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As condições físicas e de saúde dos escravos fugitivos anunciados no Jornal do Commercio (RJ) em 1850

Resumos

Examina as condições de saúde de uma população de escravos fugidos, com base em anúncios publicados no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro durante o ano de 1850. Para tanto, analisa as características físicas dos escravos, conforme descrição de seus senhores e, considerando a saúde do escravo, examina os problemas físicos que cada um possuía, de acordo com o saber médico ou popular da época. Essas evidências podem ser relacionadas com procedimentos ligados ao próprio sistema escravista, que privilegiava a máxima utilização dos cativos.

fugas de escravos; jornais; saúde; Brasil


The article examines the state of health of a population of runaway slaves, based on announcements published in Rio de Janeiro's Jornal do Commercio in 1850. Two strategies were used. The first entailed analysis of the slaves' physical characteristics, as described by their masters. Taking into account the slave's health, the second step was to describe his or her physical problems as viewed by the era's medical or folk knowledge. This evidence can be traced to procedures found in the slave system, which sought to maximize use of captives.

runaway slaves; newspapers; health; Brazil


IMAGENS

Programa de Pós-graduação em História/Universidade Salgado de Oliveira. Rua Carvalho Alvim 476/201. 20510-100 Rio de Janeiro – RJ – Brasil. marciaamantino@terra.com.br

RESUMO

Examina as condições de saúde de uma população de escravos fugidos, com base em anúncios publicados no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro durante o ano de 1850. Para tanto, analisa as características físicas dos escravos, conforme descrição de seus senhores e, considerando a saúde do escravo, examina os problemas físicos que cada um possuía, de acordo com o saber médico ou popular da época. Essas evidências podem ser relacionadas com procedimentos ligados ao próprio sistema escravista, que privilegiava a máxima utilização dos cativos.

Palavras-chave: fugas de escravos; jornais; saúde; Brasil.

Os anúncios publicados em diferentes jornais que circularam no Brasil durante o século XIX, relacionados a negros cativos, foram alvo do interesse de Gilberto Freyre, pelo menos, desde os primeiros anos da década de 1930. Como desdobramento desse interesse, Freyre proferiu em 1934 uma palestra no Rio de Janeiro intitulada "O escravo nos anúncios de jornal do tempo do Império" e, no ano seguinte, publicou o ensaio "Deformações de corpos de escravos fugidos" (Freyre, 1935, citado em Freyre, 1963). Segundo o próprio autor, "aquêle ensaio e a conferência proferida em 1934, no Rio de Janeiro ... desperta[ram], quando surgiram ... pouco interêsse da parte do público..." (Freyre, 1963, p.3), entretanto chamaram a atenção de um grupo reduzido, atento ao que significavam aqueles trabalhos. Roquette Pinto classificou as obras como "uma contribuição original e pioneira para as ciências do Homem, feita por antropólogo brasileiro e sôbre material brasileiro..." (p. 3).

Somente em 1963, Freyre publicou o livro O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX (Freyre, 1963). Tal obra resultou daqueles diversos anos de pesquisas pioneiras objetivando entender os aspectos sociais e cotidianos da escravidão a partir de uma fonte específica: os anúncios publicados por senhores em busca de seus cativos fugidos. Todavia, ainda naquela época esse tipo de abordagem era uma novidade em termos metodológicos e teóricos, e a obra não obteve a atenção merecida.

Tempos depois, com as alterações da historiografia, a obra de Freyre foi revisada e resgatada, apesar de vários questionamentos e discordâncias, e passou a ser percebida pela sua originalidade em termos de concepções metodológicas e uso de fontes até então desprestigiadas. Atentos às orientações de Freyre, algumas pesquisas e artigos foram produzidos sobre o cotidiano da escravidão e as fugas de escravos utilizando como fontes principais os jornais publicados em variadas regiões e períodos do século XIX (Graf, 1986; Schwarcz, 1987).

Seguindo a trilha aberta por Freyre, esta análise utiliza esse tipo de fonte para verificar as condições de saúde e dos corpos de escravos cuja fuga foi anunciada (não seria "cujas fugas foram anunciadas"?) no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, no ano de 1850. A idéia é, evidentemente, a mesma tida por Freyre e por todos aqueles que trabalharam com anúncios de jornais com o propósito de conhecer o cotidiano da escravidão. Entretanto, os anos que separam as análises pioneiras desse tipo de fonte e a produção atual da historiografia brasileira e mundial permitem enveredar por novos caminhos.

A concepção teórica e metodológica que serve de base a este texto pode ser compreendida como fruto das discussões da história social e cultural no seu sentido mais amplo, ou seja, nas discussões com as áreas que de alguma maneira se aproximam da história – a antropologia, a sociologia e a literatura, entre outras. Além disso, na medida do possível, este estudo busca incorporar os debates atuais a respeito dos grupos de procedência africana e as questões que envolvem análises sobre a saúde de populações históricas, bem como lança mão de informações imagéticas provenientes de jornais e de artistas que estiveram na cidade do Rio de Janeiro durante o século em questão.

