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Controle de riscos à saúde em radiodiagnóstico: uma perspectiva histórica

Resumos

Apresenta o histórico da descoberta das radiações ionizantes, seus efeitos biológicos e a conseqüente necessidade de controle dos respectivos riscos à saúde. Descreve a evolução histórica do controle de risco em radiodiagnóstico no Brasil, demonstrando que este pode não estar associado apenas à dose recebida, mas também a erros de diagnóstico e a custos para o sistema de saúde. Salienta que a legislação sanitária tem um amplo leque de co-responsabilidade social para envolver todos os atores visando à proteção da saúde.

controle de riscos; radiodiagnóstico; riscos; radiação ionizante; vigilância sanitária


This paper presents the history of the discovery of ionizing radiation, as well as its biological effects and the resulting need to control subsequent health risks. It describes the historic evolution of risk control in radiodiagnosis in Brazil, demonstrating that it may be associated not only to the dose received, but also to errors in diagnosis and to costs to the health system. It is stressed that sanitary regulations have a broad remit of social co-responsibility to involve all the players with a view to safeguarding health.

risk control; radiodiagnosis; risks; ionizing radiation; sanitary vigilance


ANÁLISE

Controle de riscos à saúde em radiodiagnóstico: uma perspectiva histórica

Marcus Vinicius Teixeira NavarroI; Handerson Jorge Dourado LeiteII; Josemir da Cruz AlexandrinoIII; Ediná Alves CostaIV

IProfessor do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia. navarro@cefetba.br. CEFET/NTS. Rua Emídio dos Santos, s/n. 40301- 015 - Salvador - BA - Brasil

IIProfessor do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia. handerson@cefetba.br. CEFET/NTS. Rua Emídio dos Santos, s/n. 40301- 015 - Salvador - BA - Brasil

IIIProfessor do Centro Federal de Educação Tecnológica da Bahia. jca@cefetba.br. CEFET/NTS. Rua Emídio dos Santos, s/n. 40301- 015 - Salvador - BA - Brasil

IVProfessora adjunta do Instituto de Saúde Coletiva. Universidade Federal da Bahia. Rua Basílio da Gama, s/n. 40110-040 - Salvador - BA - Brasil. edina@ufba.br

RESUMO

Apresenta o histórico da descoberta das radiações ionizantes, seus efeitos biológicos e a conseqüente necessidade de controle dos respectivos riscos à saúde. Descreve a evolução histórica do controle de risco em radiodiagnóstico no Brasil, demonstrando que este pode não estar associado apenas à dose recebida, mas também a erros de diagnóstico e a custos para o sistema de saúde. Salienta que a legislação sanitária tem um amplo leque de co-responsabilidade social para envolver todos os atores visando à proteção da saúde.

Palavras-chave: controle de riscos; radiodiagnóstico; riscos; radiação ionizante; vigilância sanitária.

No dia 8 de dezembro de 1895, Wilhelm Conrad Röntgen, quando desenvolvia estudos com um tubo de raios catódicos, observou que uma placa com um material fluorescente - platinocianeto de bário - brilhou. O brilho persistiu mesmo quando Röntgen colocou um livro e uma folha de alumínio entre o tubo e a placa. Algo saía do tubo, atravessava barreiras e atingia o platinocianeto. Como não eram conhecidos os raios que saíam do tubo, Röntgen os denominou 'raios X', com o objetivo de posteriormente especificar o fenômeno físico. Contudo, pela repercussão imediata da descoberta, mesmo depois de descrito o fenômeno, os raios descobertos por Röntgen ficaram mundialmente conhecidos como raios X e em alguns países, como na Alemanha, como raios Röntgen (Martins, 1998).

