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Acompanhando os caminhos de Paulo Carneiro, um brasileiro universal

Following the pathways of Paulo Carneiro, a universal Brazilian

LIVROS & REDES

Acompanhando os caminhos de Paulo Carneiro, um brasileiro universal

Following the pathways of Paulo Carneiro, a universal Brazilian

Maria Amélia M. Dantes

Professora do Programa de Pós-Graduação em História Social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo Caixa Postal 26097 05513-970 São Paulo – SP – Brasil madantes@aol.com

Esse livro, editado em homenagem a Paulo Carneiro, tem como proposta a análise das várias atividades desse brasileiro que, além de ter se destacado como cientista e como presidente da Associação Internacional Casa de Augusto Comte, ganhou renome como representante do Brasil na Unesco, instituição à qual esteve vinculado por mais de trinta anos.

O organizador nos informa, na Apresentação, que esse livro é parte dos esforços da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, associados à preservação e à utilização do acervo de Paulo Carneiro – recentemente, a Casa passou a responsabilizar-se pelo Fundo Família Carneiro, que contém parte significativa da documentação amealhada pelo cientista em sua vida profissional. Os documentos já estão à disposição dos pesquisadores e são utilizados por vários autores dessa coletânea.

Analisando a estrutura do livro, constatamos que, se o ponto de partida é a figura de Paulo Carneiro, vários capítulos analisam questões mais amplas, em especial relativas à Unesco e à sua atuação na construção de redes de relações científicas e culturais, com implicações para o processo de institucionalização das ciências nos vários continentes. A participação de cientistas e intelectuais brasileiros nesse processo tem especial destaque no livro.

Além de apresentar um conjunto de textos escritos por especialistas, o livro transcreve um depoimento realizado por Carneiro em 1979, pertencente ao acervo do Museu de Imagem e do Som do Rio de Janeiro, e os registros de uma mesa redonda realizada em 2001 pela Unesco, em sua homenagem, que contém depoimentos muito esclarecedores de intelectuais brasileiros e franceses que com ele conviveram. Apresenta ainda uma biobibliografia, que inclui a lista de textos publicados por Carneiro, e uma bela seção iconográfica, com fotos que ilustram as várias fases de sua vida e de sua diferenciada atuação.

Essa organização, a meu ver, enriquece muito o livro, pois permite ao leitor, munido dos depoimentos, dialogar de forma instigante com os textos analíticos.

A partir da atuação de Paulo Carneiro, o livro trata de três subtemas: positivismo, ciência e Unesco.

Positivismo

O positivismo é analisado em dois itens do livro, o capítulo 1, de Ângela Alonso, "Raízes positivistas do reformismo dos anos 1930 – o caso Paulo Carneiro", e o capítulo 3, de Priscila Fraiz e Eduardo Queiroz Reis, sobre o tema "Paulo Carneiro e a Casa de Augusto Comte".

Os dois capítulos tratam da raiz familiar do positivismo de Paulo Carneiro, filho de Mario Carneiro, ligado à Igreja Positivista do Brasil, o que o levou a ter, desde pequeno, contato com figuras históricas, como Teixeira Mendes – apontado como um de seus heróis, e homem de grande cultura –, e o Marechal Rondon, seu padrinho.

Os textos trabalham de forma diferenciada o tema do positivismo.

Ângela Alonso integra a trajetória de Paulo Carneiro ao reformismo do período varguista e defende a tese de que esse movimento teve suas raízes nas correntes cientificistas do final do Império. O texto analisa a influência do positivismo em sua atuação como secretário estadual da agricultura de Pernambuco, em 1935, quando apresentou projetos – não implementados, por causa de confrontos com fazendeiros e de reações à Intentona Comunista – de reorganização dos serviços agrícolas, a partir do uso da ciência, e de reforma social e melhoria da condição do trabalhador rural.

Já o capítulo 3 acompanha Paulo Carneiro na França, tratando de sua atuação na Casa de Augusto Comte. Informa que, durante a primeira estada em Paris, em 1927, quando desenvolvia seu doutorado, Carneiro visitou a casa onde Comte havia vivido, e começou, voluntariamente, a organizar os arquivos. Pelo texto, acompanhamos o seu crescente envolvimento com esse espaço, tendo sido um dos responsáveis pela reforma e pela criação da Associação Internacional da Casa de Augusto Comte, em 1957, tornando-se guardião do patrimônio formado por manuscritos e documentos relacionados ao criador do positivismo. Carneiro foi, também, responsável pela publicação de manuscritos inéditos e da correspondência integral de Comte.

