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'É... tá grávida mesmo! E ele é lindo!' A construção de 'verdades' na ultra-sonografia obstétrica

Resumos

O ultra-som obstétrico sofreu uma transformação peculiar no Brasil, sendo uma tecnologia de imagem médica que progressivamente transformou-se em uma modalidade de 'consumo' e 'lazer'. Analisa-se a produção de 'verdades' construídas durante exames de ultra-som, calcadas nas crenças médicas e não-médicas acerca da 'objetividade' da imagem técnica. Baseia-se em material etnográfico obtido em clínicas de imagem do Rio de Janeiro. Os exames de ultra-som sublinham a questão da subjetividade/objetividade presente em todas as tecnologias de imageamento médico, por ser uma tecnologia dinâmica e interativa. Durante os exames os atores são agentes ativos, produzindo e reproduzindo 'verdades' médicas e não-médicas sobre a gravidez e o feto. Essas 'verdades' desempenham papel relevante no processo em que, simultaneamente, é reconfigurada a gravidez, o feto é subjetivado e uma prática médica se transforma em espetáculo. Essa produção funciona como um mecanismo de realimentação, reassegurando os atores acerca da saúde da gestante e do feto e, ao mesmo tempo, reafirmando o lugar da tecnologia de imagem médica como produtora privilegiada de verdades sobre os corpos.

tecnologia de imagem médica; objetividade; subjetividade; gravidez; feto


Obstetrical ultrasound is a technology which has undergone a peculiar transformation. In Brazil what began as a medical imaging technology is progressively being transformed into a modality of consumption and 'leisure'. In this paper I discuss the production of 'truths' - founded on medical and non-medical beliefs about the 'objectivity' of medical imaging technologies -, during obstetrical ultrasound exams. The discussion is based on ethnographic material obtained in private imaging clinics in Rio de Janeiro, Brazil. Ultrasound exams underscore the subjectivity/objectivity issue belonging to all medical imaging technologies, due to the peculiarity of being a dynamic and interactive practice. During an obstetrical ultrasound the actors are active agents in producing or reproducing medical and non-medical 'truths' about the pregnancy and the fetus. Those 'truths' play a central role simultaneously reconfiguring the pregnancy, subjectivizing the fetus, and transforming a medical practice into a spectacle. This production acts as a feedback mechanism, reassuring the actors about the healthy state of the pregnant woman and the fetus as well as reaffirming the position of medical imaging technologies as privileged producers of truths about the human body.

medical imaging technology; objectivity; subjectivity; pregnancy; fetus


ANÁLISE

'É... tá grávida mesmo! E ele é lindo!' A construção de 'verdades' na ultra-sonografia obstétrica

Lilian Krakowski Chazan

Doutora em saúde coletiva pelo IMS/UERJ, pós-doutoranda no Departamento de Políticas, Planejamento e Administração em Saúde, do IMS/UERJ. Rua Almirante Tamandaré, 66/1119. 22210-060 – Rio de Janeiro RJ – Brasil. liliank@cremerj.org.br

RESUMO

O ultra-som obstétrico sofreu uma transformação peculiar no Brasil, sendo uma tecnologia de imagem médica que progressivamente transformou-se em uma modalidade de 'consumo' e 'lazer'. Analisa-se a produção de 'verdades' construídas durante exames de ultra-som, calcadas nas crenças médicas e não-médicas acerca da 'objetividade' da imagem técnica. Baseia-se em material etnográfico obtido em clínicas de imagem do Rio de Janeiro. Os exames de ultra-som sublinham a questão da subjetividade/objetividade presente em todas as tecnologias de imageamento médico, por ser uma tecnologia dinâmica e interativa. Durante os exames os atores são agentes ativos, produzindo e reproduzindo 'verdades' médicas e não-médicas sobre a gravidez e o feto. Essas 'verdades' desempenham papel relevante no processo em que, simultaneamente, é reconfigurada a gravidez, o feto é subjetivado e uma prática médica se transforma em espetáculo. Essa produção funciona como um mecanismo de realimentação, reassegurando os atores acerca da saúde da gestante e do feto e, ao mesmo tempo, reafirmando o lugar da tecnologia de imagem médica como produtora privilegiada de verdades sobre os corpos.

Palavras-chave: tecnologia de imagem médica; objetividade; subjetividade; gravidez; feto.

Como parte da pesquisa para a tese de doutorado na qual investiguei a construção da pessoa fetal mediada pela ultra-sonografia obstétrica, desenvolvi uma etnografia por meio de observação participante em três clínicas privadas de ultra-som (A, B e C) durante o ano de 2003, na cidade do Rio de Janeiro.1 1 A partir a década de 1980 foram produzidos diversos artigos antropológicos sobre o tema, na Europa e na América do Norte, destacando-se Petchesky (1987), Duden (1993), Mitchell (1994) e especialmente Rapp (1997). A ausência de uma pesquisa brasileira sobre o assunto levou-me a realizar uma etnografia no Rio de Janeiro. Neste artigo, discuto a produção de 'verdades' médicas e não-médicas pelos atores do campo observado, algumas apropriações bastante peculiares destas, assim como desdobramentos daí decorrentes.

Grosso modo, a clínica A atendia predominantemente a clientes de camadas média e média/alta; a clínica B, média e média/baixa; e a clínica C, média/alta e alta. Essa divisão não é rigorosa, pois não investiguei especificamente o perfil socioeconômico das gestantes. Estabeleci essa classificação baseada na observação dos trajes e da linguagem das gestantes, além da localização das clínicas. A clínica A situava-se na Zona Oeste da cidade, local de moradia de camadas médias em ascensão; a clínica B, na Zona Norte, área de grupos de menor poder aquisitivo; e a clínica C encontrava-se na Zona Sul, área 'nobre' do Rio de Janeiro. No Brasil os exames ultra-sonográficos são sempre realizados por médicos, diferentemente de países como Canadá ou Estados Unidos, onde são em geral executados por técnicos especializados, em sua maioria mulheres. O sistema público de saúde brasileiro é bastante precário, e as camadas médias e altas da população nunca recorrem a ele, lançando mão do seguro saúde privado ou pagando exames e médicos do próprio bolso.

O foco principal das observações foram os exames ultra-sonográficos, em especial as interações entre os atores e as narrativas discursivas e visuais que ali se produziam.2 2 Em cada clínica acompanhei predominantemente um médico: na A, doutor Henrique, na B, doutora Lúcia e na C, doutor Sílvio. Entre os exames, eu costumava ficar na sala dos médicos e interagir com eles, o que também forneceu elementos interessantes para a pesquisa. Uma questão-chave para a dinâmica das interações entre os atores presentes na cena consiste no fato de que – em que pese a 'socialização visual'3 3 Designo por socialização visual o processo – observado ao longo da etnografia – de construção de uma cultura visual compartilhada entre os atores, em torno das imagens produzidas pela aparelhagem. que se passa no universo etnografado – o detentor principal e privilegiado da possibilidade de decodificar as imagens esfumaçadas que se sucedem na tela do monitor é o profissional que realiza o exame. Nesse sentido, ele é o protagonista de uma situação em que ges-tantes e acompanhantes se transformam em atores coadjuvantes.