São poucas as imagens que procuram retratar escravos e suas doenças. Todavia, analisando algumas cenas bastante conhecidas, por suas utilizações em outras abordagens, percebe-se que de certa forma havia, nos artistas da época, uma preocupação com o tema. Henry Chamberlain foi um dos que registraram a temática dos escravos da cidade. Na Figura 1 o artista mostra um grupo de africanos recém-chegados tomando ar sob os cuidados de um capataz ou feitor. De acordo com ele, "estas miseráveis criaturas ... tinham a aparência de corvos espantados ... e era extraordinário como que ainda tinham forças suficientes para caminhar" (Chamberlain, 1943). Na Figura 2, apresenta em primeiro plano um vendedor e seus escravos. Todavia, ao fundo da cena, está presente (conforme suas próprias anotações) um leproso, com a ferida da perna tampada por uma folha de bananeira para amenizar o cheiro desagradável; à sua direita, um negro porta um aro de ferro no tornozelo, marca dos fujões.



O Jornal do Commercio

O Jornal do Commercio do Rio de Janeiro era um dos principais periódicos da cidade na segunda metade do século XIX e abarcava em seus conteúdos uma variada gama de assuntos, que iam desde as notícias da Europa até os anúncios de aluguel e venda de imóveis, máquinas e escravos. A sessão que se buscou para análise é a que anunciava escravos fugitivos. Os anúncios possuem uma estrutura que, salvo algumas exceções, se repete. Neles aparecem, quase sempre, os nomes dos escravos, seus dados característicos (idade, aparência física, profissão, costumes etc.), onde viviam e, em alguns casos, os nomes dos seus proprietários. Muitos oferecem gratificação a quem encontrar o fugitivo e levá-lo ao endereço citado.

Uma frase que aparece em praticamente todos os anúncios chama a atenção: "Protesta-se com todo o rigor da lei, a quem o tiver acoitado". Registrada tantas e tantas vezes, ela parece ser vestígio de uma prática que já se disseminava então pela cidade, a proteção aos escravos fugitivos por moradores dos centros urbanos, acenando para uma provável adesão à causa abolicionista. Mas também é possível que a frase fosse um alerta a pessoas que, para obter mão-de-obra mais barata, empregavam escravos fugidos como se fossem livres.

Contudo não era só o Jornal do Commercio que dedicava uma sessão a esses anúncios; eles se repetem em vários outros jornais e locais. Alguns, para chamar a atenção do público, continham pequenas ilustrações mostrando escravos fugitivos (Figuras 3 e 4).



A importância desses anúncios para a manutenção da ordem escravista já havia sido percebida por Machado de Assis: "Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia, vinha promessa: 'gratificar-se-á generosamente' – ou 'receberá uma boa gratificação'... Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoitasse" (Assis, 1985a, p.282).

A utilização desses anúncios deve ser relacionada sempre a uma tentativa de conhecer um pouco mais o escravo que fugia, contudo trata-se de uma amostragem e, como tal, seus resultados não devem ser vistos como absolutos. São números indicativos de uma parcela da realidade escravista. Sua importância reside no fato de que, por meio dela, pode-se ter uma visão desse universo. Por esse tipo de fonte é possível analisar uma gama variada de informações sobre a escravidão. Pode-se, por exemplo, observar o perfil dos fugitivos, identificar quantos fugiam por ano, quem eram, sua procedência étnica, a prevalência de um gênero, alguns de seus comportamentos culturais, as condições de saúde apresentadas por essa população fugitiva. É esta última possibilidade que se busca nos dados apresentados a seguir.

De um total de 1.047 anúncios publicados no Jornal do Commercio em 1850, foram selecionados 409, que trazem informações sobre as condições de saúde ou sobre o corpo dos escravos fugitivos e que permitem propor algumas hipóteses sobre a saúde desses indivíduos.

Não é objetivo deste texto a análise sobre as causas das fugas dos escravos, pois tal tipo de fonte não permite avançar muito nesse campo. Pode-se apenas inferir, a partir das condições físicas apresentadas pelos escravos, que as principais causas para as fugas isoladas ou em grupo – pelo menos dos indivíduos que foram anunciados – eram maus-tratos, castigos excessivos, má alimentação e desrespeito aos direitos adquiridos. Evidentemente nem todos os escravos que fugiam faziam-no devido a maus-tratos, pois razões não faltavam para fugir, contudo é possível apreender nesse tipo de fonte que esse era inegavelmente o principal motivo de evasão, a julgar pela descrição física e pelo estado de saúde do escravo que era objeto de captura. Valendo-se das características e da saúde desses escravos, pode-se inferir a situação em que viviam.

Segundo Karash (2000, p.404), havia muitas razões para as fugas tanto de crioulos como de africanos. Entre elas a autora destaca as tentativas, por parte do escravo, de escapar dos castigos cruéis, de resistência às quebras de determinados acordos e de separação de sua família, entre outras. Ainda segundo Karash, "a incidência de fugas de escravos brasileiros e africanos para escapar de castigos cruéis é quase numerosa demais para ser mencionada" (p.404).

