Acessibilidade / Reportar erro

Elizabeth Fee: uma historiadora em busca de audiências mais amplas

DEPOIMENTO

Elizabeth Fee: uma historiadora em busca de audiências mais amplas

Entrevista com Elizabeth Fee

Historiadora da medicina Building 38, Room 1E21 8600 Rockville Pike, Bethesda 20894 USA feee@mail.nlm.nih.gov

Concedida a

Gilberto Hochman; Jaime Benchimol; Liene Wegner; Nara Azevedo; Magali Romero Sá; Ruth B. Martins

Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil 4365 – 21040-900 Rio de Janeiro – RJ Brasil hscience@coc.fiocruz.br

RESUMO

Quais são as atividades e os temas de uma historiadora da saúde e da medicina, cujos artigos e livros são considerados referência obrigatória para os estudiosos da área? Feminismo, contracultura, educação médica, saúde global, o papel das organizações da saúde internacional, divulgação em história da saúde são alguns dos assuntos abordados por Elizabeth Fee em entrevista concedida por ocasião de sua visita a Fiocruz em abril deste ano para proferir a aula inaugural de 2006 do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz. O tema da aula foi "A Organização Mundial da Saúde e a AIDS: o que podemos aprender com a história?".

Palavras-chave: história da saúde pública; saúde global; Organização Mundial da Saúde; Biblioteca Nacional de Medicina; divulgação e informação.

Elizabeth Fee é, desde 1995, chefe da Divisão de História da Medicina da Biblioteca Nacional de Medicina, vinculada aos Institutos Nacionais de Saúde, em Bethesda, estado de Maryland, Estados Unidos. Graduada pela Universidade de Cambridge, fez seu mestrado e doutorado em história e filosofia da ciência na Universidade de Princeton. Sua tese de doutorado foi sobre ciência e gênero.

Foi professora de várias universidades, entre as quais as de Princeton e Johns Hopkins. Presidiu o Círculo Sigerist de historiadores da medicina, e é membro de inúmeras associações científicas e profissionais. Com intensa atividade editorial, Elizabeth Fee atualmente edita três diferentes seções do American Journal of Public Health ("Public Health Then and Now" e "Voices from the Past", que veiculam artigos históricos e "Images of Health"). Cuida também de exposições na Biblioteca Nacional de Medicina para divulgação da ciência, medicina e saúde.

Publicou 17 livros ou monografias, quase cinqüenta capítulos de livros e mais de 120 artigos em periódicos, além de dezenas de editoriais. É uma das lideranças da Global Health Histories, iniciativa da Organização mundial da Saúde (OMS) que torna a história protagonista no debate da saúde internacional. Referências para o campo, os livros de Elizabeth Fee denotam os temas que a preocuparam até hoje: Disease and discovery: a history of the Johns Hopkins School of Hygiene and Public Health (1987); o pioneiro AIDS: the burdens of history (com Daniel Fox, 1988, acesso livre pela CUP); A history of education in public health: health that mocks the doctor´s rules (com David Acheson, 1991); AIDS: the making of a chronic disease (com Daniel Fox, 1992); Women's health, politics and power: essays on sex/gender, medicine, and public health (com Nancy Krieger, 1994) e Making medical history: life and times of Henry E. Sigerist (com Ted Brown, 1997).

É belíssima a sua introdução à segunda edição do livro de George Rosen (1993, Uma história da saúde pública), que infelizmente não foi publicada junto com a edição brasileira. É uma inspiradora agenda de pesquisa pós-Rosen que foi muito importante em nossos primeiros cursos de história da saúde, e nos ajudou na concepção do nosso programa de pós-graduação.

Elizabeth Fee é uma intelectual permanentemente engajada na construção do diálogo da história com os problemas contemporâneos da ciência e da saúde: políticas públicas, doenças, instituições etc. A trajetória de Fee é marcada pela compreensão do compromisso do intelectual e do cientista com a sociedade em que vive e pela consciência de que o diálogo entre história e saúde é uma via de mão dupla. A produção da história e a preservação da memória são constitutivas do compromisso com a reforma social e a igualdade. São estes os tópicos e temas que aparecem na entrevista que se segue.

Com sua visão engajada da ciência e dos problemas sociais, como enxerga a relação entre o seu trabalho de historiadora e a saúde pública?

Hoje em dia escrevo principalmente para profissionais de saúde pública, no American Journal of Public Health. Publico um a dois artigos históricos por mês, alguns escritos por mim, outros em co-autoria com amigos ou somente de outras pessoas. Esta audiência tem a expectativa de ver a história em cada número mensal. Quando fizemos um levantamento entre profissionais de saúde pública para ver o que eles mais gostavam em uma revista, a história apareceu entre as sua preferências de leitura. Eles estão interessados e prestando atenção. Nós nos esforçamos para que os assuntos sejam relevantes, instigantes e para focalizar em algumas das suas preocupações. Faço isso há cerca de vinte anos e aprendi a fazer de tal forma, que os profissionais de saúde pública achem interessante. Só agora estou começando a escrever no Bulletin of the World Health Organization. Esperamos poder escrever artigos históricos do interesse de uma audiência mais global e internacional.

Como você aprendeu a fazer isso? Foi difícil? Como você conseguiu esse tipo de ligação direta com essa audiência?

