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Eugenia no calor da hora

Eugenics in the heat of the moment

LIVROS & REDES

Eugenia no calor da hora

Eugenics in the heat of the moment

Mariza Corrêa

Antropóloga, pesquisadora do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp – Universidade Estadual de Campinas Cidade Universitária Zeferino Vaz – Distrito Barão Geraldo Caixa Postal 6110 Campinas – SP correa.mariza@uol.com.br

O hibridismo, noção de volta à moda nos estudos culturais contem porâneos, tem uma longa história de disputas pela sua rejeição ou aceitação nas terras sul-americanas: o mulato, ou mais apropriadamente, a mulata, e o mestizo são tanto elogiados como expressões nacionais típicas quanto execrados como prova de degeneração da raça colonizadora em contato com os colonizados. Nesse vaivém histórico entre o valor positivo e o negativo de produtos humanos híbridos, certo acordo consensual sobre a natureza híbrida de nossa própria produção teórica parece ter se depositado no terreno do embate.

É nesse terreno escorregadio que Nancy Stepan situa os personagens de seu livro recém-publicado: historiando a trajetória da eugenia através das associações, principalmente de médicos, na Argentina, no Brasil e no México, no período que se estende de 1918 a 1940, ela vai delineando um cenário em que nem sempre se distingue a eugenia do sanitarismo nas propostas desses médicos. Apontando para problemas sociais comuns a essa região – altas taxas de mortalidade infantil, alcoolismo e altas taxas de incidência de doenças venéreas, por exemplo – a autora mostra a importância do lamarckismo (a "hereditariedade de características adquiridas") como lastro teórico da atuação dos médicos latino-americanos, diferentemente do que ocorria na Europa e nos Estados Unidos, onde a influência do trabalho de Mendel, e sua ênfase na forte estabilidade dos caracteres herdados, foi dominante. Mostra também que, como a preocupação com a constituição da nação era um tema comum aos três países e a 'questão racial' – fosse da relação entre brancos e negros, entre brancos e indígenas, ou entre imigrantes e nacionais – era parte integrante dessa preocupação, a insistência na alteração 'social' de características herdadas era crucial para as conseqüências políticas a serem tiradas das análises científicas. Ao contrário dos seguidores de Lamarck, os "eugenistas enfatizavam que o controle da reprodução, antes que a reforma do ambiente social, seria a conclusão natural a ser derivada da nova ciência da hereditariedade" (p. 76). Como na América Latina, graças à adesão aos princípios lamarckianos, os médicos prestavam muita atenção ao contexto social das doenças, o resultado foi um produto científico híbrido – eugenistas com um perfil 'sociológico'. Ainda que este breve resumo não faça justiça ao desenvolvimento que a autora lhe dá no livro, permite contextualizar os comentários que faço a seguir, propondo que, por deixar de lado a importância crescente dos sanitaristas entre os médicos na América Latina, e por atribuir pouco peso às decisões políticas tomadas pelos eugenistas em dois congressos pan-americanos, Stepan deixa de matizar a atuação dos eugenistas, oscilando constantemente entre dar mais espaço às razões práticas e às razões discursivas.

O livro foi originalmente publicado em 1991. A menção à data inicial de publicação é importante para o leitor brasileiro que certamente estranhará tantas e tão freqüentes alusões ao "desinteresse ... pela história da vida cultural e intelectual" (p. 10) da América Latina no campo da história das idéias – ainda que não as justifique, uma vez que quinze anos atrás já havia no mercado uma sólida produção nativa e estrangeira sobre a história da ciência nos paises que ela escolhe privilegiar em seu trabalho. Tanto como ao Brasil, aos outros dois países analisados também não se aplica a observação de que "as histórias da vida intelectual e das instituições, das profissões, da saúde pública e das mulheres latino-americanas ... são tarefas para a próxima geração de intelectuais" (p. 20). Pelo menos desde a década de 1960 se iniciou, nesses paises, um vigoroso esforço local de pesquisa dessas histórias, além da feita por pesquisadores internacionais – vejam-se, por exemplo, os levantamentos registrados no volume 15 da revista Osíris (2000), sobre a história da ciência e a questão do empreendimento colonial. Para não desfiar aqui uma lista mais longa de títulos, basta encaminhar o leitor às bibliografias constantes nos títulos publicados pela mesma, e excelente, coleção na qual sai este livro – ou nos artigos que saem nesta revista.

