa visão, ao falar sobre a homossexualidade do filho:

eu queria que ele fosse másculo, pronto! Em parte, Deus me atendeu porque você viu que ele tem toda postura máscula, mas a sexualidade dele não é masculina. (grifos meus)

As possíveis explicações quanto à origem da homossexualidade também geram inquietações. Se, atualmente, os discursos mais politizados em torno da questão apontam a homossexualidade como um estilo de vida, ou mesmo uma opção individual e legítima, algumas falas apresentam percepções atravessadas por uma perspectiva essencialista, que associa a homossexualidade a fatores biológicos e fisiológicos invariáveis (Terto Jr., 1997, p. 8-27).

Durante as entrevistas, nos momentos de maior emoção, o que surgia eram sentimentos e valores apreendidos de discursos que, ao longo de anos, trataram a homossexualidade ora como doença ora como caso de polícia. O advento da Aids e as conquistas alcançadas pela mobilização política dos homossexuais retiraram, de forma inquestionável, a homossexualidade da completa clandestinidade e garantiram-lhe status político. Contudo, mesmo entre aqueles que se dizem "simpatizantes da causa", ainda é difícil erradicar completamente os resquícios de uma concepção da homossexualidade construída pela medicina social e legal. A permanência de uma divisão binária da realidade, que divide os sujeitos em homens e mulheres biologicamente determinados, mantém vivas as representações da homossexualidade como um desvio, cuja origem desperta, há anos, grande interesse da comunidade médico-científica (Terto Jr., 1997, p. 8-27).

Invariavelmente, a explicação sobre a origem da homossexualidade masculina recai sobre a 'genética' ou a educação dada pelos pais. Rosa ressalta a cumplicidade existente entre ela e seu filho, homossexual e soropositivo. Contudo, não consegue escapar do sofrimento causado pela angústia em querer saber o porquê de sua homossexualidade:

Eu já tinha me feito mil perguntas, achando que eu errei em alguma coisa. Eu tenho consciência de que o erro não foi meu. Mas, achei que o pai dele falhou em muitas coisas: em falta de atenção, em nunca ter conversado, assim, com ele sobre futebol, esporte de um modo geral... Eu morava próximo ao estádio do Maracanã, ele ia, obrigatoriamente, a todos os jogos, de todos os times. Nunca levou o filho, nem à chegada de Papai Noel ... Porque tem muita coisa, também, hormonal, genética, muita coisa que implica, até do lado da espiritualidade, tem explicação para isso. Mas, eu sempre achava – onde eu errei? (grifos meus)

O sinal de que a reivindicação de um novo status para a homossexualidade ainda não garantiu a superação do sentimento de marginalidade social entre os homossexuais fica claro quando o assunto é a família. Os três homossexuais masculinos entrevistados optaram por morar sozinhos, em bairros da zona sul do Rio, área da cidade onde, segundo eles, seria possível levar uma vida mais livre das pressões sociais. Nenhum deles costuma partilhar com os familiares, em detalhes, a vivência de um relacionamento homossexual.13 13 Pollak (1990), em pesquisa feita com os homossexuais franceses, apontou a fragilidade dos laços familiares e o cotidiano solitário da maioria dos homossexuais que participaram de sua pesquisa, no início dos anos 80. Mesmo com o conhecimento da família, a decisão de silenciar sobre o assunto é predominante e, algumas vezes, parte do próprio homossexual. A solidão, mesmo vivenciada em níveis variados, parece acompanhar a trajetória de todos eles:

Mas eu sei que eles sabem que eu sou gay. Uma vez a mãe ainda tentou conversar, mas eu resolvi cortar o assunto porque... pai e mãe nenhum cria filho pra ser gay. Eu sei que isso magoa eles. Uma coisa é eles saberem que eu sou gay, outra coisa é eles ouvirem isso da minha boca. Então eu acho que fica muito... pesado. (grifos meus)

No que se refere às mulheres, os roteiros de gêneros entrecortam os seus modos de vida de tal modo que acabam por orientar e dar sentido a várias esferas da vida social, como o trabalho, a vida escolar e a profissionalização. Nos domínios da intimidade, as representações e a vivência de um relacionamento heterossexual também são mediadas por expectativas de comportamento diferenciadas para homens e mulheres. Enquanto as mulheres, por seu 'intrínseco instinto maternal', cuidariam de seus parceiros e dariam a eles 'amor' e 'carinho', estes, em seu 'egoísmo', só se preocupariam com o sexo, com o momento, sem manifestar interesse em aprofundar o envolvimento (Leal & Boff, 1996). Quando questionada sobre o seu relacionamento extraconjugal, Márcia nos deu o seguinte depoimento:

