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Sociologia das estatísticas: possibilidades de um novo campo de investigação

Resumos

O artigo apresenta possibilidades de investigação descortinadas pela sociologia das estatísticas. Na dimensão da demanda, ressalta a potência para a fundamentação das tecnologias de governo envolvidas dos Estados nacionais (domínio político). Na vertente da utilização, coloca em evidência seu papel na formulação das categorias de percepção da realidade (domínio cognitivo). Na esfera da produção (domínio institucional), enfatiza a organização da atividade em diferentes temporalidades. São analisadas as tensões entre os avanços técnicos/normativos recomendados pelas associações científicas e as exigências pragmáticas da administração pública. Quer-se contribuir com breve reflexão sobre a morfologia e a cultura científica das instituições estatísticas.

instituições estatísticas; política de informação; tecnologias políticas; categorias de classificação; pesquisa histórica das estatísticas


This article presents the possibilities for investigation unveiled by the sociology of statistics. Of particular importance in the area of demand is the power to provide the fundamentals used in government technologies in nation states (political domain). In terms of the use of statistics, the role in forming the categories of perceptions of reality (cognitive domain) is highlighted. Within the scope of production (institutional domain), it is important to emphasize the organization of the activity into different temporal categories. The tensions between the technical/normative advances recommended by scientific associations and the pragmatic requirements of public administration are also examined. This article seeks to provide a brief reflection on the morphology of statistical institutions and their scientific culture.

statistical institutions; information policy; political technologies; classification categories; historical research into statistics


ANÁLISE

Sociologia das estatísticas: possibilidades de um novo campo de investigação

Alexandre de Paiva Rio Camargo

Professor do Departamento de História/Universidade Estácio de Sá. Rua Antonio Basílio, 123/701, 20511-190 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. alexandre.camargo.2009@gmail.com

RESUMO

O artigo apresenta possibilidades de investigação descortinadas pela sociologia das estatísticas. Na dimensão da demanda, ressalta a potência para a fundamentação das tecnologias de governo envolvidas dos Estados nacionais (domínio político). Na vertente da utilização, coloca em evidência seu papel na formulação das categorias de percepção da realidade (domínio cognitivo). Na esfera da produção (domínio institucional), enfatiza a organização da atividade em diferentes temporalidades. São analisadas as tensões entre os avanços técnicos/normativos recomendados pelas associações científicas e as exigências pragmáticas da administração pública. Quer-se contribuir com breve reflexão sobre a morfologia e a cultura científica das instituições estatísticas.

Palavras-chave: instituições estatísticas; política de informação; tecnologias políticas; categorias de classificação; pesquisa histórica das estatísticas.

A sociologia das estatísticas, uma abordagem bastante recente no meio acadêmico, tem como horizonte de investigação a produção, disseminação e utilização das estatísticas públicas por parte dos mais amplos setores da sociedade e do Estado. A expressão nem sempre é de uso corrente entre os estudiosos, que muitas vezes preferem utilizar apenas o termo 'estatísticas públicas'. De todo modo, também as pesquisas se inspiram nesse princípio e nessa abordagem. Tomando as estatísticas como objeto de estudo, e não como meio de análise (o mais comum), esses estudos buscam, em primeiro lugar, reconhecer a pluralidade de papéis assumida pelas estatísticas públicas. Pluralidade que se estende desde as demandas políticas de planejamento e coordenação, que fundam e ajustam a oferta do programa estatístico, até a irredutível autonomia processual e conceitual, presente nos métodos e técnicas de elaboração das estatísticas, bem como nos valores que integram uma cultura científica partilhada por estatísticos, economistas, demógrafos, cartógrafos, educadores, sociólogos e antropólogos - profissionais envolvidos na produção e análise das estatísticas. Essa complexa relação entre os polos pragmático e científico foi bem apreendida por Simon Schwartzman (2004), renomado sociólogo e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE):

As informações estatísticas são de especial interesse para o sociólogo da ciência por serem produzidas por instituições que são, simultaneamente, centros de pesquisa - envolvendo, portanto, valores científicos e tecnológicos, além de perspectivas e abordagens típicas dos seus campos de investigação - e instituições públicas ou oficiais, sujeitas às regras, valores e restrições do serviço público. Publicados na imprensa, os seus produtos - números relativos à população, renda, produto nacional, urbanização, emprego, natalidade, pobreza e muitos outros - são utilizados tanto para apoiar políticas governamentais quanto para avaliar os seus resultados, e podem criar ou limitar direitos e benefícios legais e financeiros para grupos, instituições e pessoas específicas. Essa pluralidade de papéis, contextos e perspectivas associadas às estatísticas públicas está na própria origem desse campo (p.69).