O fato de eu estar lecionando em uma escola de saúde pública provavelmente me ajudou. Eu estava lecionando em um outro tipo de escola, e tinha uma bolsa para lecionar história a profissionais de saúde. A primeira escola fechou, eu dispunha de um grande financiamento, mas não tinha nenhum aluno. Fui então para a Escola de Saúde Pública, na Johns Hopkins, e perguntei se eles me deixariam lecionar para seus alunos e eles disseram que sim. No início, eu não tinha uma noção muito clara do que seria a saúde pública. Eu me lembro da primeira aula. Sentei com os alunos e perguntei: "O que é a saúde pública?" Eles me olharam e disseram: "Você é que deveria nos dizer o que é" [Risos]. Então, aprendi com eles o que é a saúde pública, o que é interessante para mim e para eles em relação à história da saúde pública. Acho que isso serviu como um bom treinamento para eu falar com profissionais da saúde pública. A Johns Hopkins tem muitos alunos internacionais. É fascinante ter como alunos o ministro da saúde ou o vice-ministro da saúde do Quênia, do Afeganistão ou da Dinamarca, todos na mesma aula. Eu me lembro de uma sobre a mulher e a saúde, na qual tivemos grandes debates sobre a poligamia, se era bom para as mulheres ou não. É muito divertido ensinar alunos internacionais.

Qual é a sua opinião sobre as virtudes da poligamia para as mulheres?

Eu não sou grande proponente da poligamia [risos].

Eles não te convenceram?

Não [mais risos]. Às vezes pode ser agradável ter outras mulheres por perto. Às vezes pode ser extremamente competitivo.

Você herdou suas visões de [Henry] Sigerist and [George] Rosen? Você falou que foi à escola e disse que queria ensinar lá. Mas havia uma tradição: sua intenção foi renovar essa tradição? Você conhecia o Rosen?

Sim, conheci Rosen. Sempre tive simpatia por teses e posições esquerdistas. Em um primeiro momento, não sabia muito bem como fazer história e incorporar ao meu ofício os meus compromissos políticos. Mas George Rosen e Henry Sigerist certamente serviram como modelos. Nós não fomos estimulados a ler esse tipo de pessoa na pós-graduação. Mas depois descobri todos esses escritos e nós criamos o Círculo Sigerist para estimular a troca de idéias entre as pessoas mais progressistas, feministas, socialistas, na história da medicina. Meu amigo Edward Morman sugeriu que ele e eu fizéssemos uma nova edição de bolso de George Rosen e nós falamos com a viúva dele, Beata Rosen e ela concordou. Depois, ela ficou bastante brava comigo, porque achou que eu havia sido crítica ao George Rosen. Ficou muito irritada. Ela o amava muito e pensava que ele era perfeito.

Você conheceu o Rosen? Qual foi a sua impressão sobre ele?

Todos os anos ele vinha à Conferência da Associação Americana de História de Medicina e sempre que alguém apresentava um trabalho ele era o primeiro a se levantar, a fazer perguntas. Às vezes, para os alunos muitos jovens ele era intimidador, porque tinha perguntas muito boas. Eu não o conheci muito bem, mas sempre o ouvi nas reuniões e todo mundo falava: "Cuidado quando ele faz uma pergunta".

Como você acha que os historiadores e os formuladores de políticas de saúde podem encontrar um terreno comum para dialogar?

Primeiramente, você tem que ter interesse em falar com os formuladores de políticas.

E eles também precisam querer falar com a gente.

Eu estou falando que de um ponto de vista histórico, você tem que querer conversar com eles. Em segundo lugar, você precisa escrever para eles, nas revistas que eles lêem. Normalmente, não lêem periódicos da área de história. Você precisa escrever para os periódicos que têm mais probabilidade de eles lerem. E no caso de vocês? Os formuladores de políticas? Qual é a revista que eles lêem? Escrevam nessas revistas ou apresentem trabalhos nas conferências deles. É um pequeno passo, mas é uma forma de dizer: "Eu quero falar com vocês. Eu quero publicar um trabalho no seu periódico". Normalmente, vocês vão ver que eles correspondem. Mas não fazem esforço para ler livros de história. Às vezes lêem... Mas, como um primeiro passo, é bom publicar nos periódicos deles.

Você precisa ter alguma coisa muito importante para dizer a eles, ou não necessariamente?

Sim, precisa dizer alguma coisa que toque nos interesses deles.

Você acha que em seu trabalho, para aproximar os formuladores de políticas e os profissionais de saúde, conseguiu manter suas ligações com seus pares? Hoje em dia, como é o seu diálogo com historiadores?

A maioria dos historiadores quer falar com outros historiadores. Uma minoria quer falar com o público em geral, às vezes com grande êxito. Uma outra minoria quer falar com pessoas da área empresarial, pois são elas que pagam os livros. Alguns querem, como nós estamos conversando, falar com profissionais de saúde. Isso seria um subgrupo. Como agora sou uma das editoras colaboradoras [contributing editors] do American Journal of Public Health, cada vez mais vou estimular mais historiadores a escreverem artigos. O interesse aumenta a cada ano.

O que significa ser editora colaboradora [contributing editor] do American Journal of Public Health?

