Acessibilidade / Reportar erro

Revisitando o desvendamento da etiologia da síndrome de Turner

Resumos

Com base em entrevista com José Carlos Cabral de Almeida, o artigo aborda a investigação que culminou no estabelecimento da etiologia genética da síndrome de Turner. Além de discutir especificamente esse processo, do qual fez parte, o entrevistado discorre sobre outros trabalhos que, em sua avaliação, marcaram as origens da citogenética. O artigo apresenta ainda a visão atual de Cabral sobre o desenvolvimento da genética clínica e a importância da citogenética em prover meios mais precisos de diagnose, prognóstico e controle das doenças genéticas. A conclusão aponta os trabalhos referidos como pioneiros e, até hoje, relevantes para a genética médica, especialmente no estudo dos cromossomos humanos, aspecto ainda fundamental para o sucesso da correlação de genética humana e processos de adoecimento.

citogenética; genética médica; síndrome de Turner; história; José Carlos Cabral de Almeida


Based on an interview with José Carlos Cabral de Almeida, who took part in the investigative process, the article explores the research that culminated in the establishment of the genetic etiology of Turner syndrome. Cabral de Almeida also discusses other work that he sees as landmarks in the birth of cytogenetics and offers his current view of the development of clinical genetics and the important role played by cytogenetics, which affords more precise means of diagnosis, prognosis, and control of genetic disorders. In its conclusion, the article points to pioneer work that continues to impact medical genetics, especially the study of human chromosomes, still fundamental to the success of linking human genetics and disease processes.

cytogenetics; medical genetics; Turner syndrome; history; José Carlos Cabral de Almeida


ANÁLISE

Revisitando o desvendamento da etiologia da síndrome de Turner

Monica de Paula JungI; Maria Helena Cabral de Almeida CardosoII; Maria Auxiliadora Monteiro VillarIII; Juan Clinton Llerena Jr.IV

IMédica endocrinologista do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione. Rua Moncorvo Filho, 9020211-340 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. monicajung@globo.com IIHistoriadora do Departamento de Genética Médica e professora da Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher / Instituto Fernandes Figueira / Fundação Oswaldo Cruz Av. Rui Barbosa, 716 22250-020 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. cardosomhca@iff.fiocruz.br IIIPediatra do Departamento de Genética / Instituto Fernandes Figueira / Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa, 716 22250-020 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. doritamvillar@hotmail.com IVChefe do Departamento de Genética Médica e professor da Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher / Instituto Fernandes Figueira / Fundação Oswaldo Cruz. Av. Rui Barbosa, 716 22250-020 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. llerena@iff.fiocruz.br

RESUMO

Com base em entrevista com José Carlos Cabral de Almeida, o artigo aborda a investigação que culminou no estabelecimento da etiologia genética da síndrome de Turner. Além de discutir especificamente esse processo, do qual fez parte, o entrevistado discorre sobre outros trabalhos que, em sua avaliação, marcaram as origens da citogenética. O artigo apresenta ainda a visão atual de Cabral sobre o desenvolvimento da genética clínica e a importância da citogenética em prover meios mais precisos de diagnose, prognóstico e controle das doenças genéticas. A conclusão aponta os trabalhos referidos como pioneiros e, até hoje, relevantes para a genética médica, especialmente no estudo dos cromossomos humanos, aspecto ainda fundamental para o sucesso da correlação de genética humana e processos de adoecimento.

Palavras-chave: citogenética; genética médica; síndrome de Turner; história; José Carlos Cabral de Almeida.

Este artigo enfoca, no contexto da saúde e da medicina, o período em que as anomalias cromossômicas foram descritas, tornando possível desvendar a origem genética das causas mais comuns de defeitos congênitos que afetam sete em cada mil crianças nascidas vivas e que também são responsáveis por quase metade dos abortos espontâneos, ocorridos no primeiro semestre da gravidez (Nussbaum, McInnes, Willard, 2001). Com base em entrevista concedida por José Carlos Cabral de Almeida, rememoram-se alguns passos do processo investigativo que ensejou o estabelecimento da etiologia genética da síndrome de Turner (ST), contextualizando-se a participação desse médico e cientista brasileiro nesse processo e, por conseguinte, na história da genética clínica e da citogenética humana.

A técnica usada para coletar o depoimento de José Carlos Cabral Almeida foi a da entrevista temática (Camargo, 1981), cujo fio condutor costura aspectos e momentos de uma dada realidade social sob estudo. No caso, abordou-se a elaboração do artigo científico "A sex-chromosome anomaly in a case of gonadal dysgenesis (Turner's syndrome)", de Charles Edmund Ford, Kenneth W. Jones, Paul Emmanuel Polani, José Carlos Cabral de Almeida e John H. Briggs, sobre a demonstração da etiologia da ST, publicado na revista The Lancet, em 1959 (Figura 1).


A entrevista seguiu o padrão de relato livre e aberto. Embora nenhuma questão específica tenha sido estabelecida a priori, alguns temas foram delineados para estimular a rememoração do entrevistado, colocando-a ante os fatos expostos no artigo (Jung, 2004). A entrevista foi transcrita e duas vezes submetida à correção de fidelidade, ambas em conjunto com o entrevistado, visando obter concordância quanto ao documento final, que, por sua vez, foi analisado empreendendo-se: (a) codificação aberta, com a leitura linha a linha das perguntas e respostas obtidas visando identificar idéias, temas e tópicos presentes; (b) codificação fechada, baseada nos temas previamente identificados como de especial interesse para o entrevistador. Os resultados dessas etapas foram entrecruzados, processando-se então a interpretação propriamente dita (Jung, 2004).

A primeira seção deste artigo esboça breve biografia profissional de José Carlos Cabral de Almeida. A segunda centra-se nas circunstâncias que o levaram a entrar em contato com a citogenética e aborda principalmente a participação de Paul Emmanuel Polani (terceiro coautor do artigo publicado em The Lancet) no desenho da pesquisa; na formulação da hipótese do cariótipo 45,X01 1 Cariótipo é a constituição cromossômica de um indivíduo. No caso da síndrome de Turner o cariótipo mais comum apresenta apenas um cromossomo sexual X, em vez do padrão normal XX ou XY. como correlato às manifestações fenotípicas da ST; na interpretação dos resultados; e na redação do próprio artigo. A terceira parte discute aquele texto e seu significado na história da citogenética, enfatizando sua estrutura em comparação a de outros artigos seminais produzidos no mesmo período. Ao final, apresentam-se as opiniões de Cabral de Almeida sobre medicina, citogenética, biologia molecular e união entre clínica e pesquisa, formuladas durante a entrevista.

Breve biografia de Cabral de Almeida

José Carlos Cabral de Almeida graduou-se em 1955 pela Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nos últimos anos de curso, começou seus estudos em endocrinologia, tanto por influência de José Sherman, renomado especialista brasileiro, como em decorrência do convívio com a equipe de endocrinologia da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Em meados de 1958 Cabral de Almeida completou sua especialização e recebeu bolsa do Consulado da Inglaterra para estagiar no Guy's Hospital, em Londres, ocasião em que integrou o grupo que desvendaria a etiologia da ST.