Números que são, sem a eles se reduzir, as estatísticas mediatizam a formulação das políticas públicas. Mas também subsidiam as hipóteses das pesquisas acadêmicas e moldam nossas categorias de percepção da realidade, pois podemos nos ver no outro, graças às equivalências comparativas criadas pelas classificações estatísticas. Esse é o sentido da afirmação de Nelson de Castro Senra (2005, p.16): "o processo de elaboração das estatísticas desconstrói as individualidades integrantes de coletividades previamente idealizadas, para, ao fim e ao cabo, reconstruí-las como individualizações: o um no outro". Imiscuindo-se no cotidiano, estatísticas referentes a emprego, inflação, renda, fertilidade, entre outras, oferecem suporte às descrições de situações econômicas, à denúncia de injustiças sociais e à justificação de ações políticas. Tendemos a determinar as condições de segurança das rodovias de um país a partir do número de acidentes nelas ocorrido, especialmente em feriados.

Cada vez mais, as estatísticas incidem sobre as avaliações subjetivas e as escolhas pessoais. Quantas pessoas já não devem ter hesitado em ir a variados eventos sociais, considerando a reportagem do último noticiário, vulgarizando estatísticas de criminalidade, mensurações da violência urbana e da segurança pública? Mais do que nunca, as estatísticas pesam na avaliação dos riscos implicados nas mais diferentes situações. O exemplo de Anthony Giddens (1991, p.49) deve bastar: "qualquer pessoa de um país ocidental que decide se casar hoje em dia sabe que a taxa de divórcios é alta ... . O conhecimento da alta taxa de divórcios pode afetar a própria decisão de se casar, bem como decisões sobre considerações relacionadas - o regime das propriedades, etc.".

Para Bruno Latour, o poder das estatísticas reside em serem elas tecnologia de governo, trazendo pessoas, objetos e situações às mesas daqueles a quem cabe tomar as decisões políticas, na forma de tabelas, gráficos e cartogramas. Assim fazendo, contribuem distintamente para fazer conhecidas as realidades distantes e/ou ausentes, tornando-as pensáveis e, por isso, potencialmente governáveis (Senra, 2005, p.15). A imposição progressiva das matrizes e quadros estatísticos abriu a possibilidade de: (a) criar espaços de equivalência, a partir dos quais se garante a comparação entre fenômenos e unidades de análise de diversas naturezas1 1 Vale ressaltar que as correlações possíveis entre os fenômenos e as unidades de análise previstas no espaço dos quadros estatísticos de diferentes temporalidades fundamentam uma investigação central sobre as representações sociais, as concepções políticas e os conceitos científicos, implícita ou explicitamente empregados na produção e utilização das informações estatísticas. Nessa direção, alerta Hernán Otero (2006, p.47): "é preciso ler as matrizes e as tabelas estatísticas como textos, mediante sua tradução em proposições e sistemas de hipótese, expressáveis em linguagem verbal. Assim, por exemplo, dois quadros sobre níveis de mortalidade tabulados segundo a estação do ano ou segundo os grupos sócio-ocupacionais dos falecidos remetem a duas hipóteses científicas e a dois universos teóricos radicalmente diferentes: a mortalidade como fato climático ou como fato social". Essa perspectiva de análise eleva-se em importância, ao revelar os componentes implícitos da ideologia estatística, entendida como "conjunto de critérios pseudocientíficos, políticos e culturais que fundamentam a seleção e a definição das variáveis, os valores e as unidades de análise; determinam o tipo de instrumento estatístico a ser privilegiado (formas de construção dos quadros, indicadores e medidas); orientam a interpretação dos resultados e legitimam seus usos, através de procedimentos discursivos" (p.50). ; (b) resumir a informação com base em indicadores sintéticos (médias, medidas de posição e números índices); e (c) assentar as bases de uma tecnologia de distância que busca analisar a realidade social a partir de um processo contínuo de objetivação dos discursos sociais em jogo (Otero, 2006, p.46).