Significa que eu lido com os artigos históricos. Sempre que um autor submete um artigo à revista, e diz "eu quero ser publicado no 'Public Health Then and Now'", ou o editor chefe acha que o artigo é histórico, manda para mim ou para Ted Brown, meu parceiro. Nós fazemos uma revisão do artigo e solicitamos um parecer – a avaliação pelos pares. Nós podemos aceitá-lo ou rejeitá-lo. Teoricamente, o editor-chefe é quem dá a última palavra, mas ela sempre aceita nossa opinião.

Quando os historiadores falam para a comunidade de saúde pública ou a comunidade médica, um dos problemas é nossa incapacidade em compreender questões biomédicas. O que você acha deste movimento de historiadores falando com essas duas comunidades? E o que você pensa sobre a sua capacidade de falar sobre medicina e sobre as questões da área?

Historiadores da medicina devem ter uma idéia razoável sobre quais são as questões da medicina contemporânea, não devem?

Não só as questões, mas também nossa compreensão sobre conhecimentos médicos, detalhes técnicos.

Você não precisa entender todos os detalhes. Esta não é a sua tarefa. Sua tarefa é ver as questões maiores, estimular os debates e diálogos. Estimular as pessoas a pensarem sobre as questões filosóficas, éticas, políticas e sociais.

Você tem alguma formação filosófica. Você acha muito importante a sua capacidade em discutir questões maiores, criar um panorama? Nem todo mundo tem essa capacidade, essa abordagem filosófica. Os historiadores tendem a ficar muito fascinados com detalhes, com aspectos muito particulares da história, momentos muito específicos. Você chamou atenção para essa tendência de fragmentar as coisas. Você não acha que isso pode criar alguns problemas?

Este tipo de trabalho pode não ser adequado a todo mundo. Existem vários tipos de trabalho que atraem personalidades e interesses diferentes. Provavelmente, filosofia seja útil, mas, também, inúmeras outras coisas são úteis. Se você conhece literatura, teatro, biologia ou música, pode trazer qualquer coisa que você conhece para enriquecer o diálogo sobre problemas de saúde. Escrevendo do ponto de vista jurídico, pode trazer o que você conhece e o que te interessa para essa tarefa.

Você acha que aquilo que escreveu continua válido em termos de agenda de pesquisa pós-Rosen? Ou acha que já mudou de alguma forma?

Há muito tempo não leio essa agenda.

Nós lemos muito.

Então vocês me dizem se é desatualizada [risos].

Qual é a agenda para os historiadores da nossa área de pesquisa? Quais são as tendências mais significativas hoje em dia na história de saúde? Quais dessas tendências estão avançando, quais estão estagnadas e talvez não tão produtivas?

A meu ver, o que eu acho muito estimulante são essas parcerias com países diferentes, como o Brasil, porque a maioria de nós tem trabalhado com um ou dois países apenas. Há trabalhos muito bons na Inglaterra; e há muitos trabalhos nos Estados Unidos que tratam apenas desses países. Há várias coisas acontecendo no mundo, mas, em parte por barreiras lingüísticas, nós não nos relacionamos com todos esses acontecimentos. No passado, nós não fizemos essa associação e, para mim, essa é a oportunidade mais estimulante, no momento. Essas comparações internacionais e o processo de aprender a partir de vários pontos de vista são muito empolgantes. Há muitas áreas a serem trabalhadas. Duas vezes por ano temos conferências na Divisão de História da Medicina da Biblioteca Nacional de Medicina. A última foi sobre histórias da saúde global. A próxima tratará de carne, medicina e saúde. Todas as questões sobre animais e seres humanos: a transmissão de doenças, a doença da vaca-louca, a gripe-aviária, o vegetarianismo, a dieta Atkins etc. e tal. Um tipo de história cultural e nutritiva, nem tanto a ver com a ciência biomédica, mas relacionada à história social da saúde. No momento, temos uma exposição sobre a história da ciência forense. É divertida e interessante – o uso da ciência em casos jurídicos, como na investigação do DNA, por exemplo. Grande parte da nossa exposição é sobre o estudo antropológico dos ossos argentinos dos desaparecidos. E a gente apresenta e discute muitas outras histórias de diferentes partes do passado e do presente. Há muitas áreas novas a serem trabalhadas. Eu, me interesso especialmente pelas relações internacionais e pela saúde internacional.

Em relação à produção no campo histórico, como você avaliaria o que foi feito até hoje? O que você ressaltaria?

Uma boa quantidade de trabalhos muito bons foi feita sobre medicina colonial e tropical. Provavelmente, a maioria dos trabalhos trata de períodos anteriores a 1950. Não há tantos trabalhos a partir de 1950 até o presente, o que é claramente um período de grande interesse, que requer mais pesquisas. Acho que há necessidade de se desenvolver pesquisas sobre períodos anteriores, da mesma forma, por que ainda há muito a ser feito. Algumas áreas receberam mais atenção do que outras. Existem trabalhos sobre a medicina colonial britânica na Índia, por exemplo, certas áreas da África... Marcos Cueto desenvolve estudos sobre a história da saúde, no Peru. Tudo isso em direção a uma compreensão mais ampla.

Como sua visão do papel do historiador influenciou sua trajetória intelectual? Você fez escolhas ou foi o acaso que te levou a certas áreas? Na aula inaugural, você mencionou suas origens, no Norte da Irlanda, e que para você havia sempre duas histórias.