Por exemplo, tinha muito carinho por ele... Por exemplo, embora a gente transasse... isso não era importante pra mim, isso era uma conseqüência. Eu acho que era mais assim materno... eu gostava de saber que ele estava bem ... sabe? Aquelas coisas de mulher. Eu queria um todo, ele nunca se importou muito com a minha parte, ele não queria saber de nada da minha vida ... Ele só queria saber daquele momento em que a gente estava junto. Naquele momento a gente ficava junto, a gente se beijava, se abraçava, transava, não sei o quê, conversava e tal, mas nada sobre a minha vida, sobre a [Márcia]. Ele falava muito dele ... quer dizer, a maneira de ele gostar talvez fosse essa ou aquele egoísmo que o homem tem ... E eu sempre muito preocupada com ele. (grifos meus)

Quando o assunto é casamento, as opiniões e as vivências são bastante variadas entre as mulheres.14 14 Todos os entrevistados ficaram à vontade para falar, ou não, sobre suas experiências conjugais. Entretanto, nenhum homem manifestou interesse em fazê-lo. No tocante à vida afetiva e sexual, apenas um homossexual masculino mencionou, com mais detalhes, seu desejo de vivenciar um relacionamento mais estável. Quanto às mulheres, todas, inclusive as solteiras, conferiram destaque à experiência conjugal, seja ela oficial ou não. Essas variações estão diretamente relacionadas às diferenças de geração.15 15 As três mulheres com mais de sessenta anos fazem parte da classe média carioca. Entretanto, para entendermos algumas particularidades nas suas opções com relação à vida conjugal levamos em conta itens como escolaridade, formação profissional e nível de independência financeira de cada uma delas. Entre as mais velhas, a convivência com maridos autoritários e a conseqüente verticalização da vida a dois foi lembrada como algo que fez parte de uma época. Mesmo com acesso aos espaços públicos – apenas uma não trabalhava fora – todas temiam as retaliações sociais em decorrência de um possível divórcio. No caso de Dayse, que parou de trabalhar após o nascimento do primeiro filho, a situação era agravada pela completa dependência financeira do marido. Em seu caso, o silêncio era o único recurso disponível, mesmo nos momentos de desacordo. Possivelmente, a forma como definiu a sua geração confirme a situação de seu próprio casamento:

A minha geração ... ficava calada e ela sabia que o marido dava voltinha lá fora. Ela ficava quieta, por quê? Porque mulher separada era feio. Como é que ela ia viver, ela ia trabalhar fora? Ela nunca trabalhou, a maioria não trabalhava fora. Como é que ela ia trabalhar fora? Ela tinha medo, ela tinha que ficar quietinha, saber às vezes que ele tinha filhos lá fora. E ela ficava quietinha.

Já sob a influência dos discursos e práticas que reivindicavam a emancipação feminina, as mais jovens demonstraram um claro questionamento quanto a certas atribuições tradicionalmente associadas às mulheres. No entanto, a coerência e a profundidade desses questionamentos apresentaram significativas variações. As falas de Maria e Mônica, com 32 e 33 anos, respectivamente, são ilustrativas do que afirmo. Ao comentar as dificuldades em levar os homens a usarem camisinha em seus relacionamentos mais estáveis, Mônica, apontou para as limitações das próprias mulheres ao se desvencilharem das responsabilidades conjugais atribuídas a elas, como o controle da reprodução:

Também eu acho que o homem tende a jogar um pouco, de certa forma, a responsabilidade para a mulher e a mulher, também, tem o problema de assumir essa... ela busca assumir essa responsabilidade. Antes da Aids era a gravidez. Então, quando surgiu a pílula: "Não! Você é que toma". – o homem não podia se prevenir – "Ah, você é que se preocupe com isso".

Maria, inicialmente, parece concordar com Mônica: "é difícil você ver um cara fazer vasectomia [se] a mulher não pode tomar remédio ... é difícil você ver um cara usar camisinha para prevenir a mulher, são poucos".

