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Educação social de rua: bases históricas, políticas e pedagógicas

Street social education: historical, political and pedagogical bases

Resumos

Aborda a educação social de rua como sistema pedagógico, surgido na América Latina ao final da década de 1970, quando chamava a atenção o crescimento das populações de rua, sobretudo crianças e adolescentes. Os primeiros educadores sociais de rua foram agentes de pastoral, na praça da Sé, reduto de crianças de rua em São Paulo. Fundando-se na Teologia da Libertação e nas pedagogias de Paulo Freire, Celestine Freinet, Anton Makarenko e Emília Ferreiro, esses educadores desenvolveram um campo conceitual e participaram da promulgação da Constituição Federal de 1988, particularmente na elaboração e implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Sofrendo as conseqüências da descontinuidade programática em trocas sucessivas de governos, a educação social de rua encontra-se latente. É importante conhecer suas propostas conceituais.

Pedagogia social; populações de rua; educação popular; educação de saúde; exclusão social


This work is about street social education as a pedagogical system that started in Latin America in the late 1970s, as the street population formed mostly by children and adolescents called for attention. The first street social educators were 'pastoral' agents working at the praça da Sé, a place with large numbers of street children in São Paulo. Based on the Liberation Theology and on the pedagogies developed by Paulo Freire, Celestine Freinet, Anton Makarenko, and Emília Ferreiro, the street educators developed a conceptual field and participated in the promulgation of the 1988 Federal Constitution, particularly by writing and introducing the 'Estatuto da Criança e do Adolescente' (the 'Child and Adolescent Statute'). Street social education is currently latent and suffering the consequences of program discontinuity caused by successive changes of government. It is, therefore important to know the conceptual proposals.

Social pedagogy; street populations; free education; health education; social exclusion


ANÁLISE

Educação social de rua: bases históricas, políticas e pedagógicas

Street social education: historical, political and pedagogical bases

Walter Ferreira de Oliveira

Médico psiquiatra e professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina Rua Nossa Senhora de Fátima 226 Morro das Pedras 88066-020 Florianópolis – SC – Brasil wfolive@terra.com.br

RESUMO

Aborda a educação social de rua como sistema pedagógico, surgido na América Latina ao final da década de 1970, quando chamava a atenção o crescimento das populações de rua, sobretudo crianças e adolescentes. Os primeiros educadores sociais de rua foram agentes de pastoral, na praça da Sé, reduto de crianças de rua em São Paulo. Fundando-se na Teologia da Libertação e nas pedagogias de Paulo Freire, Celestine Freinet, Anton Makarenko e Emília Ferreiro, esses educadores desenvolveram um campo conceitual e participaram da promulgação da Constituição Federal de 1988, particularmente na elaboração e implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente. Sofrendo as conseqüências da descontinuidade programática em trocas sucessivas de governos, a educação social de rua encontra-se latente. É importante conhecer suas propostas conceituais.

Palavras-chave: Pedagogia social; populações de rua; educação popular; educação de saúde; exclusão social.

ABSTRACT

This work is about street social education as a pedagogical system that started in Latin America in the late 1970s, as the street population formed mostly by children and adolescents called for attention. The first street social educators were 'pastoral' agents working at the praça da Sé, a place with large numbers of street children in São Paulo. Based on the Liberation Theology and on the pedagogies developed by Paulo Freire, Celestine Freinet, Anton Makarenko, and Emília Ferreiro, the street educators developed a conceptual field and participated in the promulgation of the 1988 Federal Constitution, particularly by writing and introducing the 'Estatuto da Criança e do Adolescente' (the 'Child and Adolescent Statute'). Street social education is currently latent and suffering the consequences of program discontinuity caused by successive changes of government. It is, therefore important to know the conceptual proposals.

Keywords: Social pedagogy; street populations; free education; health education; social exclusion.

Um interesse renovado pela educação social na saúde

Em meio ao desenvolvimento do Sistema Único de Saúde, nota- se ultimamente certo interesse em fomentar, no âmbito das polí-ticas de saúde, práticas de educação popular. Assim, o Ministério da Saúde (MS) abriu espaço em sua estrutura, no início da adminis-tração do governo iniciado em 2003, para a Rede de Educação Popular em Saúde (EPS), previamente organizada em quase todos os estados e formada sobretudo por profissionais de saúde. Com apoio do MS, essa rede gerou a Articulação Nacional de Educadores Populares de Saúde (Aneps). Por meio de comunicação virtual, encontros e oficinas, EPS e Aneps vêm articulando um corpo de conhecimento interdisciplinar e aplicando propostas pedagógicas ao trabalho com comunidades, na perspectiva da educação de saúde.

O movimento pela educação popular vem, desde meados da década de 1990, ocupando espaços na sociedade e na comunidade acadêmica. Seus antecedentes históricos incluem outro movimento pedagógico, com protagonismo das ciências humanas: a Educação Social de Rua (ESR), que constitui marco importante na história da pedagogia social no Brasil. O campo de conhecimento avançado pelos educadores sociais de rua, a partir do final da década de 1970, apresenta construções conceituais e uma práxis que se revelam, mais que nunca, atuais.

A ESR contextualiza-se na evolução das políticas sociais no Brasil. Como sistema pedagógico, voltou-se para crianças socialmente excluídas e para a ampliação dos direitos da cidadania. Sua emergência reflete o envolvimento, nas políticas sociais, de instituições públicas e privadas, inclusive religiosas e de natureza filantrópica, voltadas para a criança e o adolescente. Conhecer sua história significa examinar as bases filosóficas e políticas norteadoras das práticas dos educadores de rua e o papel dos movimentos liderados por profissionais, intelectuais e religiosos ligados a essa área que, juntamente com outros movimentos, constituíram resistência política no período da ditadura militar.

Este trabalho examina a emergência da ESR no Brasil, ao final dos anos 70, até meados dos anos 90, período a que me refiro como 'época áurea' da ESR. Enfatiza a contextualização histórica, polí-tica, social, econômica e cultural ressaltando fatos, datas e eventos considerados relevantes ao surgimento e desenvolvimento da ESR. Também analisa a dinâmica das relações estabelecidas entre educadores sociais de rua, instituições, movimentos sociais, a subcultura1 1 Abordagem sistêmica, como na sociologia dos Estados Unidos e da Europa ocidental, sobre os valores, crenças e comportamentos que constituem as culturas. 'Subcultura' não expressa, nesta abordagem, uma relação de inferioridade, mas indica que uma determinada 'cultura' está contida, ou contextualizada, em culturas mais abrangentes, numa relação de hierarquia sistêmica. Assim, a 'subcultura da rua' no Brasil está contida e é parte de um contexto cultural maior – a cultura brasileira em geral –, e assim por diante. Sobre o significado e a abrangência do termo consultar Hannerz (1992), Hebdige (1979), Kephart (1982), Maurer (1981) e Schwedinger & Schwedinger (1985). da rua e 'a comunidade'.

A emergência da educação social de rua: o período pós-'milagre brasileiro'

O golpe militar de 1964 foi uma tentativa de exorcizar o país da 'ameaça comunista', conforme percebida pelas forças políticas conservadoras nacionais e estadunidenses, e visava fortalecer, no Brasil, a ideologia de mercado (Freire, 1979; Levinson, Onís, 1970). O governo militar promoveu, desde o início, uma política econômica submissa ao capitalismo internacional e dedicou-se à 'modernização' dos serviços públicos, segundo a concepção liberal dos Estados Unidos (Robock, 1975). Houve, inicialmente, o crescimento explosivo da economia, o 'milagre brasileiro', que durou até meados dos anos 70, caracterizando-se por uma avalanche de empréstimos concedidos por instituições públicas e privadas internacionais.