O texto nos informa, ainda, sobre a fidelidade a Comte e sobre a crença de Paulo Carneiro na missão que tinha para com o patrimônio positivista, que o acompanharam até o fim de sua vida. Pois em 1981, um ano antes de sua morte, considerando que este seria o melhor caminho para a preservação, doou os manuscritos de Auguste Comte à Biblioteca Nacional da França.

No entanto, no depoimento de 1979, vemos que sua concepção de positivismo era bem pouco ortodoxa, já que para ele tratava-se de uma doutrina em desenvolvimento contínuo, que sempre incorporava as novas aquisições da ciência. E sua atuação em Pernambuco também demonstra que, para ele, o comtismo era um referencial de vida.

Ciência

Considero bastante significativo que a primeira opção profissional de Paulo Carneiro tenha sido a pesquisa científica. Mais ainda, o trabalho em química, área marcadamente experimental, bastante valorizada pelo positivismo.

Sua atuação como pesquisador científico é tratada no capítulo 2, escrito por Magali Romero Sá, sobre o tema "Paulo Carneiro e o curare: em busca do princípio ativo", em referência às pesquisas que realizou na França durante a década de 1930. O texto acompanha o cientista desde sua formação como engenheiro químico pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro e seu doutorado na Sorbonne, de 1927 a 1930, sobre o conteúdo químico do guaraná. Mostra assim como, em sua juventude, Paulo Carneiro estava empenhado em construir uma carreira científica.

Apesar de ter atuado como pesquisador em instituições brasileiras como o Instituto Geológico e Mineralógico do Brasil e o Instituto de Tecnologia, futuro INT, foi com pesquisas realizadas na França que Carneiro se tornou um cientista conhecido. De 1935 a 1941 realizou pesquisas sobre o princípio ativo do curare, no Instituto Pasteur de Paris, que o levaram a travar uma forte controvérsia com o prestigiado fisiologista francês Louis Lapicque. O episódio mostra que o brasileiro estava bem integrado ao campo científico francês.

Realmente, no depoimento de 1979 Carneiro afirma que sua carreira caminhava muito bem, quando foi interrompida pela ocupação alemã de Paris. Também afirma que foi a dolorosa experiência da guerra que o levou a escolher um novo caminho profissional, a diplomacia na Unesco.

A Unesco

No depoimento, Paulo Carneiro esclarece que a opção por esse organismo internacional veio ao encontro de seu desejo de contribuir para o estabelecimento de um clima de paz e harmonia entre as nações, tão necessário depois dos horrores da guerra. A Unesco apresentava-se como o espaço para pôr em prática sua visão universalista e humanista que, por fim, deitava raízes na formação positivista.

Nessa instituição, que congregou grandes nomes da ciência e da cultura, Paulo Carneiro atuou até 1965 como delegado e embaixador do governo brasileiro, tendo permanecido ligado a ela até sua morte, em 1982.

Cinco dos capítulos do livro focalizam a Unesco e a atuação de Carneiro nesse organismo.

O capítulo 4, "A Unesco e a política de cooperação internacional no campo da ciência", escrito por Aant Elzinga, trata do processo de criação dessa instituição e de sua atuação até as últimas décadas do século XX. Nos anos de fundação, o autor destaca a atuação de Joseph Needham e Julian Huxley, com seus discursos sobre a responsabilidade social da ciência e sobre a defesa de políticas que contribuíssem para a difusão da ciência como bem público, acessível a todos os países, em especial aos países periféricos. Além de analisar o processo de constituição da Unesco como organismo inter-governamental, o autor acompanha suas iniciativas – nem sempre bem-sucedidas – de participação e interferência no debate de temas candentes como a energia nuclear, as políticas científicas, a exploração de recursos naturais e o desenvolvimento sustentável.

O autor conclui sublinhando as contradições que desde o início cercaram a instituição, entre o ideal do universalismo científico que guiou sua criação e as condições reais das relações científicas, marcadas pelos conflitos políticos. Apesar disso, considera marcante o papel desempenhado pela Unesco como fórum para os países do Terceiro Mundo e espaço de questionamento do imperialismo científico e cultural.