Todavia, ao refletir sobre a infidelidade masculina a partir de sua experiência no mundo da prostituição, Maria ressaltou que a harmonia conjugal é uma responsabilidade da esposa. Entre os seus clientes, homens casados em sua maioria, quase todos buscavam os seus serviços em função da monotonia conjugal. Em sua opinião, o comportamento masculino, tomado como natural, não deveria ser questionado.16 16 É vasta a bibliografia que discute as representações que naturalizam o comportamento sexual masculino entre as mulheres de baixa renda (Vermelho et al., 1999; Leal & Boff, 1996). Porém, essa condescendência não se aplicaria às mulheres, a quem caberia a responsabilidade pela fidelidade do parceiro:

muitas vezes, para garantir [que] o parceiro não tenha Aids e nem ela também ... tem que salgar um pouco esse casamento, entendeu? Não vai fazer tudo em cima da cama com o homem, mas faça uma graça um pouquinho a mais ... dá-se um jeito, para segurar o marido dentro de casa. Porque homem nenhum, hoje em dia, vive nessa história de papai e mamãe. Se a mulher somente deitar na cama com ele para fazer papai-e-mamãe, ele vai arrumar uma na rua, é certo! (grifos meus)

É interessante a contradição em sua fala, pois se há uma clara defesa das práticas sexuais tidas como mais liberais, elas são tomadas como uma forma de a mulher satisfazer os desejos do marido e, com isso, "prendê-lo em casa". Em sua opinião, não está em questão o desejo sexual feminino, posto que, como confirma C. Guimarães (1996), a experiência sexual entre as mulheres de baixa renda não é estruturada em torno de um discurso autônomo, nem tampouco é percebida como um direito. Dentro de perspectivas como a de Maria, a sexualidade feminina estaria inserida no modelo de hierarquia e reciprocidade do meio familiar.

Se não há consenso quanto à legitimidade do casamento, a maternidade não apresenta alteração em sua sacralidade. Entre as mulheres, apenas Paula não mencionou a questão. As demais foram unânimes em ressaltar a importância da maternidade em suas vidas. Mônica, ao falar de sua vontade de ser mãe e ao defender o direito de as mulheres soropositivas acalentarem esse desejo, define a maternidade como evento 'básico' entre as mulheres:

Eu acho que ninguém nasceu para ser mãe, mas eu acho que é um desejo tão natural, tão básico, que eu não tenho o direito de questionar uma mulher... pelo fato de ela querer realizar, mesmo ela sendo soropositiva. (grifo meu)

A despeito da lógica individualista, que orientou a constituição dos discursos das lideranças do GPV, os membros entrevistados conferiram a essas propostas contornos bastante peculiares e diversificados entre si. Se o efeito reconfortante proporcionado pelos espaços de convivência da ONG é inquestionável, a elaboração individual dos debates travados naquele espaço sobre sexualidade, homossexualidade, gênero e Aids resultaram em construções singulares.

No entanto, para além das diferenças, foram as partilhas reveladas pelos depoimentos que mais chamaram atenção. Como já reiterou Velho (1987), é impossível entender as formas como as noções de individualidade e subjetividade são moldadas no Brasil, sem considerarmos o modelo político-econômico que sustentou o abrangente sistema de hierarquias socioculturais no qual se estrutura a nossa sociedade. Nesse sentido, mesmo sob a influência de lógicas culturais múltiplas e em permanente mutação, os depoimentos apontaram a existência de universos comuns de valores e concepções que, moldados pelos princípios de hierarquia e reciprocidade, não apenas entrecortam toda a sociedade, como estão em contínua atualização (Vaitsman, 1997). Neste sentido, todos os entrevistados, mesmo em contato com discursos mais críticos e com formas alternativas de vivenciar a sexualidade e as diferenças de gênero, refletem a tensão, ainda longe de ser superada, entre os paradigmas tradicional e moderno, bem como suas expressões socioculturais: hierarquia/igualdade, reciprocidade/ individualismo.

NOTAS

OS ENTREVISTADOS

As entrevistas foram realizadas em diferentes momentos, mas todas as informações foram atualizadas em 2001. Vários nomes são fictícios.

Alexandre do Valle: psicólogo, 30 anos, casado, morador de Laranjeiras (Zona Sul carioca) na época da entrevista (atualmente, mora no exterior). Foi coordenador de projetos do Grupo Pela Vidda até 2001. Soronegativo, ingressou no Grupo em 1992.

