Acessibilidade / Reportar erro

Cultura mameluca: de condição da colonização a estigma

Mameluca culture: from colonization to stigma

LIVROS & REDES

Cultura mameluca: de condição da colonização a estigma

Mameluca culture: from colonization to stigma

Francismar Alex Lopes de Carvalho

Mestrando em História, Programa de Pós-Graduação-Mestrado da Universidade Estadual de Maringá, Paraná. Bolsista da agência de fomento federal Capes. Av. Gastão Vidigal, 1986 – Jd. Aclimação 87050-440 Maringá – PR – Brasil francismar_alex@yahoo.com.br

A professora Glória Kok traz a lume mais um estudo de sua lavra acerca dos intercâmbios culturais havidos entre os adventícios e os grupos étnicos nativos da América Portuguesa. Em trabalho anterior, estudara os vínculos entre os vivos e os mortos no âmbito da religião tupi-guarani, bem como as conseqüências das trocas interculturais que, através da catequização, fizeram impor uma nova noção de Além sobre essas populações (Kok, 2001). O presente estudo, fruto da sua tese de doutoramento defendida na Universidade de São Paulo, sob a orientação de Laura de Mello e Souza, amplia o foco da análise e se debruça sobre os traços da cultura mameluca da capitania de São Paulo no século XVIII.

Analisada em pleno movimento itinerante que a caracterizou, sobretudo nas várias expedições que recortavam o sertão remoto, a cultura mameluca é vista levando-se em conta seus traços culturais significativos. As estratégias do cotidiano, decorrentes do intercâmbio cultural com os indígenas, no sentido de diminuir os desconfortos das agruras do sertão; as representações mentais motivadoras de deslocamentos, práticas e crenças; os conflitos e alianças políticas com as populações indígenas, tais são algumas das situações nas quais tiveram os mamelucos um papel decisivo, quanto mais levando em conta a delimitação das fronteiras no processo de colonização.

A autora segue os passos dos pioneiros nos estudos do cotidiano da gente paulista, tais como Alcântara Machado e Sérgio Buarque de Holanda, e vale-se também da tradição francesa nesse campo de estudos. Tanto o manejo de ampla documentação quanto o enfoque sistêmico e, por vezes, bastante serial na disposição dos dados coletados revelam influência da história das mentalidades, tal como praticada por alguns de seus melhores seguidores, como Michel de Certeau, Jacques Le Goff e Serge Gruzinski. Não deixa de ser notável, ainda, a influência do estilo de fazer história das mentalidades de autores como Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas, o que significa dizer que o enfoque sistêmico, nem sempre bem resolvido pelos Annales, pôde ser aqui e ali contrabalançado com referências a trajetórias individuais ou análises de micro-situações tal como sugeridas por Carlo Ginzburg, em diversos trabalhos. A ponte entre história do cotidiano e micro-história parece ter dado bons resultados.

O fio condutor do trabalho é a tese de que está em curso, durante o século XVIII, um processo pelo qual a cultura mameluca, que até então era a condição mesma da colonização, passa a ser estigmatizada e relegada a uma existência estigmatizada. Seguindo esse eixo explicativo, a autora analisa, no capítulo 1, as razões fundamentais da mobilidade da gente paulista desde os inícios da colonização, bem como a importância dos intercâmbios culturais com as populações indígenas, fornecedoras de técnicas e conhecimentos apropriados para a itinerância. Ainda que a geografia fantástica, com seus Eldorados, tenha impulsionado não poucos aventureiros a demandarem o sertão longínquo, à medida que avança a conquista desvanecem-se as representações míticas diante de uma concepção de espaço mais congruente com as imposições econômicas locais e geopolíticas metropolitanas. A importância central da mão-de-obra indígena para tocar os empreendimentos agrícolas e o transporte de mercadorias dos paulistas – Sérgio Buarque de Holanda fala, para o século XVII, em 83 por cento de indígenas no total da população da vila de São Paulo – é o motivador básico das penetrações no sertão. Soma-se a isso a má distribuição e a péssima utilização das terras. O contínuo intercâmbio cultural com as populações indígenas forneceu aos sertanistas técnicas e conhecimentos que favoreceram a itinerância. Desde a marcha a pé, o 'marchar à paulista' para usar a expressão de Sérgio Buarque, assegurado pela ótima capacidade de orientação do indígena (bandeiras), até a apropriação integral e praticamente intacta das técnicas indígenas de construção de embarcações e de navegação pelos encachoeirados rios do interior da colônia (monções), o que transparece é a constituição de elementos de uma cultura mameluca, fundada nas trocas interculturais com os indígenas, como condição mesma de penetração nos sertões.

