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Escravidão e política no Império

Slavery and politics under the Empire

LIVROS E REDES

Escravidão e política no Império

Slavery and politics under the Empire

Ricardo Salles

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. ricardohsalles@gmail.com

Em The party of order, o historiador norte-americano Jeffrey Needell retoma a tradição de análises abrangentes sobre a natureza do Estado brasileiro no século XIX. Para tanto, focaliza o que ele chama de 'partido da ordem', algo que varia de significado ao longo do livro, e suas relações, por um lado, com o parlamento e a Coroa e, por outro, com a escravidão. Somente a tentativa de articular a análise política com o tema da escravidão já recomendaria o livro, ainda que, como é natural nas obras muito abrangentes, um dos tópicos acabe por prevalecer sobre o outro. No caso, é o tópico da análise política que se sobrepõe à análise da escravidão. The party of order fala do tema da escravidão, em especial sobre a maneira como ele foi discutido e debatido politicamente pelos diversos atores presentes no parlamento e no Estado, e diz pouco sobre as relações sociais entre senhores e escravos. Esse ponto, entretanto, não pode ser apontado como uma falha, uma vez que o autor não tem tal pretensão.

Needell concentra sua atenção sobre a atuação do núcleo de conservadores fluminenses, conhecidos como saquaremas no período entre 1830 e 1870, e que ele designa como Partido da Ordem, assim mesmo, grafado em maiúsculas. Esse partido teria sido responsável pelo chamado Regresso Conservador no final do período regencial e com papel primordial na consolidação do Segundo Reinado. Entre suas bandeiras a mais importante, ainda segundo Needell, seria a defesa intransigente do regime monárquico e do papel central que nele deveria representar o parlamento, como expressão dos setores mais abastados da sociedade. Needell chama a atenção – e este é a meu ver o aspecto mais relevante da obra – para as conexões entre esses setores, os quadros do partido da ordem e os interesses dos grandes comerciantes, em especial dos traficantes de escravos, e grandes proprietários rurais escravistas, particularmente na província do Rio de Janeiro. Para argumentar sua tese, demonstra como as principais figuras desse processo político estavam umbilicalmente ligadas a algumas poderosas famílias da Corte e das províncias do Rio de Janeiro e, em menor grau, de Minas Gerais. Mais importante: mostra como essas famílias tinham em comum o afastamento do comércio em direção à propriedade rural escravista e – ao menos na primeira parte do livro é esta a idéia – a defesa da escravidão.

Quatro clãs familiares são analisados como exemplos dessas conexões. O primeiro deles são os Álvares de Azevedo, que incluíam políticos conservadores de grande projeção, formadores da Trindade Saquarema – Joaquim José Rodrigues Torres (visconde de Itaboraí), e seu cunhado Paulino Soares de Sousa (visconde do Uruguai) – e membros da família Teixeira Leite, poderosos financistas e proprietários em Vassouras. A segunda família é a dos Carneiro Leão, em que sobressaíam duas importantes figuras dos conservadores fluminenses, Honório Hermeto Carneiro Leão, o marquês do Paraná – cuja ligação com o clã não é de todo comprovada – e Luís Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias. Ligada aos Carneiro Leão estava outra importante família de produtores de café da região de Serra-Acima, os Nogueira da Gama. Os Lacerda Werneck, grandes proprietários em Vassouras também vinculados aos conservadores, são o terceiro clã identificado por Needell. Finalmente, havia o clã dos Teixeira de Macedo e Queirós Mattoso, do qual faziam parte José Clemente Pereira e Eusébio de Queirós. Pereira foi grande comerciante e proprietário rural na Baixada Litorânea e na Serra, e Queirós foi o terceiro vértice da Trindade Saquarema. Essas quatro famílias seriam representativas do que Needell denomina oligarquias fluminenses e suas trajetórias mostram, a partir de origens distintas (açúcar, tráfico, comércio interno e serviços à Coroa), um rumo comum, a propriedade rural e o serviço à Coroa, todas se afastando do comércio e do tráfico.