Foi muito interessante quando eu era criança, porque a história que me ensinaram na escola era diferente da história que me ensinaram em casa. Meus pais tinham uma noção muito romântica da história irlandesa e, na escola, me ensinaram a história britânica. São duas histórias muito diferentes. Isso instigou meu interesse e curiosidade pela história, mas eu também gostava do que sentia ser a certeza da ciência: para mim, parecia que você poderia saber (mais), sobre o que é, de fato, a verdade na ciência. Por isso meu primeiro diploma foi em bioquímica. Trabalhei no laboratório, mas fui ficando entediada com o assunto e comecei a dar uma olhada em outros campos. Pensei em direito e economia. Eu tinha uma bolsa de estudos em ciências especialmente para mulheres e as pessoas que me deram me disseram que, em absoluto, eu não poderia fazer nem direito, nem economia ou arquitetura. O máximo que eles concordaram que eu fizesse era história ou filosofia da ciência. Eu comecei a aprender sobre esses assuntos e pensei: "Ah, isso é maravilhoso, tão interessante, empolgante". Fui nessa direção. Eu tinha lido A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn, e achei maravilhoso. Eu lhe escrevi e disse: "Gostaria de estudar com o senhor", e ele me respondeu dizendo "tá legal". Consegui uma bolsa da Fundação Fullbright e fui para a Universidade de Princeton.

Kuhn foi seu orientador?

Logo no início, mas ele se sentia pouco confortável com mulheres. Ele não tinha nenhuma aluna mulher naquela época. Isso foi na década de 1960 e Princeton só tinha homens. Só tinha um pouquinho de mulheres. Você só podia estudar lá, sendo mulher, se conseguisse provar que não tinha outra universidade onde você poderia estudar o assunto de seu interesse. Acho que lá foi o único programa que encontrei em história e filosofia da ciência no país. Por isso, eles permitiam algumas mulheres, nós éramos duas.

Que fim levou a outra?Você ainda tem contato com ela?

Sim, ela trabalha como historiadora e bibliotecária em Yale, mora em Washington. Seu nome é Toby Appel. Ela escreve livros, especialmente sobre a história da ciência biológica. Ela é de Israel e tem feito uma carreira de bastante êxito.

Como é que você conseguiu trabalhar lá? Foi difícil, muito formal, complicado de lidar?

Gostei do tempo que passei em Princeton. Os homens da graduação opunham-se à presença de mulheres. Eu tinha que passar pelo dormitório deles todos os dias pela manhã, a caminho da biblioteca, e eles pegavam um balde de água e despejavam pela janela [risos]. É verdade.

Aqui talvez a gente fosse fazer outra coisa, mas isso jamais [risos]. Você falou do Kuhn: teve muito contato com ele?

Sim, mais ou menos. Ele foi um homem brilhante.

Sua dissertação de mestrado foi sobre mulheres e a ciência, certo? Qual foi a temática principal?

Foi uma análise científica a partir da diferença entre os gêneros. O meu interesse foi pela construção social de teorias científicas em função do gênero.

Você acha que os gêneros influenciam a construção social de teorias?

Bom, se o tema for teoria sobre gêneros, é óbvio, sem dúvida [risos].

Não, mas falo de teorias em geral.

Bom, quando a discussão é sobre teorias em geral, aí é uma questão muito interessante, e tenho menos certeza sobre isso. Nós tivemos debates sobre o assunto. Certamente, em algumas áreas da ciência você vê a influência de gênero nas teorias em si como, por exemplo, na utilização da linguagem. Também acho possível fazer ciência sem ser tendencioso por influências de gênero. Em alguns campos da ciência, pelo menos, existe a possibilidade de ser objetivo e neutro nesse terreno.

Por quê você escolheu esse assunto?

Foi a época do movimento feminista. Minhas amigas do feminismo insistiam que eu escrevesse uma dissertação que fosse pertinente aos esforços e à política delas. Em um primeiro momento eu disse "não, eu não posso fazer".

Qual foi o ano de defesa da sua dissertação?

Comecei meu trabalho de pós-graduação em 1968. Então, isso deve ter sido lá pelos 1970.

Você participou desses movimentos? Protestou contra a guerra no Vietnã? Foi à rua?

Sim, sim.

E você ficou fascinada pelo movimento hippie?

Sim. Eu fui uma hippie [risos].

E como você conciliou essas questões com Thomas Kuhn?

Thomas Kuhn não foi tão conservador, mas alguns dos professores foram muito críticos de todo esse alvoroço no campus. Outros tinham certa simpatia. Tom Kuhn era um pouco distante e pensava que a gente deveria se dedicar aos estudos acadêmicos, escrever bons trabalhos e se tornar grandes historiadores.

Você aprendeu muito lá sobre como escrever trabalhos? Em retrospectiva, foi muito útil essa experiência para você?

Sim, foi muito útil, mas eu diria que para aprender a escrever, provavelmente meu treino na universidade de Cambridge foi melhor. Lá, tínhamos que escrever um trabalho por semana e, a cada semana, eu virava a noite pelo menos uma vez, escrevendo um trabalho. Os professores liam e diziam "não, isso não presta, tente outra vez". Em Cambridge o treinamento foi muito bom. Quando cheguei em Princeton, já sabia escrever bastante bem. Claro que aprendi muito mais sobre o campo da história da ciência. Fiquei chocada quando vi a longa lista de livros a serem lidos e perguntava, "mas por que nós estamos lendo tudo isso? Não é nada interessante". E eles respondiam, "mas é a literatura do campo. Você tem que ler, saber o que dizem" (risos).