Há uma questão que perpassa e informa todo o campo e as práticas dos atores observa-dos, relacionada à polaridade objetividade/subjetividade e, por esse motivo, inicio a discussão por ela. A seguir destaco quatro aspectos relacionados à produção de verdades a partir das imagens fetais, suas conse-qüências e seus desdobramentos que, no conjunto, produzem uma situação híbrida4 4 Ou cyborg, como preferem alguns autores (Haraway, 1991; Downey & Dumit, 1997; Dumit & Davis-Floyd, 1998; Dumit, 1997; Downey, 1998, entre outros). O campo se mostrou muito rico em situações desse tipo, uma discussão em si bastante interessante e complexa, mas que foge ao escopo deste trabalho. , uma vez que a subjetivação e a medicali-zação5 5 Sobre medicalização, ver Foucault (1998); sobre medicalização da gravidez, ver Arney (1982). da gravidez encontram-se profun-damente imbricadas com elementos dis-cursivos e tecnológicos.6 6 Alguns autores, entre os quais destaco Steven Johnson, vêm discutindo a construção do que denominam interfaces, por meio das quais os sujeitos entram em contato, interagem e significam elementos tecnológicos (Johnson, 2001). Nesse sentido, a imagem ultra-sonográfica pode ser considerada a interface por meio da qual os atores do universo observado reconfiguram diversos aspectos da construção social da gravidez. O primeiro deles consiste na produção de 'verdades' médicas no tocante à saúde da gestante e do feto, que é propiciada pelo exame,. Essas 'verdades' têm como conseqüência imediata um reforço da noção da gravidez como um 'assunto médico'. O segundo aspecto, que incide diretamente na construção da pessoa fetal (fetal personhood), é a produção de 'verdades' não-médicas, freqüentemente relacionadas à gestante, mas em especial sobre o feto. Esse conjunto de 'verdades' tem como efeito, para além do monitoramento e da vigilância sobre a saúde da gestante e do feto, a construção de subjetividades, reconfigurando a percepção corporal da gravidez pela mulher e atribuindo subjetividade ao feto. Em um movimento conjunto produz-se um reforço da medicalização, assim como da idéia culturalmente compartilhada da tecnologia de imageamento como produtora privilegiada de todo tipo de saberes sobre a gestação. O terceiro ponto a ser abordado diz respeito ao modo como verdades médicas problemáticas – o encontro de patologias fetais, em sua grande maioria – são manejadas no contexto observado. O quarto ponto destacado diz respeito a situações que evidenciam o quanto o mito da objetividade da imagem técnica pode eventualmente tornar-se deletério para gestantes e fetos. Finalmente, discuto como esses elementos repercutem de maneiras diferentes, se complementam e por vezes se superpõem, no que diz respeito à reconfiguração de vivências da gravidez.

Imagem técnica, objetividade e subjetividade

A ultra-sonografia coloca em evidência uma particularidade que perpassa todas as tecnologias de imageamento médico. Trata-se do que denomino 'mito da objetividade da imagem técnica'. A idéia da imagem técnica como produtora de verdades incontestáveis é uma construção social, fruto de um longo processo histórico. Em resumo, esse processo tem suas raízes no Renascimento – com a invenção da perspectiva –, em especial nos códigos de representação do corpo humano que surgem com o trabalho de Vesalius, com a instauração do paradigma anatômico, em vigor até nossos dias (Sawday, 1996). Ao longo do século XVII, a objetividade na representação emergiu como um problema, em conjunto com o estabelecimento dos princípios do que passou desde então a ser entendido como ciência. O problema de 'neutralidade' ou 'objetividade' da representação do corpo atravessou o século XVIII, e o surgimento da fotografia, em meados do século XIX, foi saudado inicialmente como a 'solução' da questão (Daston, Galison, 1992; Kemp, 1998). A invenção dos raios X, em fins do século XIX, reintroduziu de modo radical o problema da interpretação das imagens técnicas do corpo (Cartwright, 1995; Sturken, Cartwright, 2001). As tecnologias de imagem médica que se multiplicaram ao longo do século XX são herdeiras dessas tensões.

No decorrer da observação etnográfica, tornou-se claro que, naquele universo, no que dizia respeito à produção de verdades, o eixo subjetividade/objetividade se fazia presente de modo cotidiano e dinâmico na prática dos atores. No tocante às 'verdades' médicas, pode-se considerar que, nelas, predominaria o aspecto 'objetivo', pois com freqüência eram apresentadas como dados matemáticos, quantificáveis e traduzidos em números, tais como idade fetal, peso, tamanho, fluxos sanguíneos etc.7 7 Vale assinalar que a idade, o peso e o tamanho fetais são estimados a partir do tratamento computacional dos dados de mensuração de determinadas estruturas anatômicas (respectivamente o perímetro cefálico, o perímetro abdominal e o tamanho do fêmur). Entretanto, embora fossem dados aproximados, eram lidados pelos atores leigos como medidas concretas. Contudo a subjetividade obrigatoriamente se fazia presente, posto que, para que as mensurações fossem significativas, o médico ou médica deveriam necessariamente saber interpretar as manchas cinzentas do monitor. Um exemplo: o profissional precisava reconhecer se um traço esbranquiçado na tela correspondia ao úmero ou ao fêmur do feto, pois com base nesse dado o computador executaria um cálculo que forneceria a informação procurada acerca do tamanho e do desenvolvimento fetais.

No terreno da produção de 'verdades' não-médicas, a subjetividade preponderava, pois as atribuições de sentido ao que estava sendo visualizado na tela do monitor dependiam exclusivamente da imaginação, dos valores e das crenças dos atores presentes à cena. No momento em que o exame evidenciava a existência de problemas, constituía-se uma espécie de empate nos pesos da objetividade e da subjetividade, já que não apenas o significado dos achados 'objetivos' desagradáveis deveria ser interpretado pelo profissional, mas também o modo como a notícia seria dada e recebida pela gestante e pelos acompanhantes estavam subordinados a diversos aspectos nos quais a subjetividade se fazia fortemente presente.

Além da produção de verdades, outro elemento central da situação consiste nas imagens fetais em si, que atraem o olhar de modo quase irresistível.8 8 As imagens atraíam a atenção de todos os presentes na sala de exame. No início do trabalho de campo por diversas vezes dei-me conta da dificuldade de despregar os olhos da tela do monitor, sendo necessário disciplinar meu olhar para não ser 'cooptada' pela cultura nativa e conseguir prestar atenção nos discursos, interações e negociações que ocorriam incessantemente. Na imensa maioria das vezes, é em torno delas que se estabelecem diversos diálogos e interações; sintetizando, essas imagens são um fator fundamental para as negociações estabelecidas entre os atores.

'Verdades' médicas

Apesar de gestantes e acompanhantes se familiarizarem gradualmente com as imagens fetais ao longo da gravidez9 9 E também em função da divulgação dessas imagens pela mídia, com os mais diversos propósitos. , o principal tradutor das imagens que se sucedem rapidamente na tela do monitor permanece sendo o profissional, cujo olhar foi treinado para decodificar e interpretar – e apenas por meio dessa possibilidade as imagens adquirem algum sentido. No tocante a esse aspecto, portanto, ele ocupa uma posição de destaque e autoridade em relação aos outros atores presentes na cena. Há basicamente dois tipos de verdades que, de um modo ou de outro, produzem graus variáveis de normatização: as concernentes à saúde da gestante e à da gravidez em si, e aquelas sobre a saúde do feto, que incluem idade fetal, tamanho e, conseqüentemente, seu estágio de desenvolvimento, além da avaliação de parâmetros capazes de indicar risco de anomalias.

Sobre a gravidez

A primeira verdade produzida no exame é, além da constatação de uma gravidez e de sua localização – uterina ou tubária –10 10 Na gravidez tubária, o óvulo fecundado se aloja na trompa de Falópio, gerando uma situação de risco para a mulher que, com freqüência, é resolvido cirurgicamente extirpando-se a trompa afetada. , o número de embriões existentes. Nas gestações iniciais, tais informações e a visibilização11 11 Utilizo visibilização (em contraste com visualização) porque, em primeiro lugar, são termos nativos e consistem em uma distinção êmica. Em segundo lugar, cabe ressaltar que, a rigor, a tecnologia do ultra-som – assim como todas as tecnologias de imagem médica não invasivas – 'torna visível', ou 'visibiliza' algo não acessível diretamente ao olhar. Reservei o termo 'visualização' para a situação direta que ocorria durante os exames: por exemplo, todos 'visualizavam' as imagens na tela do monitor. do embrião tornam a gravidez 'real' para a mulher:

G – Olha só! A mãozinha perto da cabeça! [Os dois abrem um enorme sorriso olhando para o monitor do aparelho.]

