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Carta do editor

CARTA DO EDITOR

Como em outras partes do mundo, as epidemias de cólera tiveram grande impacto sobre a sociedade argentina. No artigo que abre a presente edição de História, Ciências, Saúde — Manguinhos, Adrián Carbonetti e María Laura Rodríguez analisam os anúncios veiculados pela imprensa acerca de produtos e, em menor medida, de práticas capazes de prevenir ou curar a doença durante a primeira epidemia (1867-1868). Estudando o caso de Córdoba, que perdeu então cerca de 8% de sua população, os historiadores argentinos apresentam receitas caseiras, compostos químicos avalizados por médicos estrangeiros, o cigarro e outros produtos capazes de dissipar os maus odores, à época associados à propagação do cólera, artigos suntuários que continham álcool para neutralizar o suposto esfriamento do organismo e outros artefatos oferecidos a uma população aterrorizada, que buscava evadir-se de um destino que parecia inevitável.

No artigo intitulado "Origem e destino revisitados: a clonagem entre a profecia e a promessa", Ana Maria Coutinho Aleksandrowicz e Fermin Roland Schramm analisam as opiniões sobre a clonagem terapêutica e reprodutiva externadas pelo biofísico e filósofo francês Henri Atlan num livro que publicou em 1999 junto com um antropólogo, uma jurista, um orientalista e uma historiadora. Na contracorrente dos discursos críticos em relação à suposta capacidade da biotecnologia de violentar ou escravizar a 'natureza humana', Atlan não levanta objeções filosóficas ou científicas à clonagem. No plano da racionalidade científica, manifesta visão a um só tempo otimista das pesquisas nessa direção e realista no tocante às dificuldades ligadas à sua proclamada capacidade de causar danos irreversíveis ao ser humano. Os temores de Atlan estão relacionados a outra forma de racionalidade, a mítica, tão necessária, legítima e dinâmica quanto a primeira, capaz de sujeitar os clones a sofrimentos psíquicos e sociais superiores aos possíveis ganhos biológicos.

O escritor faz uma revisão dos mitos que prenunciam as representações contemporâneas da sujeição do homem ao potencial destrutivo da biotecnociência, consciente de que seu combate intelectual é para que o progresso científico, em geral, e a clonagem, em particular, sejam informados por uma crença – expressão de racionalidade mítica – confiante, em sintonia com um projeto de libertação do ser humano.

Racionalidades científicas e mitos balizam, também, o artigo da antropóloga Priscila Faulhaber. "Interrogando as teorias sobre o arco-íris" segue e relaciona três percursos. O primeiro é o das explicações científicas sobre o arco-íris, desde Aristóteles a Newton, que, por meio de experimentação metódica, reduziu a cor a uma base quantitativa regular. O segundo percurso é o dos etnógrafos que estiveram na Amazônia na primeira metade do século XX, como Constant Tastevin, Theodor Koch-Grünberg e Curt Nimuendaju. Sua visão do arco-íris era informada pela cultura científica de seus países de origem, mas eles se preocuparam em mostrar como índios e ribeirinhos viam e descreviam o fenômeno. O terceiro percurso observado pela autora é justamente o alcance da teoria antropológica para a análise do pensamento mítico e dos conhecimentos indígenas, como formas de classificação informadas por uma teoria nativa construída sob determinada lógica. A correlação dos registros etnográficos sobre o arco-íris com a história da explicação do fenômeno leva Faulhaber a destacar a importância desses registros para a história da meteorologia, da astronomia e da etnociência.

Segundo Gustavo Caponi, a possibilidade de reduzir as ciências da vida à física e à química constitui a discussão mais recorrente da filosofia da biologia. Em "Física del organismo vs hermenéutica del viviente", o filósofo procura demonstrar que o tratamento da questão foi até agora prejudicado pelo fato de seus proponentes não terem prestado a devida atenção à clássica distinção entre biologia funcional e biologia evolutiva. Por causa disso, incorreram com freqüência no erro de contrapor teses e argumentos pró-reducionistas relativos à primeira com teses e argumentos pertinentes somente à segunda.

Apoiando-se em Ernst Mayr, Caponi explica que a biologia funcional é aquela que se ocupa das causas próximas dos fenômenos vitais que constituem o organismo individual, ao passo que a biologia evolutiva trata das causas remotas que atuam a nível das populações e explicam por que evoluem ou evoluíram de determinadas maneiras. Para Caponi, a melhor maneira de entender as diferenças entre as duas biologias é contrapor os diferentes tipos de perguntas que formulam os biólogos dedicados a um e outro domínio.