Outro limitador desse tipo de fonte é que ela não permite identificar as concepções dos escravos sobre seus problemas patológicos. Sabe-se que a maior parte dos escravos que viviam no Sudeste brasileiro na primeira metade do século XIX era proveniente da região centro-ocidental da África, e que embora fossem grupos de diversas etnias, havia certa identidade cultural entre eles. De acordo com Slenes (1999), entre essas pessoas a estruturação familiar baseava-se em linhagens, ou seja, grupos de pessoas que possuíam ancestrais comuns. Além disso, nessas sociedades havia a crença de que o universo era regido pelas idéias de ventura e desventura. Em sua forma perfeita se produziriam a harmonia, a saúde e o bem-estar, mas, ao contrário, quando em desequilíbrio, surgiriam o infortúnio e as doenças. Para equilibrar novamente o universo, somente recorrendo àqueles que poderiam fazer a ligação entre as divindades e os humanos, como também aos objetos sagrados e ou preparados ritualísticos. Acreditava-se também que as doenças eram causadas por desventura ou feitiço e que somente um contrafeitiço ou a proteção de um amuleto poderiam livrar do mal. A cura seria, portanto, a expulsão do mal de dentro do corpo do indivíduo por alguém que tivesse ligações com o mundo divino (Decraemer, Vansina, Fox, 1976). Com certeza eram visões bastante diferentes das partilhadas pelos médicos da época, e, evidentemente, o tipo de fonte aqui trabalhada não permite essa recuperação.

Com relação às práticas de curas realizadas pelos negros há pouca informação, entretanto Debret identificou um tipo de tratamento realizado pelos negros em plena rua da cidade, com conhecimentos específicos (Figura 6).


As características dos fugitivos anunciados

Duas estratégias foram usadas para a obtenção de um panorama das condições físicas dos escravos fugidos anunciados no Jornal do Commercio. Uma se deu por meio da análise das características físicas dos escravos fugitivos, descritas pelos senhores – marcas de castigos, cortes de cabelos, marcas étnicas, falta ou desgaste de dentes etc. De um total de 1.047 anúncios, 203 forneciam esse tipo de informação. A outra, mais ligada à saúde propriamente dita do escravo, observou a descrição dos problemas físicos que cada escravo fugido possuía, de acordo com o saber médico ou popular da época. São 206 casos, que apresentam as mais variadas condições patológicas (20%).

Para analisar as patologias apresentadas pelos fugitivos, foi necessário recorrer ao auxílio da medicina, mais especificamente à tipologia proposta por Mendonça de Souza (Florentino, 1997, p.271)1 1 Esse instrumental foi utilizado pela primeira vez por Florentino (1997, p.427ss), que analisou a população escrava em inventários do Rio de Janeiro, no período de 1790 a 1835. , em que se classifica cada tipo de problema, condição patológica ou lesão de acordo com suas características anatômicas, patológicas ou etiológicas. A Tabela 1 mostra essa classificação já com os dados obtidos na fonte. Esse instrumental foi pensado prioritariamente como ferramenta para análise dos dados sobre as condições patológicas apresentadas pela população escrava, levando-se em conta não só os conhecimentos médicos do século XIX mas também o saber leigo. Há dois enfoques nesse instrumental, cujo objetivo é recuperar o maior número possível de informações fornecidas pela fonte:

– Aspectos patológicos: referem-se às informações genéricas sobre a condição patológica ou enfermidade apresentada pelos escravos, que poderia ser de natureza carencial, infectocontagiosa, traumática, tumoral, reumática, psicossocial, má-formação ou disfunção orgânica. Vejamos um exemplo: "Fugio, um preto criou-lo de nome Luiz, magro e que mostra ter 40 annos, tem signaes de chagas nas pernas, e costuma andar nos matos" (Jornal do Commercio2 2 Utilizo doravante as iniciais JC para designar este periódico. , 12 mar. 1850; grifo meu ).

– Aspectos etiológicos: relacionam-se com o agente causador da patologia, quando este puder ser especificamente identificado, como no caso de queimaduras, infecções por certo tipo de vírus, bactérias, parasitas e outros. Exemplo: "R$500 se dará de gratificação a quem levar ou der notícia... de um preto de nome Pedro, nação rebollo, sem barba, estatura regular, com sarnas pelos braços" (JC, 3 mar. 1850; grifo meu).

Além de informações de ordem patológica e etiológica, os anúncios permitem também identificar aspectos anatômicos das principais condições físicas apresentadas pelos fugitivos. Há anúncios em que se destacam relatos como este: "machucado na cabeça, cicatriz no pé e outros". Nesse caso, embora não seja possível conhecer o tipo de patologia que possuía o indivíduo, localiza-se a região do corpo em que ele apresentava problemas:

Roga-se aos Srs. Antonio Borges Rodrigues e C. o favor de declararem se o preto apparecido em sua casa nos Cabeceiros do Brandão, freguezia do Arrozal, termo do Pirahy é o seguinte: nação benguela, estatura regular, magro, idade 18 a 20 annos pouco mais ou menos, tendo uma orelha furada, um dente da frente da parte superior quebrado, nariz fino e um sinal de cicatriz em uma das canellas. (JC, 1 mar. 1850; grifo meu)

Levando-se em conta a fonte utilizada – uma seção de anúncios sobre escravos fugidos – o resultado é um esboço, uma aproximação da realidade, pois provavelmente muitos senhores deixavam de citar vários aspectos das condições físicas dos escravos, já que os anúncios tinham tão-somente o objetivo de identificar o indivíduo fugido, e para isso bastavam algumas informações. É claramente uma fonte diferente dos inventários, em que se tem a intenção de atribuir valor ao escravo e se fornecem dados mais completos da 'mercadoria'. Os anúncios publicados na imprensa tinham como propósito tornar reconhecíveis os fugitivos, logo o principal indicativo eram as marcas que os distinguiam em meio de tantos outros, facilitando assim sua captura por qualquer um.

