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Para que um diálogo entre ciência e arte?

CARTA DOS EDITORES CONVIDADOS

Para que um diálogo entre ciência e arte?

De que forma ciência e arte vêm dialogando – ou se confrontando – ao longo da história? O que têm em comum e de diferente esses campos da cultura humana? Seria a arte apenas um entretenimento inconseqüente, como às vezes faz crer um pensamento cientificista estreito? Seria a ciência apenas uma ameaça (incompreensível) para a cultura e a humanidade, como alguns manifestos artísticos parecem anunciar? Como os conceitos, teorias e aplicações provenientes da ciência e da tecnologia ocupam o imaginário de artistas como fonte de inspiração e criatividade? Até que ponto a dimensão estética está presente e é importante na atividade dos cientistas? Foi a arte essencial, em vários momentos históricos, para a introdução de novos pontos de vista na cultura e na ciência? Como os conceitos e instrumentos criados ou possibilitados pela ciência, incluídos aí os meios de comunicação e a reprodutibilidade das obras de arte, mudaram e abriram novos caminhos para a arte? De que forma ela pode ajudar a ciência a se tornar mais acessível ao público não-especializado e vice-versa? Seria isto uma estratégia útil e eficaz ou uma apropriação utilitária e indébita?

Muitos autores já refletiram sobre as proximidades, as diferenças e as (as)simetrias entre ciência e arte. Tais discussões remontam a Aristóteles, Leonardo da Vinci, William Blake, Johann Wolfgang von Goethe, Vitor Hugo, Hermann von Helmholtz, Thomas Huxley e Werner Heisenberg, entre muitos outros. No século XX, o debate ganhou interesse grande, em particular após a publicação, em 1959, de As duas culturas, de Charles P. Snow, que analisou a separação entre artes e humanidades, de um lado, e as ciências, do outro. Vitor Hugo, por exemplo, ressaltava o caráter absoluto da arte e o caráter relativo da ciência. Considerava, com o espírito do Oitocentos, que a primeira não conhece a idéia de progresso enquanto este conceito caracteriza a segunda. Para ele, é da natureza da ciência negar tudo, tudo destruir, tudo recriar. O progresso como gerador da ciência, e o ideal como gerador da arte. Um cientista procura jeito de esquecer outro; um poeta não faz esquecer um poeta.

Numa linha similar, no século passado, o historiador da ciência Thomas Kuhn refletiu sobre as diferenças entre arte e ciência. Para ele, a mais importante é que os produtos da atividade artística do passado são ainda partes vitais da cena artística atual, ao passo que a ciência busca destruir seu passado. Outra diferença viria do lado estético: na arte, a estética é, em si mesma, a finalidade do trabalho. Na ciência, não seria mais do que um instrumento secundário, um critério de escolha entre teorias ou um guia para a imaginação.

Muitos cientistas importantes, como Dirac certamente discordariam de tal afirmação.

Mais recentemente, reconhecendo similaridades, mas apontando também assimetrias, Jean-Marc Lévy-Leblond, físico e epistemólogo, afirma que à ciência falta um componente essencial comum a toda atividade artística e cultural: a dimensão crítica. Tal distanciamento, constitutivo da modernidade artística, seja no que se refere ao valor estético ou à significação social de suas obras, estaria largamente ausente da prática científica. A ciência, no seu ritmo cada vez mais rápido de publicações, teria pouco tempo para a reflexão crítica interna. Uma etapa crucial da atividade criativa, o movimento de recuo, o tempo do olhar que permite perceber a obra no seu conjunto estaria ausente na ciência contemporânea.

Já Aldous Huxley, no rastro de Snow, dedicou-se a buscar similaridades e a levantar argumentos contra a separação crescente entre a cultura artística e literária e a ciência. Baseava-se em seu vasto conhecimento literário e em sua própria experiência de grande ficcionista. O historiador da ciência Stillman Drake, por sua vez, introduziu novas perspectivas no debate ao estudar as profundas interrelações entre música e ciência, particularmente no momento do surgimento da ciência moderna. Entre nós tivemos em Mario Schenberg, cientista e crítico de arte, um pensador profundo sobre as relações comuns entre esses dois domínios. Ele destacava com insistência a presença de elementos estéticos na ciência, em particular na física teórica.

Mais do que trazer respostas a essas questões, a presente edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos tem por objetivo convidar você, caro leitor, a se engajar no debate sobre ciência e arte. Os textos aqui reunidos entre artigos, ensaios e entrevistas, buscam oferecer-lhe pontos de vista e abordagens diversificados sobre tão vasto tema. Este volume não é exaustivo, por certo e ainda bem; muitos dos questionamentos mais gerais relacionados acima não foram abordados, enquanto outros o foram sob óticas determinadas. Trata-se de um conjunto produzido por autores nacionais e internacionais que refletem sobre proximidades e assimetrias concretas entre ciência e arte. Esperamos que agucem a vontade do leitor de imiscuir-se nessa reflexão, e que apresentem contribuições positivas para o diálogo entre ciência e arte.

Nesse diálogo não poderia faltar a ficção científica. O historiador Ciro Flamarion Cardoso registra o surgimento, nos últimos anos da década de 1990, de filmes, como "Cidade das sombras" e "Matrix", em que o mundo onde se movem e agem as personagens revela-se, no fim das contas, um simulacro ligado à manipulação da liberdade individual. Partindo do pressuposto de que a ficção científica é uma experimentação com idéias, indaga Cardoso os porquês do afloramento desta temática.