Torna-se possível, portanto, pensar a construção e a atuação dos Estados nacionais em termos do saber estatístico, entendido este não em termos epistemológicos, e sim como uma vasta rede abrangendo pessoas (cientistas, políticos e intelectuais), instituições, instrumentos e equipamentos. A análise dessa rede, insistimos, deve sempre considerar a especificidade da atividade estatística, premida pelo domínio do pragmatismo e o da tecnociência.

De fato, a posição de fronteira entre o âmbito político-administrativo do Estado e o campo científico talvez seja a característica que mais singulariza as estatísticas públicas. Nesse sentido, elas testemunham tanto o estado em que se encontram as disciplinas sociais de um país (seus temas, conceitos, objetos e abordagens), como as opções políticas estatais, graças a uma lógica que resulta determinante pela atribuição dos meios materiais (os censos são a operação mais cara que pode realizar um país em tempos de paz), pela definição de prioridades e pela resolução de conflitos institucionais. Em contrapartida, o campo científico oferece o substrato teórico sobre os modos de mensuração e sobre as representações formalizadas do mundo social. É precisamente em virtude dessa autonomia relativa do aparelho de Estado que a informação estatística, uma vez produzida, escapa aos objetivos de seu criador e permite sua reutilização por outros usuários, que podem até reinseri-la em redes de usos muito distantes do universo teórico em que foi concebida (Otero, 2006, p.25).

Nesses termos, o estudo das fontes, procedimentos e usos, tanto intelectuais como políticos, das operações de produção estatística é o fim último a que aspira a sociologia das estatísticas. Esse cuidado analítico pode ser observado naquele que é considerado um dos estudos pioneiros da abordagem. Em The sociology of official statistics, que, salvo engano, nomeia o campo, Paul Starr (1983, p.8) já distinguia duas organizações estruturais do sistema estatístico: a "organização social", que, para o autor, consiste na relação social e econômica entre os agentes envolvidos na análise, distribuição e utilização das informações estatísticas (entrevistados, agências de Estado, empresas privadas, associações profissionais, organismos internacionais); e a "organização cognitiva", que consiste no processo de estruturação da informação, ou seja, de construção intelectual dos pressupostos, regras, categorias de classificação e métodos de mensuração presentes na produção da informação pelas instituições estatísticas.

No que diz respeito à organização social, o recurso à pesquisa histórica permite revelar as fundações sociais do processo de mensuração. Há a questão da montagem da infraestrutura de contagem da população (inovação institucional), relacionada à criação dos meios materiais de dominação do Estado nacional, incluindo aí as alianças estabelecidas entre as elites e os pactos territoriais que promovem a extensão física do poder central. Quanto à organização cognitiva, a pesquisa em história pode investigar os processos decisórios sobre a emergência ou abandono de séries estatísticas2 2 Nessa frente, a investigação sobre a construção e a evolução das categorias de classificação apresenta especial interesse. Através da análise de minutas, relatórios e pareceres de comentaristas e equipes de recenseamento, é possível delimitar a extensão e o significado dessas categorias. As demográficas, em geral, são polêmicas e descontínuas, quanto ao âmbito de investigação adotado nas pesquisas estatísticas: ocupação, renda, migração, fecundidade, instrução, trabalho. O caso das categorias sociais, como religião e cor (cor ou raça, segundo o censo de 2000) é ainda mais grave. As opções deixadas para que os recenseados se incluíssem e se classificassem raras vezes foram as mesmas no tocante a esses quesitos, o que mostra que a pesquisa das categorias está condicionada aos discursos sociais dominantes e à imagem do país que se quer produzir. A oscilação na investigação das diversas categorias estatísticas e a pluralidade dos significados implicados nos contextos históricos de sua produção representam um grande desafio à análise social, a exigir detida atenção dos historiadores. No que diz respeito à classificação racial, teço em outro lugar uma abordagem preliminar, comparando a aparição do quesito nos censos de 1872, 1890, 1920, 1940 e 1950 (Camargo, no prelo). , a adoção desta ou daquela plataforma tecnológica, deste ou daquele corpus de conceito, o que configura um estudo histórico sobre a política de informação.