A confirmar o atributo de 'esboço da realidade' dessa fonte, ressalte-se ainda que ela não permite perceber o padrão de saúde da população livre, portanto não há como saber se os escravos tinham um perfil patológico diferente do resto da população. Os anúncios permitem apenas inferir as condições físicas daqueles que fugiam, ficando de fora da análise o restante da população escrava assim como a livre. Além disso, como havia também uma tendência, por parte dos senhores, a desacreditar as doenças dos escravos, considerando-as 'manhas' para escapar aos trabalhos, é provável que em muitos casos os senhores não se preocupassem em citá-las. Note-se também que a própria concepção de doença variou no decorrer do tempo e conforme a pessoa acometida. Salazar, um negociante de escravos apresentado na peça teatral O escravocrata, mostra uma concepção da época sobre a questão das doenças nos escravos: "Negro não tem licença para estar doente. Enquanto respira, há de poder com a enxada, quer queira, quer não. Para moléstia de negro, há um remédio supremo, infalível e único: o bacalhau. Dêem-me um negro moribundo e um bacalhau, que eu lhes mostrarei se o não ponho lépido e lampeiro com meia dúzia de lambadas!" (Azevedo, Duarte, 1985, p.184).

Outro limite dos anúncios decorre de sua linguagem leiga ou popular, que reduz a precisão dos termos das patologias e emprega idéias com sentidos equivalentes, como 'bexiguento', 'bexigoso' e 'com bexigas', os quais aparecem tantas e tantas vezes nos anúncios. Sabemos que tais informações sobre os escravos fugidos não indicam, necessariamente, tratar-se de doentes ativos e portadores do vírus da varíola, podendo ser casos superados, em que a doença deixou suas marcas. É razoável imaginar tratar-se apenas das marcas, pois dificilmente um escravo com a doença e, portanto, em condições de saúde bastante precárias, teria condições de empreender tão arriscada atitude como a fuga.

Apesar de todas essas limitações, a fonte é bastante útil como introdução ao conhecimento das condições físicas dos escravos que procuravam a fuga como uma alternativa de vida. A Tabela 1 indica a constância das patologias nos escravos fugitivos, anunciados no Jornal do Commercio de 1850.

A situação física dos fugitivos também pode ser vista de outra forma. Analisando as patologias e relacionando-as com a anatomia humana, percebe-se que, no que se refere às lesões, os escravos estavam afetados principalmente nos membros superiores e inferiores e na cabeça (Tabela 2).

Analisemos conjuntamente as Tabelas 1 e 2. As condições patológicas apresentadas por um indivíduo, escravo ou não, podem provocar, entre outras conseqüências:

– Retardamento ou prejuízo do crescimento e do desenvolvimento: o retardamento acarreta um prejuízo econômico e sobrecarga comunitária, pois esse indivíduo não despende a energia esperada dele em forma de trabalho e, em alguns casos, precisa dos outros para se manter;

– Incapacidade temporária ou permanente: o doente é um consumidor e não um produtor, onerando os demais membros do grupo;

– Morte: a morte pode ser um prejuízo porque o indivíduo não chega a retribuir o investimento realizado em sua formação e, no caso dos escravos, em sua compra.

Como o grupo analisado era composto por indivíduos que foram comprados a fim de produzir e esperava-se que em pouco tempo o valor investido fosse recuperado, qualquer sintoma patológico é indício de que esse investimento corria sérios riscos.

A Tabela 2 remete à discussão sobre as conseqüências dos problemas físicos em uma situação em que o escravo é uma mercadoria comprada para dar lucros ao seu dono. Contudo o conceito de incapacidade no escravo é relativo. Em alguns casos, a limitação física poderia constituir grande vantagem para o senhor, a exemplo dos escravos cegos ou com outras deficiências que eram colocados nas ruas para esmolar, revertendo o lucro para seu dono.

Como se pode ver na Tabela 1, a situação patológica mais apresentada pelos escravos anunciados no Jornal do Commercio refere-se ao tipo infectocontagioso. Nesse grupo, a doença mais referida era a varíola, denominada 'bexiga' na época. Essa doença é provocada pelo vírus Orthopoxvirus variolae, e o contágio se dá de forma direta, ou seja, pelo suor ou espirro – enfim, as secreções de um doente podem contagiar outra pessoa que não esteja imunizada por vacinas.3 3 No Brasil, já no século XVIII a vacinação antivariólica tornou-se obrigatória, entretanto ela não se efetivou, e a maior parte da população era contrária a ela. As epidemias continuaram matando milhares de pessoas de tempos em tempos, e apenas no século XX a vacinação obrigatória seria estabelecida de fato, após a campanha realizada por Oswaldo Cruz. É grande o número de escravos citados nos anúncios como portadores de varíola ou bexigosos, ou ainda como portadores das marcas deixadas pela doença, pois os que sobreviviam a ela ficavam marcados pelo resto da vida.