Nas semanas seguintes à descoberta, Röntgen permaneceu no laboratório tentando desvendar os segredos do novo fenômeno observado e, ainda no mês de dezembro daquele ano, fez a radiação atravessar a mão de sua mulher, Bertha, atingindo, do outro lado uma chapa fotográfica, realizando assim, a primeira radiografia da história. Pela descoberta, Röntgen recebeu o primeiro Nobel de Física, em 1901 (Martins, 1998).

As aplicações médicas dos raios X foram praticamente imediatas. Em janeiro de 1896, já era relatada a realização de radiografias, com fins diagnósticos, na Alemanha, nos Estados Unidos, na Inglaterra, França e Rússia (Lindenbraten, Kotlyarov, Kotlyarov, 1994; Abrams, 1996; Martins, 1997; Martin, Sutton, 2002). Durante o ano de 1896, foram publi-cados, em diversos países, mais de 100 trabalhos sobre as aplicações médicas dos raios X, incluindo a fluoroscopia e o tratamento de câncer (Abrams, 1996; Martin, Sutton, 2002). No ano seguinte, em 1897, o médico brasileiro Álvaro Alvim realizou a primeira radiografia de xifópagas.

Contudo, como os tubos de raios catódicos não tinham sido projetados para a produção de raios X, apresentavam problemas de reprodutibilidade e focalização do feixe. Os tubos projetados especificamente para esse fim, semelhantes aos utilizados atualmente, tiveram sua origem em 1913, com o desenvolvimento do tubo de raios X de alto vácuo, por W.D. Coolidge (Ammann, Kutschera, 1997).

No tubo de raios X é estabelecida uma diferença de potencial elétrico da ordem de vinte a 150 mil volts, entre os pontos positivo (alvo) e negativo (filamento), dependendo do tecido ou órgão a ser radiografado. Essa alta diferença de potencial acelera os elétrons do filamento até o alvo, e ao colidirem com este os elétrons perdem energia, produzindo calor e raios X.

Devido à grande produção de calor, o filamento e o alvo são construídos com elementos de alto ponto de fusão (Ammann, Kutschera, 1997). Assim, o processo de produção de raios X acontece através da transformação de energia elétrica em raios X, ou seja, o equipamento não possui um elemento radioativo emitindo radiação; por isso os equipamentos de raios X possuem a propriedade de irradiar sem contaminar.

Em 1896 o físico francês Antoni Becquerel descobriu que um composto de urânio podia provocar fenômenos semelhantes aos dos raios X. A princípio Becquerel pensou tratar-se dos raios X descobertos por Röntgen. Posteriormente estudos do casal Marie e Pierre Currie, que se estenderam até o final de 1898, permitiram a descoberta de mais três novos elementos (tório, polônio e rádio), cunhando o termo 'radioatividade' e descrevendo o fenômeno como uma propriedade dos elementos químicos. Esses estudos deram o Nobel de Física, em 1903, ao casal Curie e a Becquerel, e o Nobel de Química a Marie Curie, em 1911. Em 1935 Irene Curie, filha do casal Curie, recebeu o Nobel de Química pela descoberta da radioatividade artificial. Tão rápida quanto a incorporação dos raios X à prática médica foi a utilização dos elementos radioativos com fins diagnósticos e terapêuticos (Mould, 1995).

Essas descobertas deram origem a uma verdadeira revolução no pensamento científico. Até então achava-se que o átomo era impenetrável e imutável. Com a descoberta da radioatividade e dos raios X, além das aplicações médicas, o átomo pôde ser mais bem estudado, contribuindo de modo significativo para os conhecimentos desenvolvidos no século XX (Mould,1998).

A descoberta e imediata utilização das radiações ionizantes (RI)1 1 Considera-se radiação ionizante qualquer partícula ou radiação eletromagnética que, ao interagir com a matéria, retira elétrons dos átomos transformando-os em íons. Logo as partículas alfa, as partículas beta e a radiação gama, emitidas por fontes radioativas, bem como os raios X são radiações ionizantes. , entre as quais se incluem os raios X e os elementos radioativos, proporcionaram benefícios às ciências e à medicina, mas também provocaram diversos danos em pesquisadores, médicos, pacientes e outros indivíduos expostos. Como todas as tecnologias, os raios X traziam consigo perigos intrínsecos e desconhecidos no momento de sua incorporação a práticas sociais (Beck, 2003).