No capítulo 2 a autora examina os processos de recrutamento das expedições, demonstrando as diferenças decisivas de estruturação da sociabilidade e da hierarquia entre os membros das bandeiras, tropas militares e monções. Glória Kok desvela com acuidade o processo que, num mesmo movimento em curso no século XVIII, promove a disciplinarização militar das expedições ao interior da capitania de São Paulo, o incremento dos signos de distinção das elites e a desclassificação material e simbólica dos mamelucos. Ao final do século XVII e início do XVIII, tornou-se mais preocupante do que nunca, para a Coroa portuguesa, a autonomização política e militar das bandeiras, verdadeiras milícias particulares das famílias paulistas mais poderosas, em constante disputa por cargos políticos. As iniciativas adotadas pelo Morgado de Mateus (1765-1775) no sentido de militarizar a capitania, além do óbvio objetivo de monopolizar a violência e centralizar o poder nas mãos da administração colonial, procuravam certamente impor sobre as populações uma disciplina militar homogeneizadora. Frutos de uma verdadeira 'etnogênese' (a autora retoma a expressão de Stuart Schwartz), de ampla mestiçagem étnica e de intercâmbios múltiplos de experiências e cultura material, os mamelucos eram híbridos ocupando espaços fronteiriços entre a cultura européia e a indígena. Homens desenraizados, tanto atuavam como agentes da colonização como se opunham a ela. Assim, não poucos ofereceram resistência à disciplinarização imposta pelo afã militarista, seja fugindo para quilombos, seja através de deserções. Contudo, a burocratização da capitania, paralela ao incremento de certos setores da economia, como a cana-de-açúcar, levou, a partir das décadas finais do século XVIII, à estigmatização progressiva do mameluco. Uma incipiente elite paulista, preocupada com coisas como indumentária, linhagem, mercês e distinção, trata de romper os laços com o mundo indígena, incorporando os ideais ibéricos de 'limpeza de cor' e desclassificação das chamadas 'raças infectas'.

O capítulo 3 levanta exaustivamente em farta documentação as 'estratégias do cotidiano' elaboradas pelos mamelucos paulistas diante das agruras do sertão, tendo como foco principal a rota fluvial das monções. De São Paulo às minas de Cuiabá, descobertas em 1719, os paulistas, em suas canoas copiadas aos indígenas, improvisavam soluções as mais diversas para enfrentar os rios encachoeirados, as ameaças (que não poucas vezes se concretizavam) de ataques indígenas, a fome cotidiana, os mosquitos, cobras, onças, formigas, carrapatos e outros desconfortos. Embora a autora arrole com maestria uma quantidade considerável de dados sobre perigos, alimentação, doenças, práticas religiosas e festas (frutos de levantamento em documentação de vários acervos, como o Arquivo Público do Estado de São Paulo, o Instituto de Estudos Brasileiros, os Institutos Históricos e Geográficos etc.), em alguns momentos, contudo, o texto evita apresentar conclusões generalizantes. Cumpre reconhecer, nesse sentido, que não é tarefa simples enfrentar essas questões, tão bem esmiuçadas por Sérgio Buarque, no seu Monções (2000) e em Caminhos e fronteiras (1994), e por Mello Nóbrega, no seu História do rio Tietê (1978). Realmente, cada uma dessas 'estratégias do cotidiano' mereceria uma monografia. Mas a autora tem o mérito de apresentar ao leitor um leque de informações bem completo, o que não deixa de ser um incentivo a novas pesquisas.

Nesse sentido, Glória Kok apresenta contribuições para o estudo das doenças e das mezinhas curativas utilizadas na América Portuguesa. A autora leva em consideração as representações mentais dos sertanistas que, não poucas vezes, atribuíam à natureza a causa dos mais diversos males (putrefação dos ares, pestilências das águas etc.), ao mesmo tempo em que a viam como fornecedora de inúmeros recursos terapêuticos, conhecidos e classificados pelos indígenas. Boa parte das mezinhas do sertão, constata a autora, vinculavam-se à noção segundo a qual as enfermidades deveriam ser drenadas do corpo, daí a ampla aceitação dos purgantes, suadouros, vomitórios e sangrias. O uso generalizado de amuletos e da prática de abrasamento das feridas como expedientes terapêuticos, juntamente com as inúmeras ervas medicinais, estão entre os recursos indígenas que mais se tornaram presentes no cotidiano não só dos mamelucos, mas de boa parte dos paulistas.