Tomando de empréstimo as palavras de Alain Desrosières (1996, p.6; grifos do original),

a evolução conjunta do papel do Estado e de suas tecnologias cognitivas mais materiais proporciona um fio condutor para ler a história da estatística. Ali encontramos, por exemplo, uma distinção crucial entre as atividades do Estado que visam a tratar casos singulares (tribunais, por exemplo) e as que organizam políticas gerais, válidas para toda a coletividade.

Por tudo o que foi dito até agora, sobrevém a intimidade das estatísticas e dos estaticistas, que pensam e formulam as estatísticas, com os Estados nacionais e com as ciências. É dessa intimidade que estaremos tratando doravante.3 3 Cabe ressaltar que vários autores de prestígio se dedicaram a refletir sobre as relações entre o saber estatístico e a construção da ordem social. Entre muitos nomes, vale destacar os de Michel Foucault, Bruno Latour, Theodore Porter, Ian Hacking, Alain Desrosières, Laurent Thévenot, Nikolas Rose, Peter Miller, Hernán Otero, Jean-Pierre Beaud. No Brasil, Simon Schwartzman e Nelson Senra teceram considerações valiosas, tornando-se referências obrigatórias. Tomados em conjunto, seus estudos prefiguram horizontes e ferramentas para a análise das estatísticas públicas, que, todavia, ainda carece de melhor formalização em um campo de investigação, sobretudo no Brasil.

Estatísticas e tecnologias políticas

Desde a formação dos primeiros grandes Estados da Antiguidade, as estatísticas foram desejadas. Os censos desde cedo se mostraram valiosos instrumentos da administração, auxiliando o Estado no conhecimento de seu território e de sua população. Aos olhos de hoje, recursos técnicos como médias e amostragens podem nos parecer excessivamente simples, familiarizados que somos com conceitos complexos de mensuração. A conscrição militar, a arregimentação de guerreiros, se revelava a função mais imediata dos censos e, por certo, não terá sido de fácil realização. Especialmente quando pensamos em sociedades como a grega e a romana, para as quais a guerra era um fenômeno endêmico, e a mobilização social exigida pelo 'fazer a guerra' ocupava boa parte da vida produtiva de seus cidadãos.

Seria preciso que os monopólios estatais de ordem militar e tributária avançassem, na aurora da Idade Moderna, para que os levantamentos populacionais crescessem em importância na estrutura administrativa. Sobreviria uma função pedagógica para as estatísticas, através das grandes descrições sobre o território e os súditos, destinadas a educar e orientar o soberano absoluto. Entre os séculos XVI e XVIII, as estatísticas assumiram o papel de 'espelho do príncipe', mostrando-lhe a grandeza, na forma de seu reino - a extensão metafórica de seu corpo (Desrosières, 1998, p.26). Aos quadros descritivos, somavam-se informações quantificadas e periódicas, reservadas aos administradores. Afinal, as estatísticas eram a base do controle fiscal das políticas mercantilistas. A riqueza do mundo, acreditava-se, era limitada, e expressava-se em balanças comerciais favoráveis. As atividades econômicas e financeiras deveriam submeter-se in totum ao Estado, almejando-se o crescente aumento de seu poderio, no domínio da figura do rei. Somente em termos secundários, visava-se à melhoria do nível de vida dos súditos, sobre os quais o monarca tinha direito de vida e de morte. Para um mundo cuja extensão se alargava com a formação de impérios coloniais, era essencial fazer crescer a arrecadação, criar e aplicar tributos. Mais que tudo, os números referentes aos súditos expressavam a potência e a riqueza de um Estado nacional, prestigiando seu soberano, projetando-o na concorrência com as monarquias rivais.

Por tudo isso, não se parou nos registros censitários, avançando-se na confecção e utilização inovadora de vários outros, entre os quais os registros alfandegários sobre importações e exportações, usados em larga medida para tributar. A eles se juntariam os registros de nascimento, casamento e falecimento, separando-os dos registros religiosos. Munidos das listas civis, os Estados passavam à afirmação da condição civil, significando que somente a eles caberia enunciar o estado das pessoas, independentemente da religião adotada (Senra, 2005, p.59).