O 'milagre' resultou numa crescente concentração de renda, empobrecendo a população: os ricos ficaram mais ricos, os pobres aproximaram-se mais da miséria, agravaram-se os problemas sociais. Estatísticas apregoavam crescimento econômico, mas na realidade havia mais miséria, principalmente para a "mão-de-obra não-especializada" – os pobres (Abranches, 1986). Gerou-se uma das maiores e mais duradouras crises econômicas da história do país, com conseqüências agravadas nos governos subseqüentes.

Esse panorama, já visível nos anos 70, só foi constatado publicamente nos anos 80, quando a queda da ditadura permitiu melhor divulgação e avaliação. Em 1987 o salário mínimo atingia seu menor valor até então, em torno de sessenta dólares. Em 1989 o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) estimava que, para satisfazer necessidades mínimas de habitação e garantir uma cesta básica alimentar, uma família brasileira deveria ganhar sete salários mínimos (Dieese, 1990). Cerca de 50% da população retinha 13,6% da riqueza nacional, e 13,13% dela encontrava-se com 1% dos brasileiros mais ricos. A diferença entre a média salarial dos mais pobres do Nordeste e Sudeste do país ficava em torno de 97%. Estimava-se que cerca de 25 milhões de crianças e adolescentes até 18 anos viviam em famílias que ganhavam menos de meio salário mínimo per capita (Freitas, 1990). O índice de mortalidade infantil era de 60/1.000, mas nas classes mais abastadas caía para 10/1.000, enquanto nos estados mais pobres do Nordeste a proporção alcançava 200/1.000; 21% da população brasileira era considerada analfabeta, e 47,3% das casas não tinham saneamento básico e esgoto (Ministério da Saúde, 1989).

As crianças e adolescentes pobres geralmente sofrem mais nessas situações de recessão e desamparo social. Entre 1983 e 1986 dobrou o número de trabalhadores com menos de 14 anos (Unicef, MPAS, 1987b). Estimava-se que metade das crianças matriculadas no primeiro grau não chegariam ao segundo (Jaguaribe, 1986). Em 1989, cerca de 30,4% dos brasileiros até 17 anos trabalhavam (Unicef, 1990). A deterioração das condições sociais, evidente desde os anos 70, alimentou o contexto político de resistência, influenciando decisivamente na emergência da ESR. Esse caminho seguiu a evolução das políticas sociais para crianças e adolescentes no Brasil.

Políticas sociais para crianças e adolescentes no Brasil

O primeiro instrumento de regulação de políticas públicas para crianças e adolescentes no país foi o Código de Menores de 1927. Fundamentava-se na idéia da incompetência das famílias, culpando-as pelo não provimento da subsistência e do desenvolvimento de seus filhos. Propunha a institucionalização das crianças e adolescentes órfãos ou filhos de "pais irresponsáveis", visando educá-los e discipliná-los dos pontos de vista físico, moral e civil (FJP, 1987).

Em 1941 surgiu o Serviço de Assistência aos Menores (SAM), para atender menores "carentes" e delinqüentes, "institucionalizá-los e estudá-los" (FJP, 1987, p.33). O SAM administrava orfanatos e escolas-modelo que funcionavam, na realidade, como reformatórios. A instituição desenvolveu péssima reputação à vista do público e da imprensa, que passou a chamá-la de "universidade do crime" e "sucursal do inferno", com verdadeiras prisões onde imperavam torturas, drogas, violência, abuso sexual e corrupção administrativa (Gomes da Costa, 1991).

O governo militar comprometeu-se a moralizar, 'limpar' o setor público, problematizando particularmente a área da criança e do adolescente, dadas as denúncias relativas ao SAM. Em dezembro de 1964 o Plano Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) extinguia o SAM e criava uma instituição normativa central – a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) com objetivo de elaborar e implementar políticas de bem-estar para crianças e adolescentes, distribuir recursos e financiar as executoras de programas em nível estadual – as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEMs). O Plano centralizava nacionalmente as decisões sobre políticas e descentralizava sua implementação. FEBEMs deveriam revolucionar a atenção, promovendo abordagens socio-educativas e a desinstitucionalização.

Mas logo criticava-se a Funabem por centralizar excessivamente o poder e excluir dos processos de decisão as comunidades e os trabalhadores das instituições conveniadas e serviços de atendimento ao 'menor'. A modernização das FEBEMs esbarrava nos quadros funcionais – os mesmos do antigo SAM. Não se conseguiu implantar uma mentalidade mais adequada às novas propostas, deixando desamparadas as crianças e adolescentes, que enfrentavam problemas cada vez mais complexos, no contexto da nova urbanidade e de uma miséria maior. As FEBEMs revelavam-se, precocemente, corroídas pela burocracia e reféns das ideologias típicas dos reformatórios tradicionais. A ênfase na desinstitucionalização e em abordagens sócio-pedagógicas estava seriamente comprometida (Edmundo, 1987; Gomes da Costa, 1991).

O desgaste do projeto militar de modernização facilitou a reorganização da resistência no setor público. Reconquistava-se a liberdade de expressão e o governo tolerava mais criticismo. Fortaleciam-se associações comunitárias, como as de moradores, apoiados politicamente pelas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica. Ao final da década de 1970 estes e outros grupos tornavam-se protagonistas no cenário das políticas públicas e estratégias sociais (Krischke, 1983; Power, 1987). Denúncias das realidades vividas nas instituições para crianças e adolescentes 'carentes' e de abusos nas FEBEMs povoavam a imprensa levando, em 1975, a uma Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI (Câmara dos Deputados, 1976).

O testemunho da Dra. Lia Junqueira na CPI indignou a nação. Ela mostrou a realidade nas FEBEMs, tomando como exemplo a unidade Sampaio Viana, onde 580 crianças de até seis anos eram atendidas por trinta pessoas. Em conseqüência dessa precariedade, as condições das crianças eram "em geral miseráveis", algumas apresentando assaduras causadas por urina, que muitas vezes lhes subiam até a nuca. Muitas morriam por falta de cuidado, algumas sufocadas por mamadeiras ou até por travesseiros. Outros autores adicionavam detalhes às denúncias da CPI. Luppi (citado em Morais, 1981) listou 23 formas de tortura praticadas nas FEBEMs, incluindo surras com vassouras, isolamento em solitárias sem ar, uso de espetos nos órgãos sexuais, uso de tranquilizantes para 'acalmar' os agitados, afogamentos, estupros, indução ao suicídio e choques elétricos. A CPI confirmou muitas dessas denúncias, e as FEBEMs passaram a ser percebidas pelo público não somente como incompetentes, mas como "do mal".

Falta de unidade interna, instabilidade política, disputas pessoais e corporativas e falência administrativa juntavam-se a rebeliões cada vez mais violentas promovidas pelos internos. Estas refletiam rejeição contra maus tratos, superpopulação e falta de atividades e, em alguns casos, manipulação das crianças, por técnicos e monitores, contra administrações progressistas (Bierrenbach, 1987; Morais, 1981).

