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História da medicina em São Paulo: como o conhecimento dá voltas

The history of medicine in São Paulo: how knowledge is cyclical

LIVROS & REDES

História da medicina em São Paulo: como o conhecimento dá voltas

The history of medicine in São Paulo: how knowledge is cyclical

Márcia Regina Barros da Silva

Pesquisadora do Centro de História e Filosofia das Ciências da Saúde/ Universidade Federal de São Paulo - Campus São Paulo. mbarros.cehfi@epm.br

A objetividade científica emergiu na última metade do século XIX como um anúncio que ainda caracteriza a produção de conhecimento das ciências na contemporaneidade. Mas o que vem a ser essa marca tão essencial de toda atividade que demanda para si o título de científica está, já há alguns anos, sendo colocado em questão.

O estudo de Luiz Antônio Teixeira, Na arena de Esculápio: a Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo (1895-1913), estabelece coerente diálogo com tal debate e nos possibilita situá-lo no terreno dos chamados science studies, que entre diversos representantes têm em Bruno Latour o autor mais traduzido no Brasil.1 1 Ver, entre outros possíveis representantes traduzidos para o português, Isabelle Stengers, 2002, e na produção nacional recente, Henrique Cukerman, 2007.

Seguindo Latour em sua definição dos objetos e métodos dos estudos de ciências, também denominados estudos de laboratório, ou, mais especificamente, o programa por ele nomeado Teoria Ator-Rede, podemos considerar essencial a negação da separação entre sociedade e natureza. Para ele, uma crítica que pretenda apenas 'desconstruir' um dado fenômeno, seja ele científico, político ou econômico, ou qualquer das categorias usualmente utilizadas pela sociologia, não se sustentaria apenas pelo viés do contexto social (Latour, 2006).2 2 A mais recente publicação de Latour foi traduzida do inglês e teve como título justamente a discussão do seu programa de estudos: Reassembling the social: an introduction to actor-network theory (Latour, 2005). Para os autores vinculados a tal programa, sem o esforço de observar a argamassa social dos conteúdos 'específicos' daquilo que existe, só em parte se consegue explicar as situações e os objetos que nos cercam. Seria necessário, para a consecução daquele programa de construção de entendimentos, pensar o contexto social a partir da noção de coletividade e suas assembleias, ou seja, das entidades 'sociais' e de tudo mais que pode ser manipulável ou manufaturável como agrupamentos em movimento.

É nesse sentido coletivo e dinâmico que o trabalho de Luiz Teixeira se assemelha àquele projeto em que os conteúdos da atividade de ciência não podem ser deixados de lado, sob pena de não ser possível explicar seus objetivos, pois "os fatos científicos são construídos, mas não podem ser reduzidos ao social, porque ele está povoado por objetos mobilizados para construí-lo. O agente desta dupla construção provém de um conjunto de práticas que a noção de desconstrução capta da pior forma possível" (Latour, 1994, p.12). Para Latour, uma leitura que ao mesmo tempo considere fatos e artefatos, bem como suas várias noções e corporificações, é essencial para entendimento mais complexo e completo das realizações das ciências.

Na arena de Esculápio, recentemente publicado pela Editora da Unesp, demonstra essencial ligação com os entendimentos propostos por trabalhos como os já apontados, que têm como questão de fundo a análise das atividades e práticas das ciências em função das redes que as constituem. O trabalho de Teixeira foi realizado inicialmente como tese de doutorado em história social na Universidade de São Paulo. A escolha por estudar a criação e os anos iniciais da primeira efetiva sociedade médica paulista demonstra a opção por um entendimento ampliado da historiografia dedicada às atividades médico-sanitárias desenvolvidas no mesmo período.

O livro pode ser dividido em duas grandes partes. Numa, os quatro primeiros capítulos são estruturados para apresentar a criação, a estrutura organizativa e as principais atividades da sociedade paulista. Discute também os significados que a ideia de associativismo científico desempenhou na história da ciência mundial e seu sentido para a sociedade brasileira. Há aí especial ênfase nas origens das sociedades médicas como organizações profissionais que tanto tentavam padronizar o exercício da medicina, quanto reivindicavam o monopólio dos saberes sobre a saúde das populações. Ainda nessa primeira aproximação são apresentadas questões sociais, econômicas e políticas que demarcaram a expansão de São Paulo no cenário brasileiro, partindo do momento da proclamação da República e da expansão de instituições médico-científicas. Nesse ponto o autor caracteriza o substrato de suas preocupações ao indicar as transformações que envolviam o estabelecimento da microbiologia como 'a' forma de produção de conhecimento sobre os processos saúde/doença no Brasil, especificamente no caso paulista, a partir de meados do século XIX.