Dra. Lúcia – [Mostrando na imagem no monitor.] Tem cordão ali em cima. [Para P.] Pai, 'tá vendo?

P – Tô.

G – 'Tá legal?... É inacreditável... Agora é que eu tô acreditando [estar grávida]... até agora era só o enjôo... (Clínica B)12 12 Todos os nomes são fictícios. Nas citações as ênfases dadas pelos atores estão sublinhadas. As minhas ênfases estão em itálico. Utilizo G para designar as gestantes e P seus parceiros. Uso colchetes para indicar ações ou complementar dados, e reticências para indicar edições do material.

Outro aspecto investigado por meio de ultra-som, mais adiante na gestação, com o exame de doppler, refere-se à circulação sanguínea materna e fetal. Caso fosse detectada alguma deficiência circulatória prejudicando o desenvolvimento do feto, e conforme a idade e o grau de desenvolvimento fetais, os parâmetros poderiam implicar normatizações do comportamento da gestante, com recomendação de repouso e medicação visando a permitir o crescimento do feto até ele ser considerado 'viável'13 13 A 'viabilidade' fetal é outra das várias situações 'híbridas' encontradas no campo, pois depende em primeiro lugar da idade do feto mas, de modo significativo, também da tecnologia disponível para cuidados com prematuros. , nascendo então de parto natural ou cesárea – ou levar à indicação imediata de cesariana. Ainda vinculada à circulação sanguínea existia a avaliação de 'incisura'14 14 Incisura, avaliada no exame de doppler, é uma medida do aumento da resistência ao fluxo sanguíneo nas artérias uterinas e, portanto, pode ser uni ou bilateral. No segundo caso implica a tomada de algumas precauções como o uso de aspirina pela gestante e o monitoramento das condições circulatórias maternas e fetais, assim como do crescimento fetal por meio de exames de ultra-som. , que continha um caráter preditivo probabilístico acerca do risco de a gestante desenvolver pré-eclâmpsia, um quadro de hipertensão súbita potencialmente danoso a ela e ao feto. A interpretação desses parâmetros, ou seja, da gravidade clínica da situação, variava entre os profissionais – tanto ultra-sonografistas como obstetras – e, dependendo da história de gestações pregressas da mulher, podia transformar o exame em uma situação muito angustiante para as grávidas.

A medição da quantidade de líquido amniótico, em geral perto do término da gestação, também poderia levar à indicação de interrupção cirúrgica da gravidez. Eventualmente eram feitos exames sucessivos para monitorar a evolução do volume de líquido. O posicionamento do cordão umbilical, nesse estágio final, era outro aspecto avaliado, e freqüentemente, baseados nesse dado, os obstetras 'recomendavam' a realização de cesarianas.15 15 No Brasil, é muito grande o número de cesarianas praticadas, uma situação complexa que foge ao escopo deste trabalho.

A existência de sangramentos durante a gestação, embora de um ponto de vista clínico seja de gravidade variável, é sempre alarmante e consiste em uma das indicações formais para a realização do exame ultra-sonográfico. Contudo com freqüência as gestantes sequer consultavam o obstetra, preferindo ir diretamente "fazer o ultra-som" (gestante, clínica C). Ocorria por vezes a situação inversa: o exame revelava a existência de um sangramento que não havia se manifestado clinicamente.

Dr. Sílvio – [Ao ver as primeiras imagens.] Teve sangramento?

G – Não, não tive. Só viu no ultra-som. (Clínica C)

Uma 'verdade' médica singular, que emergiu com freqüência no início da gestação, em especial nas clínicas B e C, dizia respeito à 'proveniência' do óvulo que dera origem ao feto. Essa determinação era possível por meio da visibilização da imagem do corpo-lúteo.16 16 Estrutura que se forma no ovário após a ovulação. Os profissionais lidavam de modo diferente com a informação – diga-se de passagem, totalmente irrelevante do ponto de vista clínico. Na clínica B, a doutora Lúcia mencionava de modo galhofeiro a existência de uma "simpatia dos ovários"17 17 'Simpatia' é uma prática mágica ou divinatória presente na cultura popular brasileira. : rindo, a médica dizia que "o ovário direito é o das meninas e o esquerdo, dos meninos", como se a proveniência do óvulo fosse determinante para o sexo fetal. O comentário era recebido com risos pelas gestantes quando estas conseguiam perceber o nonsense da brincadeira. A maioria das mulheres observadas tinha um razoável grau de informação 'científica' sobre a gravidez e sabia, portanto, que é o espermatozóide que determina o sexo do embrião. Na clínica C, entretanto, que acompanhava muitas gestantes que haviam passado por processos de reprodução assistida, a mesma informação era fornecida de modo totalmente diverso, em tom solene:

Dr. Sílvio – [Vamos] ver agora os ovários... [Mostrando.] Esse aqui é o seu ovário direito... Vários cistos, da estimulação ovariana... [permanece um tempo em silêncio] aqui o esquerdo... Foi o direito que ovulou. (Clínica C)

Sobre o feto

A preocupação acerca da saúde fetal está sempre presente, em graus variáveis mas nem sempre de maneira conspícua. Existem normatizações estabelecidas sobre idade e desenvolvimento fetais, a partir dos cálculos aproximados de peso e tamanho fornecidos pela aparelhagem. Em relação a esses aspectos, a imagem em si torna-se temporariamente secundária, sendo utilizada apenas como base para as mensurações que serão processadas pelo computador. A determinação da idade fetal por meio do exame de ultra-som passa a prescindir ou mesmo sobrepor-se à informação da mulher sobre a data da última menstruação, anteriormente o único método disponível para a datação da gravidez.

P – O tamanho [do embrião], qual é?

Dr. Sílvio – Onze milímetros, o saco gestacional. O embrião... não vi ainda... pode ser que eu não veja! E a definição é que deve ter feito uma ovulação tardia... E a gente vai ter que ajustar a idade gestacional. É... para informação... Para ela [G] ... o parto seria 17 de abril; para mim seria 24 de abril, corrigindo por esse exame de hoje. (Clínica C)

Dr. Henrique – Sabe a data da última menstruação?

G – Não me lembro direito...

Dr. Henrique – Não tem importância... A gente vê aqui, o ultra-som dá [a idade fetal]. (Clínica A)

O peso e o tamanho do feto, embora bastante objetivos em sua essência, eram na maior parte das vezes motivo de comentários, freqüentemente com conotação valorativa, acerca da normalidade ou não do desenvolvimento fetal. Gestantes e pais orgulhavam-se em saber que seus fetos estavam 'bem desenvolvidos'. Embora o crescimento fetal fosse especialmente relevante do ponto de vista da avaliação médica, era tingido por diversas atribuições de significado por parte das gestantes e seus acompanhantes, fosse por um prisma de gênero (gendered) – 'meninos' deveriam ser fortes e bem desenvolvidos e 'meninas', mignonettes e delicadas – fosse por buscarem semelhanças com mãe ou pai. 18 18 As aspas para os termos 'menino' e 'menina' visam frisar o fato de que se tratam de fetos, antecipadamente considerados pelos atores como crianças já nascidas. Ou seja, são meninos e meninas apenas do ponto de vista êmico.

Dra. Lúcia – Esse é o fêmur, o osso da perninha ... Sabe quanto 'tá pesando? Teu neném tem 62 gramas!

P – E... me diga uma coisa... pro tempo que tem... 'tá bem pesado?... 'tá forte?... Porque a gente diverge: ela quer um ratinho, eu quero um bebezão... quer dizer... ratinho, não... (Clínica B).