De volta ao Brasil, ingressou no staff médico do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz, onde criou, em 1960, o primeiro serviço de genética médica do atual estado do Rio de Janeiro, que chefiou até sua aposentadoria, em 1998. Ao mesmo tempo foi convidado por Carlos Chagas Filho para trabalhar no Instituto de Biofísica, afiliado à UFRJ, onde fundou a Unidade de Citogenética Humana. Em meados de 1960 também instituiu o Ambulatório de Genética no recém-fundado Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (Iede).

Cabral de Almeida publicou mais de 150 artigos científicos e foi o único pesquisador latino-americano a integrar, por dez anos, mediante indicação da comunidade mundial de geneticistas, o comitê internacional encarregado de elaborar o Sistema Internacional de Nomenclatura para a Citogenética (International System for Human Cytogenetics Nomenclature - ISCN). Ainda atua profissionalmente, mantendo vivo seu interesse pela genética e pela endocrinologia e prossegue promovendo a cooperação entre pesquisadores brasileiros e de outros países da Europa e América. Acumulou vasta biblioteca e, durante décadas, organizou, em sua casa, encontros semanais com médicos e cientistas de diferentes especialidades, interligadas pelo campo da genética. Conforme declara em seu depoimento, a tradição de todos os serviços que fundou - e com os quais permanece em contato por meio dos estreitos laços com os cientistas que neles hoje atuam - se mantém: trabalhar com linhas de pesquisa e ensino relacionadas diretamente à genética clínica.

Descobrindo a citogenética em Londres

Em 1959 Cabral de Almeida chegou a Londres para trabalhar com o professor Peter Maxwell Farrow Bishop, prestigiado endocrinologista inglês afiliado ao internacionalmente reconhecido Guy's Hospital. Vinha patrocinado pelo Consulado da Inglaterra e recomendado por Lawson Wilkins, relevante personagem da história da endocrinologia e talvez da medicina, cujo livro The diagnosis and treatment of endocrine disorders in childhood and adolescence é até hoje considerado marco da clínica e investigação endocrinológicas. A primeira edição da obra foi publicada em 1950, e na terceira, lançada após a morte do autor, a ST é discutida nos capítulos 12 e 13, tendo como uma das referências o artigo de Ford e colaboradores (Wilkins, 1965, p.340). Cerca de uma década antes Wilkins apresentara a Bishop o médico brasileiro e, agora, um trabalho com sua participação compunha o elenco de referências bibliográficas da seção do livro intitulada "Gonadal aplasia and its variants" (p.339).

O depoimento de Cabral de Almeida ratifica a afirmação de John Money na breve elegia que abre a terceira edição: a intenção de Lawson Wilkins em sempre ampliar seu conhecimento e o dos outros sobre a endocrinologia de crianças e adolescentes. No depoimento, contudo, o médico brasileiro afirma que sua maior recompensa foi ter conhecido Paul Emmanuel Polani, logo após chegar a Londres. Polani impressionou-se com algumas observações de Cabral de Almeida a respeito de uma paciente e convidou o jovem médico a integrar a equipe que pesquisava a possível etiologia genética da ST.

O que melhor caracterizava Paul Emmanuel Polani, médico formado na Universidade de Pisa, na Itália, era o ecletismo de interesses intelectuais e científicos, consistindo na junção de especialidades várias como pediatria, neurologia, cardiologia e genética, que ele interrelacionava estreitamente. De acordo com seus pares, sob o ponto de vista de Paul Polani a abordagem multidisciplinar das doenças tornava-se ainda mais efetiva quando motivada por uma perspectiva genética (Adinolfi et al., 1982). Sua carreira fora influenciada, desde o início da prática clínica, pelo interesse em neuropatias pediátricas, e consagrou-se com a cátedra de Professor de Pesquisa Pediátrica Príncipe Philip, na Escola de Medicina do Guy's Hospital, em outubro de 1960.

Ao longo dos anos, sobretudo após 1983, Polani conduziu várias atividades na Unidade de Pesquisa Pediátrica da Divisão de Genética Médica e Molecular do Guy's Hospital, no King's Hospital e na Escola de Medicina do St. Thomas Hospital, todas vinculadas à Universidade de Londres, da qual foi professor emérito até sua morte, aos 92 anos, em 6 de fevereiro de 2006. Considerado um dos precursores da citogenética em Londres, Paul Emmanuel Polani faleceu quando a comunidade genética mundial se preparava para celebrar os cinquenta anos de nascimento da citogenética, marcado pela descoberta, em 1956, do número correto de cromossomos das células somáticas humanas (Adinolfi; Alberman, 2006).

Na década de 1950 Polani voltou-se para a aplicação da análise genética às doenças cardíacas congênitas. Em 1954 sua observação de que um número inusitado de mulheres com ST apresentava coarctação da aorta2 2 Estreitamento que diminui a luz da aorta, provocando obstrução do fluxo sanguíneo. (anomalia mais frequente no sexo masculino) levou-o a estudar a cromatina sexual3 3 Também denominada corpúsculo de Barr ou cromatina de Barr, a cromatina sexual é a associação de DNA e proteínas que compõe os cromossomos. É vista em células somáticas femininas. dessas pacientes, que se mostrou negativa. Diante de tal resultado e sabedor de que o daltonismo era um marcador do cromossomo X, passou a estudá-lo nas pacientes, em conjunto com Bishop (Polani, Lessof, Bishop, 1956). Essas pesquisas clínicas levaram-no à hipótese de que as pacientes com ST possuíam cariótipo alterado e possivelmente apresentavam monossomia do cromossomo sexual X (Harper, 2006).

Para a historiografia médica (Tesch, Rosenfeld, 1995), teria sido o anatomista italiano Giovanni Morgagni, em 1768, o primeiro investigador a descrever, com base na autópsia do corpo de uma mulher de baixa estatura, ausência de desenvolvimento mamário e de pelos pubianos, malformações renais e disgenesia4 4 Disgenesia significa qualquer anomalia do desenvolvimento. gonadal, o que teria configurado o primeiro relato sobre o que se denominaria síndrome de Turner.

Em 1902 uma garota de 15 anos e baixa estatura, com linfedema5 5 Edema dos vasos linfáticos. congênito, pescoço alado6 6 Assim denominado porque o pescoço está unido aos ombros por uma extensa porção de pele, lembrando asas abertas de uma ave. e disgenesia gonadal, despertou a atenção de Otto Funke, que registrou na literatura médica o caso, considerado um dos primeiros que ilustram a condição (Tesch, Rosenfeld, 1995). Na cidade de Munique, em dezembro de 1929, na Sociedade de Pediatria, Otto Ullrich relatou o caso de menina de oito anos que nascera com linfedema congênito e tinha pescoço alado, ptose palpebral7 7 Ptose palpebral é o caimento excessivo da pálpebra superior, cobrindo anormalmente o olho. , micrognatia8 8 Micrognatia significa mandíbula inferior de tamanho pequeno. , palato estreito, baixa estatura, implantação baixa da linha posterior do cabelo, mamilos invertidos e hipoplásicos9 9 Mamilos hipoplásicos são os que apresentam desenvolvimento insuficiente. . Essa descrição é considerada até hoje definitiva sobre a disgenesia gonadal .