Dos 72 casos interpretados como de doenças infectocontagiosas, apresentados pelos anúncios do jornal, 47 são em africanos (65,28%) e 25 em crioulos (34,72%), e em cinco casos não há como distinguir essa característica (6,94%). Esse cenário remete à questão das 'esferas de enfermidades', desenvolvida por Curtin (1968), para quem haveria no planeta áreas que, por possuírem determinadas características, seriam mais propícias ao desenvolvimento de certas enfermidades causadas por bactérias e vírus. Esses povos, quando por algum motivo entram em contato com outros grupamentos humanos, não possuem condições biológicas de resistir às doenças que seus organismos não conhecem, o que provoca grande mortandade ou elevado número de pessoas afetadas. No caso dos escravos, a situação se agravava em razão das condições epidemiológicas favoráveis às infecções: aglomerações nos navios negreiros e depois nas senzalas, condições sanitárias desfavoráveis, alimentação precária, desgaste físico intenso, estresse e falta de assistência médica.

A análise do cotidiano de uma população escrava indica a submissão à permanente e exacerbada violência física ou psicológica – real ou imaginada –, que poderia provocar problemas de estresse. Qualquer gesto poderia desencadear punições, a alimentação era precária, o repouso, o mínimo necessário, e outros indícios apontam sempre para uma mesma direção: o escravismo criou seres que viviam no seu limite físico e emocional. A medicina atual alerta para o fato de que o estresse propicia suscetibilidade a várias doenças infecciosas, De acordo com McKeown (1988, p.56), "there is a good evidence that stress is an important influence in respiratory infections, and it is quite likely that it has an effect in many, perhaps most, infectious diseases".

As doenças causadas por traumas ocupam o segundo lugar em prevalência, entre os casos observados, atingindo 59 indivíduos (cf. Tabela 1). Destes, os anúncios que não especificam o tipo de trauma que acometeu o escravo são a maioria (42 casos), o que nos deixa sem saber o que teria provocado a lesão. Todavia, os motivos de traumas mais freqüentes na população escrava eram, além das queimaduras e fraturas, as feridas, as surras e o uso de instrumentos de castigo, entre outros. Todos esses elementos estão de uma maneira ou outra ligados à própria estrutura do sistema escravista, que lançava mão de punições para obter melhor desempenho por parte da escravaria.

Um problema de ordem prática se colocou, na análise dos dados, no momento de definir se as patologias mencionadas nos anúncios eram tão-somente seqüelas de doenças ou traumas, como por exemplo o moleque João, "marcado de signaes de bexigas" (JC, 1 out. 1850), ou Antonio, que apresentava "uma cicatriz de golpe de fouce nas costas da mão e outra dita n'um do peito..." (18 ago. 1850). Contudo, por vezes o escravo é descrito como portador de um problema propriamente dito, como no caso de Fábio, uma criança de dez anos que apresentava queimaduras no braço, ou Luiz, de 40 anos, que tinha o cotovelo quebrado, ou Manoel, que possuía uma fenda na frente do pé direito, entre inúmeros outros. A solução encontrada, para a análise, consistiu em considerar traumáticos apenas os casos de queimaduras, fraturas ou feridas; quando se tratava de sinais e marcas, foram eles identificados como evidências de patologias.

Esse grande número de casos de traumas (63) pode ser explicado por ter sido aquela uma sociedade de trabalhos árduos e sem muitos cuidados com a mão-de-obra. A historiografia tem postulado que, a partir do fim do tráfico e com a conseqüente elevação dos preços dos escravos, houve uma melhora no tratamento dispensado a eles, a fim de manter o investimento do senhor por um período maior. Logo, afirmam os historiadores, as fugas que continuaram em ritmo cada vez maior, mesmo depois dessa melhoria de tratamento, não podem ser justificadas pelos maus-tratos. Note-se, porém, os dados levantados referem-se apenas ao ano de 1850, data da Lei Euzébio de Queiroz, que pôs fim ao tráfico atlântico; faltam ainda análises dessa natureza relativas a outros anos, para que se possa verificar a situação patológica dos cativos após a interrupção do tráfico negreiro.

Os anúncios no Jornal do Commercio demonstram que, entre os 206 indivíduos, 19 possuíam sinais de alguma doença provocada por carências e 63, por traumas (cf. Tabela 1). Somando essas duas classes, que nos remetem mais diretamente ao tratamento dispensado ao escravo, obtém-se um total de 82 casos – ou seja, mais de um terço do nosso universo de indivíduos observados provavelmente não possuía boas condições de vida e trabalho. As doenças que foram identificadas como de fundo reumático podem ser associadas às condições duras de trabalho (carga de peso excessivo, descanso em locais impróprios etc.), e as doenças de caráter psíquico também podem ser indicativas das constantes pressões emocionais enfrentadas pelos escravos durante toda a vida (cf. Tabela 1).

Já o número de portadores de problemas de fundo emocional é pequeno (seis casos). Destes, três eram africanos e três, crioulos, o que sugere problemas de adaptação ao sistema escravista em ambos os grupos. Dos seis casos, cinco são certamente de gagueira. De acordo com algumas pesquisas médicas, a gagueira pode ser provocada por pressões, medos e traumas na infância, e para um escravo tais condições não faltavam durante toda a sua existência.

