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Novas abordagens para a história da escravidão

New approaches to the history of slavery

LIVROS & REDES

Novas abordagens para a história da escravidão

New approaches to the history of slavery

Mariza de Carvalho Soares

Professora associada da Universidade Federal Fluminense; pesquisadora 2 do CNPq; network professor do Harriet Tubman Centre/York University, Canadá. marizacsoares@ig.com.br

O CD-ROM Doenças e escravidão: sistema de saúde e práticas terapêuticas, lançado pela Casa de Oswaldo Cruz (COC), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2007, é um trabalho fundamental em vários sentidos: inova na mídia, reúne trabalhos em torno de novos temas e, o mais importante, abre aos historiadores instigantes perspectivas tanto no campo da escravidão quanto noda saúde. Analisemos, então, cada um desses aspectos.

O recurso à mídia digital vem proporcionando ao setor editorial uma nova dinâmica, que ainda não foi apreendida em todas as suas possibilidades pelo mundo acadêmico. Sem a intenção de substituir livros e/ou periódicos, a mídia digital permite divulgar, com agilidade, baixo custo e reconhecimento acadêmico, um grande número de trabalhos que, de outra forma, teriam divulgação mais lenta ou restrita. É portanto especialmente adequada para resultados parciais de trabalhos, ao auxiliar no diálogo entre os pesquisadores no processo de produção de suas pesquisas, e a custo sustentável. Além da divulgação dos textos, a mídia eletrônica permite ainda uma farta divulgação de imagens, tão importantes na representação das doenças, dos métodos de cura e mesmo da identificação e do modo de funcionamento das instituições e espaços associados ao universo da escravidão.

O conjunto de textos reunidos por Ângela Pôrto a partir do seminário temático Doenças e Escravidão, realizado pela Associação Nacional de História (Anpuh) em 2005, sob a coordenação daquela historiadora, é, antes de tudo, uma demonstração da riqueza e diversidade dos trabalhos apresentados na ocasião, atestando a presença de um grande número de profissionais atualmente dedicados à pesquisa sobre saúde e doenças entre escravos. Os temas abordados são variados e vão da oncocercose (doença identificada na África em 1875, onde era endêmica, e só identificada no Brasil na segunda metade do século XX) até levantamentos sobre enfermidades de escravos, práticas terapêuticas, agentes de cura, instituições médicas, controle sanitário e especificidades de gênero. No seu conjunto, os textos não apenas ampliam o conhecimento de situações específicas, como também pontuam a possibilidade de avançar em um projeto coletivo sobre as condições de vida dos escravos e o modo como foram transportados da África para o Brasil.

Doenças e escravidão representa, portanto, um primeiro esforço coletivo de reflexão sobre o tema e precisa agora ir adiante. Os estudos sobre a escravidão se abrem, cada vez mais, para uma perspectiva atlântica e mesmo para conexões mais distantes como o Índico e o Oriente. Também as doenças e o modo de lidar com elas atravessaram oceanos e colocaram, lado a lado, diferentes concepções sobre noções de saúde, enfermidade, cura, morte, assim como diferentes tradições terapêuticas. Destaque-se ainda que os autores indicam pistas e possibilidades de desdobramento de pesquisas que devem ser incentivadas e promovidas institucionalmente. Uma que já se apresenta - e vem dando frutos importantes - é a pesquisa sobre doenças específicas da medicina contemporânea, como o caso da anemia falciforme. Do ponto de vista dos estudos da escravidão e da diáspora africana, essas pesquisas são altamente beneficiadas não só pela perspectiva interdisciplinar mas também por sua abrangência intercontinental.