P – E o peso... o tamanho, doutor?

Dr. Henrique – 'Tá ótimo, normal...

P – [Sussurrando para G.] Vai ser forte como o pai, bonito como a mãe... (Clínica A)

A revelação precisa do sexo fetal era um momento em que a informação médica, anatômica, raramente era recebida de modo indiferente, sendo rapidamente apropriada e transformada em nova fonte de produção de verdades, a partir daí patentemente não-médicas.19 19 Discuto mais extensamente a questão da determinação do sexo fetal e da subjetivação vinculada à construção de gênero em outros textos (Chazan, 2003, 2005, p.272-302).

O exame de translucência nucal20 20 Medida de uma prega de pele na nuca do feto. , realizado entre a 11ª e a 13ª semanas gestacionais, em conjunto com a medida do osso nasal, é o exame mais cercado de expectativas quanto à avaliação do risco de existência de anomalias fetais.21 21 A alteração desses dois parâmetros fornece uma indicação probabilística que, calculada em conjunto com o risco oferecido pela idade materna, resulta em um índice que é a taxa de risco daquele feto ser portador de anomalia. Essa taxa, comparada com a taxa de risco de aborto provocado por complicações do exame de amniocentese, é apresentada às gestantes para que elas decidam se desejam ou não se submeter a esse procedimento – mais invasivo e mais preciso no que tange à avaliação de anomalias cromossômicas. Em sua maioria, as mulheres estavam informadas acerca do sentido desses exames, em especial o de translucência, embora freqüentemente houvesse confusões sobre o significado exato de parâmetros alterados. Em diversas ocasiões presenciei explicações fornecidas pelos médicos às grávidas – de modo mais ou menos didático – e na maior parte das vezes tive a impressão de que o sentido exato escapava a elas.

Dr. Henrique [em tom de desabafo, um tanto irritado.] – Elas vêm para este exame [TN] dizendo o seguinte: "Hoje eu vou saber se meu neném é normal ou anormal, se tem síndrome de Down ou não ...". Às vezes elas saem até um pouco frustradas, porque não é pra isso, é só uma taxa de risco, não é pra saber se é normal ou não. ... Os médicos hoje fazem uma consulta muito rápida, é convênio, então dizem para elas: "Você vai fazer a translucência nucal porque, se der alterado, seu neném pode ter síndrome de Down". Acabou, pronto, em quatro segundos falou. Daí a paciente chega aqui e pergunta: "E aí, doutor, o neném é normal?" Acabo eu tendo que explicar. (Clínica A)

No universo etnografado, ficou patente que, no tocante à produção de verdades médicas, se por um lado a tecnologia desfaz tensões dos mais variados tipos, por outro é também produtora de ansiedades que, em um ciclo de retroalimentação, só o uso da tecnologia pode de algum modo ajudar a dirimir. Essa situação é um construto em que convivem, implicitamente, a noção da gravidez como processo perigoso, potencialmente patológico22 22 Sobre o tema, ver Duden (1993) e Rapp (1997,1998, 1999). , e a da ciência e tecnologia como capazes de proteger os sujeitos dos 'perigos da natureza'. Ao mesmo tempo cristaliza-se, entre o público leigo, a crença – em grande parte estimulada e sustentada pela mídia – de que, apoiada pela tecnologia, a biomedicina é capaz de prever e prevenir todo e qualquer tipo de problema. Essa situação é ilustrada pela situação a seguir, quando a médica e eu fomos surpreendidas pela declaração de uma gestante – de alto nível socioeconômico – que denotava a atribuição de um sentido um tanto bizarro à amniocentese:

Dra. Carla pergunta se já sabem o sexo fetal. G responde que é um menino: "soube pela amniocentese". A médica, surpresa, pergunta à G por que fez esse exame, pois não havia nenhuma indicação médica para o procedimento. G menciona, de modo casual, ter passado por "stress no início da gravidez", e esclarece: "Ele [aponta o marido] foi seqüestrado quando eu estava no início [da gestação], fiquei muito estressada e daí, preocupada, resolvi fazer o exame pra ver se estava tudo bem." (Clínica C)

'Verdades' não-médicas

Em conjunto com a produção de 'verdades' médicas ocorre uma vasta e rica produção de outro tipo de 'verdades', na qual, diferentemente das primeiras, médicos, gestantes e acompanhantes atuam em co-parceria, sempre a partir das imagens fetais, com uma criatividade a toda prova. Existem basicamente dois tipos de verdades que são construídas desse modo. O primeiro deles diz respeito à reconfiguração da subjetividade materna, tendo como eixo principal a significação (ou a ressignificação) de sensações maternas, calcada na visualidade. O segundo tipo refere-se à subjetivação fetal, que se constitui como um momento marcante na construção social do feto como Pessoa. A construção de gênero, especialmente a partir da determinação do sexo fetal, detém uma parcela significativa no processo. Neste artigo, atenho-me à discussão sobre a produção de verdades subjetivantes acerca do feto que me pareceram ser relativamente independentes da construção de gênero.23 23 A construção de gênero antes do nascimento é tema extenso e complexo e foge ao escopo do presente trabalho. Sobre o assunto, ver Chazan (2003, 2005, p.272-302).

Significando as sensações maternas

A significação das sensações maternas tem dois momentos distintos. O primeiro ocorre quando, na gravidez inicial, a gestante tem acesso às primeiras imagens de seu embrião ou feto, transformando-se em 'mãe' pela primeira vez naquela gestação, como vimos anteriormente.

Dra. Lúcia – Lembra da data da última menstruação?

G – 17 de março.

Dra. Lúcia – Sete semanas, então! Vai ver embriãozinho e tudo... [Espalha o gel, surgem as primeiras imagens.] ... É, mãe...'tá grávida mesmo... vam'medir... 13 milímetros,.. [G sorri; dra. Lúcia aponta a tela.] Olha o coração lá! [Ouve-se o som dos batimentos cardíacos fetais; G sorri]. (Clínica B)

G – 'Tá prontinho... ele já se mexe? Eu não sinto ainda não... [A imagem pula na tela.]

Dr. Sílvio – No caso, 'tá mexendo...

G – Que gracinha!... Que lindo!... (Clínica C)

O segundo momento ocorre quando, já sentindo os movimentos fetais, a grávida correlaciona, por meio da visualização das imagens, suas sensações a determinadas partes do corpo do feto.

G – O que tem aqui? [Aponta para seu flanco esquerdo.]

Dra. Lúcia – Braço, perna...

G – Sinto um osso me cutucando... deve ser joelho... (Clínica B)

G – O que sinto aqui é o pé? [Aponta para seu hipocôndrio direito.]

Dra. Carla – Não... aí é o bumbum... a cabeça 'tá aqui... [mostra a pelve de G] Aqui o dorso, do lado direito...

G – Aqui eu sinto bastante... deve ser grande o bumbum dela! (Clínica C)

Nesse segundo momento, é como se as gestantes se 'apropriassem' e adquirissem o controle sobre seus fetos, o que paradoxalmente reforça a noção do feto como um ente separado dela, apenas temporariamente alojado em seu útero. Por vezes o fato de identificar e conectar partes do corpo fetal a determinadas sensações ajudava as gestantes a tolerar sensações dolorosas, em especial no final da gravidez.

G – Sinto uma dor aqui... o que é?

Dr. Henrique – É o pé que está aí.

G – Ai! Ele enfia o pé na minha costela!... Também, né, meu filho, 'tá tão apertado aí, né? (Clínica A)

Subjetivando o feto

A atividade fetal observada por meio das imagens dificilmente escapava de ser subjetivada pelos atores presentes – médicos, gestantes e acompanhantes –, que se alternavam em interpretações diversificadas e imaginosas:

Dra. Lúcia – [A imagem do feto vira, como uma cambalhota.] Virou. Agora 'tá com o bumbum pra cima...