Os quatro capítulos seguintes são dedicados a traçar os percursos empreendidos pelos representantes da medicina realizada em São Paulo, envolvidos na organização da Sociedade. Ao ver de Teixeira, tais associados reuniram-se em torno da consecução de um projeto, aquele dirigido pela vontade de definição dos parâmetros de profissionalização médica, em meio a novos objetos configurados pela microbiologia e pelas doenças epidêmicas.

No terceiro capítulo o autor estabelece o que seria a trajetória da implantação de um modelo de organização e analisa esse processo em três períodos: o inicial, de entusiasmo com a fundação da Sociedade; um momento de declínio; e um momento posterior, de renovação e ampliação das atividades do grupo.

No primeiro período, entre 1895 e 1899, ao número grande de associados correspondia um grande número de sessões, com predomínio de trabalhos relacionados às epidemias correntes. Aqui o autor discorda da historiografia que avalia a Sociedade como um 'braço acadêmico' da saúde pública paulista, especialmente do Serviço Sanitário estadual. Para ele, a produção realizada pelos membros daquela associação tinha caráter ambíguo, por vezes aceitando a perspectiva de ingerência do Estado e, por outras, propondo distanciamento das iniciativas oficiais sobre as questões sanitárias mais candentes. Tal dubiedade demonstraria certa tensão na identificação dos médicos pertencentes à Sociedade com o Estado, caracterizado aqui pelo Serviço Sanitário.

É no segundo momento, entre 1900 e 1909, que há um decréscimo no número de sócios e na apresentação de trabalhos. Embora essa análise se deva prioritariamente a uma avaliação numérica, há, segundo o próprio autor, uma efetiva "formalização do seu (da Sociedade) processo de institucionalização" (p. 85), além de expansão nos temas abordados pelos sócios em suas apresentações. Tais alterações talvez merecessem ser analisadas de modo mais detido, no que concerne às implicações das atividades paralelas dos associados em outras instituições. Foi nesse período que um aumento na criação e manutenção de espaços médicos - como o que se deu, por exemplo, com a criação de novas revistas especializadas - e no número de atendimentos médicos na capital, principalmente nos Hospitais da Santa Casa de Misericórdia (Silva, 2007), poderia ser indício de competição entre os diferentes estabelecimentos públicos e privados existentes na capital paulista.

O terceiro momento, apontado pelo autor para caracterizar a trajetória da Sociedade de Medicina, vai de 1910 até 1913, período repleto de sintomas de renovação e ampliação das atividades da instituição. O fim da obrigatoriedade de apresentação de trabalhos pelos novos sócios aumentou muito seu número, pois facilitava o ingresso nas salas daquela academia. O declínio das doenças epidêmicas foi fator que, conforme o autor, explicaria a substituição dos trabalhos sobre saúde pública por temas de variado interesse médico. Com isso Teixeira vê 'o ponto de chegada' de seu estudo como um sintoma da provável consolidação da Sociedade, ao mesmo tempo que entrava também em funcionamento a primeira escola médica paulista, a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, significativa para o cenário médico nacional. Teixeira afirma que esse seria justamente o fim de um período e início de outro, para os debates acontecidos na saúde paulista. A concordar com ele, podemos perguntar então por que o autor finaliza sua análise justamente em 1913. Em suas próprias palavras, foi a partir daquele momento que se iniciou fase de maior crescimento na produção da Sociedade, o que instiga a curiosidade do leitor sobre os possíveis desdobramentos para a história da Sociedade.