Os textos apresentados variam em tema e abordagem. Representam o atual momento da produção historiográfica no Brasil e oferecem um quadro dos resultados obtidos e das perspectivas mais imediatas de trabalho. É o caso, por exemplo, dos trabalhos de Silmei Petiz, Jorge Prata, Eduardo Schnoor e Rosilene Mariosa, que mostram a possibilidade de estudar não apenas as doenças dos escravos, mas também as práticas de cura adotadas para seu tratamento, bem como as formas sociais de lidar com a doença em diferentes situações. Além do trabalho que já vem sendo realizado, os dados oferecidos na coletânea apontam, ainda, para um conjunto de doenças identificadas em escravos recém-chegados da África. Esses trabalhos, para além de sua importância para a compreensão das doenças e dos métodos de cura dos escravos, são um importante ponto de partida para projetos coletivos que, tomando como base documentações locais, poderão avançar na compreensão das condições do tráfico atlântico de escravos e das suas doenças, nas várias partes do mundo colonial.

Um segmento que já mostra resultados e apresenta desdobramento promissor é o estudo dos profissionais da cura, mais conhecidos como barbeiros e sangradores, que trabalham no âmbito das práticas curativas regulamentadas pelas instituições oficiais, em Portugal e no Brasil. Esse segmento aparece nos trabalhos de Tânia Salgado Pimenta, Ana Flavia Cicchelli Pires e Cláudio de Paula Honorato. Como contraponto a essa forte presença masculina dos barbeiros, temos também dois textos que destacam questões de gênero do ponto de vista feminino, em especial os trabalhos de Luiz Carlos Martins, sobre as amas-de-leite, e Giovana Côrtes, sobre o processo de racialização do gênero feminino.

As crenças e as representações sobre doenças e os modos de lidar com elas ao longo do tempo são, por fim, temas que merecem destaque, por mostrarem a riqueza de desdobramentos possíveis para essas pesquisas. A problemática dos feitiços e da associação da cura a práticas de caráter religioso é analisada por André Nogueira e Lucia Miler. A essa vertente se juntam os textos de Juliana Barreto Farias e Silvana Cassab Jeha, que, partindo de uma abordagem biográfica, apresentam trajetórias individuais de agentes desse universo, onde um barbeiro africano e um pai-de-santo muçulmano são exemplos da inserção desses profissionais no universo social.

As ponderações apresentadas no texto de Diana Maul, coordenadora executiva do Museu Virtual da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e o prefácio de Maria Cristina Wissenbach, professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo, marcam a efetividade do diálogo interdisciplinar e alertam para os riscos decorrentes do mau uso de consensos ultrapassados. Tal descompasso só poderá seu enfrentado no trabalho colaborativo, proposta corajosa a que se dispõe o grupo aqui reunido.

Doenças e escravidão aponta para a urgência de um programa efetivamente interdisciplinar, que em tudo combina com o espírito de trabalho dos projetos da Casa de Oswaldo Cruz. Ganham os pesquisadores envolvidos, ganham os leitores e ganha a própria Casa, promotora dessa importante e inovadora iniciativa.

Seguem os títulos dos trabalhos reunidos em Doenças e escravidão e seus autores:

Prefácio, Maria Cristina Wissenbach.

"Doenças de além-mar", Magali Romero Sá e Marilza Maia Herzog.

"Enfermidades de escravos no sul do Brasil", Silmei de Sant'Ana Petiz.

"Doenças dos escravos, doenças africanas?", Diana Maul de Carvalho.

"Registros de óbitos na Santa Casa da Misericórdia", Jorge Prata de Sousa?.

"Amas-de-leite na sociedade carioca", Luiz Carlos Martins.

"Sangradores no Rio de Janeiro (século XIX)", Tânia Salgado Pimenta.

"A participação dos sangradores no comércio de escravos", Ana Flavia Cicchelli Pires.

"Controle sanitário dos negros novos no Valongo", Cláudio de Paula Honorato.

"Corporeidade feminina negra nas ultimas décadas do século XIX", Giovana Côrtes.

"Tratamento e doenças na fazenda Santo Antonio do Paiol", Rosilene Maria Mariosa.

"Feitiços e curas nas Minas do século XVIII", André Nogueira.

"A trajetória de Assumano Henrique Mina do Brasil", Juliana Barreto Farias.

"Artes de curar em São Luis do Maranhão", Lucia Pereira da Silva Miler.

"A história do barbeiro africano Jose Dutra e sua família", Silvana Cassab Jeha.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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