P – [Meio timidamente.] Isso é aquilo... de timidez?... Que ele virou pra baixo? Aquilo que ele sabe que está sendo olhado e bota a mão no rosto? ...

Dra. Lúcia – Tem uma mãozinha de cada lado... Olha só! [A imagem da mão se mexe.]

P – 'Tá dando tchauzinho... (Clínica B)

Dr. Sílvio – Aqui a imagem da face ... abriu a boca... [A imagem, de perfil, abre e fecha a boca.] Isso eu acho bom... uma criança que boceja dentro do útero, 'tá tranqüilo... Isso não tem nada a ver com medicina, mas a gente tem a impressão... ninguém boceja em situação de stress... (Clínica C)

Dr. Henrique – Isso é o cordãozinho... [ouve-se o som da pulsação], a coluninha... 'tá difícil ver o sexo... vou sacudir ele um pouquinho aqui [balança a sonda sobre o abdômen de G, que ri]. Vam'lá, neném! ... Não quer mostrar...

G – Faz isso com a gente não, neném! (Clínica A)

Na comparação com as outras duas clínicas, a subjetivação fetal observada na clínica C revelou um discurso mais psicologizado dos atores presentes, com 'tonalidades' por assim dizer 'psicanalíticas':

[Tratava-se de um exame de acompanhamento de um problema identificado em ultra-som anterior, quando haviam sido visualizadas imagens císticas no pulmão.]

Dra. Carla – Ela 'tá colaborando! 'Tá de frente, de peito aberto! [Faz um gesto mostrando a posição.] Não estou vendo mais nada...

G – [Abrindo um grande sorriso.] É um presente! ... [Satisfeita, para P.] Foi o Reiki, falei pra você!24 24 Outra situação híbrida, pois a partir da detecção de uma anomalia pela aparelhagem high tech, G teria buscado uma terapia alternativa, visando assim resolver o problema no pulmão de seu feto.

P – Mari 'tava se valorizando, arrumou um cisto pulmonar pra chamar a atenção... (Clínica C)

Dra. Carla – [Finalizando o exame.] O que mais vocês querem saber?

P – Que ela não saia antes da hora!

G – Rogério! Ela 'tá ouvindo! Vai pensar que você não quer ver ela! (Clínica C)

'Semelhanças' com a família

Um outro conjunto de 'verdades' produzido no universo observado dizia respeito à busca de sinais de pertencimento do feto à família, calcado em 'semelhanças' de ordem física ou 'comportamental' com membros da família. Cabe aqui um parêntesis. Os termos aspeados visam sublinhar a produção de dois tipos de construto. Considerando estritamente as imagens que aparecem na tela do monitor, por mais sofisticada que seja a tecnologia, as semelhanças físicas decorrem muito mais do desejo de 'ver' dos atores do que de similaridades morfológicas concretas. Comportamental também encontra-se entre aspas para frisar o fato de que atividades e movimentos fetais, possivelmente reflexos, ao serem interpretados pelos atores como 'condutas' do feto, evidencia que é justamente através dessa maneira de traduzir ou significar as imagens que intrinsecamente se produz a subjetivação do mesmo. Às vezes, os médicos instigavam a busca de semelhanças físicas, mas com freqüência o assunto surgia espontaneamente.

Dr. Henrique – [Mostrando a imagem 3D.] Á' lá! Parece com quem?

G – O que é aquele nariz ali? [Para P.] Não é o teu não... (Clínica A)

G – [Para P, provocativa, brincando.] Já vi que tem beição... não é meu! É seu!

P – [Fazendo bico.] Minha boca é pequenininha...

G – Eu não tenho boca... [Na realidade, ambos têm lábios grossos; parece ser uma brincadeira entre eles.] (Clínica C)

Do ponto de vista 'comportamental', as supostas semelhanças poderiam estar carregadas de conotações positivas ou negativas e, em várias ocasiões, serviram como base para implicâncias ou brincadeiras entre casais:

[O casal chega para a ultra-sonografia com a certeza de que o feto é feminino. Contudo, no decorrer do exame, o médico revela que o feto é masculino. G mostra-se muito decepcionada e P fica eufórico.]

P – [Liga o celular.] Vou falar com a minha sogra... minha mãe... meu pai... tô até tremendo de tanta emoção... mas é meu filho mesmo! Só pra contrariar a mãe... Eu sabia!... 'Tá tudo certinho, doutor? (Clínica A)

P – [Olhando para a tela do monitor.] Nesse horário se mexe mais... [Já passa das 19h.]

G – De manhã quase não se mexe... [ri, olha para P], que nem você. Só funciona depois das 11 da manhã... Aí ele pega no tranco... [O casal ri.] (Clínica C)

[Havia uma preocupação com uma imagem que surgira em exame anterior. Neste exame, aparentemente tudo estava normal].

G – [Para P.] Só podia ser sua filha mesmo, pra dar esse trabalho todo. (Clínica C)

A apropriação e a transformação do sentido do exame pelos atores nele envolvidos produzem, no conjunto, uma reconfiguração das percepções e sensibilidades sobre a gestação e sobre o feto. A visualização das imagens fetais como que antecipa a maternidade, ao mesmo tempo que constrói socialmente o feto como Pessoa antes do nascimento, subjetivado, generificado e individualizado, conforme outras pesquisas já haviam apontado.25 25 Ver Petchesky (1987), Duden (1993), Mitchell (1994), Rapp (1997), Taylor (1998).

'Verdades' dolorosas: a comunicação de más notícias

A ultra-sonografia obstétrica tem como raison d'être o diagnóstico pré-natal. Existe portanto, subjacente à realização de qualquer exame, uma tensão relativa à possibilidade de que se encontre alguma patologia materna ou fetal. É importante ter em mente que, no Brasil, o aborto é proibido por lei, considerado crime, exceto em casos de estupro comprovado e, mesmo assim, sujeito a vicissitudes26 26 Como por exemplo médicos em hospitais públicos recusando-se a praticá-lo alegando 'razões morais', mesmo que haja permissão judicial para tal. . Tem havido diversas disputas judiciais para que seja permitida a interrupção da gravidez em casos de anencefalia, mas do ponto de vista legal inexiste o direito de escolha da mulher.27 27 O que ocorre na prática é que as mulheres não deixam de realizar abortos, em condições de higiene variáveis conforme seu nível socioeconômico, com as conseqüências que se pode imaginar. Por se tratar de uma prática ilegal, há diversos problemas metodológicos envolvidos na pesquisa epidemiológica sobre o aborto no Brasil. Alguns estudos apontam uma média nacional de um aborto induzido para 3,7 partos (Ramírez-Gálvez, 1999, p.19). Para uma revisão e discussão sobre o tema, ver Ramírez-Gálvez (1999).

Em que pese a afirmativa do doutor Sílvio, de que "a expectativa do ultra-som obstétrico é de uma coisa boa... diferente de quando você tem um câncer: vai ver se tem no fígado... já vai meio preparado para uma notícia ruim...", em diversas ocasiões a impressão que eu tive foi que havia um clima excessivamente eufórico e um reforço do 'ultra-som como espetáculo', quase como uma tentativa mágica de afastar os 'maus fluidos' ou conjurar os 'maus pensamentos':

G – Translucência... 'tá normal?

Dr. Sílvio – Bem fininha... o que vocês vão receber é um número de risco corrigido... [o resultado da translucência] corrige pra cima ou corrige pra baixo... o risco da idade. Não diz se tem ou não algum problema... Mas 'tá distante do risco...

G – [Sem entender a explicação.] E a gente? 'Tá distante do risco?...