Fugio, no dia 21, da Ladeira do Senado, esquina da Rua Paula Mattos, um moleque de nome Raymundo; levou vestido carapuça de lã, calça e camisa de algodão, camisa de baeta azul; no fallar gagueija, e muito principalmente tendo medo; levou um caixote com banha e pomada para vender. Protesta-se com todo o rigor da lei contra quem o tiver acoutado. (JC, 24 set. 1850; grifo meu)

Fugio, no dia 10 de fevereiro do corrente anno, da cidade de São Paulo, e foi encontrado em caminho para esta Côrte, um moleque de nome Salustiano, crioulo, com os signaes seguintes: alto, magro, fulo, meio gago e zambro; quem do mesmo souber dirija-se a Rua do Passeio n.17. (JC, 12 out. 1850; grifo meu)

Uma questão que com certeza influenciava as condições de saúde dos cativos, mas que não aparece na fonte de maneira direta, é a alimentação. Ainda assim, é possível identificar patologias que sugerem carências alimentares. A alimentação era um tópico bastante discutido na sociedade do século XIX. Tanto a literatura quanto os relatos de viajantes ou as teses defendidas na faculdade de Medicina do Rio de Janeiro o comprovam. Bernardo Guimarães, em "Uma história de quilombolas", narra uma conversa entre dois fugitivos a respeito da alimentação recebida pelos escravos na fazenda de um deles:

– Então malungo, está comendo tâo caladinho!... falla sua verdade, isto não é melhor do que comer uma cuia de feijão com angu, que o diabo temperou, lá em casa de seu senhor?...

– E às vezes nem isso, pae Simão. Laranja com farinha era almoço de nós, e enxada na unha de sol a sol. (Guimarães, 1871, p.1)

O tema também foi freqüente entre os viajantes. Carl Seidler (1941), ao tratar sobre a alimentação dos escravos no Rio de Janeiro da década de 1820, observou: "A alimentação habitual dos escravos na capital consiste em farinha de mandioca, feijão, arroz, toucinho e bananas; no interior do país, mormente nas casas mais pobres, às vezes, têm que se contentar durante meses com laranja e farinha..." (p.237). Debret relatou e retratou a utilização do fubá como alimento, observando ainda que as negras vendedoras de angu tinham que trabalhar mesmo com problemas de saúde. Na litografia observa-se uma das vendedoras com a cabeça amarrada, a indicar uma possível dor de dente. Debret assim se referiu ao angu: "a farinha simples moída e separada do farelo por meio de uma peneira de bambu, chama-se fubá. Fervida na água sem sal, transforma-se em angu, principal alimento dos escravos..." (Debret, 1989, p.178).

Estudos sobre a medicina do século XIX constatam que as doenças dos escravos estavam ligadas também ao tipo de alimentação que recebiam, à base de feijão, milho e mandioca. Mesmo à luz dos conhecimentos da época, a dieta já era considerada inadequada, tal como relata o médico David Gomes Jardim citando seu colega, doutor Jobim, em seu trabalho sobre as doenças das classes pobres no Rio de Janeiro. A alimentação à base de mandioca, presente entre os pobres e escravos, não era benéfica, posto ser

uma comida pesada, indigesta, mal elaborada, destituída de princípios alcalinos, tornando-se em uma palavra, inapta para alimento, e determinando ordinariamente a perversão dos humores e a tendência para as moléstias pútridas. A farinha de mandioca que se dá aos negros, é pessimamente preparada, porque quasi nunca se extrahe todo o líquido venenoso por meio da pressão, nem se corrige a sua má qualidade pela ação do fogo. (Jardim, 1847, p.8)

O médico relata que um fazendeiro, questionado sobre o grande prejuízo devido às inúmeras mortes entre seus escravos, respondeu que

pelo contrário não lhe vinha danno algum, pois que quando comprava um escravo, era só com o intuito de desfructa-lo durante um anno, tempo além do qual, poucos poderiam sobreviver; mas que não obstante, fazia-os trabalhar por modo tal, que chegava não só a recuperar o capital que neles havia empregado, porém ainda a tirar lucro considerável! E demais, que importa que a vida do negro se extinga sob o insupportável trabalho de um anno, si nos ficam as mesmas vantagens que teríamos se elle servisse moderadamente por espaço de muito tempo? (Jardim, 1847, p.12)

O médico alemão Reinhold Teuscher (1853) elaborou uma tese para a Academia de Medicina do Rio de Janeiro, partindo de observações sobre as condições de vida de mais de novecentos escravos distribuídos em cinco fazendas na região de Cantagalo, Rio de Janeiro, durante um período de cinco anos. O médico forneceu uma visão bastante positiva (para os padrões vigentes) das condições de vida da população escrava. Afirmava que suas casas eram bem construídas, feitas de pedra, cal e telhas, secas e bem arejadas, e que sua alimentação era "tão abundante que cada um pode comer quanto quizer. Ella compõe-se, para almoço e jantar, de angú de farinha de mandioca, de feijão temperado com toucinho e de carne seca de dous em dous dias. A cêa é de cangica..." (p.6). Curiosamente, logo depois, tratando da questão das doenças, o doutor relata como seriam várias as "influências debilitantes" que contribuíam para provocar doenças naqueles escravos. Além de trabalhos excessivos, poucas horas de sono, excessos sexuais e perdas de humores, havia também a má alimentação e moradias úmidas.