É inegável a relação entre a centralização administrativa do Estado nacional e o aumento do desejo por estatísticas. Entretanto, para um Estado patrimonialista, em que bens e pessoas são administrados de modo privado, como dependentes de um senhor soberano, as estatísticas seriam vistas como prerrogativas do monarca e, como tal, segredo de Estado. Não informavam uma sociedade civil distinta do Estado, muito menos uma opinião pública autônoma. Nesse quadro administrativo, supunha-se que as estatísticas revelavam não apenas as potências, mas também as fraquezas dos Estados. Externamente, tanto melhor se fossem ocultadas dos inimigos, tornadas confidenciais. No plano interno, as estatísticas permaneceriam instrumento material do poder e da vigilância do Estado. Situavam-se na dimensão da relação coercitiva entre o soberano e seus súditos. Bem diferente, portanto, do sentido contemporâneo das estatísticas, marcado pelo ambiente de cooperação entre os cidadãos e seus representantes, pelo princípio de credibilidade na realização dos inquéritos censitários, promovido pela política de publicidade das informações e de sigilo dos informantes.

Localizar as origens históricas dessa mudança tão profunda implica perquirir o desenvolvimento de uma 'razão estatística', no rastro de uma 'razão da modernidade'. Entendemos esta última como o advento de uma aguda consciência histórica, em que o homem se reconhece como exterioridade em relação ao domínio da natureza, o que significa a perda da hegemonia das ideologias metafísicas e a transformação dos condicionamentos espaço-temporais em uma espécie de página em branco. No dizer de Michel de Certeau (1996, p.225), "efetua-se um corte no cosmos tradicional, onde o sujeito era possuído pelas vozes do mundo. Coloca-se uma superfície autônoma sob o olhar do sujeito que assim dá a si mesmo o campo de um fazer próprio", nele circunscrevendo o seu espaço de produção, próprio e distinto, em que executa sua vontade e ação. O autor prossegue, afirmando que "a própria revolução, essa idéia 'moderna', representa o projeto escriturístico no nível de uma sociedade inteira que tem a ambição de se constituir em página em branco com relação ao passado, de se escrever a si mesma, como sistema próprio, e de refazer a história pelo modelo daquilo que fabrica (será o 'progresso')" (p.226-227; grifos do original).

De fato, a experiência da revolução política, como a francesa, parece ter redimensionado inteiramente a atitude da parcela ocidental da humanidade. A ruptura da modernidade com o 'cosmos tradicional' não conheceu precedentes. Em defesa dessa ideia, vale lembrar o historiador Ciro Flamarion Cardoso (citado em Moraes, Rego, 2002, p.232):

um universo estável, recente (com uns 6 mil anos de existência), onde uma humanidade considerada como habitante do centro desse universo, criada separadamente por Deus e posta à frente dos outros seres vivos do planeta, se organizaria de forma também imutável, vem cedendo lugar, desde o século XVII, a um universo diferente, bem como a uma percepção diversa do humano. As revoluções sociais e políticas contemporâneas - a partir da Francesa de 1789, das de 1830 e de 1848, com suas trajetórias muito variáveis segundo os casos - demonstraram, quando vitoriosas, que as sociedades humanas são mutáveis.

O embrião dessa rationale talvez já estivesse contido naquilo que, desde o século XVII, se convencionou chamar de 'razão de Estado'. Michel Foucault (2006) foi um dos primeiros a relacionar a evocação dessa razão com a reinvenção da noção de governo, a partir da percepção da exterioridade do fenômeno político: "a doutrina da razão de Estado tentou definir em que os princípios e métodos do governo estatal diferiam, por exemplo, da maneira como Deus governava o mundo, o pai, a sua família, ou um superior, a sua comunidade" (p.373). Por essa época, surge uma racionalidade própria sobre a arte de governar os Estados, apartada da esfera da natureza, do respeito à ordem geral do mundo, da tradição cristã e judiciária, que pretendia que o governo fosse profundamente justo. Os filósofos contratualistas, como Thomas Hobbes e John Locke, que buscavam as origens eticopolíticas do Estado na noção de contrato social, podem ser considerados os precursores dessa doutrina. Despersonalizavam, assim, o exercício do poder. Diferentemente de Maquiavel, que se preocupou em definir o que mantém ou reforça o laço entre príncipe e Estado, não com a existência e a própria natureza deste último. Maquiavel ainda se ocupava do exercício do poder do soberano sobre seu território; não via nos movimentos da população os inesgotáveis recursos de produção da riqueza.