Você daria esse conselho aos seus alunos, hoje em dia? Diria que eles têm que ler toda a literatura do campo, mesmo a tediosa, sem graça?

[risos] Eu permitiria um pouco mais de flexibilidade.

Mas você recomendaria que eles escrevessem um trabalho por semana?

É um treinamento muito bom.

Nós vamos adotar esse método.

Quando comecei a lecionar na State University, de Nova York, eu tinha uma classe com quatrocentos alunos. Eu dizia: "Vocês vão escrever três trabalhos, fazer uma prova no meio do semestre e uma prova final". Eu tinha um gabinete pequeno e não dava para enxergá-lo. Só tinha papel, papel, papel

Pelo menos mil e duzentos trabalhos.

Nunca mais. Você tem que ter cuidado quando você pede uma coisa.

O que você pensa do movimento feminista da atualidade, comparado com o das décadas de 1960 e 70, quando teve uma influência tão importante nos seus interesses? Quais são os ecos daquela época? Você continua feminista?

Sim, continuo. Acredito que não exista a mesma energia apaixonada que nós tivemos quando, todos os dias, estávamos descobrindo algo de novo. Foi uma época extremamente criativa, mas o feminismo continua sendo um tema importante, que mobiliza. Tivemos agora nossa última exposição na biblioteca, em que o tema foi "Mudando a face da medicina", sobre a entrada das mulheres no campo e a diferença que isso fez.

E fez grande diferença? E, se fez, de que maneira?

Sim, fez diferença. O que nós mostramos na exposição foram todos os campos diversos, onde as mulheres entraram. Eu diria que, por causa das mulheres serem excluídas do centro de poder da medicina, elas se lançaram em vários campos afiliados. Elas passaram a ser editoras de periódicos da área médica, profissionais da área de saúde pública, e ainda trabalham para transformar a área de segurança para crianças. Há mulheres cuja função é retirar as tatuagens de membros de gangues, para que possam se tornar produtivos na sociedade, sem que assustem o empregador. Existem tantas coisas diferentes que as mulheres estão fazendo, não sei se vocês vão concordar, e ainda há um interesse muito forte por crianças, pelo serviço público, comunitário, pela saúde pública, um grande comprometimento por causas sociais. As mulheres passam mais tempo com cada paciente, ouvindo.

E você acha que isso se aplica também à política, à vida social e política de nações e comunidades? Se aplica da mesma forma?

É possível. Eu tenho uns exemplos ao contrário: Margaret Thatcher, Condoleeza Rice.

Mas tem o bom exemplo da presidente chilena [Michelle Bachelet].

É, um bom exemplo.

Como você chegou à educação em saúde pública? Como foi a transição dos seus primeiros estudos sobre mulheres e ciência, para as aulas de saúde pública na Johns Hopkins e essas outras atividades?

Eu ensinei alguns anos na State University of New York e a maioria dos meus alunos queria estudar medicina, enfermagem ou outra profissão da área da saúde. Havia muito interesse em saúde, ciências, medicina, então comecei a ensinar a história da medicina. Também dei aulas sobre ciência e sexualidade no mundo moderno e todos os alunos queriam se matricular nessa disciplina. Comecei a seguir em direção à história da medicina, e me foi oferecido um emprego na Johns Hopkins, em uma nova escola, para treinar profissionais de saúde de nível médio. Lá, ensinei por alguns anos, mas essa escola fechou. Então, fui para a Escola de Saúde Pública e, como já disse, tive que aprender o que é saúde pública. Eu estava ensinando lá e um decano da universidade disse que queria uma história da escola. Um professor emérito iria escrevê-la, mas ele ficou muito doente. Então disseram para eu escrever, e eu disse que tudo bem. Eu escrevi o volume número 1. Era para sair um segundo volume, mas nunca terminei. Aí o Roy Acheson me perguntou se eu gostaria de ir com ele para a Rockefeller Foundation's Bellagio Study and Conference Center, trabalhar com ele em um livro sobre a história da educação em saúde pública. Isso me pareceu uma boa idéia e eu disse "claro que vou". Barbara Rosenkrantz estava editando a seção histórica do American Journal of Public Health, e pediu para que eu assumisse o cargo. Eu assumi a função e, cada vez mais, tornei-me uma historiadora de saúde pública – meus inter-locutores são estudantes e profissionais da área. Depois, fizemos o livro de Rosen. Foi uma evolução gradual e achei esta trajetória bastante confortável.

Como você descreveria o ambiente de trabalho em Johns Hopkins, mas não em termos acadêmicos. Qual a sua visão pessoal da Johns Hopkins?

Acho que depende de onde você está na Johns Hopkins. Na Escola de Saúde Pública, é difícil ser historiador, porque eles te pagam apenas 20% do seu salário e você precisa arrecadar 80%.

Como? Você pode explicar isso de novo? Todo mundo precisa arrecadar fundos como professor e pesquisador, todos os anos? Como vocês fazem isso?

Você escreve propostas, preenche formulários e diz: "mande-me dinheiro!"

Os historiadores recebem muito?