Os educadores Andreia Guerra, José Claudio Reis e Marco Braga apresentam um panorama geral das relações entre ciência e arte, principalmente entre física e pintura, desde a revolução científica nos séculos XVI-XVII até o século XX. As contribuições de Fayga Ostrower sobre espaço e tempo na arte e na ciência são contempladas, em texto preparado com base em entrevistas e em documentos gentilmente fornecidos pela família. Prestamos assim uma homenagem a esta extraordinária artista e pensadora, falecida em 2001.

O físico João Zanetic busca uma ponte entre esta ciência e a literatura, defendendo a aproximação das duas como forma útil de interpretar o mundo. Ele discute a influência sobre os escritos literários da passagem da visão de mundo influenciada pela física clássica para aquela que nasce com a física contemporânea. Toma como exemplos os escritores Edgar Allan Poe, Gustave Flaubert, Emile Zola, Augusto Zaluar, Fiódor Dostoiévski e William Faulkner.

Ainda no campo da literatura, os brasileiros Affonso Romano de Sant'Anna e Marco Lucchesi discorrem sobre suas relações com a ciência, e como esta tem influenciado poetas, cronistas e ensaístas. Revelam uma faceta interessante dessa interação ao citarem poemas que eles próprios escreveram inspirados em textos sobre ciência. Izabela Furtado comenta aspectos que considera muito significativo na obra de Goethe: suas pesquisas exaustivas sobre temas científicos presentes em vários de seus livros.

Samuel Edgerton explora outro terreno fascinante: como a ciência se tem beneficiado com a arte. Na opinião desse historiador da ciência, a perspectiva linear usada por Filippo Brunelleschi, no século XV, em que se aplicavam regras geométricas de reflexão de espelho óptico, era mais do que um acontecimento artístico: tinha uma relação intrínseca com o surgimento da ciência moderna. Segundo Edgerton, sem a percepção artística da perspectiva, Galileu certamente não teria feito a descrição da superfície da Lua em 1609 – quando a observava com o recém-inventado telescópio – descrição que produziu impacto tão extraordinário em nossa visão cosmológica.

O imaginário de cineastas e músicos e as formas pelas quais exploram temas de ciência e tecnologia constituem o percurso de três artigos. Bernardo Jefferson de Oliveira explora vínculos entre ciência e cinema: o uso de filmes como instrumento de observação como material didático para educação científica e, principalmente, como meio de expressão e veículo formador do imaginário social acerca da ciência. Já Craig Cormick parte da constatação de que os filmes são uma das principais fontes de informações sobre clonagem humana. Analisa então como o assunto é abordado na grande tela, buscando identificar as principais mensagens transmitidas ao grande público. Ildeu de Castro Moreira e Luisa Massarani identificam diversos compositores da Música Popular Brasileira que se inspiraram na ciência e na tecnologia para escrever suas letras.

O filósofo Francisco Ortega analisa a recepção das novas tecnologias médicas de visualização do interior do corpo humano em tribunais e na cultura popular, especialmente na literatura, no cinema e nas revistas de divulgação.

Do lado do teatro, o ator Carlos Palma relata sua experiência à frente do projeto "Arte e Ciência no Palco", que, desde 1998, encena peças sobre temas ligados à ciência.

Um paralelo entre a vida e a obra de Einstein e Picasso é o tema instigante do historiador da ciência Arthur Miller. Ambos produziram seus trabalhos mais importantes no mesmo período: Einstein formulou a Teoria da Relatividade Especial em 1905 e Picasso pintou "Les Demoiselles D'Avignon" em 1907. Miller mostra que as relações entre essas obras vão muito além da coincidência temporal. Outro ícone da arte mundial, Salvador Dalí, é o tema da jornalista Mònica López Ferrado, que estuda o interesse do excêntrico artista pela ciência e por temas como a bomba atômica e a elucidação da estrutura do DNA.

Richard Taylor traz para História, Ciências, Saúde – Manguinhos reflexões sobre as pinturas fractais de Jackson Pollock, lançando mão da física para compreender a estética do artista norte-americano. Por seu turno o bioartista Eduardo Kak discute a relação entre ciência, tecnologia e as artes plásticas contemporâneas. Usa sua própria obra, através da qual investiga a poética da vida e da evolução, experimentando materiais biológicos e fazendo referências a técnicas da engenharia genética controversas – a exemplo do coelho verde fluorescente "GFP Bunny".

Os artigos reunidos na presente edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos sugerem uma redução, submissão ou mesmo conciliação forçada entre ciências e artes? Não nos parece. As artes não têm por função primordial explicar ou 'ajudar' as ciências, nem esta tem por vocação elucidar as primeiras. A arte pode ser instrumental para a ciência, mas não como muleta pedagógica: pode deixar claro seu conteúdo humano e contribuir para a construção de sua dimensão crítica. Por outro lado, a ciência, cada vez mais decisiva para a sobrevivência da humanidade, se adequadamente utilizada, pode contribuir significativamente para a renovação dos elementos do fazer artístico e, ainda, como fonte inspiradora de suas criações.

Ciência e arte: ambas nutrem-se do mesmo húmus, a curiosidade humana, a criatividade, o desejo de experimentar. Ambas são condicionadas por sua história e seu contexto. Ambas estão imersas na cultura, mas imaginam e agem sobre o mundo com olhares, objetivos e meios diversos. O fazer artístico e o científico constituem duas faces da ação e do pensamento humanos, faces complementares mas mediadas por tensões e descompassos, que podem gerar o novo, o aprimoramento mútuo e a afirmação humanística.

Viva a similaridade! Viva a diferença!

Luisa Massarani, Ildeu de Castro Moreira e Carla Almeida

Editores convidados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2006
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