Com o passar do tempo aumentava avassaladoramente o número de crianças nas ruas. A necessidade de novas abordagens para lidar com o fenômeno era urgente, mas o sistema de proteção 'aos menores' não tinha competência estrutural ou operacional, continuando a priorizar a institucionalização e o estilo correcional. Continuava-se a associar 'assistência ao menor' com 'punição à delinquência' e a representação social de 'menor' a 'delinquente'.

A incompetência das políticas públicas para lidar com 'menores delinqüentes' e também com os 'meninos de rua' era flagrante. O discurso sócio-educativo mostrou-se impotente frente à ideologia correcional e à culpabilização das vítimas – os pobres – pelos males que os afligiam. O PNBEM resultou, paradoxalmente, na radicalização da institucionalização, do encarceramento e das medidas 'disciplinares', e na exacerbação do corporativismo funcional/institucional.

As políticas sociais refletiam, assim, o domínio de uma elite que pregava a exclusão das massas famintas e 'agressivas'. Afirmava-se um sistema de classes, e a intenção de se retirar do espaço público as classes inferiores, retornando-os à invisibilidade – às prisões, aos manicômios e às instituições correcionais. Estabelecia-se um pacto ideológico favorecendo o cumprimento da profecia que coloca os filhos dos pobres como futuros marginais, desatinados e sociopatas. Fortaleceram-se as categorias diagnósticas da psicologia, da psiquiatria, da assistência social, da sociologia e das ciências jurídicas, legitimando a intervenção institucional para 'acolher', 'reabilitar', 'proteger' e 'reinserir' socialmente os 'menores'. Reafirmava-se, 'legitimamente', essas crianças e adolescentes como incompetentes, agressivos, intrusos, doentes e criminosos em potencial, estendendo-se este estigma a suas famílias e comunidades de origem, ou seja, às massas empobrecidas. Os pobres e seus filhos representavam contraste nocivo e ameaça aos cidadãos 'decentes' e às outras crianças – as das classes econômicas mais abastadas. A salvação, para os pobres, era a resignação – aceitarem os papéis que lhes são socialmente destinados, como exército de reserva de mão-de-obra, empregados ou desempregados conforme a conveniência do mercado, escravos virtuais, cuja ambição maior não pode ir além do subemprego, da economia informal e do salário mínimo. Seriam, assim, aceitos pela sociedade decente, ordeira e trabalhadora.

A resistência florescia, entretanto, dentro do sistema, aliando-se aos movimentos por melhores condições de vida e cidadania. Rearticulavam-se idéias e ações subversivas à ordem vigente, mas essas ações não encontravam condições institucionais para seu desenvolvimento. Havia que mudar, mas o sistema era, aparentemente, imutável. Parecia um beco sem saída.

Bases ideológicas do Movimento em Defesa da Criança e do Adolescente

O ressentimento, as dissensões internas e as disputas corporativas resultantes da marginalização dos técnicos e trabalhadores das FEBEMs nas tomadas de decisão fortaleceram as críticas às políticas e práticas vigentes. Muitos profissionais, engajados na luta contra a ditadura e por melhores condições de trabalho, trabalhavam nas FEBEMs, não só por necessidade, mas também por acreditar que os internos precisavam de quem os defendesse no interior da instituição. Deixar o emprego era trair, abandonar as crianças à própria sorte. Buscavam transformar a instituição a partir 'de dentro'.

Havia, ainda, ONGs e instituições religiosas conveniadas, que acompanhavam infratores em liberdade condicional, em cujas direções encontravam-se ex-administradores ou ex-trabalhadores das FEBEMs. Constituiu-se, assim, uma rede fortemente contrária à ideologia correcional que pregava a transformação das FEBEMs e do sistema de bem-estar do menor como um todo, mexendo com a base ideológica e social que norteava as estruturas de serviços. Esse movimento congregava administradores, técnicos e outros trabalhadores, intelectuais, pais, líderes comunitários, defensores de direitos humanos e outros cidadãos. Unia esses agentes uma profunda indignação com as condições desumanas das crianças pobres, quando o país, ainda sob a embriaguez do 'milagre brasileiro', alardeava sucesso econômico e abundância material. Passaram a organizar-se, política e operacionalmente, e a estudar os movimentos sociais e pedagógicos revolucionários.

A Teologia da Libertação e Paulo Freire, considerado grande reformador pedagógico e ícone político, eram as principais referências, além da obra da argentina Emilia Ferreiro sobre o desenvolvimento infantil. Redescobriram-se Celestine Freinet e Anton Makarenko. Incorporou-se o trabalho de Michel Foucault e Erving Goffman, contextualizando-se a fenomenologia pedagógica e existencial. Constituiu-se um corpo teórico, um campo de saber, que tornou-se alma e motor do movimento.

O início da educação social de rua

Em 1974 o Unicef apoiou um estudo interdisciplinar na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), buscando trazer uma visão sociológica à análise dos problemas relacionados com crianças e adolescentes 'de risco'. O problema das crianças aban-donadas não poderia ser analisado coerentemente sem considerar questões sociais, políticas e econômicas relacionadas à produção da pobreza. Esta visão opunha-se à tradicional, que culpava as famílias dos carentes e infratores pela condição em que se encontravam (Ianni & Krause, 1975). O que já parecia óbvio – a condição social como geradora de problemas sociais – legitimava-se academicamente, e as condições das crianças passaram a ser indicadores sociais. Substituiu-se a culpabilização da vítima por uma visão social do abandono da infância e da produção da delinquência juvenil.

O engajamento da universidade na defesa e na promoção da cidadania fortaleceu os movimentos sociais. Ecoava-se Paris, 1968, quando estudantes, intelectuais e a classe operária se uniram, pela primeira vez, em um movimento de massa. Advogados da causa da criança e do adolescente, com auxílio de alguns setores da Igreja Católica, clamavam por mudanças de paradigmas. O aumento da pobreza e o colapso das redes de proteção social e dos serviços públicos contribuíam para um crescente aumento e maior visibilidade dos 'meninos de rua' nas pequenas e grandes cidades. O sistema de proteção ao menor estava falido, sem estratégia, sem criatividade, sem possibilidade de solução.

Ao contrário, o movimento social pelos direitos da cidadania florescia com força inimaginada. Uma nova sensibilidade social gerava turbulência política e congregava grupos diversos e, até, historicamente antagônicos, como trabalhadores e intelectuais, cristãos e marxistas, profissionais liberais e líderes comunitários. Projetavam-se os desejos de uma massa que necessitava de uma bandeira viva. E não havia bandeira mais legítima e inquestionável que as crianças e adolescentes de rua – os mais oprimidos, as maio-res vítimas da injustiça, filhos das favelas, a prole dos deserdados.

Os ativistas pela libertação dos oprimidos rejeitavam o conformismo, a manutenção do status quo e o modelo de serviços que reproduzia estruturas de poder. Sentiam-se também oprimidos, e seu engajamento não era somente atuação profissional, mas uma profunda identificação existencial – 'com' e 'como' os explorados, empobrecidos, perseguidos e oprimidos. Suas práticas deviam responder às necessidades das crianças, mas também a suas próprias angústias e inquietações sociopolíticas e profissionais. Despiram-se de suas identidades como 'monitores', 'estudantes', 'trabalhadores sociais' ou 'educadores'. Eram estudantes, mas de um processo de transformação; líderes intelectuais, pensadores e executores de um projeto social e político transformador; defensores da cidadania; promotores, organizadores e facilitadores do trabalho comunitário; membros de um movimento político e profissional de resistência; educadores engajados na defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, sobretudo os mais oprimidos, os de rua: Educadores Sociais de Rua.