Seguem-se quatro capítulos que focalizam a atuação de Paulo Carneiro em vários programas implementados pela Unesco no pós-guerra.

O capítulo escrito por Marcos Chor Maio, "Demandas globais, respostas locais: a experiência da Unesco na periferia no pós-guerra (1946-1952)", analisa dois projetos que contaram com a participação direta de Paulo Carneiro.

O projeto do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, endossado pela Divisão de Ciências Naturais, foi aprovado pela primeira sessão da Conferência Geral da Unesco, realizada em Paris em 1946, e propunha a criação de um centro de pesquisas na Amazônia, contando com a participação de vários países latino-americanos. Em 1947 e 1948, o projeto foi debatido em vários fóruns – a Conferência Científica de Belém; a segunda sessão da Conferência Geral da Unesco, realizada na cidade do México; e a reunião realizada em Iquitos, no Peru. No entanto, nesses debates foi se configurando a falta de consenso dos países membros da Unesco sobre os objetivos do projeto. A essa dificuldade se somou a resistência de setores da sociedade brasileira que o viram como ameaça para a soberania nacional. No entanto, mesmo não sendo implementado, segundo o autor o projeto não deve ser visto como um fracasso – como aparece muitas vezes na historiografia –, pois acabou chamando a atenção para a Amazônia e influenciando a criação do INPA, em 1952, pelo CNPq.

Já o Projeto de Relações Raciais, organizado pelo Departamento de Ciências Sociais, foi aprovado pela Conferência Geral da Unesco de 1950 e teve como uma de suas atividades a realização de pesquisa piloto sobre relações raciais no Brasil. A pesquisa teve andamento no início da década de 1950, abrangendo Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro e Pernambuco, e contou com a participação de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Os resultados acabaram por contradizer os pressupostos iniciais da pesquisa – a inexistência de tensões raciais no país –, tendo sido registrada a presença de formas de racismo nas localidades estudadas. Como o texto assinala, o projeto também teve frutos no âmbito local, sendo considerado um marco na institucionalização das ciências sociais no Brasil.

O Capítulo 6, "Noções de ciência internacional e nacional: as trajetórias de Paulo Carneiro e Carlos Chagas Filho", escrito por Paulo de Góes Filho e Francisco Barreto Araújo, como o título especifica, analisa como a dualidade nacional-internacional esteve presente na trajetória da Unesco e na carreira desses dois cientistas brasileiros que foram representantes brasileiros nesse organismo. Os autores relacionam a criação da Unesco a um processo de restabelecimento do universalismo científico – ao menos nos discursos – e destacam em sua atuação as estratégias conciliatórias visando à geração do universal a partir de interesses particulares. Chamam a atenção, também, para a presença dessa dualidade nas trajetórias dos dois cientistas, e analisam as formas que encontraram para superá-las.

O capítulo 7, "Paulo Carneiro: um cientista brasileiro na diplomacia da Unesco (1946-1950)", de Heloisa M. B. Domingues e Patrick Petitjean, focaliza os anos iniciais desse organismo. Caracterizando a Unesco como uma instituição que, a partir da valorização do papel das ciências no desenvolvimento econômico dos países, tornou-se um centro de formulação de projetos visando à internacionalização das ciências e à construção de novas formas de cooperação científica, os autores acompanham as primeiras ações da Unesco: realização de grandes conferências; propostas de criação de organismos nacionais para a educação, a ciência e a cultura; projetos para criação de laboratórios científicos. Chamam a atenção para os impasses que acompanharam a criação de laboratórios científicos – como o projeto do Instituto Internacional da Hiléia Amazônica, de autoria da Paulo Carneiro, que, como vimos, acabou não sendo implementado. O contexto político de crescente polarização dos primeiros anos da Unesco é visto como pouco favorável aos projetos de cooperação científica.

Esses capítulos tratam, portanto, da atuação da Unesco, e focalizam os diplomatas brasileiros como formuladores de projetos.