Em janeiro de 1897, T.C. Gilchrist publicou um relato de 23 casos de danos provocados pelos raios X, e em 1898 a Röntgen Society, fundada no ano anterior, constituiu um comitê para coletar dados sobre os efeitos danosos dos raios X. Naquele período apenas os danos imediatos eram observados, e foram necessários mais cinqüenta anos para que os efeitos tardios das radiações ionizantes fossem detectados.

Apenas em 1915, vinte anos após a descoberta dos raios X, a Röntgen Society publicou as primeiras recomendações de proteção para trabalhadores. Foi o início da constituição da radioproteção ou proteção radiológica, campo de estudos dos efeitos nocivos das radiações ionizantes (Martin, Sutton, 2002).

Nos primeiros trinta anos da utilização dos raios X, muitos foram os danos causados nos profissionais que utilizavam essa tecnologia. No Brasil, o médico Álvaro Alvim faleceu, em 1928, após a amputação das duas mãos devido a lesões causadas pela exposição às radiações. Em homenagem aos mortos pela exposição às radiações ionizantes e para chamar a atenção de seus efeitos nocivos à saúde, a Röntgen Society construiu, em 1936, o Monumento aos Mártires dos Raios X e do Rádio, com 169 nomes de pessoas de 15 diferentes nações. Em 1959 já eram 360 nomes, incluindo o de Marie Curie.

Riscos em radiodiagnóstico

O risco é um termo polissêmico que em algumas áreas pode ser entendido como sinônimo de probabilidade e, em outras, como uma expectativa matemática, ou até mesmo como um conceito intrinsecamente indefinível. Pode também ser entendido como um conceito formulado para mediar as relações entre o homem e as fontes de perigo, auxiliando a tomada de decisão. Assim, sendo um julgamento de valor, não é independente de fatores políticos, econômicos e sociais (Fischhoff, Bostrom, Quadrel, 2005; Romerio, 2002; Beck, 2003; Slovic, 2004).

Tanto os raios X como as radiações provenientes dos elementos radioativos possuem energia suficiente para ionizar os átomos. Por isso são chamados de radiações ionizantes. Estas são de origem nuclear, como as radiações a, b e g (alfa, beta e gama) ou de procedência atômica, ou seja, as que são produzidas pelas interações com os átomos, como é o caso dos raios X.

Os raios X são ondas eletromagnéticas assim como a luz, as ondas de rádio e as de telefonia celular. O que as diferencia é a freqüência da onda e, conseqüentemente, sua energia. Logo, os raios X são ondas eletromagnéticas com energia suficiente para ionizar os átomos. Isso não significa que as radiações não ionizantes, mecânicas ou eletromagnéticas, não possuam efeitos nocivos à saúde humana.

As radiações ionizantes provêm de fontes naturais ou artificiais. As fontes naturais de radiação incluem os raios cósmicos, a radiação terrestre e os radionuclídeos, presentes de maneira natural no corpo humano. O radônio, por exemplo, é um gás radioativo produzido pelo decaimento natural do urânio. Materiais de construção, a exemplo de concreto e tijolo, contêm radônio, elemento emissor de partículas alfa que se alojam principalmente no tecido pulmonar, podendo causar danos à saúde humana.

Nos anos seguintes ao descobrimento das radiações ionizantes, foram muitos os avanços tecnológicos no processo de otimização do seu uso e produção2 2 Entre diversas tecnologias, o estabelecimento e controle dos parâmetros de realização de uma radiografia (tensão, corrente e tempo) para que as técnicas radiográficas fossem reprodutíveis é um dos exemplos mais importantes. Outros componentes do procedimento de radiodiagnóstico, como écran, filtração adicional, grade antidifusora e negatoscópio, foram desenvolvidos e incorporados às práticas médicas nas três primeiras décadas do século passado. , assim como nos estudos sobre seus efeitos no homem. A resposta do organismo de um indivíduo à radiação depende de fatores como dose recebida, características orgânicas individuais, área irradiada e taxa de dose, entre outros.