Nove anos depois Henry Turner (1938) publicou seu estudo sobre sete mulheres, pacientes da Clínica Endocrinológica do Hospital Universitário de Oklahoma, com características semelhantes às narradas por Ullrich, acrescidas de deformidade dos cotovelos (cubitus valgus), enfatizando sobremaneira tanto esse aspecto quanto a disgenesia gonadal. Iniciou então o tratamento hormonal das pacientes, e a condição passou a ser conhecida como síndrome de Ullrich-Turner, tendo sido o nome de Ullrich gradualmente abandonado na denominação da doença.

Hoje a definição da ST seria, resumidamente, anomalia cromossômica, na qual apenas um cromossomo X está em funcionamento normal e outro cromossomo sexual pode estar perdido ou ser anormal (Hall, Lopez-Rangel, 1995). Fenotipicamente é caracterizada por baixa estatura, disgenesia gonadal e outras malformações congênitas, sendo a infertilidade uma de suas marcas. A incidência é de 1:2.500 indivíduos do sexo feminino nascidos vivos. Postula-se que as mulheres com ST têm risco elevado de apresentar baixa autoestima e, por conseguinte, qualidade de vida social comprometida (Schmidt et al., 2006).

A participação de Paul Emmanuel Polani no marco seguinte da historiografia sobre a ST é esclarecida por Cabral de Almeida em seu depoimento. Polani teria elaborado todo o estudo, desde a formulação da hipótese até a conclusão de como as pacientes com Turner deveriam ser sexualmente classificadas. Os nomes de Charles Edmund Ford e Kenneth W. Jones como os dois primeiros autores seguiram as convenções vigentes, pois além de ambos possuírem o título de philosophy doctor, Ford era o chefe do laboratório da Medical Research Council Radiobiological Research Unit, no Atomic Research Establishment, na cidade de Harwell, tendo realizado com Jones as culturas e análises citogenéticas.

Charles Edmund Ford (1912-1999) nasceu na Inglaterra e recebeu seu grau de doutor pelo Kings College, em Londres. A história da citogenética reconhece-o por sua fantástica habilidade técnica na adaptação de métodos, assim como por sua aplicação das soluções hipotônicas10 10 A solução hipotônica tem pressão osmótica mais baixa do que as demais. de Tao-Chiuh Hsu (1952) para visualização dos cromossomos metafásicos. Ford também é internacionalmente conhecido por elaborar novas técnicas que viabilizaram a análise cromossômica em tecidos difíceis como o dos testículos (Kent-First, 1999). Em conjunto com John Hamerton, demonstrou inequivocamente a presença do número haplóide11 11 Denomina-se assim o número de cromossomos de um gameta normal, que contém apenas um membro de cada par de cromossomos. de 23 cromossomos nas células germinativas de homens normais (Kent-First, 1999).

Ford e Hamerton sempre estiveram engajados em pesquisas com modelos animais, tendo o último empreendido investigações acerca da intersexualidade em cabras (Hamerton et al., 1969). O assunto também foi durante anos objeto de estudos de Cabral de Almeida (Just et al., 1994). A importância desse tipo de pesquisa para a diferenciação e determinação sexual foi muito enfatizada pelo entrevistado, que comentou, aliás, não ser coincidência o fato de Hamerton e ele se dedicarem ao mesmo tipo de pesquisa a quilômetros de distância e em diferentes intervalos de tempo: em suas palavras, ocorre que a ciência se produz, em cada um de seus campos, por especialistas que compartilham iguais interesse e curiosidade investigativa.

Ainda conforme o entrevistado, em 1959 deu-se início à aplicação da citogenética na medicina, o que ampliou o interesse pela citogenética humana (Harper, 2006).

No que tange ao artigo sobre a etiologia da ST, o trabalho de Ford foi desenvolvido na bancada; junto com Kenneth W. Jones, ele fez as culturas de tecido. Cabral de Almeida esclareceu, na entrevista, que os aspectos clínicos da pesquisa eram conduzidos por ele e John H. Briggs e supervisionados por Polani.

O artigo atesta a inteligência, a cultura médica e o rigor investigativo e interpretativo de Paul Emmanuel Polani. Todos esses atributos foram também enfatizados por Cabral de Almeida, que declara peremptoriamente ter a mente brilhante do cientista estado por trás de todo o trabalho.

O artigo sobre a síndrome de Turner e as origens da citogenética

Na introdução, "A sex-chromosome anomaly in a case of gonadal dysgenesis (Turner's syndrome)" define disgenesia gonadal, descreve a pesquisa da cromatina de Barr na disgenesia gonadal, aponta duas abordagens para o estudo do problema e discute brevemente o desenvolvimento das técnicas que permitiram estudar os cromossomos humanos. Em seguida relata o caso clínico de uma paciente com ST, incluindo identificação social, história familiar e pessoal de desenvolvimento e crescimento, resultado de testes complementares e descrição do cariótipo contendo 45 cromossomos. Afirma que "essas observações, por si, sugerem fortemente que a constituição cromossômica é X0" (Ford et al., 1959, p.711)12 12 Todas as citações foram retiradas da coletânea publicada por Samuel H. Boyer IV intitulada Papers on human genetics (Boyer IV, 1963), que reproduz os artigos na íntegra. Cabe também assinalar que todas foram livremente traduzidas pelos autores deste artigo. .

A discussão aborda a inadequação da expressão cromatina negativa para determinar o sexo dessas pacientes, porque elas são "anatômica e psicologicamente do sexo feminino" (Ford et al., 1959, p.712). Isso significou importante mudança de foco, com repercussões fundamentais para essas meninas - conforme ressalta Cabral de Almeida em seu depoimento -, uma vez que, até então, ocupavam a categoria 'intersexo'. O artigo também propõe uma explicação para a origem da anomalia sexual cromossômica na disgenesia gonadal e confirma a hipótese do X0. A conclusão merece ser citada literalmente, pois determinou outra maneira de encarar científica, social e culturalmente as crianças nascidas com ST: "A paciente X0 não deve ser referida como um tipo de 'sexo em reverso', 'sexo masculino cromossômico', ou 'geneticamente do sexo masculino': trata-se de paciente do sexo feminino com um genótipo alterado" (p.713).