Teuscher (1853) informava também os horários de trabalho dos escravos dessas fazendas. Eles levantavam sempre às quatro ou cinco horas e deitavam-se às 20 ou 21 horas, período que perfaz um total de 15 a 16 horas de trabalho diário. Levando-se em conta serem tarefas árduas, realizadas sob chuva ou sol, e a alimentação à base de angu, farinha de milho e feijão (segundo o próprio médico), é praticamente impossível que tais escravos pudessem resistir por muito tempo, o que nos remete ao fazendeiro mencionado por David Gomes Jardim, que expressa a lógica do regime escravista no Brasil do século XIX, quanto à baixa expectativa de vida do escravo.

O saber médico do século XIX tratou da saúde do escravo relacionando-a às condições em que vivia a maior parte da população brasileira livre e pobre, fosse ela urbana ou rural. Apontava que os hábitos de uns eram idênticos aos dos outros, e que desses hábitos provinham tantas doenças e tantos problemas. O uso indiscriminado de bebidas alcoólicas, o hábito de construírem casas perto de rios e lagos, tornando-as úmidas, e cortiços apertados e sujos nas cidades, com um grande número de moradores, eram os motivos, segundo os médicos, da grande quantidade de doenças, principalmente dos pulmões, como a asma, a tuberculose e a bronquite.

As mesmas condições apresentavam as senzalas: "Além de mal construídas, collocadas sobre terrenos lamacentos, abertas de todos os lados, e tão immundas, que semelham verdadeiras possilgas, quasi nunca offerecem os commodos sufficientes para alojar convenientemente os escravos, que por isso são tantas vezes victimas das afecções morbidas, que procedem da viciação do ar" (Jardim, 1847, p.14). A preocupação dessa obra médica não reside na escravidão, mas sim nas doenças que se espalhavam rapidamente pela população; em muitos casos, associava-se a origem da doença à população escrava. Apontava-se também o fato de tantas pessoas exercerem, sem nenhum conhecimento, a prática da cura, tirando aos médicos sua importância como agentes normatizadores dos corpos.

De acordo com o médico David Gomes Jardim era comum os feitores, depois de surrarem os escravos, aplicarem sobre as feridas uma mistura de sal, limão e pimentas, que alegavam prevenir contra a infecção da área afetada. Recomenda, então, que os feitores só se sirvam, nesses casos, de água limpa e em seguida do ceroto de Galeno, um composto de óleo e cera. (p.17)

No Brasil do século XIX, à semelhança do que se dá no Velho Mundo, ocorreu uma tentativa de normatização dos corpos, e a medicina assumiu como sua a tarefa de organizar a população a fim de que as doenças não propagassem na cidade:

A sociedade como um todo se torna passível de regulamentação médica, passando a saúde a ser problema social. Não cabe aos médicos apenas tratar dos doentes, mas principalmente supervisionar a saúde da população (procriação, bem-estar da mãe e da criança, prevenção de epidemias, organização de estatística, esclarecimentos à população em termos de saúde, garantia de cuidados médicos, organização da profissão médica, combate ao charlatanismo, etc.). (Soihet, 1989, p.40)

O charlatanismo era, segundo Jardim (1847), um grave problema no campo e também na cidade, e a prática comum da utilização de remédios sem conhecimento médico em escravos (e também em homens livres pobres) era um dos fatores que contribuíam significativamente para o aumento da mortandade entre os escravos:

O conhecimento das drogas é inútil, e até perigoso, si se ignora onde, quando, e como se deve fazer uso. Entretanto, homens sem conhecerem a conveniência ou desconveniência da applicação de um medicamento, lançam mão do tartaro, e o empregam em todas as moléstias; e isto é muitas vezes praticado por um tropeiro, que, habituado a receitar para burros, e julgando a natureza do homem idêntica a destes animaes, a faz supportar a mesma dose: o resultado é sempre a morte do doente. (p.16)

Outro fator que muito aumentava as perdas entre os escravos era o fato de o médico só ser chamado em último caso, quando pouco ou nada havia a ser feito.

As condições precárias de saúde dessa população estavam também marcadas em seus corpos. Dos 1.047 anúncios registrados no Jornal do Commercio em 1850, apenas 203 referiam algum tipo de característica física (cf. Tabela 4). Doze anúncios foram retirados da análise porque indicavam apenas as roupas que os escravos usavam por ocasião da fuga ou a altura de seu cabelo (curtos, longos, médios). Os 191 anúncios restantes foram separados em cinco grupos. O primeiro e o segundo grupos referem-se aos indivíduos com marcas nos corpos ou dentes feitas por eles próprios, conforme hábitos de suas nações africanas de origem. O terceiro relaciona-se a escravos com marcas de propriedade feitas pelos senhores. O quarto reúne indivíduos cuja descrição contempla sinais e cicatrizes; este grupo é o menos específico, pois não permite saber o evento que provocou as marcas apresentadas. O quinto grupo refere-se a escravos com marcas de castigos nos corpos. Seguramente muitos casos do quarto e quinto grupos poderiam ser reunidos, contudo não há como saber se as cicatrizes e marcas eram provenientes de castigos, e por isso só foram classificados nesse último grupo os casos em que o próprio anúncio explicitava a presença de marcas de castigos, como os que se seguem:

Fugio, da cidade nova, da Rua do Bom Jardim n. 65 A, no dia 28 de julho, um preto de nome Domingos, de nação Angola, coxo de uma perna, com o rosto malhado de branco, com bastantes marcas de castigo em um dos braços. (JC, 8 ago. 1850; grifo meu)