P – Mas isso é quando há... [nitidamente tentando evitar se referir à possibilidade de anomalia fetal]. Deixa pra lá... ficar falando do filho dos outros... (Clínica C)

Considerando essa questão apenas quanto ao conteúdo explícito observado, chegava a ser de certo modo surpreendente o clima alegre que ocorria na maioria das sessões e quão poucas vezes era mencionada de maneira clara a possibilidade de haver problemas. As perguntas "está tudo bem?" ou "é normal?" eram freqüentemente formuladas pelas gestantes em tom casual, como se a única resposta possível fosse a positiva. Contudo eventualmente havia surpresas desagradáveis para as grávidas.

A comunicação das más notícias passava-se em dois tempos: no tempo real – durante a execução do exame – e, em um segundo momento, quando ocorria como que a 'concretização' da notícia, com a redação dos laudos e a informação direta ao obstetra pelo ultra-sonografista. Os profissionais observados utilizavam diferentes estratégias, que dependiam em parte das suas próprias características pessoais e daquelas das clientes, além do tipo e da gravidade do problema. Apesar de haver uma gama bastante variável de possibilidades de atuação, foi observado que cada um adotava predominantemente um determinado tipo de atitude.28 28 Um médico, em comunicação pessoal, informou-me que há diversas discussões entre os profissionais de ultra-som acerca do que seja ou não recomendado como atitude adequada nesse campo. Há apenas um consenso relativo, entre os ultra-sonografistas, de não indicar outros exames complementares às gestantes para dirimir dúvidas acerca de diagnósticos, sob o risco de incorrer em infrações éticas em relação aos obstetras responsáveis.

Para comunicar as más notícias propriamente ditas, notei basicamente três possibilidades de manejo. A mais freqüente consistia em 'pular' a primeira etapa, não comunicar nada à gestante durante o exame e, mais tarde, entrar em contato com o(a) obstetra para que ele(a) manejasse a questão. Observei discrepâncias entre o discurso e a prática. Por exemplo: um dia, uma médica na clínica B comentou que, daquele momento em diante, iria "falar pouco nos exames", pois estivera recentemente "num negócio de ética aí [sic] ... uma conferência que o cara ficou falando que a gente devia falar pouco pras pacientes...". Doutora Lúcia contrapôs imediatamente: "Ah! Depende da paciente! A gente vê... eu falo tudo pra paciente" – o que, conforme eu observara em diversas ocasiões, não correspondia exatamente aos fatos. A exceção a esse modo freqüente de atuação era o doutor Henrique.

Pergunto se ele informa às pacientes quando encontra patologias, ele diz que sim, sempre. Ele afirma que há divergências entre os colegas, "alguns não dizem nada para as pacientes e se comunicam só com o obstetra", mas ele faz as duas coisas: "Até porque elas sempre perguntam se está tudo bem, e eu acho errado dizer que está, se não está. Aí é um stress, tem as reações mais variadas, e também gasta muito tempo. Mas eu sempre converso, explico as possibilidades. E depois ligo para o colega". (Clínica A)

Evitar a primeira etapa podia se tornar uma situação complicada: mesmo evitando dar a má notícia, dependendo da severidade do problema encontrado a informação não podia ser muito adiada, uma vez que estariam também em jogo a competência e a credibilidade – em suma, o renome – dos profissionais.

Uma segunda estratégia consistia em mostrar primeiramente os aspectos normais do feto, enfatizando-os, para no decorrer da sessão ultra-sonográfica revelar problemas que "deveriam ser melhor avaliados em um acompanhamento" (médica, clínica C).

A terceira forma de lidar com más notícias era fornecê-las diretamente durante o exame, uma situação sempre traumática para as gestantes e sofrida também para os profissionais. Poucas vezes presenciei situações como essas, mas meus informantes médicos forneceram-me diversos relatos delas. Evidentemente a gravidade da situação a ser comunicada desempenhava um papel relevante na dificuldade de os ultra-sonografistas lidarem com este tipo de comunicação. Doutor Sílvio me pergunta:

A Carla te contou sobre uma 'saia justa' que ela passou? Veio uma gestante com tanta gente, mas tanta, que não cabia todo mundo na sala. Aí eles combinaram o seguinte: entrava primeiro uma parte e depois entrava a outra. Só que logo no início ela descobriu que o feto era anencéfalo! Ficou tão nervosa que acabou interrompendo o exame no meio e vindo me perguntar o que fazer. (Clínica C)

As estratégias dos profissionais podiam ser 'atropeladas' pela socialização visual das gestantes, quando estas conseguiam decodificar que algo de errado estava acontecendo e inquiriam diretamente os médicos – circunstâncias que se tornavam particularmente constrangedoras, pois era como se pegassem o médico 'de surpresa', antes que ele tivesse tempo de estabelecer com calma a forma de abordar a situação. Os momentos difíceis, provocados quando a gestante ou um dos acompanhantes 'viam' algo, eram tema de conversas entre os médicos, possivelmente um modo de compartilharem experiências, diminuírem a tensão vivida e se apoiarem mutuamente.

Doutora Sandra diz que quando vê coisas "muito erradas" com o feto, "acabo falando". Conversamos sobre um caso problemático, cuja imagem ainda estava na tela. Ela comenta que P perguntou: "O que é aquela mancha escura?" E acrescenta: "Ele é veterinário, é fogo... não dá pra esconder. Ela [G] só dizia 'tadinho... tadinho'". (Clínica C)

Dr. Sílvio relatou-me um caso ocorrido com ele no dia anterior:

Você devia estar aqui... era um [exame] morfológico, 24 semanas, o feto era anencéfalo... O casal era médico, mas eles não falaram no início. Só quando eu olhei o encéfalo e não vi nada, comecei a dizer 'este é o encéfalo', fiquei sem saber como dizer que o feto era inviável, mas acho que o marido viu a imagem e sacou, e mandou a mensagem dizendo: 'Nós somos médicos'. Aí eu disse: 'Tenho uma notícia muito ruim para dar para vocês'. E falei. (Clínica C)

Gestantes sensíveis ou preocupadas olhavam com freqüência e fixamente para o rosto dos médicos, buscando nos seus semblantes indicações – positivas ou negativas – acerca do que se passava, e os profissionais estavam cientes do escrutínio do qual eram alvo. Ao longo do tempo da observação, tornou-se evidente que a questão das más notícias e de como apresentá-las às gestantes está longe de ter consenso entre os ultra-sonografistas. Não existe nenhum protocolo recomendado pela Sociedade Brasileira de Ultra-Som a respeito do assunto, de modo que as atitudes a serem tomadas dependem exclusivamente de decisões pessoais dos profissionais, calcadas em seus valores e crenças.

Preocupações de gestantes sobre a saúde fetal não são nenhuma novidade, desde há muito tempo. O aspecto a sublinhar, que foi radicalmente reconfigurado, deriva do fato de que, até o surgimento e difusão da ultra-sonografia (além de outras tecnologias de diagnóstico pré-natal), as dúvidas sobre a normalidade do feto só eram sanadas com o nascimento.29 29 Sobre outras tecnologias diagnósticas e seus desdobramentos culturais, ver Rapp (1997; 1998; 1999). O uso do ultra-som na gravidez permitiu que se tomasse conhecimento da existência de anomalias antes do parto, embora as possibilidades de interferência ou cura ainda sejam bastante limitadas.30 30 Além disso, considerando que no Brasil o aborto é ilegal, o escopo da ação se estreita mais ainda e a situação se complica consideravelmente. Se, por um lado, algumas das ansiedades a respeito da normalidade fetal passaram a ser 'dissolvidas' antes do nascimento, por outro foi construída uma enorme pressão social para que se escrutine e se monitore precocemente cada gravidez o mais de perto e tecnologicamente possível.