Dayse Agra: dona-de-casa, viúva, moradora do Flamengo (Zona Sul carioca), perdeu um filho em decorrência da Aids, em 1987. Ingressou no Grupo em 1989. Uma das fundadoras do Grupo de Mulheres, tornou-se sua coordenadora em 1991.

Diogo: recebeu o diagnóstico ainda na adolescência. Tem 28 anos, é solteiro, tendo concluído o ensino médio. Não apresentou endereço fixo na época da entrevista. Definiu-se como bissexual. Em 1991 teve o primeiro contato com o Grupo Pela Vidda, onde ingressou efetivamente em 1994. Participou de diferentes atividades voluntárias, chegando a coordenar o Dique-Aids Pela Vidda. Atualmente, está afastado da instituição.

Eduardo: funcionário público, solteiro, 35 anos, morador de Copacabana (Zona Sul carioca), cursou a faculdade de biologia e de arquivologia. Soronegativo, definiu-se como homossexual. Entrou em contato com o Grupo em 1995, sendo atualmente coordenador do Grupo Pela Vidda de Homens, criado em 1999.

Guilherme: sargento reformado da marinha, solteiro, morador de Copacabana (Zona Sul carioca), definiu-se como homossexual. Descobriu ser soropositivo em 1990. Formado em contabilidade, foi, durante alguns anos, tesoureiro do Pela Vidda, onde ingressou em 1995.

Joana: professora de História aposentada, divorciada, 66 anos, moradora da Tijuca (Zona Norte da cidade). Recebeu o diagnóstico em 1994 e ingressou no Pela Vidda logo em seguida, onde teve, inicialmente, grande participação.

João: marinheiro reformado, solteiro, 35 anos, morador de Santa Teresa (Centro da cidade). Definiu-se como heterossexual. Obteve o diagnóstico em 1990, tendo ingressado no Pela Vidda na segunda metade dos anos 90.

Lúcia: dona-de-casa, solteira, 36 anos, segundo grau incompleto, moradora de Santa Teresa (Centro da cidade), obteve o diagnóstico em 1987, dois anos após a morte do marido. Aposentada em decorrência da Aids, ingressou no Pela Vidda em 1989, sendo uma das fundadoras do Grupo de Mulheres.

Márcia: 48 anos, completou o ensino médio. Moradora da Barra da Tijuca (Zona Oeste). Divorciada, obteve o diagnóstico em 1995. Ingressou no início de 1998 no Pela Vidda, onde participa ativamente de várias atividades oferecidas pela instituição.

Maria: 32 anos, solteira, cursou até a quarta série primária. Moradora do município de São Gonçalo (Grande Rio). Atuou, durante alguns anos, como profissional do sexo. Soube de sua contaminação em 1995, através do diagnóstico de seu terceiro filho, que viria a falecer poucos meses depois. Ingressou no Pela Vidda em 1996, tendo sua participação restrita ao Grupo de Mulheres. Sem emprego, conta com o auxílio de uma cesta básica e com a ajuda de alguns amigos.

Mônica: 32 anos, solteira, segundo grau completo, moradora do Largo do Machado (Zona Sul carioca). Descobriu ser soropositiva em 1997, tendo ingressado no Pela Vidda logo em seguida. Além do Grupo de Mulheres, participa ativamente de outras atividades oferecidas pela instituição.

Paula: assistente social aposentada, casada, soronegativa, moradora do Flamengo (Zona Sul carioca), ingressou no Pela Vidda em 1996. Foi coordenadora do projeto "Viva Voz". Atualmente, exerce o cargo de diretora financeira da instituição.

Rosa: 66 anos, viúva, professora primária aposentada, moradora da Tijuca (Zona Norte da cidade), ingressou no Pela Vidda em 1997, junto com o filho soropositivo. Participou ativamente das reuniões do Grupo de Mulheres. Atualmente, está afastada da instituição.

Recebido para publicação em abril de 2004.

Aprovado para publicação em março de 2005.