Nesses termos, a necessidade de aumentar a potência do Estado e de conhecer sua força, resistindo contra as investidas dos demais, cria uma realidade normativa inteiramente nova:

o governo não poderia, portanto, limitar-se à única aplicação dos princípios gerais de razão, de sabedoria e de prudência. Um saber é necessário: um saber concreto, preciso e medido reportando-se à potência do Estado. A arte de governar, característica da razão de Estado, está intimamente ligada ao desenvolvimento do que se chamou estatística ou aritmética política - quer dizer, ao conhecimento das forças respectivas dos diferentes Estados. Um tal conhecimento era indispensável ao bom governo (Foucault, 2006, p.376; grifos do original).

Na passagem anterior, Foucault faz referência a duas tradições distintas - a Statistik alemã, concebida literalmente como 'ciência do Estado', e a aritmética política inglesa - que se desenvolveram entre os séculos XVII e XVIII. Em comum, ambas reivindicavam um domínio específico de atuação do Estado, dotado de inteligibilidade própria, dedicando-se a ampliar seu poderio e visibilidade na comunidade internacional. Desde o início, a corrente germânica esforçou-se pela compreensão sintética das atividades sociais e dos agrupamentos humanos. Essa tradição centrava o foco no estudo das comunidades, em estados, regiões, cidades ou profissões, entendidas em seu todo, dotadas de poderes particulares e só descritas pela combinação de numerosos aspectos: clima, recursos naturais, organização econômica, população, leis e costumes. Teve em Gottfried Achenwall (1719-1772), creditado como inventor do termo statistik, o seu maior expoente. De caráter fortemente descritivo, de início não se envolvia com a coleta e a análise dos números mais do que o faziam a história e a geografia. Sua tarefa era a descrição, e o uso das tabulações numéricas resumia-se à conveniência observada por seu idealizador, conforme fosse o caso. Não é difícil prever que, dado o baixo nível operacional dessas contribuições, seus autores desenvolveriam uma sólida formação acadêmica, sem lograr, no entanto, grande aplicação prática.

Não devemos subestimar a força argumentativa das estatísticas como discurso de verdade, capaz de fazer calarem as polêmicas em face da razão, o que já era percebido por esses homens. Se na atualidade as estatísticas retiram parte da legitimidade de seu estatuto oficial, nos momentos que sucederam à sua invenção elas se revelaram indispensáveis à fundamentação da dominação do Estado. Na segunda metade do século XVII, os aritméticos políticos ingleses já tinham clareza da situação, e essa é a razão do termo 'política' que apuseram à expressão 'aritmética'.4 4 Ver, a esse respeito, o interessante trabalho de Senra (2006) sobre a aritmética política inglesa e sua apropriação no quadro administrativo do Brasil imperial. Aplicando operações aritméticas na utilização dos registros administrativos (especialmente os civis - nascimento, casamento e falecimento), o médico William Petty (1623-1687) talvez não soubesse que estava fundando o cálculo das estatísticas, termo que, como visto, só viria a ser cunhado algumas décadas mais tarde, por Achenvall. Mas já se mostrava ciente do valor dos números nos discursos oficiais, que julgava indispensáveis à arte de governar. Em seu livro Aritmética política, só publicado em 1690, fala da criação de um método específico à elaboração das estatísticas. Infelizmente, preocupado com a tarefa de aconselhamento do rei, sintomaticamente mais valoriza seus fins políticos do que explica os meios, ou seja, o método em si mesmo.5 5 Nesse livro pode-se conferir o pragmatismo resultante das concessões políticas de William Petty (1983, p.111): "O método que adotei para fazê-lo [aos cálculos apresentados] ainda não é muito costumeiro; ao invés de usar apenas palavras comparativas e superlativas e argumentos intelectuais, tratei de (como exemplo de aritmética política que há tempos é meu fito) exprimir-me em termos de número, peso e medida; de usar apenas argumentos baseados nos sentidos e de considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza, deixando à consideração de outros as que dependem das mentes, das opiniões, dos apetites e das paixões mutáveis de determinados homens ... . Ora, as observações expressas em número, peso e medida, sobre as quais apoio o discurso que se segue, ou são verdadeiras, ou não aparentemente falsas, e se não forem verdadeiras de maneira certa e evidente, poderão sê-lo pelo poder soberano, nam id certum est quod certum reddi potest [pois é certo aquilo que se pode converter em certo]".