Grosso modo, esse é o horizonte de considerações que serve de sustentação para a exposição realizada na segunda parte do livro. Nela, correspondendo aos capítulos quatro a oito, o autor mergulha mais profundamente no conteúdo dos trabalhos apresentados na Sociedade, identificados a partir de grandes blocos temáticos: a questão das febres paulistas; a propagação da febre amarela; o abastecimento de águas; e a identificação do alastrim com a varíola. O objetivo dessa parte é discutir a inserção dos membros da Sociedade em disputadas controvérsias em torno de proposições de grande envergadura para a administração da cidade. Do mesmo modo, esses capítulos pretendem abordar a produção de conhecimento nos primeiros momentos da vida republicana.

O único questionamento diz respeito à ausência de argumentação teórica sobre a metodologia utilizada na realização da pesquisa, o que poderia ser esclarecedor para os leitores. Pressente-se, desde o início do texto, a utilização de determinado arsenal teórico, que no entanto não é abordado explicitamente. Essa falta é evidenciada nas referências bibliográficas, citadas de passagem no texto e possíveis de localizar em notas e em indicações esparsas, mas não discutidas em apresentação sistemática.

Embora não seja determinante para o entendimento da proposta de análise apresentada por Teixeira, a ausência de discussão clara sobre seus pressupostos teórico-metodológicos e, consequentemente, a falta de discussão engajada com trabalhos que tomam para si esse debate diminuem o diálogo com a historiografia. Um exemplo seria o recente livro publicado de Ilana Lowy (2006), Vírus, mosquitos e modernidade, em que a autora parte do mesmo pressuposto metodológico aparente de Teixeira, ou seja, estudar a circulação e consequências sociais das entidades produzidas pela ciência, por meio da análise da febre amarela. Contudo, apesar de ter como objetivo discutir o caso brasileiro, Lowy não consegue inserir em seu estudo os dados das transformações ocorridas em São Paulo, falta que Teixeira poderia discutir.

O processo histórico de constituição de uma sociedade profissional que anuncia relevante entendimento dos dados, fatos e acontecimentos ocorridos no estado paulista é muito bem avaliado por Luiz Antonio Teixeira. Os debates levados a cabo nas reuniões da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, acompanhados pelo autor, deixam entrever a enorme gama de cruzamentos sociopolíticos presentes nas definições científicas que, apoiadas por grupos com interesses e entendimentos diversos e sustentados por novos e velhos atores, povoavam os espaços da saúde paulista. A microbiologia, o laboratório experimental e de análises, além dos atores híbridos dessa história - micróbios, mosquitos e doenças -, todos clamavam por reconhecimento frente a uma população às voltas com novas diretivas políticas, em combate com crescentes e imperativos urbanizadores e suas demandas de ordem e eficiência, com expectativas gerais de saúde, modernização e progresso e para quem a ciência médica seria uma boa aliada.

Teixeira apresenta grande painel das ações de saúde, da produção de conhecimento e da profissionalização da medicina realizada em um lugar específico, o estado de São Paulo, a partir do qual aponta para entendimento histórico mais amplo e criativo dos processos de saúde/doença que poderiam ocorrer, e de fato ocorreram, em diferentes lugares do país. Associar a isso a cabal demonstração de que a leitura histórica deve estar apoiada em questões faz recomendar a leitura desse texto àqueles interessados em compreender os caminhos e a constituição de nossas instituições de saúde modernas.

NOTAS

  • CUKIERMAN, Henrique. Yes, nós temos Pasteur: Manguinhos, Oswaldo Cruz e a história da ciência no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2007.
  • LATOUR, Bruno. Changer de société: refaire de la sociologie. Paris: Éditions La Découverte. 2006.
  • LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network theory. Oxford: Oxford University Press, 2005.
  • LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34. 1994.
  • LOWY, Ilana. Vírus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre ciência e política. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006.
  • SILVA, Márcia Regina Barros da. O processo de urbanização paulista: a medicina e o crescimento da cidade moderna. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.27, n.53, p.243-266. 2007.
  • STENGERS, Isabelle. A invenção das ciências modernas Rio de Janeiro: Editora 34. 2002.
  • 1
    Ver, entre outros possíveis representantes traduzidos para o português, Isabelle Stengers, 2002, e na produção nacional recente, Henrique Cukerman, 2007.
  • 2
    A mais recente publicação de Latour foi traduzida do inglês e teve como título justamente a discussão do seu programa de estudos:
    Reassembling the social: an introduction to actor-network theory (Latour, 2005).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
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