Os efeitos das interações das radiações ionizantes com as células podem acontecer de forma direta, danificando uma macromolécula (DNA, proteínas e enzimas, entre outras), ou de forma indireta, interagindo com o meio e produzindo radicais livres (Nias, 1998). Essas modificações celulares podem ser reparadas através da ação das enzimas. Caso isso não ocorra, surgirão lesões bioquímicas que podem causar danos como morte prematura, alteração no processo de divisão celular e alterações genéticas.

Os efeitos biológicos provocados pela interação das radiações ionizantes com a matéria podem ser de dois tipos: determinísticos e estocásticos. Os efeitos determinísticos acontecem quando a irradiação no corpo, geral ou localizada, provoca mais morte celular do que é possível ser compensada pelo organismo (limiar de efeitos clínicos). Acima desse limiar a severidade do dano aumenta com a dose. Apesar de esses efeitos possuírem caráter determinístico, podem ser reversíveis ou não (ICRP, 1991). Também podem ser entendidos como efeitos para os quais existe um limiar de dose absorvida necessário para sua ocorrência e cuja gravidade aumenta com o aumento da dose.

Por sua vez, os efeitos estocásticos acontecem quando a irradiação no corpo humano, geral ou localizada, provoca menos morte celular do que é possível ser compensada pelo organismo. A morte de algumas células pode não causar dano algum, e a modificação de uma única célula pode provocar um câncer. Esse tipo de efeito possui caráter probabilístico. Nesse caso, o aumento da dose provoca um aumento de probabilidade do dano e não da severidade do dano (ICRP, 1991). Para a ocorrência desses efeitos não existe um limiar de dose. A probabilidade de que ocorram é uma função desta, no entanto a gravidade dos efeitos independe da dose.

Os estudos do campo da radioproteção estão relacionados à proteção da saúde humana e aos efeitos nocivos das radiações ionizantes. Suas bases teóricas devem incluir necessariamente julgamentos sociais e técnicos, pois o principal objetivo é estabelecer as razões que justifiquem o uso benéfico das radiações. Assim, não podem ser conduzidas apenas por considerações científicas. A radioproteção deve prevenir a ocorrência dos efeitos determinísticos e reduzir os efeitos estocásticos.

A publicação da ICRP 60 (ICRP, 1991) consolidou os três princípios básicos da radioproteção: justificação, otimização e limitação de dose. O princípio da justificação estabelece que nenhuma prática pode ser realizada a não ser que produza benefícios suficientes para compensar o detrimento correspondente aos indivíduos expostos ou à sociedade, tendo-se em conta fatores sociais, econômicos e outros pertinentes. O princípio da otimização estabelece que a proteção radiológica deve ser otimizada de forma que a magnitude das doses individuais, o número de pessoas expostas e a probabilidade de ocorrência de exposições mantenham-se tão baixas quanto possam ser razoavelmente exeqüíveis, tendo em conta os fatores econômicos e sociais envolvidos. Já o princípio da limitação de dose define que a exposição normal dos indivíduos deve ser restringida de tal modo que não exceda os limites de dose especificados (ICRP, 1991; Brasil, 14 nov. 2005).