O mito da 'objetividade da imagem técnica' e suas vicissitudes

Existe um tema relativamente pouco explorado na literatura, mas bastante familiar aos especialistas em diagnóstico por imagem. No campo da ultra-sonografia, a questão pode adquirir contornos dramáticos, com os quais os profissionais são confrontados diretamente. Todos os profissionais etnografados estavam profundamente cientes do peso e da importância da subjetividade contidos em sua atividade cotidiana, tanto do ponto de vista da decodificação das imagens quanto no que diz respeito ao contato direto com a clientela. Além disso, se ressentiam da atribuição de objetividade à imagem técnica, fosse por parte dos clientes – leigos – ou dos médicos que solicitavam os exames. Quando essa atribuição de objetividade advinha dos pacientes, havia ainda alguma tolerância, mas quando provinha de colegas médicos provocava explosões de irritação em meus informantes. Uma médica, aborrecida, relatou uma situação que classificava de "surreal": "Ontem atendi uma surda-muda, com um pedido de [ultra-som] transvaginal sem [constar no pedido] a suspeita diagnóstica, que ainda por cima veio desacompanhada pro exame. Pode? Como é que eu ia saber o que procurar?" (Clínica A).

A desinformação ou mitificação das possibilidades diagnósticas oferecidas pela ultra-sonografia, por parte de profissionais de outras especialidades, pode ter graves conseqüências para as gestantes e os seus fetos.

Uma gestante, na 13ª semana de gestação, relatou que há cerca de dois meses tivera que se submeter a uma cintilografia de tireóide antes de uma cirurgia. O cirurgião – um médico renomado – pediu uma ultra-sonografia pélvica, visando verificar se ela não estava grávida. Como o resultado do exame foi 'negativo', ela tomou iodo radioativo e fez a cirurgia. Pouco depois constatou a gravidez – provavelmente quando fez o primeiro exame o embrião era pequeno demais para a resolução do aparelho.31 31 A aparelhagem atual só é capaz de detectar objetos com mais de cinco milímetros. Estava muito tensa com a situação. Ao sairmos do exame, o médico concorda comigo que aquela gestante fora vítima de um erro: ela deveria ter feito um exame de ß-HCG32 32 Gonadotrofina coriônica, para diagnóstico precoce de gravidez, dosada por imunofluorescência no sangue da mulher. e não um ultra-som. Revelou-me então sua preocupação: "Até o momento não há malformações visíveis, mas não se pode ter certeza de nada". Aparentemente, o cirurgião achou que uma ultra-sonografia pélvica seria suficiente para se assegurar de que a mulher não estava grávida. (Clínica A)

Outras situações, vinculadas à crença generalizada de que a imagem forneceria todas as informações necessárias para o esclarecimento de problemas, beiram o cômico, como nesse caso relatado informalmente.

Uma senhora liga para o consultório de seu ginecologista e explica à atendente que precisa contatá-lo com urgência por estar com uma hemorragia. O médico não está, e a atendente, tentando auxiliar, sugere: "É melhor a senhora já ir fazendo um ultra-som para ver se não perdeu o neném". A paciente responde: "Minha filha, eu tenho 52 anos!"

No conjunto, essas situações fornecem elementos que apontam que a 'objetividade' da imagem ultra-sonográfica não passa de um mito compartilhado culturalmente, uma situação na qual os ultra-sonografistas constituem a exceção, na medida em que têm uma noção bastante clara das possibilidades e limitações oferecidas pela tecnologia que utilizam.3

Apropriações, fusões e reconfigurações

Embora a proposta da pesquisa fosse de ordem qualitativa, o número de sessões observadas33 33 Cerca de 200 exames, somando as três clínicas. evidenciou uma questão de natureza quantitativa. Em que pese a acentuada medicalização da gravidez, a maioria das ultra-sonografias foi de gestações normais34 34 No total, não mais que dez exames revelaram patologias graves ou morte fetal. , o que sem sombra de dúvida muito contribui para a constituição da ultra-sonografia obstétrica como espetáculo, lazer e objeto de consumo. Essa transformação do sentido do exame detém papel importante na reconfiguração simultânea das percepções sobre gravidez e feto, além de se articular a outras questões que transcendem em muito o campo médico obstétrico.

A criatividade com que gestantes, acompanhantes e parceiros se apropriavam e interpretavam as informações médicas, 'objetivas', produzidas pela aparelhagem e interpretadas pelos profissionais constitui um exemplo claro da dinâmica com que se estabelece e consolida a produção de verdades medicalizantes sobre a gestação e o feto. Longe de ser um processo 'de cima para baixo', ou uma 'imposição' da tecnologia sobre as vivências 'naturais' da gravidez, o que ocorre no universo etnografado é que, ao atribuir os significados curiosos e inusitados às imagens esfumaçadas e cinzentas que passam rapidamente na tela do monitor, os atores – inclusive os médicos, em uma inflexão interessante – subjetivam as manchas e transformam-nas em algo bastante diferente de seu propósito original. A imagem do feto é tomada como equivalente à sua presença 'em pessoa', 'ao vivo' e em tempo real como quando as clientes ou os médicos dirigem-se a ele 'dando ordens' ("Faz isso com a gente não, neném!") ou 'solidarizando-se' com ele ("Também, né, meu filho, 'tá tão apertado aí, né?").

Sem deixar de ser uma tecnologia diagnóstica, ao produzir inúmeras 'verdades' não-médicas sobre a gravidez e o feto a ultra-sonografia fetal torna-se também um elemento de consumo e diversão. Esse movimento configura o que Martin-Barbero (2003, p.28), discutindo a cultura popular e o processo de comunicação pelo prisma da recepção, conceitua como resistências, enfatizando o lado ativo dos atores pelo uso que fazem das mensagens recebidas.

No caso da transformação do ultra-som em espetáculo, em especial a partir das verdades não-médicas, evidencia-se que essa resistência não significa exclusivamente – ou necessariamente – uma oposição à 'hiper-medicalização' da gravidez, implícita no monitoramento pré-natal. Sublinhe-se, em primeiro lugar, que essa medicalização não é um processo autoritário produzido 'maquiavelicamente' pelos médicos; trata-se, antes, de uma articulação complexa, na qual é construída uma 'necessidade' de monitoramento e vigilância da saúde da mulher e do feto. Tal necessidade é informada, modelada e instigada pela cultura contemporânea de risco, em que se espera uma gestação "sem surpresas" (Arney, 1982, p.175). Acrescente-se também que todos os atores envolvidos encontram-se em uma configuração cultural na qual a visualidade e a espetacularidade são preponderantes, o que contribui para que a visualização da imagem do feto seja equiparada pelos presentes à existência dele fora do útero, produzindo como que um 'nascimento virtual' antes de o bebê vir à luz.

A produção do 'prazer de ver' as imagens fetais é uma das resultantes de toda essa articulação, que, por seu turno, ativa a demanda de exames por parte das gestantes, o que gera um ciclo de realimentação. Constrói-se assim uma dinâmica constitutiva do campo: a apropriação, por assim dizer, lúdica do exame, assim como a atribuição de significados insólitos a partir das imagens fetais, e mesmo das próprias 'verdades' médicas resultam em uma instigação ao consumo da ultra-sonografia e, conseqüentemente, em um reforço da medicalização que se encontra implícita no uso do ultra-som na gravidez.

NOTAS

*Este artigo é uma versão ampliada do paper apresentado na Mediated Bodies International Conference, realizada em Maastricht, Holanda, em setembro de 2006. Partes dele integram o capítulo 5 do livro "Meio quilo de gente": um estudo antropológico sobre ultra-som obstétrico (Editora Fiocruz, 2007, Coleção Antropologia e Saúde).

Recebido para publicação em fevereiro de 2007.

Aprovado para publicação em abril de 2007.