A tese não é exatamente nova. Ilmar Rohloff de Mattos já a havia levantado em meados da década de 1980. O livro de Needell tem o mérito, contudo, de tornar as conexões familiares e pessoais entre essas famílias de grandes proprietários e comerciantes mais explícita, concreta e detalhada. Ainda nessa direção, Needell chama a atenção para um aspecto que me parece importante e que, certamente, poderá render boas pesquisas adiante. Trata-se de certa diferença entre os fazendeiros da baixada litorânea de Itaboraí e Saquarema – e eu acrescentaria São Gonçalo e Maricá –, mais ligados à produção de açúcar, e os da serra, ligados à cultura do café. Nesse ponto, acrescento dois comentários. Em primeiro lugar, saliento que os fazendeiros da baixada também estavam ligados à cultura do café, mais disseminada na província do que se pensa normalmente, e não apenas à produção de açúcar. Em segundo lugar – e sobre isso mais pesquisas seriam necessárias –, parece ter havido mesmo uma 'especialização de funções' entre os grupos da baixada e os da serra. Os primeiros, mais antigos e ligados à grande política, e os segundos, mais novos e na crista do boom cafeeiro do Vale do Paraíba, fortes localmente mas em segundo plano no cenário político do Império, ainda que ligados aos primeiros. Seja como for, Needell estabelece seu ponto: o partido da ordem era intimamente vinculado aos grandes proprietários escravistas, principalmente da província do Rio de Janeiro.

Diante desse pano de fundo, um dos pontos altos de The party of order é sua discussão sobre a extinção do tráfico em 1850. Reproduzindo argumentações anteriores e atuais, o autor demonstra como a lei foi, no fundamental, 'arrancada' pela pressão inglesa. Assim, critica as versões mais atuais que atribuem importância primordial ao medo da insurreição e da expansão da febre amarela. É muito interessante sua observação sobre a credibilidade do gabinete (por seu passado comprometido com o tráfico) para fazer valer a medida junto à Assembléia e aos senhores. Needell deixa claro que a lei de 1850 não visava golpear a escravidão, o que também não é exatamente uma novidade. Ele menciona um artigo de Justiniano José da Rocha, em O Brasil de 16 de julho de 1850, que considerava que as necessidades de braços poderiam ser supridas por um melhor tratamento dos cativos – ponto importante e que também poderá render boas pesquisas futuras.

Agora os pontos problemáticos do trabalho de Needell, que a meu ver não são poucos. Em primeiro lugar, fica evidente um desejo de ressaltar sua originalidade, o que o leva a não se deter na historiografia brasileira das últimas décadas. Especificamente em relação ao tema do Estado imperial, objeto de sua atenção, Needell só reconhece mérito na obra de José Murilo de Carvalho. Os méritos são merecidos, é claro, mas como o trabalho de José Murilo parte de um pressuposto distinto do seu, isto é, da autonomia da elite política imperial em relação à classe dos grandes proprietários, esse reconhecimento termina por ressaltar a pretendida originalidade de seu próprio livro. A situação se complica quando Needell coteja sua tese com outro clássico da historiografia brasileira sobre o Império, O tempo saquarema, de Ilmar Rohloff de Mattos, que parte do mesmo pressuposto da íntima relação entre a escravidão e a formação do Estado através dos grandes fazendeiros escravistas fluminenses e do núcleo saquarema do partido conservador da província do Rio de Janeiro. Isto vinte anos antes de Needell ter realizado esta 'descoberta'. Ele simplesmente não toca no assunto e só se refere ao trabalho de Ilmar em termos críticos. Nada demais, é direito seu, mas para os leitores brasileiros que conhecem a obra de Ilmar e seu impacto fica, no mínimo, esquisito. As críticas são superficiais e equivocadas. Um exemplo: "Rohloff de Mattos, mesmo que focalizando a ideologia, ignora a especificidade histórica numa tentativa de análise do discurso hegemônico; ele funde o papel e a perspectiva saquarema com uma classe dominante monolítica e um Estado reificado" (p.385, nota 18). Ora, Ilmar defende exatamente o contrário: a classe senhorial não é uma dedução da estrutura escravista, mas uma formação histórica, no tempo e no espaço; o Estado está longe de ser reificado, mas é o Estado que se forma com essa classe, é o Estado como relação social histórica e não coisa deduzida de uma classe dominante abstrata; é o Estado como relação política, fruto dos embates reais entre os agentes e as forças sociais e políticas. Daí o papel da trindade saquarema, de seus embates com os luzias, da construção da Coroa como partido e do 'tempo saquarema' como hegemonia histórica, como direção moral e intelectual. Nada mais longe, portanto, de uma classe monolítica e de um Estado reificado.