Contudo em 1979, em Neuherberg (Alemanha), um seminário com especialistas da área de radiologia estabeleceu uma concepção do conceito de riscos em radiodiagnóstico. Nesse evento concluiu-se que um importante passo no desenvolvimento de estudos sobre eficiência/eficácia seria a adoção, por todos os países, de programas de garantia de qualidade em radiodiagnóstico, com o objetivo de melhorar a qualidade da imagem, reduzir as doses e os custos de funcionamento, sendo consenso que a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Agência Internacional de Energia Atômica (Iaea) deveriam ter um papel catali-sador, no sentido de difundir a implantação dos programas. Foi mencionado, ainda, o fato de que apenas um limitado número de países tinha iniciado programas nacionais de garantia de qualidade em radiodiagnóstico, porém um grande número deles tinha iniciativas locais que dependiam do interesse particular dos especialistas (radiologistas, físicos médicos, técnicos) (WHO, 1982).

Como resultado desse seminário, a OMS elaborou e publicou, em 1982, as recomendações sobre o estabelecimento de programas de garantia e controle de qualidade, intitulado "Quality assurance in diagnostic radiology". Esse documento, um marco histórico no estabelecimento de novos conceitos sobre os riscos associados aos serviços de radio-diagnóstico, propôs como principais parâmetros a serem avaliados a qualidade dos diagnósticos, as doses nos pacientes e os custos dos serviços. Essa tríade, que ficou conhecida como o princípio dos três dês (diagnóstico, doses and dólares), representa a necessidade de garantir um diagnóstico correto para que se possa ter uma boa decisão sobre o tratamento. Ou seja, em primeiro lugar está a preocupação com o risco do erro de diagnóstico ou com informações incompletas; em segundo lugar encontra-se a preocupação com as doses (nos pacientes, trabalhadores e indivíduos em geral); e em terceiro, os custos de funcionamento dos serviços. Para alcançar esses objetivos é necessário o controle dos serviços de radio-diagnóstico no que se refere à calibração dos equipamentos, ao treinamento de pessoal e ao estabelecimento de programas de garantia de qualidade (WHO, 1982; Gray et al., 1983; Opas, 1997, Stevens, 2001; BIR, 2001; Aichinger et al., 2004).

Controle de riscos em radiodiagnóstico

O radiodiagnóstico é de fundamental importância para a saúde pública, quer seja pelo seu papel de suporte diagnóstico/acompanhamento nas mais diversas áreas da medicina ou por representar a principal fonte de exposição às radiações artificiais. Assim, para que seja possível a utilização das radiações ionizantes resultando em máximo benefício com o mínimo prejuízo, é necessária a estruturação de sistemas nacionais de proteção radiológica, coordenados por uma autoridade reguladora e com uma legislação específica para a área (WHO, 1972, 1982; ICRP, 1991, 1996; Iaea, 1996, 2004, 2006; Arias, 2006).3 3 O Brasil é signatário das recomendações da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), Comissão Internacional Eletrotécnica (sigla em inglês, IEC) e Organização Internacional Para Padronização (sigla em inglês, ISO). Portanto as normas nacionais devem refletir as recomendações dessas organizações, e na falta de norma nacional para uma determinada área, elas devem ser adotadas.

No Brasil, assim como em outros países, as primeiras intervenções estatais no campo das radiações ionizantes voltaram-se para a regulamentação das exposições ocupacionais. Em 14 de dezembro de 1950, foi publicada a lei 1.234, que "confere direitos e vantagens a servidores que operam com Raios X e substâncias radioativas". No ano seguinte o decreto 29.155, de 17 de janeiro, regulamentou a referida lei e estabeleceu as primeiras medidas de controle sobre serviços de saúde que utilizavam radiações ionizantes. Definiram-se também as primeiras normas de radioproteção, como, por exemplo, a necessidade de utilização de blindagens nos equipamentos, nas salas e no comando, a utilização de luvas de proteção para fluoroscopia e realização de exames periódicos dos profissionais expostos às radiações.