Esses profissionais, ao final dos anos 70, estavam pressionados pela urgência do problema das crianças nas ruas. Com apoio político da Igreja Católica e inspirados nas propostas referenciais das pedagogias libertárias, alguns deles foram para as ruas encontrar as crianças e adolescentes, considerando esta uma atividade profissional e de solidariedade humana. Isso ocorreu em 1979. Uma dúzia de jovens, a maioria graduados em antropologia, sociologia ou teologia, sob os auspícios da Pastoral do Menor, começou a trabalhar, organizadamente, no centro de São Paulo, sobretudo na praça da Sé. Esse grupo foi o primeiro no mundo a se denominar Educadores Sociais de Rua ou, simplesmente, Educadores de Rua.

A Pedagogia da Presença

Os primeiros educadores de rua eram ligados, de alguma forma, à ideologia cristã, e autodidatas – não havia treinamento específico nem supervisão. No processo construtivista de um saber compartilhado, adotaram, como rotina, encontros semanais, em que trocavam idéias, avaliavam seu trabalho e balizavam suas experiências. Os encontros funcionavam como grupos de estudo, onde circulavam textos proibidos no Brasil pela ditadura e contrabandeados do Chile, à época, em situação política de maior liberdade. Germinou aí um arcabouço pedagógico, a 'Pedagogia da Presença', metodologia caracterizada por princípios, posturas, atitudes e procedimentos voltados para a intervenção com crianças nas ruas e pano de fundo para a prática dos educadores sociais.

Muitos adolescentes em circunstâncias difíceis não têm acesso a afeto estável e leal, quer dizer, não têm acesso aos benefícios da presença. É muito distante de suas experiências pensar que suas vidas são valorizadas por alguém, que sua existência pode fazer alguém feliz (Gomes da Costa, 1991, p. 26).

A Pedagogia da Presença desafia o conformismo implicado nos métodos de 'reabilitação social'. Propõe uma análise crítica da socie-dade e sustenta que esta necessita tanto ou mais de 'reabilitação' quanto os jovens 'anormais'. Gomes da Costa chama atenção para esse conformismo, analisando o significado de 'reabilitar' ou, como se usava, 'ressocializar':

Ressocialização ... geralmente implica uma identidade perfeita entre os hábitos de uma pessoa e as leis e normas que presidem o funcionamento da sociedade. Uma aderência prática à sua dinâmica, uma submissão a seu ritmo, uma total incorporação de seus valores. Em outras palavras, uma adaptação total ... Nesta visão conta a adaptação comportamental: o jovem deve funcionar sem causar dano digno de nota. A sociedade se impõe como valor em si e o mais importante. A perspectiva do jovem não tem importância. Busca-se mudar o comportamento anti-social, os atos delinqüentes e outros atos que perturbam a co-existência. Espera-se que o jovem em circunstâncias difíceis se integre à sociedade como um elemento produtivo e obediente sem levantar nenhuma forma de problema social. Neste ponto se diz que o jovem foi 'ressocializado'. (Gomes da Costa, 1991, p.26-7)

De acordo com a Pedagogia da Presença, o primeiro e mais importante passo para ajudar o jovem a superar as dificuldades pessoais é a reconciliação consigo e com os outros. O foco não é ressocializar (expressão sem grande significado pedagógico), mas possibilitar uma socialização que permita uma vida mais digna e humanizada. Fazer-se construtivamente presente na vida, no mundo, na realidade do jovem que enfrenta circunstâncias difíceis é, portanto, a primeira e mais importante tarefa de um educador libertário. A habilidade de formar um vínculo significante e produtivo não é, segundo os educadores sociais de rua, inaprendível e intransferível. Pode ser aprendida e apreendida, desde que haja uma atitude aberta, disposição, sensibilidade, compromisso e dedicação, por parte daquele que quer aprender – o educador-aprendiz.

Ao buscar uma relação significante e comprometida com o jovem o educador tem que balancear doação e contenção, equilibrando-se dialeticamente entre a proximidade e a distância. Busca proximidade com o jovem, identificando-se com seus problemas de forma efusiva, empática e significante, construindo um vínculo de qualidade. Mas precisa certa distância, que permita a observação crítica, que possibilite a percepção de suas próprias ações no contexto educativo. Freire (1986, p. 12) aponta a tensão entre a conceituação conservadora de reabilitação social e a exploração de novas possibilidades pedagógicas:

Até que ponto vai ser possível ... inventar uma pedagogia que não seja a da conversão ... mas a do crescimento, que não se faz sem a transformação da realidade concreta que está gerando injustiças ... vamos cair na dimensão política ... mas ... não a serviço de dominações, mas a serviço da mudança radical da sociedade ... se pensamos numa Pedagogia que ajude a preservação da sociedade tal qual ela está aí, esta sociedade irá continuar a preservar exatamente esta diferença radical entre estes dois mundos.

A Pedagogia da Presença rejeita adaptações baseadas na mudança pura e simples do comportamento do jovem. Espera-se mudança de comportamento, mas como conseqüência de transformações estruturais na sociedade e de transformações pessoais resultantes do crescimento espiritual coletivo.

Verdadeira ressocialização vai muito além das aderências rudimentares ao establishment ... é o jovem ressocializado que valoriza cada membro da comunidade e todos os seres humanos, respeitando-os em suas individualidades, seus direitos e propriedades. Este jovem se comportará desta maneira não por causa da lei ou por medo de sanções, mas por causa de uma ética pessoal que determina o outro como valor em relação a si mesmo ... estará apto a julgar aspectos positivos e negativos da sociedade da qual ele é membro. Ele reconhecerá os desvios que distorcem a co-existência coletiva e estará disposto, apesar das dificuldades, a lutar por seus legítimos interesses pessoais e sociais ... A verdadeira ressocialização, portanto, não é uma aceitação cega, uma concessão sem demandas, ou uma assimilação sem dignidade. É uma possibilidade humana que se desenvolve em direção a uma pessoa equilibrada e um cidadão completo. (Gomes da Costa, 1991, p.28)

O conceito de 'ressocialização' foi reinterpretado por Bulgarelli (1987) à luz do problema da delinqüência:

Pedir para uma criança ou jovem que vive na rua para parar de roubar é como pedir a sua morte, é uma proposta que não leva a nada. A preocupação mais ampla do educador é que ninguém tenha que roubar para sobreviver, é buscar no imediato e emergencial alternativas de sobrevivência reais e conseqüentes. E não vai fazer isso para que os meninos apenas parem de roubar, mas para que eles sejam felizes, se realizem enquanto pessoas humanas, para que possam participar da sociedade e da transformação dela através de outras formas de organização. (p.25)

Bulgarelli exemplifica a reconstrução pedagógica proposta pela ESR ao examinar outro assunto importante no trabalho da rua – o uso de drogas:

Não será arrancando o saquinho de cola das mãos dos meninos que iremos resolver o problema. Seria uma atitude desesperada e autoritária de quem não sabe o que fazer. Arrancar a cola é como arrancar o apoio, o prazer, a segurança, o mundo em que estão vivendo. É a maneira mais fácil de perder a confiança deles, aumentando ainda mais a distância que nos separa. (Bulgarelli, 1987, p.26-27)