Fugirão, dous pretos, sendo um de nome Eliziário, nação Congo, que foi escravo do finado Elias Antônio Lopes; levou vestido calça azul e camisa de morim fino, e com os signaes de ter sido castigado na casa de correção. (JC, 12 out. 1850; grifo meu)

Ao observar a Tabela 4, somos induzidos, em princípio, a conceder pouca importância às marcas de castigos apresentadas, por se tratar de um percentual relativamente baixo (6,81%). Porém ao analisar em conjunto os dados fornecidos, percebemos que em praticamente todos os itens a violência do sistema está presente. Mesmo sem ter como verificar as causas das marcas, sinais e cicatrizes, fato é que estas existiam e provavelmente não foram feitas pelos próprios escravos, já que os anúncios explicitam as marcas étnicas, como no exemplo: "Fugio, no dia 17 do corrente, da padaria da Rua do Conde n. 95 A, um preto de nome Manoel, de nação Mina Nagô, com tres signaes da mesma nação ao pé dos olhos (JC, 18 maio 1850; grifo meu).

Os anúncios que descrevem os fugitivos como portadores de um tipo (ou vários) de cicatriz, sinal ou marca são bastante específicos e em alguns casos informam os motivos que as provocaram:

Fugio, em 18 de julho de 1847, um escravo de nome Manoel, de nação, com os signais seguintes: aleijado da mão esquerda, por ter levado um golpe, do qual ficou com tres dedos fechados, estatura regular, cor fula. (JC, 24 set. 1850; grifo meu)

Fugio, da rua da Quitanda n. 20, um pardo de nome Polydoro, aprendiz de marceneiro, de 19 a 20 anos de idade, alto, magro, cor escura, com um signal no queixo do couce de um cavallo, tem andar de capoeira. (JC, 24 set. 1850; grifo meu)

Machado de Assis (1985a) também abordou o tratamento recebido pelos escravos domésticos na cidade do Rio de Janeiro valendo-se de Lucrécia, a escrava de 11 anos que pertencia à sinhá Rita: "Lucrécia era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda... Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação" (p.276; grifo meu).

Para concluir, pode-se afirmar que as evidências de condições patológicas levantadas a partir dos anúncios de fujões aqui discutidos, pela sua natureza e pela freqüência em que ocorrem, parecem reforçar a hipótese de que um dos grandes motivos que levavam o escravo a fugir eram os maus-tratos, infligidos talvez com intenção de marcar o corpo como lição àquele e a outros rebeldes. Como maus-tratos consideramos não só os castigos físicos, mas também a má alimentação e a quebra nos direitos adquiridos.

Pode-se imaginar que, ao indicar como motivo das fugas os maus-tratos provocados por senhores ou feitores, negamos a condição de agentes ativos dos escravos, no entanto a proposta é justamente oposta. Muito já se discutiu sobre o papel do escravo como agente histórico de seu processo, e o fato de as fugas terem sido, na maioria das vezes, provocadas por quebras nos 'contratos' existentes entre senhores e escravos, não significa atribuir a ação apenas à camada dominante. Muito pelo contrário; significa que o escravo aceitava seu cativeiro apenas enquanto este era objeto de negociação. A partir do momento em que tal negociação era impraticável, rompia-se a ligação. Logo, o escravo é um agente ativo de sua história tanto quanto possível, por mais contraditória que soe tal afirmação.

Outra inferência que se pode obter na utilização desse tipo de fonte é a de que, ao indicar as condições de saúde de uma determinada população de escravos – no caso, uma população fugida –, contribui-se para a relativização do conceito de 'capacidade laborativa' em uma sociedade escravista, contrapondo-o aos conceitos de 'propriedade' e 'autoridade', também determinantes da mesma ordem.

Em princípio, pode-se imaginar que não era um bom negócio pagar recompensa pela captura do escravo fugitivo com doenças que o impediam de realizar plenamente suas atividades. Contudo, não era isso o que acontecia, e mesmo os doentes mais graves eram procurados por seus senhores, os quais admitiam gratificar pelos escravos capturados. Tal fato remete não à lógica econômica, mas a uma lógica social de controle da escravaria, em que seria importante recapturar os fugitivos para que servissem de exemplo aos demais, e não apenas para que retornassem a seu papel de produção.

Recebido para publicação em julho de 2007.

Aprovado para publicação em setembro de 2007.

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  • As condições físicas e de saúde dos escravos fugitivos anunciados no Jornal do Commercio (RJ) em 1850

    Márcia Amantino
  • 1
    Esse instrumental foi utilizado pela primeira vez por Florentino (1997, p.427ss), que analisou a população escrava em inventários do Rio de Janeiro, no período de 1790 a 1835.
  • 2
    Utilizo doravante as iniciais JC para designar este periódico.
  • 3
    No Brasil, já no século XVIII a vacinação antivariólica tornou-se obrigatória, entretanto ela não se efetivou, e a maior parte da população era contrária a ela. As epidemias continuaram matando milhares de pessoas de tempos em tempos, e apenas no século XX a vacinação obrigatória seria estabelecida de fato, após a campanha realizada por Oswaldo Cruz.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jan 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2007
    • Aceito
      Set 2007
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