Em 1962, a lei 4.118 criou a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e dispôs sobre a política nacional de energia nuclear. A CNEN continua voltada, basicamente, para as aplicações pacíficas da energia nuclear, sendo responsável pelas Normas básicas de radioproteção e controle no campo das aplicações médicas da medicina nuclear, radioterapia e monitoração individual. As Normas... publicadas pela CNEN abrangem o radiodiagnóstico, no que se refere ao estabelecimento dos limites de exposição pública e ocupacional, unidades de medida e monitoração individual dos trabalhadores. No entanto nunca foi obrigação da CNEN licenciar e fiscalizar serviços de radiodiagnóstico (NN 3.01/2005) (CNEN, 14 nov. 2005).

O controle do uso e da comercialização dos equipamentos de raios X começou com a lei 5.991, de 17 de dezembro de 1973, que "dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências".4 4 "A substância, produto, aparelho ou acessório não enquadrado nos conceitos anteriores, cujo uso ou aplicação esteja ligado à defesa e proteção da saúde individual ou coletiva, à higiene pessoal ou de ambientes, ou a fins diagnósticos e analíticos ...". Embora não referidos explicitamente na lei, a definição de correlatos abrange os equipamentos de radiodiagnóstico.

Em 1976 foi publicada a lei 6.360, regulamentada pelo decreto 79.094 de 1977, que "dispõe sobre a vigilância sanitária a que ficam sujeitos os medicamentos, as drogas, os insumos farmacêuticos e correlatos, cosméticos, saneantes e outros produtos...", estabe-lecendo que nenhum dos produtos submetidos ao regime de vigilância sanitária poderia ser industrializado, exposto à venda ou entregue ao consumo antes de ter registro no órgão de vigilância sanitária.

Ainda em 1977, com fins de regulamentar as infrações sanitárias, foi publicada a lei 6.437/77, que estabelecia entre outras infrações sanitárias: "III - instalar consultórios médicos, ... gabinetes ou serviços que utilizem aparelhos e equipamentos geradores de raio-X, ... sem licença do órgão sanitário competente ou contrariando o disposto nas demais normas legais e regulamentares pertinentes". Na mesma época foi criada a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, estabelecendo-se legalmente pelo menos trinta anos de explícita responsabilidade das autoridades sanitárias sobre os equipamentos e serviços de radiodiagnóstico.

Em conseqüência da tragédia de Goiânia, ocorrida em 1986, que consistiu no abandono e uso indevido de fonte radioativa de césio presente em um equipamento de radioterapia, o Conselho Nacional de Saúde publicou a resolução 6, de 21 de dezembro de 1988, estabelecendo requisitos gerais de proteção radiológica, inclusive para radiodiagnóstico. Contudo foi uma resolução de caráter amplo, sem mais implicações nas ações práticas de vigilância sanitária.

Nesse período o sistema de saúde brasileiro, incluindo a vigilância sanitária, estava iniciando um processo de completa reestruturação devido à promulgação da Constituição de 1988, que definiu a forma e competência do Sistema Único de Saúde (SUS). Em seu artigo 200, lê-se:

Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:

I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;

II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;

...

VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos.

Foram necessários mais dois anos para que a lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, regulamentasse e estruturasse o SUS e definisse qual seria o papel da vigilância sanitária:

Art. 6º Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):

I - a execução de ações:

a) de vigilância sanitária;...

§ 1º Entende-se por vigilância sanitária um conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo:

I - o controle de bens de consumo que, direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e

II - o controle da prestação de serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saúde.

Contudo a definição estabelecida para vigilância sanitária estava muito distante das práticas brasileiras. A tragédia de Goiânia, infelizmente, foi precursora de muitas outras que, na década de 1990, mostraram à nação as conseqüências de um sistema de controle de riscos de saúde ineficiente. Os casos da Clínica Santa Genoveva, no Rio de Janeiro, do Instituto de Doenças Renais de Caruaru, da Schering e a crise dos medicamentos falsificados levaram o governo brasileiro a reestruturar a vigilância sanitária (Costa, 2004).