A Pedagogia da Presença nega formas tradicionais de reabilitação social, que perpetuam a marginalização das crianças, advogando, ao invés, a necessidade de o educador trabalhar seu próprio desenvolvimento profissional e pessoal, para melhor entender os jovens e construir, com eles, vínculos de qualidade. Algumas sugestões práticas são trazidas por Gomes da Costa e pelos agentes de pastoral:

A presença de adultos no mundo dos jovens em circunstâncias pessoais e sociais difíceis não deveria ser, como usualmente é entre nós, intervencionista e limitada. Estar-com-o-aluno é um ato que envolve consentimento, reciprocidade e respeito mútuo ... A (principal) razão ... será sempre a libertação dos jovens ... É necessário entender os jovens individualmente e não em relação às normas e paradigmas que eles possam, por acaso, ter transgredido; é necessário entendê-los no contexto singular, na história única que é deles, e então libertá-los dos rótulos impostos, das categorias que ameaçam aprisioná-los. (Gomes da Costa, 1991, p.21-24)

Na perspectiva da Pedagogia da Presença, um papel fundamental do educador é catalisar experiências baseadas na solidariedade grupal e no respeito pelo coletivo, o que implica privilegiar uma ética do coletivo, mas que admita a construção de relações significativas representadas no plano individual. Isto deve ocorrer segundo três estágios, que se desenvolvem concomitantemente: o 'namoro', a construção da confiança e o fortalecimento do vínculo.

O 'namoro' é o processo inicial de abordagem da criança no seu ambiente, na rua. É um processo de sedução, uma maneira de chegar, de buscar a proximidade, de mostrar-se e produzir a vontade do encontro. O educador deve estar consciente de que está não só abordando a criança, mas entrando em contato com toda a subcultura da rua:

[O educador] deve observar e respeitar a liberdade do garoto, aprendendo com ele ... sem medo, com uma atitude de escuta e aprendizado, num diálogo livre e sem questionamentos, e ... conhecer seu ambiente ... características e costumes. (Unicef, MPAS, 1983a, p.7)

A rua é um grande palco, com muitos atores em muitos papéis diferentes ... Nós temos que entender o cenário, de outra forma não vamos poder entender as crianças. (Um educador de rua)

Paulo Freire (1986) pontuou a importância da abordagem de crianças nas ruas:

Nós precisamos ter cuidado para não invadir o mundo do menor, se ele não quiser ser invadido; não ultrapassar o espaço vital da criança, que é real, se ela não quiser. Pois isto seria um ato de violência. Nós devemos esperar pelo 'momento mágico' quando a criança está desarmada. É necessário uma paciência histórica, para esperar o desabrochar deste momento – o momento em que descobrimos o mistério existencial da criança. (p.13)

Estes ensinamentos guiavam os primeiros educadores sociais de rua. Um deles testemunha:

No início era a escuta, a prática de abordar, respeitando, não impondo valores mas tentando perceber os valores das crianças ... a idéia não era ter um projeto já elaborado, mas construir um projeto com a criança. Não era "vamos para a rua para tirá-los da rua" ... (mas) "vamos para a rua para criar uma relação efetiva e pensar e discutir, com a criança, a situação delas nas ruas e se nós vamos propor algo".

Se a criança aceita o 'namoro' o educador começa a construir a confiança, a partir daquele com quem se estabelece a primeira relação, e com o resto do grupo. Tornam-se fundamentais a técnica (por exemplo: desenvolvimento de atividades lúdico-pedagógicas), as qualidades pessoais e a vocação.

Amar a criança como ela é, respeitando sua dignidade e liberdade ... ajudando-os a participar em atividades que sejam atrativas e interessantes para eles ... ser autênticos para ter credibilidade e criar a confiança ... movidos para a ação por uma vocação autêntica. (Unicef, MPAS, 1985, p.9-12)

O vínculo forte e significativo, principal objetivo pedagógico, é função da interação das presenças. Até hoje, para os educadores sociais, o sucesso do trabalho se mede pela qualidade desse vínculo. Atividades educativas, parte importante deste processo, funcionam não só como experiências coletivas fundamentais, mas como um meio para fortalecer o vínculo com os jovens e adquirir influência em suas vidas. O desenvolvimento do vínculo demanda grande disponibilidade pessoal por parte do educador – para que o educador adquira significância na vida dos jovens, estes devem adquirir significância na vida do educador. O educador tem que fazer-se disponível e dar aos jovens seu apoio incondicional, demonstrando lealdade e amizade, sendo seu advogado e dividindo com eles momentos de lazer. Como sugere Gomes da Costa (1991, p.29), "é necessário superar os contatos superficiais e efêmeros e intervenções técnicas puramente objetivas. Somente a presença poderá quebrar o profundo isolamento (dos jovens) sem violar seu universo pessoal".

Em psicanálise, o vínculo como possibilidade de influenciar o outro é o princípio básico da transferência. O impacto do cliente sobre o psicanalista é inerente à dinâmica transferencial, e a habilidade de lidar com esta dinâmica, a base da intervenção terapêutica. Na Pedagogia da Presença esta dinâmica se define no Princípio da Reciprocidade, entendida como uma interação entre duas 'presenças' que se revelam mutuamente, aceitando-se e comunicando (de um para outro) uma nova consistência, um novo conteúdo, uma nova fortaleza, sem tornar necessário que a originalidade inerente de cada um seja posta em risco mesmo que levemente. A reciprocidade ... explica estes sucessos que surgem inesperadamente, quando todas as esperanças razoáveis parecem ter desaparecido. Por trás destes resultados há sempre uma pessoa-chave que foi capaz de desenvolver uma relação pessoal com o jovem, que ensinou a ele valores que ele já não tinha razão para acreditar. Alguém entendeu e aceitou as experiências de vida da criança e comunicou claramente sua solidariedade e a força do agir. (Gomes da Costa, 1991, p.31)

Pelo princípio da reciprocidade, transformações ocorrem tanto no jovem como no educador, sendo esta uma diferença fundamental em relação a sistemas pedagógicos nos quais se parte do princípio de que apenas um – o aluno – deve se transformar. Aceitando a possibilidade de mútuas transformações, o educador aventura-se existencialmente. Conta, aí, com habilidades profissionais, arsenal técnico e qualidades pessoais. Por isso necessita dominar o desenvolvimento de atividades pedagógicas interessantes para os grupos com que quer se relacionar; deve conhecer os princípios que regem sua profissão, os fundamentos teóricos que a norteiam; ter uma postura crítica para com os valores da sociedade em que vive; e respeitar as crianças, os grupos e subculturas para os quais dirige sua intervenção.

A ESR é, assim, uma pedagogia transformadora. O educador deve estar aberto a transformar seus pontos de vista, suas opiniões, sua relação com os jovens e os que os cercam, suas idéias sobre a subcultura com que entra em contato, sobre os grupos envolvidos, sobre as instituições, as dinâmicas de relacionamento, sobre todas as coisas mostradas como certas, justas e solidamente fundamentadas na razão. Esta práxis se sustenta nos sentimentos de compaixão, amor e compromisso incondicional para com a justiça e para com as crianças e jovens que a sociedade cria e abandona à própria sorte. Não têm lugar, na ESR, educadores avessos a essa transformação ou que não possuam a força interior necessária para enfrentar os riscos dessa práxis. As tarefas pedagógicas representam o escopo da ação, mas não definem as razões para a presença junto ao jovem. Estas serão sempre ligadas à libertação dos jovens – conforme definida pelos cânones de uma pedagogia libertária –, uma demanda essencialmente existencial e que se posiciona para além das burocracias e rotinas do trabalho institucional (Freire, 1970; McLaren, 2000).

Projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua

A fase pioneira, experimental, da ESR, a que denomino 'fase romântica', durou cerca de quatro anos apoiada, entre outros, pelo Unicef e pelo Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), que implantaram, em 1982, o Projeto Alternativas de Atendimento aos Meninos de Rua. Seu principal objetivo, desenvolver abordagens de intervenção comunitária, a partir da idéia de que uma adequada atenção às crianças e adolescentes 'de rua' e 'na rua'2 2 A essa altura fazia-se uma diferenciação entre crianças 'de rua', que não tinham mais vínculos de habitação com família ou grupo institucionalizado de referência, e 'na rua', que exerciam parte de suas atividades diárias nas ruas, mas geralmente mantinham vínculo com família e tinham uma habitação de referência. implica envolvimento com suas comunidades de origem. O Projeto consistia na disseminação e avaliação das experiências dos educadores da praça da Sé e de alguns projetos de base comunitária, considerados de sucesso, e principalmente voltados para o problema do desemprego.

O desemprego, à época, preocupava, sobretudo nas áreas rurais e pequenas cidades circunscritas, onde a economia se fundava em processos de produção pouco competitivos. Muitos jovens migravam para as metrópoles, mas ficavam nas cidades que iam encontrando pelo caminho e que se tornavam, mesmo temporariamente, seu novo lar. Aos poucos formou-se, nas cidades do interior em rotas de migração, uma cultura de rua: instauraram-se os costumes, uma ética e uma estética 'da rua', a partir das estratégias de sobrevivência das crianças, baseadas sobretudo no morar na rua, no trabalho informal, na mendicância e nas pequenas infrações. Havia, por isso, em muitas cidades do interior, já na década de 1970, diversos projetos para crianças de rua, privilegiavando o acolhimento e a assistência, inclusive alimentação, educação suplementar e atendimento de saúde, mas também ações voltadas para o desemprego – qualificação, treinamento e busca de emprego e/ou produção de bens em regime cooperativo (Unicef, MPAS, 1987b; 1983a).

Em 1982 o Projeto Alternativas/Unicef havia visitado mais de setenta projetos, dos quais selecionou cinco para estudos mais aprofundados: São José dos Campos (SP), Betim e Belo Horizonte (MG), Ipameri (GO) e Belém (PA) – quatro deles realizados por ONGs e um (São José dos Campos) pelo município. Os projetos focavam treinamento para o trabalho, produção de objetos domésticos artesanais, como vassouras e vasos de cerâmica, e distribuição destes em mercados. Ofereciam convênios com serviços de saúde, e quatro forneciam refeições. Todos exigiam vínculo escolar e havia serviço suplementar de apoio, além de cursos como "Educação Moral". A orientação vocacional era o elemento metodológico norteador, e o trabalho, o instrumento pedagógico. Um dos desafios era promover o emprego evitando a exploração do trabalho infantil. O Projeto visava, também, a criação de uma base de dados com finalidade de disseminar informação sobre a ESR (Unicef, MPAS, 1983a).

Com base no Projeto Alternativas e nas experiências relatadas pelos educadores da praça da Sé, foram publicados os primeiros textos sobre ESR no Brasil, a série Ponto-de-Encontro. O primeiro título, Educador de rua (Unicef/MPAS, 1983b), reunia objetivos, metodologia e princípios pedagógicos aplicados pelos educadores sociais de rua. Apresentava a ESR como um projeto da Pastoral do Menor e usava como sinônimos os termos "educador social de rua" e "agente de pastoral".

A experiência da praça da Sé, o número crescente de crianças de rua e o convênio Unicef/MPAS deram visibilidade aos educadores sociais de rua no cenário social e intelectual. Já na metade da década de 1980 capas de revistas de todo o mundo mostravam a praça da Sé, suas crianças e os educadores de rua, que passaram a influir na questão da educação fora da escola em vários países.

Da Sé à periferia: a expansão

As demandas do trabalho, associadas a expectativas de que os educadores de rua se afirmassem como líderes do movimento, trouxe os educadores para uma berlinda indesejável. Estressados e cansados, eles começavam a perceber a necessidade de mudanças. Planejaram a expansão de novos programas através da Pastoral e convidaram outras instituições a entrar no cenário da rua, a dividir o peso do trabalho.

A essa altura, o "problema meninos de rua" era já uma questão moral e política, nacional e internacional. Havia muita gente na rua, com intenções de ajudar as crianças, principalmente na Sé, onde se concentrava a atenção da mídia. Mas o empobrecimento da população já propiciava situações organizadas de rua na periferia. A estratégia era fomentar grupos de educadores em outras praças do centro e nas comunidades periféricas, para trabalhar não somente com as crianças e adolescentes, mas com famílias e a comunidade. Era propício trabalhar na organização comunitária e com ações para a defesa dos direitos dos cidadãos. Surgiram, assim, no contexto de uma Pedagogia Social de Base Comunitária, os Centros de Defesa de Direitos da Criança e do Adolescente – grupos comunitários agindo na perspectiva de uma educação civil, isto é, enfatizando a igualdade de direitos para todos os cidadãos. Tornaram-se uma referência, um lugar onde a comunidade podia achar ajuda e que oferecia educação sobre direitos da cidadania. Conve-niados eventualmente com agências governamentais, foram-lhes delegados alguns serviços comunitários, tornando-se uma base de trabalho para educadores sociais de rua.

A ESR enfrentava, aí, uma crise de identidade; não era simplesmente uma técnica, uma disciplina ou mesmo uma profissão. O compromisso, o envolvimento comunitário, o engajamento político e o conseqüente risco, e o antagonismo a certas ideologias e instituições a caracterizavam como um movimento, liderado por educadores-intelectuais, mas com participação diversificada, pelos direitos da cidadania e pela causa da criança e do adolescente; e um sistema pedagógico de transformação social. A tendência era definir-se como uma pedagogia política, voltada para os direitos das crianças e dos cidadãos.

O Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua

Os primeiros educadores sociais de rua, os agentes de pastoral, conseguiram garantir sua presença significativa e sua disponibilidade incondicional para as crianças, mas o projeto de desenvolver a consciência crítica das crianças e da comunidade falhava dadas as demandas assistenciais – crianças com fome, frio e doentes. Eles precisavam de alianças para concretizar o projeto político que não estavam conseguindo realizar.

Em 1984 o Projeto Alternativas patrocinou o Primeiro Seminário Latino-Americano de Alternativas Comunitárias para Crianças de Rua, em Brasília. Nesse Seminário vários grupos comprometidos com a causa das crianças de rua, reconhecendo que a ESR caracterizava um movimento político, resolveram oficializar o movimento como tal. Surgiu, aí, uma ONG histórica na causa da criança e do adolescente: o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que apresentava como um princípio básico

Fortalecer as práticas libertárias que considerem meninos e meninas de rua como agentes de suas próprias vidas, promotores de uma nova sociedade justa, fraternal e participativa, em conjunto com todos os segmentos oprimidos que hoje lutam por sua liberdade. (MNMMR, 1985, p.1)

Como a Pastoral do Menor, o Movimento enfatizava a luta pelos direitos das crianças e a busca por alternativas educacionais baseadas em suas realidades. Visava ajudar a construção de "projetos de vida" e desenvolver uma consciência crítica que levasse à transformação das estruturas sociais injustas (ibidem, p. 2). Evitando a assistência, promoveria a organização política das crianças e adolescentes.