No capítulo 4, a autora analisa o movimento de resistência indígena ao avanço paulista sobre seus territórios a oeste e ao sul da América Meridional. Os Kayapó procuravam preservar seus territórios na margem oriental do rio Paraná, nas proximidades do rio Pardo e de Camapuã. A análise empreendida por Glória Kok valendo-se da documentação publicada nos Documentos Interessantes (vale dizer, de não fácil acesso), demonstra com perspicácia os reveses impostos pelos Kayapó às políticas de 'guerra justa' empreendidas pelas autoridades paulistas, que só a muito custo conseguiram ensaiar uma perspectiva de 'aldeamento' dessa população por volta de 1774. Com relação aos outros grupos étnicos que comumente atacavam as monções paulistas e os roceiros da capitania de Mato Grosso, os Guaykuru e os Payaguá, a autora demonstra como a política de alianças firmada entre esses grupos étnicos conseguiu impor aos portugueses severas limitações em suas pretensões de trânsito e controle daqueles territórios. A complexa trama de inter-relações políticas favoreceu a estratégia dos portugueses de cooptar um desses grupos, no caso os Guaykuru, separando-os e remodelando as linhas de força nos conflitos com os castelhanos.

Estratégias políticas de resistência também eram utilizadas pelos Kaingang dos sertões do Tibagi, que fizeram fracassar ali, pelo menos momentaneamente, as iniciativas de conquista levadas a termo pelas tropas militares comandadas por Afonso Botelho de Sampaio e Souza, em 1771. A autora publica uma rara documentação iconográfica retratando as relações havidas entre os conquistadores portugueses e os nativos da terra, consistente de 37 aquarelas numeradas representando uma seqüência de cenas. Atribui-se a autoria dessas aquarelas a um Joaquim José de Miranda. Glória Kok adota um recurso narrativo notável, remetendo o leitor às cenas numeradas e citando longamente os documentos que as comentam: trata-se de uma narrativa pictórico-textual emblemática dos encontros interculturais.

O livro inclui ainda a reprodução de vários mapas, todos de vivo interesse para o estudo das monções e das expedições ao Tibagi e ao Iguatemi.

O capítulo 5 é um estudo de fronteira. Tanto nesse capítulo quanto no tópico do capítulo anterior referente ao episódio havido no sertão do Tibagi, evidencia-se uma preocupação micro-analítica que aprofunda os processos estudados nos outros capítulos de maneira sistêmica. Aqui a autora trata de uma experiência oficial de povoamento empreendida na Praça de Nossa Senhora dos Prazeres do Iguatemi, presídio militar construído às margens do rio Iguatemi, próximo dos domínios espanhóis (hoje sul do Mato Grosso do Sul). Seguindo os rumos da expedição comandada por Teotônio José Juzarte, que levou de São Paulo para aquelas paragens cerca de oitocentas pessoas, a autora aborda os dramas e tragédias de tão incomum jornada. Fundada em 1767 para consolidar estrategicamente a fronteira e evitar o acesso espanhol aos núcleos de povoamento paulista e à rota das monções, Iguatemi recrutou povoadores degredados e desclassificados sob a promessa de farta distribuição de terras. Contudo, sem recursos, sem apoio do governo, afligidos pela malária e sob ataque de espanhóis e índios, os moradores de Iguatemi capitulam em 1777.

Esses mamelucos povoadores, cada vez mais desclassificados sob as imposições do sistema colonial, ainda são culpabilizados pelo governador Martim Lopes Lobo Saldanha pela queda de Iguatemi, ao chegarem aos poucos, 'faltos de tudo', ao porto de Araraitaguaba. Parece já bem nítido o processo, em curso desde o governo do Morgado de Mateus, de marginalização dos mamelucos, seja pela violenta militarização, seja pela distinção segregadora. A cultura mameluca, cujas 'sedimentações provisórias' eram a própria condição da colonização, foi relegada a uma existência ilegítima e estigmatizada. O sertão passa a representar o espaço da barbárie, conclui Glória Kok.

Ao lado de História de um país inexistente, de Maria de Fátima Costa (1999), o trabalho de Glória Kok vem trazer novo fôlego aos estudos do processo, sempre conflituoso, de colonização das regiões interiores da América Portuguesa. Tais trabalhos evidenciam o nível de excelência dos estudos sobre o período colonial no Brasil, trabalhos cuja capacidade de amalgamar as novidades teórico-metodológicas com o legado dos grandes nomes da historiografia brasileira – na busca de lançar novos olhares sobre processos que ficaram esquecidos, mesmo quando tão estudados – tem trazido ótimos frutos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Costa, Maria de Fátima 1999 História de um país inexistente: Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade/Kosmos.

Holanda, Sérgio Buarque de 2000 Monções. 3. ed. São Paulo: Brasiliense.

Holanda, Sérgio Buarque de 1994 Caminhos e fronteiras. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras.

Kok, Glória 2001 Os vivos e os mortos na América Portuguesa: da antropofagia à água do batismo. Campinas: Ed. Unicamp/Fapesp.

Nóbrega, Mello 1978 História do rio Tietê. 2. ed. São Paulo: Governo do Estado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: hscience@fiocruz.br