No ápice da crise pela qual passava a vigilância sanitária e um ano antes da publicação da lei 9.782/99 (que definiu o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária e criou a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - Anvisa), a Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária, antiga SNVS, publicou a portaria 453/985 5 As "Diretrizes de proteção radiológica em radiodiagnóstico médico e odontológico", estabelecidas por essa portaria, têm seu conteúdo dividido da seguinte forma: I - Disposições gerais; II - Sistema de proteção radiológica; III - Requisitos operacionais; IV - Requisitos para radiodiagnóstico médico; V - Requisitos para radiologia odontológica; VI - Disposições transitórias; Anexo A - Níveis de referência; Anexo B - Ficha de cadastramento; Anexo C - Glossário. , que levou em consideração as principais recomendações das organizações internacionais (OMS, Opas, ICRP e Iaea) e estabeleceu o marco regulatório para o radiodiagnóstico no Brasil.

Conclusão

A concepção ampliada de risco no processo de radiodiagnóstico, estabelecida internacionalmente na década de 1980, ilumina o processo atual de regulação desses serviços. O entendimento de que não basta apenas o controle da dose de exposição, mas também de que erros de diagnóstico e custos são fundamentais no controle de riscos implica a necessidade de se rever o referido processo de regulação sanitária.

Atualmente, no Brasil, a responsabilidade da regulação sanitária recai apenas sobre o Estado, através dos serviços de vigilância sanitária, ao passo que outros atores envolvidos, como fabricantes, associações de classe, conselhos profissionais e responsáveis por serviços de radiodiagnóstico, têm pouco ou nenhum comprometimento do ponto de vista da legislação sanitária. E a existência de serviços com equipamentos fora de conformidade e erros de diagnóstico gerados por mau funcionamento de negatoscópios ou processadoras produzem aumento considerável dos diagnósticos tardios, dos custos e das doses em pacientes e trabalhadores.

NOTAS

Recebido para publicação em maio de 2007.

Aprovado para publicação em abril de 2008.

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  • 1
    Considera-se radiação ionizante qualquer partícula ou radiação eletromagnética que, ao interagir com a matéria, retira elétrons dos átomos transformando-os em íons. Logo as partículas alfa, as partículas beta e a radiação gama, emitidas por fontes radioativas, bem como os raios X são radiações ionizantes.
  • 2
    Entre diversas tecnologias, o estabelecimento e controle dos parâmetros de realização de uma radiografia (tensão, corrente e tempo) para que as técnicas radiográficas fossem reprodutíveis é um dos exemplos mais importantes. Outros componentes do procedimento de radiodiagnóstico, como écran, filtração adicional, grade antidifusora e negatoscópio, foram desenvolvidos e incorporados às práticas médicas nas três primeiras décadas do século passado.
  • 3
    O Brasil é signatário das recomendações da Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea), Comissão Internacional Eletrotécnica (sigla em inglês, IEC) e Organização Internacional Para Padronização (sigla em inglês, ISO). Portanto as normas nacionais devem refletir as recomendações dessas organizações, e na falta de norma nacional para uma determinada área, elas devem ser adotadas.
  • 4
    "A substância, produto, aparelho ou acessório não enquadrado nos conceitos anteriores, cujo uso ou aplicação esteja ligado à defesa e proteção da saúde individual ou coletiva, à higiene pessoal ou de ambientes, ou a fins diagnósticos e analíticos ...".
  • 5
    As "Diretrizes de proteção radiológica em radiodiagnóstico médico e odontológico", estabelecidas por essa portaria, têm seu conteúdo dividido da seguinte forma: I - Disposições gerais; II - Sistema de proteção radiológica; III - Requisitos operacionais; IV - Requisitos para radiodiagnóstico médico; V - Requisitos para radiologia odontológica; VI - Disposições transitórias; Anexo A - Níveis de referência; Anexo B - Ficha de cadastramento; Anexo C - Glossário.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      Maio 2007
    • Aceito
      Abr 2008
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