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  • 1
    A partir a década de 1980 foram produzidos diversos artigos antropológicos sobre o tema, na Europa e na América do Norte, destacando-se Petchesky (1987), Duden (1993), Mitchell (1994) e especialmente Rapp (1997). A ausência de uma pesquisa brasileira sobre o assunto levou-me a realizar uma etnografia no Rio de Janeiro.
  • 2
    Em cada clínica acompanhei predominantemente um médico: na A, doutor Henrique, na B, doutora Lúcia e na C, doutor Sílvio. Entre os exames, eu costumava ficar na sala dos médicos e interagir com eles, o que também forneceu elementos interessantes para a pesquisa.
  • 3
    Designo por socialização visual o processo – observado ao longo da etnografia – de construção de uma cultura visual compartilhada entre os atores, em torno das imagens produzidas pela aparelhagem.
  • 4
    Ou
    cyborg, como preferem alguns autores (Haraway, 1991; Downey & Dumit, 1997; Dumit & Davis-Floyd, 1998; Dumit, 1997; Downey, 1998, entre outros). O campo se mostrou muito rico em situações desse tipo, uma discussão em si bastante interessante e complexa, mas que foge ao escopo deste trabalho.
  • 5
    Sobre medicalização, ver Foucault (1998); sobre medicalização da gravidez, ver Arney (1982).
  • 6
    Alguns autores, entre os quais destaco Steven Johnson, vêm discutindo a construção do que denominam interfaces, por meio das quais os sujeitos entram em contato, interagem e significam elementos tecnológicos (Johnson, 2001). Nesse sentido, a imagem ultra-sonográfica pode ser considerada a interface por meio da qual os atores do universo observado reconfiguram diversos aspectos da construção social da gravidez.
  • 7
    Vale assinalar que a idade, o peso e o tamanho fetais são estimados a partir do tratamento computacional dos dados de mensuração de determinadas estruturas anatômicas (respectivamente o perímetro cefálico, o perímetro abdominal e o tamanho do fêmur). Entretanto, embora fossem dados aproximados, eram lidados pelos atores leigos como medidas concretas.
  • 8
    As imagens atraíam a atenção de todos os presentes na sala de exame. No início do trabalho de campo por diversas vezes dei-me conta da dificuldade de despregar os olhos da tela do monitor, sendo necessário disciplinar meu olhar para não ser 'cooptada' pela cultura nativa e conseguir prestar atenção nos discursos, interações e negociações que ocorriam incessantemente.
  • 9
    E também em função da divulgação dessas imagens pela mídia, com os mais diversos propósitos.
  • 10
    Na gravidez tubária, o óvulo fecundado se aloja na trompa de Falópio, gerando uma situação de risco para a mulher que, com freqüência, é resolvido cirurgicamente extirpando-se a trompa afetada.
  • 11
    Utilizo visibilização (em contraste com visualização) porque, em primeiro lugar, são termos nativos e consistem em uma distinção êmica. Em segundo lugar, cabe ressaltar que, a rigor, a tecnologia do ultra-som – assim como todas as tecnologias de imagem médica não invasivas – 'torna visível', ou 'visibiliza' algo não acessível diretamente ao olhar. Reservei o termo 'visualização' para a situação direta que ocorria durante os exames: por exemplo, todos 'visualizavam' as imagens na tela do monitor.
  • 12
    Todos os nomes são fictícios. Nas citações as ênfases dadas pelos atores estão sublinhadas. As minhas ênfases estão em itálico. Utilizo G para designar as gestantes e P seus parceiros. Uso colchetes para indicar ações ou complementar dados, e reticências para indicar edições do material.
  • 13
    A 'viabilidade' fetal é outra das várias situações 'híbridas' encontradas no campo, pois depende em primeiro lugar da idade do feto mas, de modo significativo, também da tecnologia disponível para cuidados com prematuros.
  • 14
    Incisura, avaliada no exame de
    doppler, é uma medida do aumento da resistência ao fluxo sanguíneo nas artérias uterinas e, portanto, pode ser uni ou bilateral. No segundo caso implica a tomada de algumas precauções como o uso de aspirina pela gestante e o monitoramento das condições circulatórias maternas e fetais, assim como do crescimento fetal por meio de exames de ultra-som.
  • 15
    No Brasil, é muito grande o número de cesarianas praticadas, uma situação complexa que foge ao escopo deste trabalho.
  • 16
    Estrutura que se forma no ovário após a ovulação.
  • 17
    'Simpatia' é uma prática mágica ou divinatória presente na cultura popular brasileira.
  • 18
    As aspas para os termos 'menino' e 'menina' visam frisar o fato de que se tratam de fetos, antecipadamente considerados pelos atores como crianças já nascidas. Ou seja, são meninos e meninas apenas do ponto de vista êmico.
  • 19
    Discuto mais extensamente a questão da determinação do sexo fetal e da subjetivação vinculada à construção de gênero em outros textos (Chazan, 2003, 2005, p.272-302).
  • 20
    Medida de uma prega de pele na nuca do feto.
  • 21
    A alteração desses dois parâmetros fornece uma indicação probabilística que, calculada em conjunto com o risco oferecido pela idade materna, resulta em um índice que é a taxa de risco daquele feto ser portador de anomalia. Essa taxa, comparada com a taxa de risco de aborto provocado por complicações do exame de amniocentese, é apresentada às gestantes para que elas decidam se desejam ou não se submeter a esse procedimento – mais invasivo e mais preciso no que tange à avaliação de anomalias cromossômicas.
  • 22
    Sobre o tema, ver Duden (1993) e Rapp (1997,1998, 1999).
  • 23
    A construção de gênero antes do nascimento é tema extenso e complexo e foge ao escopo do presente trabalho. Sobre o assunto, ver Chazan (2003, 2005, p.272-302).
  • 24
    Outra situação híbrida, pois a partir da detecção de uma anomalia pela aparelhagem
    high tech, G teria buscado uma terapia alternativa, visando assim resolver o problema no pulmão de seu feto.
  • 25
    Ver Petchesky (1987), Duden (1993), Mitchell (1994), Rapp (1997), Taylor (1998).
  • 26
    Como por exemplo médicos em hospitais públicos recusando-se a praticá-lo alegando 'razões morais', mesmo que haja permissão judicial para tal.
  • 27
    O que ocorre na prática é que as mulheres não deixam de realizar abortos, em condições de higiene variáveis conforme seu nível socioeconômico, com as conseqüências que se pode imaginar. Por se tratar de uma prática ilegal, há diversos problemas metodológicos envolvidos na pesquisa epidemiológica sobre o aborto no Brasil. Alguns estudos apontam uma média nacional de um aborto induzido para 3,7 partos (Ramírez-Gálvez, 1999, p.19). Para uma revisão e discussão sobre o tema, ver Ramírez-Gálvez (1999).
  • 28
    Um médico, em comunicação pessoal, informou-me que há diversas discussões entre os profissionais de ultra-som acerca do que seja ou não recomendado como atitude adequada nesse campo. Há apenas um consenso relativo, entre os ultra-sonografistas, de não indicar outros exames complementares às gestantes para dirimir dúvidas acerca de diagnósticos, sob o risco de incorrer em infrações éticas em relação aos obstetras responsáveis.
  • 29
    Sobre outras tecnologias diagnósticas e seus desdobramentos culturais, ver Rapp (1997; 1998; 1999).
  • 30
    Além disso, considerando que no Brasil o aborto é ilegal, o escopo da ação se estreita mais ainda e a situação se complica consideravelmente.
  • 31
    A aparelhagem atual só é capaz de detectar objetos com mais de cinco milímetros.
  • 32
    Gonadotrofina coriônica, para diagnóstico precoce de gravidez, dosada por imunofluorescência no sangue da mulher.
  • 33
    Cerca de 200 exames, somando as três clínicas.
  • 34
    No total, não mais que dez exames revelaram patologias graves ou morte fetal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2007
    • Recebido
      Fev 2007
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