Bom, se você estiver fazendo um grande estudo epidemiológico sobre Aids, ou algo assim, você consegue uma bolsa de um milhão de dólares. Você consegue contratar pessoas, tem estudantes, alunos. Se você é historiador, talvez consiga 25 mil dólares. Aí, tem um pequeno empreendimento. É difícil ser historiador, porque não tem muita verba para este campo de pesquisa. Você vê, eu não tinha certeza se conseguiria verbas e justificava minha existência fazendo algo reconhecido como útil – escrevendo a história da escola. Eu também coordenei um grande programa de pós-graduação. Por isso estava tão interessada em ir para a National Library, onde não vivo esses problemas.

Você pode nos falar um pouco sobre a National Library of Medicine? Como é trabalhar lá?

É maravilhoso. É um lugar ótimo para trabalhar. Imagino que seja parecido com a Casa de Oswaldo Cruz. O diretor tem nos dado muito apoio, é muito interessado em história. Quando fui fazer a entrevista, ele me olhou e disse: "Ouvi você falar, ouvi seu discurso em uma reunião na Johns Hopkins e você foi maravilhosa". Depois, ele começou a falar sobre ópera e ficamos conversando sobre ópera. Ele me reconheceu e achou que eu era a pessoa que ele queria. E ele queria saber se eu sabia alguma coisa sobre opera. Não sei muita coisa não [risos].

Qual foi o objetivo dele quando te convidou para trabalhar lá?

Ele queria trazer mais pessoas para a biblioteca, para promover eventos, atividades e exposições interessantes. Imaginava a biblioteca como um centro cultural. Tudo lá é em rede de computadores, mas muito poucas pessoas estavam freqüentando o lugar para pesquisar, usando nossas coleções históricas. A maioria das pessoas nem sabia da biblioteca. O diretor queria que ela se tornasse mais visível ao público.

Isso foi uma mudança grande, comparando com suas atividades anteriores, na Johns Hopkins. Trabalhar com eventos é bom? Você precisa produzir coisas mais rapidamente, e talvez mais superficialmente?

É bom. Não preciso escrever propostas pedindo dinheiro. Tenho muito mais tempo [risos]. Eu ingressei na biblioteca em 1995. Entre 1995 e 2005, o governo decidiu dobrar o orçamento dos Institutos Nacionais de Saúde. Então, eu passei a ter muito dinheiro. Eu podia dizer que eu queria fazer isso e aquilo, ou isso e aquele outro... E eles diziam: "Ok", e eu podia fazer o que quisesse. Foi muito divertido. Na Johns Hopkins eu estava sempre me preocupando com dinheiro, dinheiro e dinheiro...

Você sente falta dos alunos e de ser professora? Você não trabalha mais na Johns Hopkins, certo?

Eu continuo sendo professora da Johns Hopkins, mas atualmente só tenho um aluno de pós-graduação, um candidato a PhD. De vez em quando, trabalho com Randy Packard, sempre é algo relacionado com uma conferência especial ou outros projetos. Não dou aula. Gosto de alunos e de lecionar, mas agora ensino de uma outra forma. Agora, tenho meus funcionários, a quem estimulo e ajudo a se desenvolverem. É grande o número de visitantes e alunos que vêm até a biblioteca. Poderia dizer que exposições são um outro tipo de ensino, com uma audiência muito maior.

Eu gostaria que falasse sobre trabalhos importantes da sua carreira, seus dois livros sobre a Aids: The burdens of history (Berkeley, University of California Press, 1988) e Aids: the making of a chronic disease.(Berkeley, University of California Press, 1992). No início da década de 1980, quando a epidemia de Aids estava se tornando um assunto alarmante, como você, historiadora, resolveu que deveria voltar-se para uma doença tão nova e desconhecida?

Alguns amigos meus tinham uma proposta de fazer um painel sobre Aids, na American Historical Association. Um painel sobre a história contemporânea da Aids. E a associação disse: "não, isso não é história. Isso é jornalismo talvez, mas não é história". Pediram a mim e a Daniel Fox, para que pudéssemos convencê-los de que isso era, de fato, história. Não me lembro o que a gente disse, mas o painel foi aceito. O tema atraiu muita gente, a platéia de interessados foi muito grande. Depois, no almoço, algum de nós disse: "por que a gente não pega esse painel e faz um livro?" Eles disseram a Dan e a mim que deveríamos ser os organizadores. E fizemos o livro.

Como esse livro foi recebido entre a comunidade de homossexuais e entre as pessoas que estavam lutando para combater a Aids e tentando conseguir mais verbas do governo federal? Por que você escreveu um segundo livro sobre a Aids?

Eu acredito que o primeiro livro tenha sido muito bem recebido. Não havia muitas informações disponíveis, então foi uma referência para muitas pessoas. O segundo, talvez, não tenha sido recebido de uma forma tão unânime. Algumas pessoas não gostaram do título, The making of a chronic disease. Eles diziam que Aids não era uma doença crônica. Achavam que ao dizer que era crônica, estávamos, de alguma forma, reduzindo sua importância. Isso causou certa irritação.

Quem pensou assim? Pessoas da saúde pública ou do movimento social organizado?

Do movimento, pois isso foi em uma época em que as coisas estavam começando a mudar. Talvez a gente tenha chegado um pouco cedo com essa idéia. Talvez um ou dois anos depois ela teria sido mais bem aceita.

Você continua próxima dos movimentos relacionados à Aids?

