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Divulgando a visibilidade das mulheres na ciência

Communicating the visibility of women in science

LIVROS & REDES

Divulgando a visibilidade das mulheres na ciência

Communicating the visibility of women in science

Maria Conceição da Costa

Professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) - Rua Júlio Leite de Barros, 170 - 13084-015 - Campinas - SP - Brasil. dacosta@ige.unicamp.br

Entre as décadas de 1960 e 1970, não foram poucos os estudos que, problematizando a condição feminina, tinham em comum o intento de desnaturalizar e historicizar a subordinação da mulher nas sociedades ocidentais (Simião, 1999). A partir dos anos 80, o campo científico de estudos sobre mulheres se diversifica em estudos feministas, estudos sobre relações de gênero e estudos sobre mulheres e trabalho.1 1 O campo de investigações sobre estudos de gênero diversificou-se a partir da década de 1980, e vários autores apontam divisões distintas. Para efeitos desta resenha considero a divisão apontada acima abrangente o suficiente para mapear os interesses do campo. Embora a vasta literatura mencione tal diversidade enfatizando a herança feminista da maior parte desses interesses, pode-se apontar o surgimento de pesquisas que se pautam sobre a noção da invisibilidade das mulheres na ciência, sobre a exclusão e apropriação de mulheres cientistas e, conseqüentemente, sobre um crescimento na construção de indicadores científicos (Lopes, 2002). Além disso, realizam

investigações epistemológicas que levantam perguntas relativas às implicações do que se entende por empreendimento científico (incluindo aí a autoridade epistêmica e cognitiva atribuída aos cientistas) para as clivagens de gênero vigentes, sugerindo dúvidas quanto à possibilidade e às capacidades explicativas das ciências em relação à natureza; e estudos que focalizam os contextos sociais em que se estrutura o conhecimento científico, procurando identificar os vieses e as metáforas de gênero presentes no conteúdo do conhecimento produzido por diversas disciplinas, especialmente a Biologia. (Citeli, 2001)

As análises sobre gênero e ciência passam, portanto, a considerar não apenas os aspectos institucionais da participação das mulheres nas práticas científicas (indicadores de produtividade), mas fundamentalmente aspectos contextuais e de cultura científica de diferentes áreas disciplinares. A adoção da perspectiva feminista, presente em grande parte desses estudos, pode ser classificada, de acordo com González (2005), entre: (a) epistemologia feminista pós-estruturalista, da qual faz parte Donna Haraway; (b) feminismo perspectivista, corrente liderada por Sandra Harding, Nancy Harstock e Hillary Rose, entre outras, e que defende a construção de uma ciência baseada no ponto de vista feminino - nesse caso, ciência assume a perspectiva feminista e torna-se ciência feminista; e (c) feminismo contextual, liderado por Helen Longino, Elizabeth Anderson, Londa Schiebinger e Lynn Nelson, que propõe uma ciência construída por ambos os sexos, embora não defenda a formação de uma ciência feminista, mas sim a inclusão da perspectiva feminista no processo de produção das ciências.2 2 Além das três correntes citadas, há outras abordagens nos estudos de gênero em ciência. Para saber mais: Lopes, 1998; Citeli, 2000; González, 2005; e Sardenberg, 2002; entre outros. Ver também Osada e Costa, 2006. Entre a perspectiva pós-estruturalista e relativista de Haraway e o feminismo contextual há mais aproximações teóricas do que entre este e o feminismo perspectivista (González, 2005).

No início da década de 1980, Margaret Rossiter (1982) apontou a situação das mulheres na ciência, sobretudo os preconceitos e as discriminações sofridos por elas, embora a prática científica se apresente como universalista e assexuada. Os preconceitos se revelaram na alocação de postos de trabalho: delegaram-se às mulheres tarefas repetitivas e consideradas 'femininas', como por exemplo as que demandariam 'qualificações específicas'3 3 'Qualificações específicas' são um eufemismo para tarefas repetitivas e conseqüentemente mal pagas. , que exigiriam maior cuidado e atenção (como as relacionadas ao posto de auxiliar nos laboratórios) e que, por conseguinte, as deixariam fora dos círculos de decisão. Em outras palavras, atividades que as impossibilitariam de subir na carreira acompanhando seus colegas homens. Além disso, as mulheres fariam carreiras mais longas, demorando-se mais que os homens nos diferentes níveis, em razão de casamento e/ou filhos, o que lhes exigiria uma dupla jornada de trabalho. Segundo Rossiter, o primeiro dado que chama a atenção dos analistas é o 'desaparecimento' das mulheres ao longo da carreira, isto é, quanto mais se sobe na carreira científica, menor é o número de mulheres em cada patamar.