Na entrevista, Cabral de Almeida refere-se à linha de raciocínio de Polani e enfatiza seu modo de se aproximar da hipótese do cariótipo X0, a partir de seus estudos sobre a incidência de coarctação da aorta e de daltonismo nas mulheres examinadas. Para Cabral de Almeida, a perspicácia de Polani somada a sua profunda experiência clínica - também apontada por Harper (2006) - levou-o a atentar no fato de que a coarctação da aorta em indivíduos sexualmente normais era mais comum no homem e nas pacientes com ST. Por isso teria suspeitado que as mulheres com ST não seriam XY nem XX, mas provavelmente X0.

Em seguida, ainda conforme o depoimento, Polani começou a estudar o daltonismo (Harper, 2006), tendo sido o próprio Cabral de Almeida designado para realizar testes de avaliação da visão das pacientes com ST. Observou-se que a frequência de daltonismo nelas era similar àquela encontrada na população masculina em geral e que as meninas daltônicas com ST não possuíam pais daltônicos. Polani concluiu então que as mães eram as portadoras do gene do daltonismo.

Para melhor expor o método hipotético dedutivo de Polani e a importância da hipótese heurística do cariótipo X0, Cabral de Almeida recorreu à leitura do artigo para traduzir, o mais fielmente possível, o que já havia sido explicitado. Reiterando sua afirmação de que considera o artigo um dos mais bem escritos na história da citogenética, leu o trecho que menciona as duas abordagens propostas para aproximar-se da identificação sexual em ST: a observação citológica direta e o estudo do daltonismo, que é fator recessivo associado ao sexo e marcador do cromossomo X. Em seguida Cabral de Almeida chamou a atenção para o fato de o exame citológico ter demonstrado que as pacientes eram cromatino-negativas, isto é, estava ausente de suas células o corpúsculo de Barr, ao contrário do que ocorre nas células de indivíduos do sexo feminino.

Polani sugeriu, no mesmo artigo, que fossem eliminadas as denominações sexo nuclear ou sexo genético, atribuídas a essa cromatina. Segundo Cabral de Almeida, o cuidado do cientista quanto à designação do padrão sexual cromossômico revela não só preocupação com seu impacto na psique das pacientes, como também a busca de correção científica, já que estava demonstrado que a cromatina positiva ou negativa não indica se uma criança é X0 ou XY, XX ou XXY.

Nessa parte da entrevista, Cabral de Almeida recordou o papel de cientistas brasileiros no desenvolvimento da genética, destacando o grupo de Luciano Décourt, endocrinologista da Escola Paulista de Medicina, cujo trabalho (Décourt et al., 1954) serviu de referência ao artigo. Ele foi o primeiro cientista a aplicar em humanos a descoberta de Barr e Bertram, em 1949, sobre a cromatina sexual de gatas (Ford et al., 1959). Note-se que Décourt e os coautores do artigo ainda utilizaram a expressão sexo genético para indicar a positividade ou negatividade da cromatina. Entretanto a proposta de Paul Polani, de eliminar a expressão do vocabulário científico substituindo-a por cromatina positiva ou cromatina negativa, já havia sido pontuada em publicação conjunta com Maurice H. Lessof e Peter Maxwell Farrow Bishop (Polani, Lessof, Bishop, 1956). Cabral de Almeida ressalta que a importância desse feito é indiscutível: a substituição foi acatada pela comunidade científica mundial, o que diminuiu consideravelmente o estigma associado à intersexualidade, com a qual se costumava (in)definir o sexo das crianças nascidas com ST.

Para Cabral de Almeida, revisitar a investigação e o artigo que a reporta ensejou também um retorno às origens da citogenética e à trajetória dos pesquisadores que traçaram a história de um episódio fundamental para o desenvolvimento dos estudos sobre a genética humana. Em sua opinião, o que aconteceu de fenomenal foi justamente a citogenética e os nomes que a compuseram, como Jo Hin Tjio, Jerome Lejeune, Patricia Jacobs, Paul Emmanuel Polani, Mary Lyon e Susumu Ohno. De fato, obras que recuperam a história do campo da genética humana, como a coletânea editada por Boyer IV (1963) e a de Harper (2004), atribuem como marcos de origem da citogenética humana os artigos desses pesquisadores publicados entre 1956 e 1959.

Em seu depoimento, Cabral de Almeida recuperou cada um dos personagens com quem conviveu, por intermédio de Polani, durante os três anos em que a citogenética se estabeleceu como o estudo dos cromossomos. Desde então a análise cromossômica evoluiu em precisão e consolidou-se como procedimento cada vez mais importante em diversas áreas da medicina, além da genética clínica (Nussbaum, McInnes, Willard, 2001).

Jo Hin Tjio, o primeiro nome citado por Cabral de Almeida, foi pioneiro, em 1956, na obtenção da contagem correta dos cromossomos das células somáticas humanas (46). Até então acreditava-se que o montante era de 48 cromossomos (Wrigth, 2001), mas novos métodos e maior apuro técnico permitiram estabelecer sem sombra de dúvida o número correto, possibilitando o estudo das anomalias cromossômicas. Provavelmente a clareza das células metafásicas13 13 Células metafásicas são encontradas em determinado estádio da divisão celular. Nelas os cromossomos aparecem alinhados no plano equatorial, o que facilita sua observação. se deveu ao uso de fibroblastos do tecido pulmonar embrionário (Tjio, Levan, 1956) retirado de fetos abortados, uma vez que a Suécia, local do laboratório em que Tjio e Levan trabalhavam, era na época um dos poucos países em que o aborto era legal (Harper, 2004).

De todos os geneticistas citados por Cabral de Almeida, talvez o mais conhecido seja Jerome Lejeune, pediatra francês que se dedicou à pesquisa científica, sobretudo à síndrome de Down (SD). Em 1953 Lejeune começou a publicar sobre o assunto, descrevendo as características palmares das crianças com SD. Os resultados de suas investigações foram publicados na revista da Academia de Ciências da França, em 1959, e foi graças a eles que o cientista obteve seu doutoramento em 1960.

Havia sugestões prévias de renomados geneticistas, como Lionel S. Penrose - médico inglês com treinamento em psiquiatria e no cuidado de crianças com déficit mental, cujo trabalho sobre fenilcetonúria é considerado um marco na transição dos estudos bioquímicos para os de genética molecular14 14 Até a divulgação do trabalho de Penrose, os aspectos genéticos da fenilcetonúria eram pouco considerados. Ele não só demonstrou a base genética da doença, associando-a à perda de uma enzima específica, como confirmou seu padrão de herança autossômico recessivo. -, de que a SD era provável resultado de anomalia cromossômica (Harper, 2004). O trabalho que pode ser considerado ponto de partida da citogenética humana aplicada à clínica é, porém, o de Lejeune, Gautier e Turpin (1959). As pesquisas de Lejeune continuaram até sua morte, em 1994, nelas se incluindo a que levou à descoberta de que a perda de um segmento no braço curto do cromossomo 5 resultava no que ele denominou síndrome cri du chat - 'miado do gato'15 15 A síndrome foi assim denominada porque o choro da criança afetada é tão fraco que lembra o miado de um gato. (Miranda Evaristo, 2003).