Sim, tenho amigos que são muito ativos no movimento homossexual. De vez em quando escrevo sobre Aids.

Como você vê a evolução desses movimentos? Quais são as suas tendências e agenda atuais?

Eu acredito que, de alguma forma, as questões maiores são as internacionais. Certamente há questões importantes, relacionadas à epidemia de Aids nos Estados Unidos, que se tornou extremamente ligada a raças, cores. Eu me refiro à população predominantemente afro-americana, que atualmente sofre de Aids. Certamente existe a possibilidade de controlar a doença, enquanto em muitos países da África a situação está realmente muito ruim. Existem pessoas que estão preocupadas com a doença no resto do mundo, mas recebem muito menos atenção da mídia em geral e dos jornais, pois há uma sensação de que esteja sob controle nos Estados Unidos.

Os militantes deste movimento têm uma visão internacional do problema ou eles são mais paroquiais em sua visão?

As lideranças são extremamente internacionais em suas perspectivas. São extremamente ativas em questões como remédios, drogas contra Aids, os anti-retrovirais...

Eles conseguem influenciar os formadores de políticas, em escala internacional?

Eu acredito que eles tenham alguma influência.

Mas, a crise na África, por exemplo, quem de fato está preocupado com essa crise hoje em dia? Quais grupos podem fazer o gerenciamento dessa crise no futuro?

As organizações internacionais estão preocupadas. Há muito dinheiro investido em tratamento com anti-retrovirais na África, embora exista uma certa dificuldade com a falta de infra-estrutura de saúde e de profissionais da área. Minha impressão é a de que entidades como Unaids, Fundo Global e Fundo Gates estejam envolvidos muito ativamente no esforço de responder às necessidades concretas da África.

Você acredita que essas iniciativas farão diferença daqui a uma década?

Sim, farão uma diferença. Deveriam ter feito tudo isso há dez anos, é claro.

Como historiadora que fala com os formuladores de políticas, quando eles estão fazendo política, te convidam a participar? Ou a relação é distante?

No atual governo norte-americano é muito distante.

Você é convidada a falar nos fóruns internacionais?

Tenho alguma voz na arena internacional. Tenho passado bastante tempo com pessoas do Banco Mundial e da Organização Mundial de Saúde, tenho falado em muitas conferências internacionais.

Qual é a relação entre o seu interesse sobre a Aids e essa iniciativa sobre a história da saúde global? O que significa exatamente história da saúde global, para que fique registrado para os leitores da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos?

Alguns anos atrás, a Fundação Rockefeller começou um estudo sobre recursos humanos em saúde. Criou oito grupos de trabalho. Um deles era sobre história, e me pediram para ser a co-presidente daquele grupo. Eu pedi e Marcos Cueto tornou-se co-presidente comigo. Nós formamos um grupo de vinte a trinta pessoas, preparamos algumas aulas de história para o projeto, participamos do processo de escrita do relatório, que foi publicado há cerca de um ano. Por sua vez, este relatório influenciou outro relatório deste ano, o da saúde mundial, sobre recursos humanos para a área. Este assunto, que há poucos anos recebia pouca atenção, agora parece ocupar lugar central no cenário da saúde global. Isso também no Brasil, já que vocês estão interessados em recursos humanos para a área da saúde. É bastante interessante como as coisas acontecem. Trabalhando com esse grupo de história, participamos de todas as discussões sobre a natureza do problema e sobre as maneiras possíveis de atacá-lo. Não posso dizer que tivéssemos alguma solução brilhante, mas fizemos parte do processo de discussão e desenvolvimento. A pessoa que teve grande influência no início dessa discussão era da Fundação Rockefeller, Ariel Pablos-Mendez, e transferiu-se para a Organização Mundial da Saúde (OMS). Nós dois estávamos conversando e eu disse: "Deveríamos dar continuidade a esse grupo produtivo". Ele disse: "Tá bom. Faremos isso dentro da OMS". Eu fiz uma conferência chamada Histórias da saúde global. Ele disse: "Vamos pegar o seu título", e começamos a discutir dentro da OMS. "O que significa histórias da saúde global?" Foi um funcionário meu que inventou esta frase. Ele disse: "Não existe apenas uma história, mas muitas histórias". Por isso, histórias no plural. O conceito de saúde global surgiu porque, com a globalização, não podia mais ser o antigo conceito de saúde internacional, mas algo novo que acontece com a globalização da economia mundial: agora é saúde global. Não apenas saúde global, mas história no plural, isto é, de muitos pontos de vista. Eu acho que Ariel gostou.

Você está escrevendo um livro sobre a história da Organização Mundial da Saúde (OMS), celebrando os sessenta anos da organização. Como um historiador lida com o processo de escrever uma história assim, quando há muita expectativa institucional? É possível ser crítico? Qual o grau de autonomia que você terá em relação ao cliente?