Nesse ponto entende-se melhor por que Needell introduz, sem explicar, uma categoria produzida por ele, o 'partido da ordem', que aparece como se fosse uma realidade do período, como pode parecer a um leitor desavisado. No máximo, o partido da ordem foi uma designação restrita aos conservadores de Pernambuco, assim como os saquaremas o foram em relação aos conservadores da província do Rio de Janeiro. Com uma importante diferença, contudo. Estes últimos alcançaram a direção dos conservadores em geral e, por tabela, do governo, imprimindo a direção moral e intelectual do Tempo Saquarema de Ilmar, fato que explica por que seu apelido adquiriu, na época – é importante que se frise –, o sentido de sinônimo de conservadores em geral. Já o partido da ordem pernambucano nunca ultrapassou o âmbito regional. Mas na narrativa de Needell ele aparece como se fosse uma realidade, o que não aconteceu.

Mesmo como uma noção atribuída por Needell, sem aviso, ao passado, o significado de partido da ordem é impreciso. Ora coincide com os saquaremas fluminenses e seus aliados provinciais, entre eles principalmente os conservadores baianos, ainda que às vezes se incluam os conservadores pernambucanos; ora abarca todos os conservadores da província do Rio de Janeiro e quase todo o Partido Conservador. Ao fim e ao cabo, na parte final do livro o partido da ordem de Needell acaba reduzido ao núcleo saquarema fluminense, particularmente à trindade saquarema, José Rodrigues Torres, José Paulino Soares de Sousa, Eusébio de Queirós e, mais tarde, ao filho homônimo de Paulino.

Needell, ao recusar trabalhar no mesmo nível de investigação de O tempo saquarema e optar pela imprecisão do partido da ordem como mera expressão de pessoas, acaba perdendo alcance explicativo em sua análise. Por um lado, abandona o veio promissor, delineado no início do livro, de examinar os elos sociais entre a política saquarema e conservadora e a escravidão. Por outro, e parcialmente como conseqüência disso, reifica a ação individual, especialmente do indivíduo-instituição, o imperador dom Pedro II, mas não apenas como ponto central do processo histórico, o que se torna bastante problemático.

Se no começo de sua narrativa Needell vincula Honório Hermeto Carneiro Leão ao partido da ordem, no momento em que este ascende à presidência do Conselho de Ministros no gabinete da conciliação enfatiza seu afastamento do partido, reduzido então à trindade saquarema. Carneiro Leão e sua proposta de conciliação representariam, na realidade, uma proposição estranha ao partido da ordem: a interferência do monarca na política. A Conciliação teria o objetivo de aumentar o poder do governo central em detrimento das influências locais, cuja defesa seria nodal na identidade do partido da ordem. Tese problemática, uma vez considerado: (a) que a reforma eleitoral propugnada por Paraná abria espaço para que as eleições não fossem mais 'puras', isto é, que resultassem quase que integralmente da vitória dos candidatos apoiados pelo governo central e seus aliados locais; (b) que a conciliação marcava claramente a preeminência do partido conservador na política e subordinava uma parcela importante dos liberais à direção saquarema conservadora. É fato que a trindade saquarema não participou do gabinete. E pode-se especular que Paraná e a trindade poderiam vir a entrar em conflito pela direção do partido conservador, vale dizer, em especial, de sua facção fluminense. A morte prematura de Paraná deixou a dúvida no ar. Mas daí a separar Paraná e a trindade vai uma enorme diferença.

Vejamos. No exame do resultado da primeira eleição feita sob a lei dos círculos, que Paraná teria implementado para diminuir o poder dos saquaremas, Needell considera a eleição da bancada fluminense como uma derrota dos saquaremas: de 12 deputados, eles teriam eleito somente cinco, enquanto o ministério teria eleito outros cinco (portanto um empate e não uma derrota). Dos dois restantes, um era liberal e o outro ele não identifica. Diz ainda que um dos eleitos era cunhado de Paraná, para mostrar o peso do ministério nas eleições, mas omite o fato de que seu filho não foi eleito. O mais importante, contudo, é que, analisado mais cuidadosamente, o resultado da eleição está longe de ter representado uma derrota saquarema, ou sequer um empate. Em nota, Needell nomeia os eleitos. Vale a pena ver de perto. Um deles, José Joaquim de Lima e Silva Sobrinho, era ligado a Caxias, e por isso tido como do ministério. Ao mesmo tempo, era "by family [isto é, por sua ligação com Caxias], a saquarema". Nesse ponto fica evidente que a categoria partido da ordem se presta à dubiedade – o que era Caxias, afinal? Mas interessa é que o sobrinho deveria ser considerado, no mínimo, como nulo. Saquaremas 5, Paraná/ministério 4. Mas não é só. Needell não identifica ainda a filiação política de Alexandre Joaquim Siqueira, na realidade um saquarema. Resultado final: saquaremas, como equivalentes ao partido da ordem, 6; Paraná/ministério 4; nulo, 1; e liberais, 1. Se considerarmos Paraná e a trindade dentro do mesmo quadro partidário – o que acredito ser mais correto – teremos: saquaremas-conservadores, 11 e liberais, 1, em que pesem os círculos de Paraná.