Além das análises sobre discriminação das mulheres na ciência, também a divulgação científica e/ou popularização da ciência, que tem como objetivo a aproximação da produção científica com o 'público leigo' por meio da informação e difusão, tem se preocupado em contribuir para a visibilidade da participação feminina na geração do conhecimento. Nos países industrialmente mais avançados, a divulgação científica é antiga4 4 Situam alguns suas origens no século XVII, com a configuração da ciência moderna, quando o conhecimento dos sistemas do mundo passou a fazer parte da educação das pessoas. Representativo desse esforço de espalhar a ciência seria o livro de Bernier le Bovier de Fontenelle, Entretiens sur la pluralitè des mondes, publicado em 1686. Sobre Fontenelle, ver Valério, 2005. e se reporta aos mais diversos assuntos. Entretanto a divulgação científica relevou-se, ao longo das últimas quatro décadas, como uma importante atividade que populariza e 'vulgariza' a ciência.5 5 Divulgação científica, ou 'popularização da ciência' (termo mais utilizado na tradição de países anglo-saxônicos), significa um conjunto de atividades que buscam fazer uma difusão do conhecimento científico para públicos não especializados. Envolve desde a constituição de museus até a publicação de artigos em jornais ou revistas de divulgação, entre outros veículos de difusão.

Preocupado com a divulgação científica, Eric Sartori, engenheiro francês da École Supérieure de Physique et Chimie, tem se dedicado a divulgar distintos aspectos da ciência em livros como L'Histoire des grands scientifiques français e L'Empire des sciences, Napoléon et ses savants e, recentemente, a História das mulheres cientistas. Embora seja uma obra de divulgação e não de análise, tampouco vinculada a correntes que tratam das relações de gênero, ela tem o mérito de popularizar e tornar visível a participação das mulheres na história do pensamento científico. História de fazeres e pensamentos. Desde as suas origens até a sua institucionalização como prática social, a ciência vem sendo apontada como um nicho masculino por excelência. Ainda que na Idade Média, ou durante os séculos XVI e XVII, a ciência tenha adquirido um importante papel na sociedade, nela a participação das mulheres tem visibilidade incipiente.

O livro está dividido em duas partes: a primeira vai da Antiguidade até o século XIII; a segunda, da Renascença até o século XX. Essa divisão permite apontar inúmeras mulheres partícipes, em diferentes momentos da história ocidental, e agrupá-las também por áreas de conhecimento. O autor detém-se com mais profundidade na participação das mulheres na medicina. E ainda que não pretenda aprofundar a história de vida de cada uma dessas mulheres, merece destaque a preocupação do autor com uma análise de classe social, pois situa o preconceito e a baixa participação também como reflexos de uma situação de classe.

Na primeira parte, Sartori nos mostra as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na realização de seus feitos, especialmente em períodos históricos em que tal participação não era socialmente aceita. Aponta frases de homens célebres como Charles Darwin e Kant e seus pontos de vista sobre a inferioridade das mulheres para realizar trabalhos intelectuais. Ou seja, reconstrói a história da misoginia ocidental. Sartori enfatiza que, mesmo em ambiente hostil, essas mulheres ultrapassaram 'heroicamente' as barreiras dos preconceitos vigentes, e considera que, mais do que a história das mulheres na ciência, esta é, antes de tudo, uma história de resistência à discriminação. São quase 'heroínas' as nossas personagens, pois conseguiram ultrapassar as barreiras sociais impostas ao longo de todo o período analisado.

Assim, da Grécia antiga o autor recupera a história de Hypatia; na Alemanha, a das primeiras alquimistas, uma delas Marie Ziglerin, queimada viva em 1575. Ainda na Idade Média, aponta o papel de mulheres que praticavam a medicina, como Jacoba Félice, integrante da nobreza italiana que conquistou legitimidade local. Assim como outras mulheres, Jacoba é condenada, com base em lei de 1270, por prática de charlatanismo, e acusada, em 1322, de cuidar de doenças tanto de mulheres quanto de homens, tratar de suas feridas, examiná-los e prescrever medicamentos e, sobretudo, cobrar por esses cuidados.

Na Idade Média, o papel da Igreja contribuiu, segundo Sartori, para afastar as mulheres das atividades científicas, mas era nos conventos que, paradoxalmente, mulheres de diferentes classes sociais exerciam atividades intelectuais, como Hildegarde (1908-1179). Depois de confinada em um convento, Hildegarde se volta à redação de uma enciclopédia farmacológica, incentivada pelo fato de que a prática curativa, nesses lugares religiosos, era realizada com base em plantas cultivadas em hortas e jardins domésticos.

A partir da Renascença e da 'revolução científica e cartesiana', as mulheres conseguiram certa visibilidade. Tomaram posição nos poucos espaços disponíveis, como auxiliares de cientistas do sexo masculino, como esposas e/ou irmãs de cientistas. O autor enfatiza o papel da 'revolução cartesiana' como uma brecha de participação possível, pois a partir desse período a história identifica mulheres em distintas áreas do conhecimento como astronomia, física, matemática, filosofia, química, geografia, história natural e medicina. Trata-se de campos institucionalizados, saberes que passam a ser socialmente reconhecidos. Foi nesse contexto que surgiram Sophie Brahé, participante na observação de estrelas com outros assistentes de seu irmão, Tyco Brahé (1546-1601); Émilie du Chatelet (1706-1749), colaboradora de Voltaire e tradutora de Newton para o francês; Reine Lepaute, matemática que participou do cálculo do retorno do cometa Halley, em 1759; Mary Sommerville, que traduziu Laplace para o inglês; ou Margareth, esposa de John Flamsted, astrônomo real, a qual publicou um catálogo após a morte do marido. E também Maria Sybilla de Merian (1647-1717), que coletou inúmeras plantas e insetos no Suriname, publicou os resultados de seus estudos e ilustrou seus próprios livros, além de ter identificado uma planta que causava aborto, a peacock flower. Destacam-se ainda os livros da baronesa de Langsdorf sobre sua estada no Brasil e de Alexandra Davi-Néel sobre sua viagem ao Tibete, bem como o papel desempenhado por Marie-Anne Lavoisier, que na condição de assistente do marido tomava notas, trabalhava no laboratório e assistia às experiências.