Dito isso, cabe observar que o tema é certamente relevante e explicar por que o livro merece do leitor que se inicia nos caminhos da história da ciência o esforço por saltar as reiteradas observações na mesma direção das aqui já mencionadas, e outras que tais, e ir adiante. Que a eugenia continua a habitar as fantasias de alguns integrantes de nossa classe dominante é exemplo o artigo publicado num jornal local no final de agosto de 2005 pelo governador de Santa Catarina, no qual ele louva o advento das pesquisas genéticas, afirmando que elas possibilitarão um "novo cenário eugênico" que se estabelecerá "pela evolução da ciência", permitindo às pessoas evitar que seus filhos nasçam "feios, deformados, deficientes ou idiotas" (ver a notícia, e as reações críticas de biólogos, na Folha de S. Paulo de 3 de setembro de 2005). Tais idéias de certa maneira expressam o senso comum subjacente às teorias eugênicas esposadas pelos médicos e analisadas por Stepan no seu livro – um dos artigos, de médico brasileiro, citado no livro ("Como evitar as proles degeneradas", p. 143) trata justamente da questão que o governador aborda.

Mas é citando o editor britânico da Eugenics Review, numa observação sobre matérias enviadas por eugenistas brasileiros, que Stepan resume o caráter mais geral da eugenia latino-americana. Diz ele: "a visão é mais sociológica do que biológica" (p. 76). De fato, é essa visão 'sociológica' que emerge de sua análise sobre o movimento eugênico nos três paises – tanto na agenda explícita da pesquisa aqui apresentada, como na sua agenda implícita. No caso da agenda explícita, há pontos importantes que já têm sido bem tematizados em outras pesquisas: a preocupação dos médicos com os 'venenos raciais' (álcool, nicotina, morfina, doenças venéreas, sífilis), por exemplo, não era apenas um discurso a serviço da elite, visando disciplinar as classes trabalhadoras. Era isso também, sem dúvida, mas expressava, ao mesmo tempo, uma realidade triste (bem expressa também na foto escolhida para a capa do livro) e com a qual esses médicos se defrontavam – e que enfrentavam como podiam, com as armas teóricas de seu tempo. Daí o freqüente deslizamento da análise entre a atuação dos eugenistas e a dos sanitaristas – ou o entrelaçamento dos discursos de ambos sobre a 'realidade nacional'. Um outro ponto que mereceria ênfase, e mais pesquisas, é o papel importante que teve a Igreja Católica na América Latina no combate à esterilização (ainda que também ao aborto) –, o que ajudou a impedir que no nosso continente fosse posta em prática uma legislação como a que vigorou nos Estados Unidos e, depois, e inspirada por ela, na Alemanha nazista, e que levou à esterilização de milhares de pessoas nos dois países.

Mas o ponto mais interessante nessa agenda explícita da pesquisa é a resistência dos eugenistas latino-americanos à tentativa norte-americana, e cubana, na Primeira Conferência Pan-Americana de Eugenia, de 1927, em Havana, de implantar um Código Pan-Americano de Eugenia, congresso no qual os delegados rejeitaram enfaticamente alguns itens – como a esterilização e a segregação racial – classificando a proposta como uma fantasia, sem nenhuma conexão com a realidade racial regional (p. 196).

Os delegados latino-americanos ao congresso

Ansiavam por estudo, educação, propaganda; queriam preservar o direito de seus respectivos países de determinar quaisquer medidas que se referissem à população, à imigração e à entrada e saída de pessoas; mas não desejavam nenhum programa tão abrangente e radical quanto o que lhes estava sendo apresentado. (p. 194)

Isto é, havia uma grande distância entre a retórica inflamada expressa nos boletins e publicações das associações latino-americanas, que pareciam muito semelhantes às propostas norte-americanas e nazistas que as seguiram, e a prática que os médicos estavam dispostos a adotar no nosso continente. No mesmo congresso, o delegado do México "sentiu-se obrigado a defender os índios da acusação de inferioridade, e a protestar contra os testes de imigração que os Estados Unidos aplicavam às crianças mexicanas" (p. 195).

A Segunda Conferência, prevista para ocorrer em 1930, só foi realizada em 1934, depois da tomada do poder pelo Nacional Socialismo na Alemanha e da promulgação das leis eugênicas de esterilização dos incapazes ou defeituosos. Nessa conferência, em Buenos Aires, o ministro argentino que abriu os trabalhos definiu a eugenia, de saída, em termos de saúde pública e saneamento – em contraste com as propostas norte-americanas que excluíam explicitamente essas questões de sua agenda.