Já no capítulo 8, "Os raios cósmicos entre a ciência e as relações internacionais", de Ana Maria Ribeiro de Andrade, a atuação da Unesco aparece de forma mais indireta, já que os atores principais são cientistas que estavam atuando no Brasil e na Bolívia. Do lado brasileiro, César Lattes é visto pela autora como o principal responsável pela constituição do laboratório de Física de Chacaltaya, nos Andes bolivianos, para observação de raios cósmicos, então, uma das áreas de ponta da física nuclear. Considerando a implantação do laboratório como resultado da ação de cientistas e governantes dos dois países, o texto acompanha seu funcionamento de 1951 a 1959, quando físicos do CBPF, USP, MIT e Universidade de Chicago realizaram experimentos. O CBPF era o principal mantenedor do laboratório, tendo construído prédios, instalado instrumentos e atuado na formação de pesquisadores. É aí que entra a ação da Unesco: desde 1951, pela intermediação de Paulo Carneiro, a instituição concedia auxílios ao CBPF na forma de bolsas para pesquisadores estrangeiros, financiamento da formação de brasileiros no exterior e auxílio para aquisição de material de pesquisa e periódicos.

Vários desses capítulos tratam, portanto, da atuação de Paulo Carneiro na implantação de projetos relacionados ao Brasil. Também pelo depoimento de 1979 e pela mesa-redonda em sua homenagem, vemos que sua atuação na Unesco ganhou grande destaque em dois outros projetos: como coordenador do programa para uma "História do desenvolvimento científico e cultural da humanidade", que resultou na publicação de vários volumes, em 1960; e no programa de salvação de monumentos históricos, com atuação marcante na preservação de monumentos do período faraônico, no Egito.

À guisa de conclusão

Concluindo, quero dizer que a primeira vez que ouvi falar de Paulo Carneiro foi por volta de 1985, em Paris, quando fiz uma visita à Casa de Augusto Comte, no número 10 da rue Monsieur le Prince. Eu estava iniciando uma pesquisa sobre as relações entre positivismo e práticas científicas no Brasil, parte de um projeto de cooperação sobre a história das relações científicas entre Brasil e França. Na Maison, além de constatar que a doutrina comteana continuava mantendo muitos seguidores, descobri que a trajetória da instituição estava fortemente ligada à atuação de um positivista brasileiro, justamente Paulo Carneiro.

E agora, ao finalizar a leitura desse livro em sua homenagem, procurei entender, como historiadora da ciência, por que não havia, até então, encontrado registros de sua atuação como cientista e diplomata. A primeira resposta que me ocorreu foi o fato de Paulo Carneiro ter sido um cidadão do mundo e ter desenvolvido sua vida profissional na França. Foi um cientista que pouco atuou em instituições científicas brasileiras, e o renome científico que alcançou deveu-se a trabalhos realizados na Sorbonne e no Instituto Pasteur de Paris. Foi também na França que Carneiro ligou seu nome ao positivismo universal, pelo empenho na salvaguarda do patrimônio da Casa de Auguste Comte.

Quanto à Unesco, até recentemente a História da Ciência – de caráter internalista – pouco se interessava por esse organismo internacional. Foi com o desenvolvimento dos estudos sociais da ciência que os pesquisadores passaram a trabalhar a integração entre ciência e outras dimensões da vida social. Assim, somente nos anos 80 um número crescente de historiadores passou a analisar o papel que a ciência vem tendo nas relações internacionais.

Quero, ainda, chamar a atenção para as contribuições historiográficas desse livro. Primeiramente, pelo resgate dessa figura fascinante que foi Paulo Carneiro, um positivista que, nas palavras das pessoas que o conheceram, além de ser um defensor da ciência como conhecimento a serviço da humanidade, acreditava na possibilidade da construção de um mundo caracterizado pela solidariedade e pela confiança entre os povos. Também, por difundir estudos que vêm sendo realizados sobre a Unesco, instituição que marcou a construção de novas formas de cooperação científica no período do pós-guerra, atuando na implantação de projetos e no financiamento de atividades científicas nos vários continentes. Como podemos observar nos textos, desde os primeiros anos o Brasil marcou presença na Unesco, participando dos debates – e aí a atuação de delegados como Miguel Osório de Almeida e Paulo Carneiro, entre outros, foi fundamental – e, como país das regiões periféricas, beneficiado por auxílios para projetos culturais e científicos.

Por fim, quero sublinhar a atualidade desses estudos. Eles nos fazem refletir sobre as contradições que têm cercado propostas universalistas como as que levaram à criação da Unesco em um mundo como o nosso, marcado pela desigualdade e pela competição.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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