Os círculos visavam – e Needell não registra – a quebra das câmaras monolíticas. Este era seu alcance hegemônico. Foram alvo da trindade porque estes temiam os liberais – que acabaram elegendo só um dos seus – e não os representantes de Paraná, que estaria participando em uma improbabilíssima armação com Pedro II para expandir seu poder pessoal. O fato de que dos ministérios seguintes à morte de Paraná em 1856, só o de Olinda, com duração de pouco mais de sete meses, tenha sido tido como da Conciliação, e os outros três, até 1862, tenham sido conservadores, um deles chefiado por Caxias, homem da Conciliação segundo Needell, é algo que diz alguma coisa.

Mas o ponto mais problemático da narrativa de Needell ocorre quando ele afirma sua tese central de que, nos debates em torno da questão da liberdade do ventre da mulher escrava, particularmente em torno da proposta de lei que viria a ser aprovada em 28 de setembro de 1871, o que estava em jogo para o partido da ordem era o princípio do governo representativo, e não a questão da escravidão em si. A tese é insustentável. Para afirmar sua posição Needell comete alguns excessos de interpretação e omite informações cruciais. Para ele, a oposição dos saquaremas ao projeto devia-se ao fato de que a iniciativa de aprovar a lei do ventre livre partia do governo, seguindo uma determinação do imperador, e por isso feria a Constituição. Needell usa como evidência neste sentido os discursos do deputado conservador Paulino Soares de Sousa Filho, que acusava a lei de ser anticonstitucional, e deixa entrever que este estava se referindo ao fato de que a iniciativa vinha do imperador. O que Paulino queria dizer e estava de fato dizendo é que a lei feria a Constituição porque violava o direito de propriedade. Em nenhum momento, a não ser em vagas menções sobre o poder pessoal do imperador – que eram comuns a todos os discursos de oposição, liberais ou conservadores –, a crítica dizia respeito a seu papel na política. E mesmo se dissesse, a obrigação do historiador seria a de contextualizar a argumentação. Era esse o discurso usual dos conservadores? É evidente que não. Não por acaso, Needell não se detém sobre o episódio da intervenção de dom Pedro em 1868, quando chamou Itaboraí para formar o novo gabinete, mesmo que os conservadores fossem minoritários na Câmara. Essa intervenção sim, ainda que constitucional na letra, feria a tradição de governo parlamentar que vinha se praticando. E por isso abriu uma profunda crise no sistema político do Império, que Needell simplesmente ignora. Nem os conservadores, na época, nem Needell, hoje, deram muita atenção a esse fato.

A discussão em 1871 era sim sobre a escravidão. Needell ainda argumenta que os conservadores teriam mesmo apresentado um projeto abolicionista alternativo, o de Perdigão Malheiro, o que mostraria que eles mesmos eram pela abolição e que sua grita dizia respeito à forma da proposta do governo, e não a seu conteúdo. Mais uma vez, ele descontextualiza suas informações. O projeto só foi proposto quando a derrota dos que se opunham ao ventre livre era inevitável, uma ou duas semanas antes da aprovação da lei. Além disso, ela era bem mais gradual e palatável aos senhores, que escolheriam quem deveria ser libertado, a partir de disponibilidade orçamentária para comprar as alforrias. Tratava-se, assim, de uma manobra de última hora e não de uma convicção.

Nada disso, contudo, faz com que o livro de Needell, que certamente já deve estar sendo traduzido para o português, deixe de ser imprescindível para os estudiosos do Império.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Abr 2008
  • Data do Fascículo
    Mar 2008
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