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  • 1
    A partir desse trecho, a referência ao Grupo Pela Vidda será feita pela sigla GPV.
  • 2
    Essas mudança na composição do GPV é um reflexo direto das transformações verificadas no próprio perfil epidemiológico da Aids, que passa a se disseminar entre heterossexuais oriundos dos segmentos mais populares da sociedade.
  • 3
    Em minha dissertação de Mestrado, trabalho mais detidamente os conflitos surgidos a partir das mudanças verificadas no perfil dos voluntários do Grupo Pela Vidda (Zaquieu, 2002).
  • 4
    Das entrevistas utilizadas, dez foram feitas originalmente para o projeto de pesquisa "Da indiferença do poder a uma vida diferente: ONGs e Aids no Brasil", coordenado pela pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento, no Departamento de Pesquisa da COC/Fiocruz.
  • 5
    Com exceção de Dayse Agra e Alexandre do Valle, os demais nomes utilizados ao longo do artigo são fictícios.
  • 6
    Dois voluntários afirmaram ter passado algum tempo participando de todas as atividades oferecidas pela instituição como forma de esconder da família o afastamento compulsório do trabalho, em decorrência do HIV.
  • 7
    Apesar de algumas conquistas estarem consolidadas há anos – como direito ao passe-livre nos meios de transporte urbano, distribuição gratuita da medicação e criação de centros de referência para o tratamento do HIV/Aids –, a maioria dos voluntários chegam ao GPV sem nenhuma informação sobre os seus direitos.
  • 8
    Tal como Pollak ressaltou em pesquisa feita na década de 1980 com homossexuais franceses (1990, p. 108-11), observamos entre os entrevistados uma estreita relação entre as diferenças de classe e as formas como conviviam com a doença. Em suas narrativas ficou evidente que a posse de recursos materiais, o acesso aos médicos mais conceituados e a certeza de poder manter o tratamento em caso de suspensão da distribuição gratuita, mesmo que só por algum tempo, ajudaram a atenuar o peso dos desafios e das incertezas trazidas pela infecção.
  • 9
    Nessa perspectiva, podemos citar trabalhos baseados na análise de Louis Dumond, para quem os princípios hierárquicos e igualitários seriam os parâmetros culturais diferenciadores entre as sociedades modernas e não-modernas (Velho, 1987, 1999).
  • 10
    Dayse Agra, coordenadora do Grupo de Mulheres, afirmou que, entre as mulheres soropositivas que passaram por suas reuniões, quase todas responsabilizaram o parceiro pela infecção. Estas mulheres eram, normalmente, as que mais tempo levavam para reconstruir suas vidas. Em sua dissertação de mestrado, Kátia Guimarães (1996) mostrou como a dificuldade de muitas mulheres em elaborar a sua condição sorológica estava diretamente associada a certa concepção de feminilidade, que investe as mulheres com um suposto
    status de pureza, passividade e fragilidade. Tomando como base as suas reflexões, não estou me referindo a uma banalização ou mesmo ausência de sofrimento diante da contaminação, mas, sim, a uma maior capacidade, entre as mulheres que apresentam certa autonomia nos modos de gerir sua sexualidade, de conferir inteligibilidade à contaminação.
  • 11
    Em pesquisa junto a mulheres de baixa renda que faziam tratamento ambulatorial num posto de saúde da cidade de Santos, em São Paulo, Martin (1995) verificou esse mesmo padrão de comportamento.
  • 12
    'Pista' é a forma como as profissionais do sexo se referem aos pontos de prostituição localizados nas ruas.
  • 13
    Pollak (1990), em pesquisa feita com os homossexuais franceses, apontou a fragilidade dos laços familiares e o cotidiano solitário da maioria dos homossexuais que participaram de sua pesquisa, no início dos anos 80.
  • 14
    Todos os entrevistados ficaram à vontade para falar, ou não, sobre suas experiências conjugais. Entretanto, nenhum homem manifestou interesse em fazê-lo. No tocante à vida afetiva e sexual, apenas um homossexual masculino mencionou, com mais detalhes, seu desejo de vivenciar um relacionamento mais estável. Quanto às mulheres, todas, inclusive as solteiras, conferiram destaque à experiência conjugal, seja ela oficial ou não.
  • 15
    As três mulheres com mais de sessenta anos fazem parte da classe média carioca. Entretanto, para entendermos algumas particularidades nas suas opções com relação à vida conjugal levamos em conta itens como escolaridade, formação profissional e nível de independência financeira de cada uma delas.
  • 16
    É vasta a bibliografia que discute as representações que naturalizam o comportamento sexual masculino entre as mulheres de baixa renda (Vermelho et al., 1999; Leal & Boff, 1996).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Abr 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Aceito
      Mar 2005
    • Recebido
      Abr 2004
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