"Ciência e ensino médico no Brasil (1930-1950)" é o título do artigo assinado por Lúcia Grando Bulcão, Almir Chaiban El-Kareh e Jane Dutra Sayd. A visita aos Estados Unidos, em 1939, da missão brasileira dirigida por Oswaldo Aranha marcou o início de relações especiais com aquele país, escrevem os autores. Desde então, observou-se a entrada de grande volume de capital e tecnologia norte-americanos. Idéias, valores e modelos profissionais produzidos nos Estados Unidos tornaram-se paradigmas para a América Latina e outras partes do mundo. Concepções a respeito do que devia ser a medicina preventiva e social fizeram parte dos programas patrocinados por agências norte-americanas, especialmente a Fundação Rockefeller. Por esta via, também, impuseram-se às universidades brasileiras as concepções da Reforma Flexner, especialmente a ênfase na formação profissional científica, na pesquisa e na aplicação das ciências.

Educação é o tema de outro artigo desta edição de Manguinhos. Em "Perspectiva da epistemologia histórica e a escola promotora de saúde", o pedagogo João Batista Vianey Silveira Moura e seus colaboradores, todos de Fortaleza, abordam a educação na perspectiva filosófica de Gaston Bachelard e Thomas Kuhn. Qual é o papel da escola no desenvolvimento de estratégias educativas de promoção da saúde? — indagam os autores, que vêem na crise em que ela está mergulhada indícios de uma mudança de paradigma, a superação do fardo cartesiano e positivista em proveito de um espaço de humanização e promoção de qualidade de vida.

A reforma psiquiátrica é objeto de dois artigos na presente edição da revista. Ilana Lemos de Paiva e Oswaldo H. Yamamoto estudam a história de sua implantação no estado do Rio Grande do Norte, desde 1992, baseando-se em relatórios, legislação e prontuários e em depoimentos fornecidos por atores envolvidos no processo. O título do artigo não deixa dúvidas quanto à visão dos autores sobre as perspectivas desse movimento: "Em defesa da reforma psiquiátrica: por um amanhã que há de nascer sem pedir licença".

Por sua vez, Lys Teixeira de Alvarenga e Cristiane de Oliveira Novaes estudam a reforma em Barbacena. Apresentam a história da atenção psiquiátrica nesse município do estado de Minas Gerais e mostram que a cooperação entre gestor público e terceiro setor na implantação de residências assistidas tem propiciando agilidade e certo grau de sustentabilidade à reforma psiquiátrica. Consideram os autores que se trata de uma inovação institucional nas políticas públicas em saúde mental, e recomendam a realização de novas pesquisas sobre esta e outras formas válidas de cooperação entre Estado e sociedade.

Em "A biopolítica na genealogia da psicanálise", Joel Birman brinda os leitores com elegante ensaio no qual analisa a passagem do ideal da salvação para o da cura no Ocidente, indicando os efeitos da medicalização do social e os desdobramentos da biopolítica no discurso da psicanálise. Na tradição greco-romana, mostra Birman, a responsabilidade humana na gênese do mal não era primordial. Através das práticas de 'cuidado de si', os indivíduos pretendiam não apenas viver melhor como também se preparar para morrer, conforme os preceitos éticos do estoicismo. A relação desses sujeitos com a questão da 'finitude' foi radicalmente transformada com o advento do cristianismo. Nesse novo contexto histórico, a 'moral' da salvação transforma as coordenadas do campo ético da Antiguidade. A relação do sujeito com o mal passa à esfera religiosa, e sua relação com a finitude apaga-se ante a promessa cristã da vida eterna. Esse ideário da salvação volta a ser subvertido na modernidade, com a emergência da problemática da cura pela medicina. Entra em cena a finitude nas intricadas relações então tecidas entre os registros da 'vida' e da 'saúde', por um lado, e da 'morte' e da 'enfermidade', por outro.

Na seção Fontes, o leitor encontrará um texto inédito escrito por Joaquim Manoel de Macedo e Joaquim Norberto, em 1859, atendendo a uma solicitação feita pelo imperador d. Pedro II ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). "Para uma história da vacina no Brasil" busca estabelecer o verdadeiro introdutor da vacina antivariólica no Brasil, resolvendo a controvérsia que envolvia os nomes do marquês de Barbacena e do cirurgião Francisco Mendes Ribeiro de Vasconcellos.

Jaime L. Benchimol

Editor

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2007
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