Embora não estabeleça uma análise de gênero, o livro de Eric Sartori destaca e divulga a importância das mulheres na ciência. Do mesmo modo, conquanto prevaleça a ênfase institucional - os saberes como campos representativos e lugares de se fazer ciência -, bem como seus distintos domínios disciplinares, o autor aponta campos não reconhecidos, como o das parteiras.

Histoire des femmes scientifiques... recupera e difunde o árduo trabalho de inúmeras mulheres partícipes da história do pensamento ocidental. Ao destacar as dificuldades com que elas se depararam em suas trajetórias, o autor aponta a submissão das mulheres ao referencial 'masculino' de fazer ciência, ou seja, às noções de objetividade e racionalidade orientadas por critérios universalistas e meritocráticos. Além disso, ao recuperar a história e a contribuição dessas inúmeras desconhecidas, reconstrói outra maneira de se fazer ciência, apontada como 'feminina', ainda que, muitas vezes, por razões de sobrevivência, esteja de acordo com os cânones masculinos.

Em resumo, Sartori, interessado na divulgação da ciência, contribui para desvendar, mais uma vez, o papel obscuro de inúmeras mulheres que fazem parte da história da ciência.

NOTAS

  • CITELI, Maria Teresa. Fazendo diferenças: teorias sobre gênero, corpo e comportamento. Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v.9, n.1, p. 131-145. 2001.
  • CITELI, Maria Teresa. Mulheres nas ciências: mapeando campos de estudo. Cadernos Pagu, Campinas, n.15, p.39-75. 2000.
  • GONZÁLEZ, Verônica Sanz. Una introducción a los estúdios sobre ciência y gênero. Argumento de Razón Técnica, Sevilla, n.8, p.43-66. 2005.
  • LOPES, Maria Margaret. As grandes ausentes das inovações tecnológicas em ciência e tecnologia. Cadernos Pagu, Campinas, n.19, p.315-318. 2002.
  • LOPES, Maria Margaret. 'Aventureiras' nas ciências: refletindo sobre gênero e história das ciências naturais no Brasil, Cadernos Pagu, Campinas, n.10, p.345-368. 1998.
  • OSADA, Neide; COSTA, Conceição. A construção social de gênero na biologia: preconceitos e obstáculos na biologia molecular. Cadernos Pagu, Campinas, v.27, p.279-299. 2006.
  • ROSSITER, Margaret. Women scientists in America: struggles and strategies to 1940. Baltimore: The John Hopkins University Press. 1982.
  • SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Da crítica feminista da ciência a uma ciência feminista. In: Sardenberg, Cecília Maria. Bacellar. Feminismo, ciência e tecnologia Salvador: Redor. (Coleção Bahiana). 2002.
  • SIMIÃO, Daniel Schroeter. Um conceito itinerante: os usos do gênero no universo das organizações não-governamentais. Dissertação (Mestrado) - Universidade de Campinas, Campinas. 1999.
  • VALÉRIO, Palmira Maria C. Moriconi. Periódicos científicos eletrônicos e novas perspectivas de comunicação e divulgação para a ciência. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro / Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. 2005.
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    O campo de investigações sobre estudos de gênero diversificou-se a partir da década de 1980, e vários autores apontam divisões distintas. Para efeitos desta resenha considero a divisão apontada acima abrangente o suficiente para mapear os interesses do campo.
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    Além das três correntes citadas, há outras abordagens nos estudos de gênero em ciência. Para saber mais: Lopes, 1998; Citeli, 2000; González, 2005; e Sardenberg, 2002; entre outros. Ver também Osada e Costa, 2006.
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    'Qualificações específicas' são um eufemismo para tarefas repetitivas e conseqüentemente mal pagas.
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    Situam alguns suas origens no século XVII, com a configuração da ciência moderna, quando o conhecimento dos sistemas do mundo passou a fazer parte da educação das pessoas. Representativo desse esforço de espalhar a ciência seria o livro de Bernier le Bovier de Fontenelle,
    Entretiens sur la pluralitè des mondes, publicado em 1686. Sobre Fontenelle, ver Valério, 2005.
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    Divulgação científica, ou
    'popularização da ciência' (termo mais utilizado na tradição de países anglo-saxônicos), significa um conjunto de atividades que buscam fazer uma difusão do conhecimento científico para públicos não especializados. Envolve desde a constituição de museus até a publicação de artigos em jornais ou revistas de divulgação, entre outros veículos de difusão.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      2008
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