Os membros do Movimento não eram denominados educadores, mas 'militantes'; porém, o Movimento estabeleceu o primeiro Centro de Formação em ESR, que passaria a fornecer o modelo, daí em diante, para a maioria absoluta dos educadores sociais. Em junho de 1985 o Movimento promoveu seu primeiro encontro nacional, em Brasília. Um ano depois promoveu, também em Brasília, o Primeiro Encontro de Meninos e Meninas de Rua, patrocinado por Unicef, Funabem e Misereor. Esse Encontro passou a realizar-se, a cada três anos, em Brasília, com freqüências de mais de mil crianças e adolescentes de todo o país.

O Movimento cresceu de forma descentralizada, as crianças e adolescentes participando dos processos de decisão em praticamente todos os níveis. Publicou relatórios sobre o extermínio e outras formas de violência contra crianças e adolescentes de rua e avançou a proposta pedagógica da ESR, em aspectos fundamentais: politizou a organização das crianças e adolescentes e promoveu sua autonomia ("senhores de seus próprios destinos"); focou sua ação pedagógica na produção de "projetos de vida"; desenvolveu a formação pedagógica e política de Educadores Sociais; e atuou na defesa das crianças e adolescentes, em nível nacional e internacional. Tornou-se um marco na evolução de uma Pedagogia Política e de Direitos.

Educação em meio aberto

Outro marco teórico importante da ESR foi o desenvolvimento do conceito de Educação em Meio Aberto. Durante o inverno de 1985, um grupo de monitores da FEBEM-SP promoveu uma campanha de doação de roupas para crianças desabrigadas. Com apoio da comunidade e catalisando uma aliança entre a Secretaria da Promoção Social e a FEBEM, a campanha captou apoio político e recursos humanos e financeiros, e acabou resultando no primeiro abrigo não governamental para crianças em São Paulo – o Projeto Criança de Rua (PCR), localizado num velho prédio abandonado da FEBEM, na Vila Maria, na periferia da capital. Foi o primeiro abrigo institucional que aceitou crianças sem referência de outra instituição e que lhes permitia ir e vir por sua própria iniciativa, dentro do horário de funcionamento.

Numa típica noite de inverno, o PCR recebia cerca de 180 crianças, oferecendo-lhes banho de chuveiro, jantar e atendimento médico e de enfermagem, em caráter limitado, provido por voluntários. As crianças tinham de sair pela manhã, mas depois passou-se a permitir que ficassem no local e realizassem atividades, estruturadas ou não: recreação, artes e educação profissionalizante. Podiam também lavar roupas, fazer trabalhos de escola ou simplesmente ficar no Projeto. Algumas ficavam para não se expor à polícia ou às gangues.

As atividades educacionais se realizavam no espaço aberto. Essa metodologia, necessária pela inexistência de salas, eventualmente passou a ser uma escolha para os encontros pedagógicos, o que implicava criatividade, pois a abordagem é diferente do ambiente contido, da sala de aula. O Projeto, em seu pátio ou no contato inicial com a criança na rua, desenvolveu uma sensibilidade e uma tecnologia do encontro, de forma a torná-los pedagogicamente produtivos. Produzia-se, assim, uma Educação em Meio Aberto que, por proximidade institucional, repercutiu no trabalho da FEBEM e da Escola Oficina,3 3 Projeto social de pequeno porte, localizado no centro de São Paulo, que angariou respeito pela excelência de seu trabalho junto a crianças de rua. entidades que passavam a constituir, junto com a Secretaria da Promoção Social-SP, um laboratório pedagógico para uma nova tecnologia social.

Freinet já praticava, no início do século XX, a Educação em Meio Aberto, associada à pedagogia pelo trabalho e à aproximação da escola com as comunidades (Freinet, 1973). Mas a experiência brasileira de aplicação desse modelo pedagógico, na segunda metade do século, constituiu uma renovação, uma retomada e, dadas as circunstâncias, uma reinvenção.

Aproveitava-se, assim, o espaço grandioso da FEBEM, apesar de todas as trapalhadas institucionais e administrativas que a levaram à falência como mecanismo de reabilitação, para uma proposta pedagógica inovadora e constitutiva de uma pedagogia política e de direitos. Era flagrante o contraste entre as idéias libertárias dessa pedagogia e as rebeliões violentas, escândalos administrativos e execração pública da FEBEM. Em meio à adversidade encontravam-se, entretanto, profissionais dispostos a disseminar novas propostas pedagógicas comprometidas com o bem-estar das populações excluídas.

A partir dos educadores sociais da praça da Sé, do Projeto Alternativas, do PCR, da FEBEM e da Escola Oficina, e dos militantes do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, distinguem-se três formas de abordagem, ou três sistemas, como marcos teórico-metodológicos da ESR: a Educação em Meio Aberto, a Pedagogia pelo Trabalho e a Pedagogia da Presença.

Educação de rua como proposta de governo

Em 1987, no governo Orestes Quércia, criou-se a Secretaria do Menor (SM) do estado de São Paulo, primeiro órgão governamental voltado explicitamente para a criança em situação de rua. Seu status de secretaria especial, com recursos da Fundação Baneser, proporcionava uma situação privilegiada para os educadores, que foram funcionalmente legitimados – inseridos na folha de pagamento – estabelecendo-se critérios para sua seleção (por exemplo: nível educacional superior). A SM criou programas para diferentes categorias de crianças e adolescentes e priorizou a arte como ferramenta pedagógica. Ficaram famosos seus circos, que levaram a educação artística às crianças e aos adolescentes da periferia.

Mas a SM marcou um cisma profundo na ESR, pois esperava-se um órgão normativo, que fortalecesse as agências já existentes; que poderia até desenvolver programas próprios, mas para servirem como modelos; e não que se tornasse o maior provedor de serviços diretos para a criança e o adolescente no país. A SM passou a competir no campo, em vez de assumir o papel de parceira com funções diferenciadas. Havia, também, um abismo ideológico entre os educadores sociais pioneiros e seus seguidores, que percebiam a ESR como um processo político-pedagógico libertário, e o projeto da Secretaria, voltado para abordagens essencialmente técnicas. O educador da SM não assumia, na visão dos outros educadores, uma postura em prol da libertação dos oprimidos, embora, em seu Centro de Formação, estudassem Paulo Freire, além da psicologia do desenvolvimento. Os educadores pioneiros eram comprometidos com um processo pedagógico de significância política; os da Secretaria, técnicos, profissionais e, pior, "agentes de propaganda de governo" e "ignorantes das bases filosóficas fundamentais" que marcavam a ESR (Oliveira, 2004). A gota d'água surgiu quando a secretária Alda Marco Antônio anunciou que a SM havia inventado a ESR (Secretaria do Menor, 1987). A SM pecou, ainda, por reproduzir os mesmos problemas que minaram o PNBEM: centralização de poder, marginalização dos articuladores do pensamento crítico e alienação das entidades já existentes, negando o trabalho e a construção conceitual já estabelecidos.