Digo que a nossa história da OMS é uma história independente. Existe também a história oficial da OMS. Já foram publicados dois livros oficiais grandes, o primeiro sobre os primeiros dez anos e o outro sobre os outros dez anos. O Sócrates Litsios.está escrevendo sobre os terceiros dez anos. Os primeiros volumes são muito bons, mas muito grandes para a maioria das pessoas. Por isso, vamos escrever a história em um volume. Temos tido conversas interessantes sobre a relação de nosso livro com a OMS. Eles têm o direito de fazer a revisão? É curioso, por que não há um historiador por lá. Eles não sabem muito bem como avaliar a qualidade do livro. Thompson Prentice é o responsável na OMS pela Iniciativa da História da Saúde Global. Ele diz [sussurrando] "eu não sei nada sobre história",. Então eu lhe digo: "Não se preocupe, tudo ficará muito bem". Eles não sabem o que fazer conosco. Eu sugeri uma conferência, com especialistas em história, para revisar nosso texto e fazer sugestões. Essa reunião será em Bellagio. Talvez eles possam se sentir confortáveis e achar o livro bom para eles. Obviamente, tenho minhas críticas sobre a OMS. Veremos, no final... talvez eles não queiram seus nomes no livro. Aí, nós procuraremos uma editora acadêmica.

Você tem um terreno incomum, pois está lidando com perguntas e respostas, a partir da década de 1950. Você está em contato com pessoas que viveram essa história. Isso pode ser bom, mas também pode ser complicado. Eles querem preservar uma visão muito heróica dos seus feitos e realizações. Por outro lado, eles sabem muito sobre aquilo que aconteceu. Que problemas um historiador pode enfrentar ao lidar com questões contemporâneas e com as pessoas que viveram as questões históricas e podem estar vivas, talvez lendo e criticando o que você escreveu? Pessoas que tem suas próprias versões sobre a história.

Quanto mais próximo ao presente mais difícil, de várias formas. Nós precisaremos de uma conclusão bastante aberta em relação às coisas que estão ocorrendo. Uma das dificuldades do texto é saber como lidar com Hiroshi Nakajima, porque ele era muito impopular em muitas áreas, mas também tem amigos. Ao escrever a história da Johns Hopkins, consegui manter um certo equilíbrio. Marcos Cueto lidou bem com isso na sua história da Organização Pan-Americana de Saúde e também tem experiência nisso. A gente vai conversar e tentar fazer uma apresentação justa dos diversos pontos de vista.

Nos anos 1960s e 1970s, no início de sua carreira, as visões sobre o mundo eram mais claras: O que era certo, o que era errado, quais as direções em que as coisas deveriam ir. Agora, tudo está muito nublado, confuso e as pessoas que parecem ser as protagonistas daquilo que deveria ter acontecido, nos decepcionaram. No Brasil, sentimos isso de forma aguda. Quando você está lidando com questões contemporâneas e não tem uma visão muito clara sobre o futuro e em relação aos projetos sociais, como você junta tudo isso? Onde estão os inimigos? E os amigos? [risos gerais]

Eu acredito sim na visão da ONU e da OMS, eu acredito sim nos princípios gerais, que foram defendidos pelas pessoas que começaram essas organizações. Isso ajuda se você estiver escrevendo história, quando as bases fundamentais são coisas nas quais você acredita. Eu destaco este ponto porque acredito que meu governo não tem uma opinião especialmente boa sobre a ONU.

Nos anos 1960s e 1970s você teria dito que isso era revisionismo, que seria uma estratégia do imperialismo, da burguesia?

É isso mesmo, talvez você tenha razão [risos].

Nós andamos para trás, dois ou três passos.

Sim, algumas pessoas dizem que eu envelheci e perdi meu toque [mais risos]. Se agora a alternativa é o presidente Bush, que faz tudo sozinho, ou com o poderio militar – "nós vamos jogar bombas neste país, naquele país", o eixo do mal – a comunidade internacional precisa se organizar da melhor forma possível para tomar conta da saúde e do bem estar do mundo: eu sei qual eu prefiro.

Você acha que questões ambientais, questões históricas e de saúde pública estão bem articuladas hoje em dia?

Ainda não, mas acho que estão chegando nesse ponto, indo na direção certa.

De onde estão vindo as melhores contribuições nessa área?

Na área de ecologia e saúde pública, em uma perspectiva histórica? Há pessoas da London School of Hygiene, por exemplo, que vêm fazendo um trabalho muito bom nessa área.

E nos Estados Unidos?

Talvez ainda não. Vai acontecer.

Como você enxerga a relação da história com a saúde pública na América Latina? Qual a sua visão sobre o que está acontecendo aqui?

Eu tenho que lhes perguntar sobre isso. Sei que neste momento estou fazendo novos amigos, estou começando a conhecer pessoas novas, mas por enquanto ainda não conheço muito sobre aquilo que vocês estão fazendo, onde estão indo. Não posso, de verdade, responder a essa pergunta, a não ser dizendo que vocês têm muitas pessoas inteligentes, comprometidas e, além disso, atualmente contam com o apoio do Ministério da Saúde e acredito que isso seja uma ótima oportunidade. Mas vocês têm que me contar mais.

Ficha técnica:

Entrevistada: Elizabeth Fee

Data: 11 de abril, 2006

Local: Biblioteca de obras raras do castelo mourisco, campus da Fiocruz, Rio de Janeiro

Entrevistadores: Gilberto Hochman, Jaime Benchimol, Liene Wegner, Magali Romero Sá, Nara Azevedo, Ruth B. Martins

Tradução para o português: Diane Grosklaus Whitty

Conferência de fidelidade: Elizabeth Fee

Apresentação: Gilberto Hochman

Edição e fotos: Ruth B. Martins

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Set 2006
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br