A genética humana, a citogenética e a genética molecular compõem o tripé que sustenta o trabalho de Patricia Jacobs. A colaboração dessa geneticista inglesa com o Medical Research Council Radiobiology Unit e o grupo de Charles Edmund Ford, em Harwell, inaugurada em seu artigo seminal sobre a etiologia da síndrome de Klinefelter, prossegue até o presente (Grinstein, Biermann, Rose, 1997). O artigo que Cabral de Almeida refere em sua entrevista tem a colaboração de John A. Strong e foi publicado na revista Nature em 1959, sob o título "A case of human intersexuality having a possible XXY sex-determining mechanism". Descreve um paciente "aparentemente do sexo masculino, de 24 anos" (Jacobs, Strong, 1959, em Boyer, IV, 1963, p. 241), com disgenesia gonadal, ginecomastia e testículos pequenos, associados a pouco crescimento de pelos da face e voz estridente. O material colhido da medula óssea possibilitou a contagem de 44 células metafásicas, das quais a maioria estabelecia a presença de 47 cromossomos. O estudo dessas células mostrou haver um Y normal, mas também um cromossomo extra de tamanho médio, com centrômero submediano. Os autores concluíram que havia fortes evidências, provindas tanto da observação quanto das características genéticas, para acreditar-se que os seres humanos com núcleos de cromatina positiva são geneticamente do sexo feminino, possuindo, portanto, dois cromossomos X. O fato de o paciente estudado ser cromatino-positivo e ter um cromossomo a mais do mesmo tamanho do X, assim como um Y normal, apontava para a constituição XXY.

De certo modo a natureza essencialmente descritiva do artigo, sem detalhamento do processo de raciocínio, é semelhante à do artigo de Lejeune e colaboradores sobre a etiologia da SD. Há breve apresentação do número de células examinadas, tal como no trabalho de Jacobs e Strong, culminando na afirmação: "As células 'perfeitas' de indivíduos não mongolóides nunca apresentam essas características, portanto parece legítimo concluir que existe nos mongolóides um pequeno cromossomo telocêntrico supernumerário, responsável pelo número anormal de 47" (Lejeune, Guatier, Turpin, 1959, p. 602).

Cabral de Almeida aponta outra grande revolução na história da genética, posterior àquela causada pelo trabalho de James Dewey Watson e Francis Henry Compton Crick (1953) - o início da citogenética, incluindo os seguintes fatos: o estabelecimento, por Joe Hin Tjio e Albert Levan, do número correto de cromossomos nas células somáticas humanas; a descoberta, por Lejeune e colaboradores, da etiologia da SD; a descrição etiológica feita por Jacobs e Strong da síndrome de Klinefelter; e o estabelecimento do cariótipo da ST. Enfatiza, contudo, que os dois primeiros trabalhos voltam-se para a verificação da correlação entre a trissomia do 2116 16 É o cromossomo característico do par 21. Lejeune viu que no lugar de dois cromossomos havia três, daí a denominação. As trissomias representam um estado no qual há três representantes de um cromossomo, em vez do par habitual. As síndromes de Patau e Edwards também são trissomias: a primeira do cromossomo 13 e a segunda do cromossomo 18. e a SD, e entre o carótipo XXY e a síndrome de Klinefelter17 17 A síndrome de Klinefelter caracteriza-se pelo cariótipo 47, XXY. Seus portadores são homens altos, magros e inférteis. , respectivamente. E, apesar do respeito e admiração que dedica a Lejeune e Jacobs, ressalta a relevância do trabalho desenvolvido por Paul Polani, que não se trata apenas da verificação do cariótipo X0 na ST, mas de um método de investigação e exposição bastante atual e quase profético, por adiantar aspectos da síndrome que posteriormente as técnicas de DNA recombinante viriam a ratificar.

O pesquisador japonês Susumu Ohno, também mencionado por Cabral de Almeida, demonstrou, em 1956, que a cromatina encontrada nas células das mulheres não estava associada, como se pensava, aos dois cromossomos X, mas somente a um cromossomo X heterocromático (Beutler, 2002). Ele também sugeriu que a soma do material gênico é igual nas diferentes espécies, e na mesma época já apontava que, na maioria dos organismos superiores, o DNA consiste de sequências que não codificam proteínas; nomeou esse DNA extra 'DNA lixo'.

Ainda conforme o depoimento de Cabral de Almeida, a cientista inglesa Mary Lyon, junto com Ohno, foi fundamental para o desenvolvimento das pesquisas em citogenética humana. Seus estudos atuais centram-se na genética dos mamíferos, genética da radiação, mutagêneses, mapeamento genético, genes mutantes e análise de ligações, inativação do cromossomo X e haplótipos em camundongos (Beutler, 2002). Seu trabalho inovador tornou-se conhecido por detalhar o princípio da inativação do cromossomo X, chamado desde então de 'hipótese de Lyon', que postula como, apesar de os homens terem só uma cópia de cada gene conectado ao cromossomo X e as mulheres, duas cópias, o total de produtos formados por um simples alelo no homem ou por um par de alelos nas mulheres é em geral equivalente (Lyon, 1963).

A menção a todos esses trabalhos, por um lado, revela a formação de Cabral de Almeida sob influência desses cientistas, sobretudo de Polani, cujos laços o tempo só fez estreitar. Por outro lado, reafirma sua opção pela união entre pesquisa básica e pesquisa clínica, pautada na ideia de que a interrelação entre o clínico e o geneticista, entre o biólogo molecular e o clínico deve ser muito próxima. Para Cabral de Almeida, tal união é imprescindível, pois ao se estudar o gene possivelmente responsável ou que predispõe a uma doença, é necessário ter certeza de que o paciente é de fato portador dessa doença. A questão que o entrevistado coloca para ilustrar seu argumento é: se, de um grupo de indivíduos com doença específica, detecta-se que 70% possuem determinada mutação, o que têm os demais 30%? E acrescenta que é preciso permanecer em perene estado de questionamento, indagando, por exemplo, se o gene sob estudo é realmente o gene promotor ou se o diagnóstico clínico está correto. Parece-nos que tal ênfase traduz uma postura científica dinâmica e a adoção de uma filosofia interdisciplinar segundo a qual a ponta da flecha, conduzida pelo arco da pesquisa, mira a clínica e não o experimento per se.

Posturas atuais moldadas pelo passado

Devido a estudos como os mencionados por Cabral de Almeida é que geneticistas como Therman e Susman (1993), metamorfoseando-se em historiadores da citogenética, dividem-na esquematicamente em três eras e dois períodos: a era das trevas, o período hipotônico, o período das trissomias, a era do bandeamento e, finalmente, a era molecular. Tais denominações evidenciam que a cronologia se baseia na história da evolução das técnicas, com o primeiro período correspondendo àquele das soluções hipotônicas e o segundo, à contagem do número preciso de cromossomos nas células somáticas humanas, que permitiu o desvendamento da etiologia genética de várias síndromes.