Enquanto se desenvolviam essas duas vertentes profissionais distintas e aparentemente irreconciliáveis, outro movimento social tomava vulto: o Movimento das Diretas-Já, que redundou na queda da ditadura e transformou-se no movimento pela promulgação da nova Constituição. O movimento pela causa da criança e do adolescente influenciou fortemente a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Estatuto da Criança e do Adolescente

A sociedade representou-se, no movimento constituinte, principalmente por ONGs, que atuaram decisivamente na formulação do artigo 227, que lida com as crianças e adolescentes, e da Lei 8.069/90, que o regulamenta – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

O ECA promove a descentralização, transferindo poder do nível federal para os níveis estadual e local, enfatiza o direito das crianças e adolescentes a serviços sociais, inclusive educacionais e de saúde, e propõe transformações profundas no sistema judiciário infanto-juvenil. Por esses e outros motivos foi, desde o início, alvo de imensas controvérsias.

A disseminação, implementação e cumprimento do ECA tornou-se o foco do trabalho de muitos educadores sociais de rua. Porém, outros educadores, o resto da população, tinham sérias restrições às provisões do Estatuto, considerado, por muitos, como extremamente liberal e não realista, especialmente no contexto do cotidiano do Brasil. Mesmo os que tradicionalmente defendem os direitos das crianças, mostram sua insatisfação sobre como o ECA lida, por exemplo, com diferentes questões, desde o fenômeno da delinqüência, até a regulamentação do trabalho infantil – que focaliza principalmente o trabalho das crianças pobres.

A questão da inimputabilidade penal até 18 anos gerou um movimento para baixar a idade limite; a prisão de crianças e adolescentes e o estabelecimento e competência de Conselhos de Direitos e Conselhos Tutelares têm sido também alvo de infindáveis disputas. O debate público em torno do ECA eventualmente fez os educadores sociais de rua passarem a se dedicar ao conhecimento do direito. O foco da ESR foi ampliado para o terreno da jurisprudência, das leis e dos tribunais. De uma pedagogia social e teológica (Pastoral do Menor) e, posteriormente, essencialmente laica e política (Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua) a ESR passou a caracterizar-se, definitivamente, com o ECA, como uma Pedagogia de Direitos.

O fim da era de ouro da ESR e perspectivas atuais

A Funabem foi substituída, no início da década de 1990, pela Fundação Centro Brasileiro para a Infância e a Adolescência – FCBIA. A SM-SP fundiu-se com a Secretaria da Promoção Social, na mega-secretaria da Criança, da Família e do Bem-Estar Social, que incorporou a FEBEM, numa ação administrativa desastrosa. Em 1993, uma rebelião de proporções inauditas incendiou, pela primeira vez, o quadrilátero do Tatuapé, sede e símbolo maior da FEBEM. A rebelião propiciou novas mudanças na instituição e marcou a recrudescência da mentalidade correcional.

Com o enfraquecimento da ESR, desde a cisão promovida pela Secretaria do Menor; com muitos educadores de rua assumindo cargos de direção e supervisão e deixando 'a ponta' desguarnecida; sem apoio financeiro, e com a descontinuidade causada por mudanças políticas, a ESR colapsou, entrou em estado latente, como permanece até hoje. Alguns projetos esparsos sobreviveram, como o Projeto Axé, na Bahia, a Escola Porto Alegre e o Projeto Comunitário da Mangueira, no Rio de Janeiro. Alguns educadores sociais continuam trabalhando, em caráter precário e sem grande apoio estrutural.

As ONGs continuam a ocupar grande espaço na defesa das crianças e adolescentes, e têm papéis diversificados. A multiplicação dessas ONGs trabalhando com crianças na rua gerou, por um lado, uma presença maior da sociedade civil na atenção às crianças e adolescentes. Por outro lado, dadas as características de atuação e financiamento do Terceiro Setor no Brasil, percebe-se um alto grau de competição entre muitas dessas organizações, que pode gerar até mesmo estratégias 'deseducativas', no sentido de levar as crianças a se refugiarem em uma ou em outra, de acordo com suas conveniências imediatas.

Um aspecto a ser aprofundado, no trato com as questões envolvendo a atenção a crianças e adolescentes, é o papel das famílias. O trabalho socioeducativo é administrado primordialmente pelo Estado ou por organizações privadas do Terceiro Setor. De acordo com os princípios da ESR, para que o vínculo com as crianças e adolescentes possa assumir sua potencialidade maior, deve se incluir o vínculo com a comunidade e as famílias. O esforço político-social da ESR deve, assim, incluir esse aspecto da vinculação, trabalhando até mesmo a responsabilização dessas famílias e comunidades, sem a qual o processo de socialização positiva pode ficar seriamente comprometido. O fato de que nem todas as crianças que estão nas ruas têm família, e esta não necessariamente se encontra em estado de miserabilidade absoluta, aumenta a importância potencial da vinculação comunitária e familiar.

A ESR pode ter um lugar importante a partir de sua insti-tucionalização como política social. Alguns esforços foram envidados neste sentido, além do exemplo clássico da Secretaria do Menor em São Paulo, mas os retrocessos se repetem, em parte pela perda de visão estratégica e em parte pelos cortes substanciais e generalizados aos programas sociais no país. Um exemplo ilustrativo é o de Porto Alegre, onde se criou a Fundação de Educação Social e Comunitária – Fesc, que depois, ainda durante o período da chamada Administração Popular, foi transformada em Fundação de Assistência Social e Comunitária – Fasc. A onda recente de Educação Popular, coordenada de dentro do MS, vem tentando, em meio aos problemas inerentes à sua identidade de governo, retomar idéias que foram desenvolvidas pela ESR.

A latência da ESR significa uma enorme perda do ponto de vista histórico e estrutural. Adotada em outros países, onde tomou formas diversas, a ESR espera ser redescoberta, pois tem uma grande contribuição na busca de soluções para os nossos problemas sociais.

Recebido para publicação em junho de 2005.

Aprovado para publicação em agosto de 2005.

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  • 1
    Abordagem sistêmica, como na sociologia dos Estados Unidos e da Europa ocidental, sobre os valores, crenças e comportamentos que constituem as culturas. 'Subcultura' não expressa, nesta abordagem, uma relação de inferioridade, mas indica que uma determinada 'cultura' está contida, ou contextualizada, em culturas mais abrangentes, numa relação de hierarquia sistêmica. Assim, a 'subcultura da rua' no Brasil está contida e é parte de um contexto cultural maior – a cultura brasileira em geral –, e assim por diante. Sobre o significado e a abrangência do termo consultar Hannerz (1992), Hebdige (1979), Kephart (1982), Maurer (1981) e Schwedinger & Schwedinger (1985).
  • 2
    A essa altura fazia-se uma diferenciação entre crianças 'de rua', que não tinham mais vínculos de habitação com família ou grupo institucionalizado de referência, e 'na rua', que exerciam parte de suas atividades diárias nas ruas, mas geralmente mantinham vínculo com família e tinham uma habitação de referência.
  • 3
    Projeto social de pequeno porte, localizado no centro de São Paulo, que angariou respeito pela excelência de seu trabalho junto a crianças de rua.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Mar 2007

    Histórico

    • Recebido
      Jun 2005
    • Revisado
      Ago 2005
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