Como na conferência anterior, desta vez de modo ainda mais decisivo, porém, os latino-americanos rejeitaram a agenda norte-americana, considerando-a inaceitável. O resultado foi o claro predomínio do ponto de vista latino – tanto sobre o que não era a eugenia, quanto sobre o que era. A ascendência da tradição latina, superando a dos Estados Unidos, sinalizou, na verdade, o fim da iniciativa de uma eugenia pan-americana. (p. 199)

A importância dessa guinada política em relação às políticas eugênicas aprovadas no âmbito de alguns estados norte-americanos certamente mereceria uma análise mais aprofundada, já que ecos desse debate provavelmente vão estar presentes nas relações entre norte-americanos e latino-americanos no período do pós-guerra, particularmente nas políticas culturais estabelecidas pelos Estados Unidos.

A menção à participação dos cubanos em ambas as conferências é curiosa já que, parte da agenda implícita da pesquisa, Cuba não é apresentada como um dos casos analisados, ainda que os médicos cubanos tenham tido um importante papel de liderança na tentativa de articulação dos eugenistas norte-americanos com os dos países latinos, na formulação de políticas eugênicas, e dada a reconhecida importância da medicina cubana na atualidade.

A questão de gênero, ainda que parte do subtítulo do livro, é tratada exclusivamente na clave da 'questão da mulher', como, por exemplo, a esterilização de mulheres no Brasil, praticada em mulheres com "distúrbios sexuais" e "síndrome de perversidade" (p. 124), que certamente mereceria maior investigação já que um dos argumentos da própria autora é que os médicos brasileiros e latino-americanos sempre se recusaram a pôr em prática a esterilização. Já a afirmação genérica de que "por causa da eugenia, gênero e raça ficaram ligados à política de identidade nacional" (p. 117) obscurece a relação tanto de um como de outra na nossa história. Por um lado, as várias pesquisas existentes sobre a história da família, no Brasil como no resto da América Latina, sistematicamente articulam a questão de gênero à definição da identidade nacional: nesse sentido, a questão da reprodução é uma questão de Estado desde a chegada dos primeiros colonizadores. Por outro, sabe-se que muito antes do advento da eugenia, no final do século XIX, já se tematizava a 'questão racial' como parte importante da definição de nação, no Brasil e em países vizinhos. Isto é, que são esses contextos históricos e políticos que conformam o uso da eugenia nesses países – e não o contrário.

Há aqui também, ainda que já explícito, um outro ponto, de uma agenda de pesquisa que mereceria ser expandida: o racismo em outra vertente, diferente da habitualmente tratada nas discussões sobre a nacionalidade na América Latina, nas quais sempre se privilegiam as relações entre brancos e negros ou brancos e indígenas. O primeiro exemplo é de um artigo sobre a legislação anti-semita alemã publicado pelo jornal de uma associação eugênica na Argentina, que mereceu uma carta de Franz Boas, criticando o estatuto científico daquela legislação (p. 157); o outro refere-se à política de cotas raciais para imigração, estabelecida durante o governo Vargas (p. 176). Tais exemplos não são explorados para se refletir sobre uma noção ampliada de racismo – ao contrário, a autora apresenta, ela mesma, um exemplo de pensamento racista ao observar que "as origens alemãs de Renato Kehl [líder dos eugenistas brasileiros] podem ter sido, em parte, responsáveis pela exacerbação de seu racismo" (p. 168).

Trata-se, em suma, de uma boa história mal contada. Para voltar ao começo, a hibridização do povo na América Latina, exaltada ou rejeitada, cede lugar aqui a um híbrido da ciência nacional – em várias vertentes regionais – com a ciência internacional, história na qual, no entanto, fica registrada uma resistência local muito forte à ingerência externa, resistência que não é analiticamente incorporada pela pesquisadora, apesar das várias pistas que ela mesma oferece sobre o tema e sobre a originalidade do pensamento eugênico latino-americano. Ao insistir em ler na história da eugenia latino-americana a oposição entre o lamarckismo e o mendelismo como determinante do campo, apesar da reiterada afirmação retórica da 'novidade' desse campo, e ao deixar de lado toda uma ênfase sanitarista (termo que engloba uma vasta gama de interesses), ou 'sociológica' muito presente na América Latina, a autora conduz a história de tal modo que o leitor fica surpreso ao deparar, no capítulo 6, com uma rejeição maciça da eugenia com o sentido que lhe foi atribuído nos Estados Unidos e na Alemanha – talvez, quem sabe, porque os países escolhidos para representar a trajetória da eugenia na América Latina já tivessem, de saída, movimentos retoricamente muito semelhantes ao americano e ao alemão. Nos Congressos mencionados, a oposição que se destaca a essa retórica é, entre outras, a do Uruguai e do Peru.

Assim, a história política desse movimento local, e de suas articulações, internas à América Latina, ainda está por ser contada e certamente tem ramificações que se estendem ao período das ditaduras militares no continente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Out 2006
  • Data do Fascículo
    Jun 2006
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