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Carta ao editor

CARTA AO EDITOR

Campos dos Goytacazes, 4 de maio de 2009.

Tenho em mãos uma carta da professora M.H.M. Ferraz, enviada ao editor dessa revista, contendo objeções ao tratamento da literatura que abordei no artigo publicado no último número de História, Ciências, Saúde - Manguinhos. São apontados especificamente três problemas, dos quais gostaria de tratar sequencialmente para, em dois casos, refutar as imputações e, no terceiro, admitir um erro de citação.

A primeira objeção recai sobre a leitura que fiz de um trabalho de R. Wegner (Livros do Arco do Cego no Brasil colonial, História, Ciência e Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.11, supl.1, 2004), a respeito da disseminação das ideias de Veloso no Brasil. Para defender minha posição, transcrevo abaixo duas passagens de seu artigo: "Para avaliar o empreendimento e compreender um pouco mais a circulação de ideias iluministas no Brasil é preciso, contudo, seguir os livros após terem saído do prelo. Proponho que nos debrucemos em alguns lotes de livros que percorreram um longo caminho, saindo de Lisboa para a capitania de São Paulo. Devemos admitir que este é um teste demasiado exigente para com a Casa Literária [do Arco do Cego], uma vez que a capitania, em fins do século XVIII, não figurava entre as mais opulentas da América portuguesa. Basta dizer que possuía em torno de 160 mil habitantes, concentrando assim 7,5% da população da colônia" (p.136).

Mais adiante, Wegner explica: "Em primeiro lugar, permanecendo na colônia portuguesa [Brasil], deve-se dizer que há indícios de que em outras capitanias teria havido uma disseminação mais ampla dos livros do Arco do Cego. Há notícias de que, em 1799, foram vendidos 110 exemplares das Memórias sobre o açúcar entre agricultores da capitania de Pernambuco e 125 na Bahia. Além disso, há outro dado interessante. Embora não houvesse expectativa de que a venda de livros sustentasse o empreendimento do Arco do Cego, é notável o fato de que, no cômputo geral dos seus quase três anos de existência, a venda para o Brasil tenha gerado o dobro de receitas que a venda em Portugal - onde os livros podiam ser encontrados em três livrarias de Lisboa, uma em Coimbra e outra no Porto" (p.138).

Não tive dificuldades em depreender, dessas passagens, que houve disseminação dos livros de Veloso no Brasil, ainda que o autor tenha sido cauteloso ao analisar separadamente as três capitanias citadas, reconhecendo que a menos expressiva na ocasião era justamente São Paulo, onde vivia somente 7,5% da população total da Colônia. Portanto, levando em conta que o Brasil não se resume a São Paulo, sobretudo no final do século XVIII, mantenho intocada a leitura que fiz do trabalho de Wegner.

Em seguida, na carta enviada ao editor, encontro um extenso parágrafo acerca da repisada história sobre os percalços enfrentados por Veloso na edição de sua obra intitulada Flora fluminensis. Sintetizo a argumentação da missivista na seguinte forma: uma vez que Veloso falhou em publicar a Flora fluminensis, eu não poderia afirmar que houve "atividades científicas no país durante todo o período colonial" (p.151).

A historiografia sobre Veloso é vasta, longa, de um século e meio e, por vezes, controversa. Entretanto, para essa defesa basta-me recorrer a Laurence Hallewell (Books in Brazil: a history of the publishing trade, Metuchen, The Scarecrow Press, 1982), que menciona a publicação de "some seventy titles" produzidos na Casa Literária do Arco do Cego, em seu clássico estudo sobre a história do livro no Brasil, em que descreve Veloso como "a mineiro religious who in 1790 went to Lisbon, where he had associated with other Brazilians in a project to publish such scientific works as might assist in the colony's development" (p.27).

De acordo com a alegação de que tento me defender, "sonegar" a conhecidíssima informação de que o frade mineiro não conseguiu publicar um certo livro (a Flora fluminensis) enfraqueceria a hipótese que advogo sobre a política de disseminação de informações implementada pelo governo português, apesar de Veloso ter efetivamente levado a termo a publicação de sete dezenas de livros. Não vejo como falhar em uma única publicação, apesar de ter logrado sucesso em setenta outras, pode invalidar por completo o trabalho a que se dedicou Veloso em Lisboa.

Finalmente, afirmo, no meu artigo (p.146), que Portugal "passou a estimular e promover nas colônias um aumento na quantidade e qualidade dos produtos exportáveis, através de iniciativas como a impressão e circulação de um vasto número de 'memórias' que a Coroa começou a publicar, principalmente a partir de 1770, com o intuito de fomentar a produção de matérias-primas que pudessem auxiliar no processo de industrialização de Portugal e promover um renascimento da agricultura". Neste último ponto, os protestos se sustentam. Trata-se de um erro que cometi, ao atribuir incorretamente à professora M.H.M. Ferraz ideias que são, na verdade, de Maria Margaret Lopes, encontradas no capítulo 1 do livro intitulado O Brasil descobre a pesquisa científica: os museus e as ciências naturais no século XIX (São Paulo, Hucitec, 1997, p.25-42). Peço desculpas aos leitores dessa revista e, principalmente, às duas autoras, por ter atribuído a uma as ideias da outra. De todo modo, independentemente de quem seja a autoria, concordo com as ideias do parágrafo que acabo de transcrever e, com exceção da referência equivocada, mantenho o meu artigo, incluindo a defesa de todas as hipóteses ali contidas.

Além de desculpas, devo também agradecer à professora M.H.M. Ferraz pelo vigor e empenho que aparentemente devotou ao escrutínio desse artigo, escrito depois de escassos três anos de estudos na área. Devo fazê-lo porque, se os argumentos apresentados em sua carta para contestar o meu artigo forem os maiores problemas que a respeitada historiadora conseguiu encontrar ali, posso ficar confiante quanto à qualidade do trabalho que realizei.

Ainda lamentando o erro de citação que justifica as graves reações externadas em sua carta, espero ler em breve as opiniões da missivista sobre o assunto em um artigo inteiro - se o convite feito pelo editor for aceito -, a aparecer nessa revista, contendo argumentos consistentes e menos frágeis do que os que foram aqui facilmente replicados. Terei a chance então de testemunhar, junto com os leitores História, Ciências, Saúde - Manguinhos, a justeza de suas concepções da história em detrimento daquelas que tentei defender.

Fernando J. Luna

Pesquisador e professor do Curso de Pós-Graduação em Ciências Naturais/Universidade Estadual do Norte Fluminense

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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