O artigo do qual Cabral de Almeida é coautor, assim como os de Lejeune e colaboradores, Jacobs e Strong, Lyon e Ohno, entre outros, estaria situado no período das trissomias, mas já adentrando a segunda era. De acordo com Therman e Susman, foi então que os citogeneticistas voltaram sua atenção para os pacientes com anomalias congênitas. As anomalias cromossômicas, sobretudo as numéricas, compuseram o centro das investigações e foram definitivamente associadas com fenótipos clínicos específicos descritos há muitos anos, como o da síndrome de Down e o da própria ST.

É impossível discordar do entrevistado quando, ao fazer sua própria síntese histórica da citogenética, afirma que ela ainda hoje constitui extraordinário campo para a pesquisa em medicina, em termos de estabelecimento de hipóteses diagnósticas e aconselhamento genético. Para Cabral de Almeida é muito claro que a citogenética passou por várias fases, sendo a primeira a do 'grande boom', isto é, aquela em que começaram a ser descritas síndromes como a de Patau e de Edwards18 18 É condição caracterizada por trissomia do cromossomo sexual X, podendo estar associada à infertilidade. Os indivíduos afetados podem apresentar fenótipo normal. , enfim, aquelas de fenótipo associado a anomalias cromossômicas estruturais e numéricas.

Depois, prossegue o entrevistado, a citogenética começou a ser aplicada em campos como radiobiologia, malformações congênitas, oncogênese e anomalias sexuais. A biologia molecular representou um avanço e correspondeu a uma nova fase revolucionária, que, contudo, não depreciou ou desvalorizou a citogenética; ao contrário, o emprego da citogenética molecular nada mais é do que um passo adiante na história da citogenética. Cabral de Almeida explicita bem sua opinião acerca de como essas questões devem ser pensadas. Pode-se afirmar, ele sugere, que a biologia molecular venha trazer mais recursos à citogenética e não acabar com ela. Tanto isso é verdade que não se pode negar sua importância nas pesquisas com o câncer nem tampouco esquecer o grande número de anomalias cromossômicas cujos genes foram localizados e/ou eventualmente clonados graças ao que Niels Tommerup, "um grande pesquisador", chamou de citogenética mendeliana. Na opinião de Cabral de Almeida, foram as anomalias cromossômicas estruturais que indicaram a provável localização de certos genes, mapeando dessa maneira quebras e translocações. E, novamente referindo-se a Tommerup, chama a atenção para o que o citogeneticista denominou mosaicismo dinâmico19 19 Mosaicismo é condição em que existem duas ou mais linhagens celulares derivadas de um único zigoto, diferentes geneticamente por causa de mutação ou não disjunção do zigoto. , como resposta a perguntas tais como: por que um anel do cromossomo 13 resulta em retinoblastoma e por que um anel do cromossomo 22 associa-se a um meningioma? A resposta, com base no conceito de mosaicismo dinâmico, é que isso se deve ao fato de o cromossomo em anel quebrar-se, perder genes - um gene de supressão tumoral, por exemplo -, resultando na perda de heterozigose20 20 Heterozigose significa indivíduo ou genótipo com dois alelos diferentes em determinado lócus, em um par de cromossomos homólogos. e abrindo espaço para o processo neoplásico.

Niels Tommerup é professor da Universidade de Copenhagem, diretor do Wilhelm Johannsen Centre for Functional Genome Research e coordenador da Mendelian Cytogenetics Network. Cunhou a expressão citogenética mendeliana para designar a área da citogenética dedicada ao mapeamento de genes causadores de doenças de herança mendeliana, por meio da identificação de locais de translocação e pela combinação de dados de aparentes expressões balanceadas de genes, conectados ao mapeamento genômico (Wilhelm Johannsen Centre..., s.d.). Em certo sentido, pode-se dizer que a referência ao trabalho de Tommerup é ilustrativa da tradição que acompanha Cabral de Almeida e que permanece sendo a diretriz de pesquisa, ensino e assistência empreendidas pelo atual Departamento de Genética do Instituto Fernandes Figueira (IFF), da Fundação Oswaldo Cruz, fundado por ele e o primeiro do estado do Rio de Janeiro a dedicar-se à genética médica. O depoimento esclarece que, sob essa diretriz, um geneticista voltado para a genética humana deve, sobretudo, conhecer os aspectos clínicos das doenças com as quais trabalha. Por isso ele faz questão de declarar ter sido sempre um pesquisador clínico e que o método de investigação clínica, no seu modo de ver, implica a história que o paciente narra de sua doença como o princípio do caminho para erguer qualquer hipótese diagnóstica. Também pondera sobre a enorme diferença entre diagnosticar e rotular, já que o diagnóstico demanda compromisso e envolvimento no processo de adoecimento do paciente.

Cabral de Almeida dedica-se ao estudo da determinação e diferenciação sexual, das malformações congênitas e do retardo mental, e é declaradamente influenciado pelo tempo que passou na Inglaterra, quando vivenciou a origem da citogenética. Para ele, não há como separar o cuidado com o paciente e a pesquisa. Durante os 38 anos em que integrou o staff do IFF - bem como quando atuou no Instituto de Biofísica da UFRJ e no Iede -, pesquisa, ensino e assistência emolduraram sua trajetória, embora reconheça que seu foco central é a assistência, ou seja, ele entende que a investigação científica básica e o ensino são ferramentas essenciais ao desempenho médico-clínico.

Ele acredita que alguns dos maiores erros cometidos na pesquisa, no ensino e, sobretudo, na assistência é prejulgar, temer novas informações e, sem refletir criticamente, aceitar novos modelos de divulgação científica porque estão na moda. De certa maneira essa postura já estava sendo formada quando viajou para a Inglaterra. Antes e imediatamente após graduar-se, sua vinculação à endocrinologia e, dentro dela, às doenças genéticas apontava para um investigador a consolidar a construção de suas hipóteses diagnósticas nos sinais que observava e interpretava.

A preocupação em destacar a contribuição da citogenética e seu papel histórico para a genética humana e clínica perpassa toda a entrevista, intensificando-se nos momentos finais. Cabral de Almeida conclui colocando intencionalmente no proscênio duas doenças genéticas - as síndromes de Down e de Turner - cujas etiologias foram desvendadas por análises citogenéticas. Ambas, no seu modo de ver, até mesmo em virtude dos avanços trazidos pelas técnicas da biologia molecular, constituem mundos em construção, muito ricos de informações a elaborar. No que diz respeito à primeira, afirma não conhecer doença genética mais generosa em termos de produção do conhecimento ao longo dos 140 anos em que vem sendo estudada. Censura os geneticistas clínicos que tendem a banalizá-la, por ser a doença genética de maior incidência, e priorizar aquelas muito raras que por certo garantem mais facilmente espaço em publicações, esquecendo-se do muito que ainda há a fazer se esforços entre pesquisa clínica e experimental se conjugarem para proporcionar melhor qualidade de vida aos indivíduos com doenças genéticas.

Considerações finais

Desde 1956 - quando Tjio e Levan desenvolveram técnicas eficazes de análise cromossômica e estabeleceram o número normal de cromossomos nas células somáticas humanas -, a citogenética evoluiu e, ao incorporar as ferramentas da biologia molecular, vem ajudando a medicina a enfrentar problemas antes abordados por recursos apenas clínicos, o que favorece a integração das doenças genéticas ao cenário da saúde coletiva. Mais ainda: os avanços das pesquisas genéticas, ao ultrapassar as fronteiras das condições mendelianas, foram apropriados por inúmeros segmentos responsáveis pela promoção da saúde e acabaram por influenciar as bases conceituais clássicas da saúde pública (Cardoso, Castiel, 2003). De fato, o crescente interesse pelo estudo das condições multifatoriais, em particular malformações congênitas, mutagênese, teratogênese, carcinogênese, hemoglo-binopatias e talassemias, a englobar a citogenética, a genética citomolecular e a genética molecular, torna evidente a conexão entre saúde coletiva e genética.

Por outro lado, a divulgação pela mídia de aplicações dos conhecimentos em genética alimentam a imaginação do público e levam a uma nova maneira de pensar os corpos e moldar novas concepções sobre o natural e o normal (Petersen, 2002). É frequente depararmos atualmente, em jornais e revistas de grande circulação, com promessas de milagres pelas tecnologias genéticas. E, a despeito das controvérsias, é inegável a necessidade de uma política científica inclusiva, de engajamento social quanto a investimentos e decisões sobre meios e fins, diante das consequências sociais dos avanços trazidos pelas tecnologias de DNA recombinante (Gaskell, Bauer, 2006).

Há os que louvam a técnica e clamam o importante papel a ser desempenhado pelos pesquisadores, a exemplo de James Watson (1995, p. 197): "Se nós não bancarmos Deus, quem o fará?". Mas há também - conforme atesta o depoimento de Cabral de Almeida - os que lançam seus olhos para uma nova narrativa da vida sem contudo perder de vista o enredo construído ao longo do tempo, em que os discursos da citogenética, da biologia molecular e da medicina se entrelaçam àqueles das pessoas adoecidas por condições etiologicamente genéticas, cujas identidades não podem ser reduzidas à dimensão gênica e cujas queixas e sintomas são o ponto de partida e de retorno.

Buscou-se aqui trazer à tona, com a ajuda do testemunho de um cientista e médico brasileiro, a memória de um artigo publicado em 1959. Entre três outros trabalhos publicados no mesmo ano, sem dúvida ele integra o processo de reconhecimento das anomalias cromossômicas como base de graves doenças genéticas, só passíveis de estudo depois da descoberta de que as células somáticas humanas continham 46 cromossomos. E surpreende o fato de que, embora se conhecesse a estrutura do DNA, não se fosse capaz de contar corretamente o número de cromossomos humanos nem, muito menos, recorrer à citogenética para conhecer as variações cromossômicas numéricas e estruturais.

Todos os trabalhos citados por Cabral de Almeida foram pioneiros, e até hoje são reconhecidas suas implicações para a genética clínica. O estudo dos cromossomos humanos foi e ainda é fonte de informação para os geneticistas em geral, mas permanece contribuindo especialmente para o sucesso da genética humana correlacionada aos processos de adoecimento.

NOTAS

Encaminhado para publicação em agosto de 2007.

Aprovado para publicação em agosto de 2008.

  • ADINOLFI, Matteo; ALBERMAN, Eva. Paul Polani: pioneering research into chromosomal abnormalities. The Guardian, London. Disponível em: http:/www.guardian.co.uk/science/2006/mar/17 obituaries.highereducation Acesso em: 6 nov. 2007. 2006
  • ADINOLFI, Matteo William et al. Pediatric research: a genetic approach. Cambridge: Cambridge University Press. 1982.
  • BEUTLER, Ernest. Susumo Ohno - 1928-2000: a biographical memoir. Biographical Memoir, Washington DC, v.81. Disponivel em: http://www.nasonline.org/site/PageServer?pagename=MEMOIRS_O 2002.
  • BOYER IV, Samuel H. (Ed.). Papers on human genetics Englewood Cliffs: Prentice-Hall. 1963.
  • CAMARGO, Aspasia Alcântara de.Apresentação. In: Camargo, Aspásia Alcântara de (Coord.). Programa de história oral: catálogo de depoimentos. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil/Fundação Getúlio Vargas. p.11-15. 1981.
  • CARDOSO, Maria Helena C. de Almeida; CASTIEL, Luis David. Saúde coletiva, nova genética e a eugenia de mercado. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v.19, n.2, p.653-662, 2003.
  • DÉCOURT, Luciano et al. Sobre o sexo genético nas pacientes com síndrome de Turner. Revista da Associação Médica Brasileira, São Paulo, v.1, n.2, p.203-206. 1954.
  • FORD, Charles Edmund et al. A sex-chromosome anomaly in a case of gonadal dysgenesis (Turner's syndrome). The Lancet, London, n.1, p.711-713. 1959.
  • GASKELL, George; BAUER, Martin W. The genomic society and its public: introduction. In: Gaskell, George; Bauer, Martin W. (Ed.). Genomics and society: legal, ethical & social dimensions. London: Sterling. p.1-6. 2006.
  • GRINSTEIN, Louise S.; BIERMANN, Carol. A.; ROSE, K. Rose (Ed.). Women in the biological sciences: a biobibliographic sourcebook. Westport: Greenwood Press. 1997.
  • HALL, Judith G.; LOPEZ-RANGEL, Elena. Introduction. In: Albertsson-Wikland, Kerstin; Ranke, Michael (Ed.). Turner syndrome in a life-span perspective Amsterdam: Elsevier. p.3-9. 1995.
  • HAMERTON, John L. et al. Genetic intersexuality in goats. Journal of Reproduction and Fertility, Colchester, n.7, suppl., p.25-51. 1969.
  • HARPER, Peter S. Paul Polani. British Medical Journal, London, v.332, n.7542, p.670. Disponível em: http://www.bmj.com/cgi/content/full/332/7542/670/DC1 Acesso em: 6 nov. 2007. 2006.
  • HARPER, Peter S. Landmarks in medical genetics Oxford: Oxford University Press. 2004.
  • HSU, Tao-Chiuh. Mammalian chromosomes in vitro: the karyotype of man. Hereditas, Landskrona, v.43, p.167-172. 1952.
  • JACOBS, Patricia A.; STRONG, John A. A case of human intersexuality having a possible XXY sex-determining mechanism.In: Boyer IV, Samuel H. (Ed.). Papers on human genetics Englewood Cliffs: Prentice-Hall. p.240-243. 1963.
  • JUNG, Monica de Paula. Síndrome de Turner revisitada: pesquisa bibliográfica e reconstituições narrativas. Dissertação (Mestrado) - Instituto Fernandes Figueira/Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro. 2004.
  • JUST, Walter N. et al. The male pseudohermaphrodite XX polled goat is ZFY and SRY negative. Hereditas, Landskrona, v.120, p.71-75. 1994.
  • KENT-FIRST, Marijo. Charles Edmund Ford Ph.D. FRS, in loving memory of my mentor and friend. Cytogenetics and Cell Genetics, Basel, v.85, n.3-4, p.193-195. 1999.
  • LEJEUNE, Jérôme; GUATIER, M.; TURPIN, R. Études des chromosomes somatiques de neuf enfants mongoliens. Comptes Rendues Hebdomadaires des Seances de L'Academie des Sciences, Paris, v.248, p.602-603. 1959.
  • LYON, Mary F. Sex chromatin and gene action in the mammalian X-chromosome. In: Boyer IV, Samuel H. (Ed.). Papers on human genetics Englewood Cliffs: Prentice-Hall. p.31. 1963.
  • MIRANDA, Evaristo Eduardo. Quem foi o professor Jérôme Lejeune. Disponível em: http://www.portaldafamilia.org/artigos/artigo122.shtml Acesso em: 20 jan. 2004. 2003.
  • NUSSBAUM, Robert L.; MCINNES, Roderick R.; WILLARD, Huntington F. Thompson & Thompson genetics in medicine Philadelphia: Saunders. 2001.
  • PETERSEN, Alan. Introduction. In: Petersen, Alan; Bunton, Robin. The new genetic and the public's health London: Routledge. p.1-34. 2002.
  • POLANI, Paul E.; LESSOF, Maurice H.; BISHOP, Peter Maxwell.F. Colour blindness in ovarian agenesis (gonadal dysplasia). The Lancet, London, v.2, p.118-120. 1956.
  • SCHMIDT, Peter J. et al. Shyness, social anxiety, and impaired self-esteem in Turner syndrome and premature ovarian failure. Scandinavian Journal of Psychology, Stockholm, v.47, n.3, p.219-223. 2006.
  • TESCH, Lynn G.; ROSENFELD, Ron G. Morgagni, Ullrich and Turner: the discovery of gonadal disgenesis. Endocrinologist, Baltimore, v.5, p.327-328. 1995.
  • THERMAN, Eeva; SUSMAN, Millard. Human chromosomes: structure, behavior and effects. New York: New Springler. 1993.
  • TJIO, Jo Hin; LEVAN, Albert. The chromosome number in man. Hereditas, Landskrona, v.42, n.46, p.1-6. 1956.
  • TURNER, Henry. A syndrome of infantilism, congenital webbed neck, and cubitus valgus. Endocrinologist, Baltimore, v.23, p.566-574. 1938.
  • WATSON, James Dewey. The double helix: perspective and prospective at forty years. New York: New York Academy of Science. 1995.
  • WATSON, James Dewey; CRICK, Francis Henry C. The structure of DNA. Cold Spring Harbor Symp. Quantitative Biology, Cold Spring Harbor, v.18, p.123-132. 1953.
  • WILHELM JOHANSEN CENTRE... Wilhelm Johansen Centre for Functional Genome Research. Staff. Disponível em: http://www.wjc.ku.dk/staff/ Acesso em: 12 out. 2003. s.d.
  • WILKINS, Lawson. The diagnosis and treatment of endocrine disorders in childhood and adolescence Springfield: Charles C. Thomas. 1965.
  • WRIGTH, Pearce. Joe Hin Tjio: the man who cracked the chromosome count. The Guardian, London. Obituary. Disponível em: www.tccusa.org-www.eicaa.org Acesso em: 12 out. 2003. 2001.
  • 1
    Cariótipo é a constituição cromossômica de um indivíduo. No caso da síndrome de Turner o cariótipo mais comum apresenta apenas um cromossomo sexual X, em vez do padrão normal XX ou XY.
  • 2
    Estreitamento que diminui a luz da aorta, provocando obstrução do fluxo sanguíneo.
  • 3
    Também denominada corpúsculo de Barr ou cromatina de Barr, a cromatina sexual é a associação de DNA e proteínas que compõe os cromossomos. É vista em células somáticas femininas.
  • 4
    Disgenesia significa qualquer anomalia do desenvolvimento.
  • 5
    Edema dos vasos linfáticos.
  • 6
    Assim denominado porque o pescoço está unido aos ombros por uma extensa porção de pele, lembrando asas abertas de uma ave.
  • 7
    Ptose palpebral é o caimento excessivo da pálpebra superior, cobrindo anormalmente o olho.
  • 8
    Micrognatia significa mandíbula inferior de tamanho pequeno.
  • 9
    Mamilos hipoplásicos são os que apresentam desenvolvimento insuficiente.
  • 10
    A solução hipotônica tem pressão osmótica mais baixa do que as demais.
  • 11
    Denomina-se assim o número de cromossomos de um gameta normal, que contém apenas um membro de cada par de cromossomos.
  • 12
    Todas as citações foram retiradas da coletânea publicada por Samuel H. Boyer IV intitulada
    Papers on human genetics (Boyer IV, 1963), que reproduz os artigos na íntegra. Cabe também assinalar que todas foram livremente traduzidas pelos autores deste artigo.
  • 13
    Células metafásicas são encontradas em determinado estádio da divisão celular. Nelas os cromossomos aparecem alinhados no plano equatorial, o que facilita sua observação.
  • 14
    Até a divulgação do trabalho de Penrose, os aspectos genéticos da fenilcetonúria eram pouco considerados. Ele não só demonstrou a base genética da doença, associando-a à perda de uma enzima específica, como confirmou seu padrão de herança autossômico recessivo.
  • 15
    A síndrome foi assim denominada porque o choro da criança afetada é tão fraco que lembra o miado de um gato.
  • 16
    É o cromossomo característico do par 21. Lejeune viu que no lugar de dois cromossomos havia três, daí a denominação. As trissomias representam um estado no qual há três representantes de um cromossomo, em vez do par habitual. As síndromes de Patau e Edwards também são trissomias: a primeira do cromossomo 13 e a segunda do cromossomo 18.
  • 17
    A síndrome de Klinefelter caracteriza-se pelo cariótipo 47, XXY. Seus portadores são homens altos, magros e inférteis.
  • 18
    É condição caracterizada por trissomia do cromossomo sexual X, podendo estar associada à infertilidade. Os indivíduos afetados podem apresentar fenótipo normal.
  • 19
    Mosaicismo é condição em que existem duas ou mais linhagens celulares derivadas de um único zigoto, diferentes geneticamente por causa de mutação ou não disjunção do zigoto.
  • 20
    Heterozigose significa indivíduo ou genótipo com dois alelos diferentes em determinado lócus, em um par de cromossomos homólogos.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      Ago 2008
    • Recebido
      Ago 2007
    Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: hscience@fiocruz.br