Ainda mais surpreendente foi a advertência que dirigiu ao rei de que as verbas gastas no combate às pragas trariam recompensas maiores do que os mais lucrativos investimentos, conquanto preservariam parte da larga quantia despendida com vidas que, se abandonadas às pragas, pereceriam (Porter, 1986, p.19). Com a finalidade de calcular o número dos súditos, o que determinava o poder do Estado, homens como Petty, o comerciante John Graunt (1620-1674) e o oficial Davenant (1656-1714) criaram máximas de virtude ética fundadas no desiderato de maximização da população. Como 'apóstolos da procriação', condenavam o consumo de álcool, jogo, prostituição, vida urbana, celibato sacerdotal e mesmo a guerra, que poderia ser evitada pela remoção dos obstáculos ao crescimento demográfico natural (p.19-20). É fácil constatar sua diferença em relação aos estatísticos alemães. Não eram teóricos acadêmicos construindo painéis e descrições lógicas do Estado em geral, mas homens de diversas proveniências e formações, que haviam forjado um determinado conhecimento prático no curso de suas atividades, sequiosos de oferecê-lo ao governo. Foram eles os primeiros a recorrer à matemática como método indireto para estimar o crescimento da população, com base em regularidades observadas nos fatos vitais. Desfecharam um decisivo golpe nas concepções religiosas sobre a morte, até então vista como fruto do acaso ou castigo divino, ao conceber o fenômeno como passível de ser conhecido e mensurado por leis universais.

De acordo com Alain Desrosières (1998, p.23), a utilização administrativa dos registros escritos, sua disposição segundo recortes espaciais e sua interpretação em termos de "números, pesos e medidas" faz da aritmética política o nascimento dos procedimentos materiais de objetivação. O acúmulo dos traços biográficos dos indivíduos pelo escrito viabiliza a agregação estatística, que é uma maneira de pensar o coletivo com base no individual e a partir dele. E aqui encontramos os limites da atividade estatística, sob os quadros da monarquia absoluta. A diferenciação social na estrutura hierárquica do Antigo Regime encontrava severas restrições no princípio mais geral de que os súditos podiam ser livremente manipulados de acordo com a vontade do soberano. Em nenhum caso se tratava de indivíduos ou de pessoas autônomas, mas de membros de ordens e de Estados. Base das estatísticas, as equivalências comparativas não poderiam ser consideradas premissa da mensuração enquanto as noções de personalidade e universalidade não depusessem as diferenças naturalizadas, fundadas em privilégios e corporações. Embora a aritmética política e a tradição alemã fossem já, cada uma a seu modo, "uma resposta dos Estados modernos em termos operatórios, ambição de saber inseparável de uma vontade de manipulação dos homens" (Furet, Ozouf, 1977, p.360)6 6 Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre. , a constituição de uma 'mecânica social', na qual os indivíduos são tornados unidades comparáveis e intercambiáveis, definidos pelo que têm de idêntico em matéria de comportamento e de papel, só seria possível após a Revolução Francesa, no bojo das revoluções liberais de 1830 e de 1848.

De todo modo, as 'consequências da modernidade' têm alcance muito amplo e se fazem sentir desde o século XVII. Esse é o caso, por exemplo, das mudanças na tecnologia política, ocorridas no século XVIII, que levam à superação do modelo de gestão familiar como ideal de bom governo. É quando se concebe a noção de população, entendida como recurso fundamental de poder do Estado, cujos movimentos e composição devem ser conhecidos e controlados por saberes específicos, por ciências do Estado. A racionalização do exercício do poder como prática de governo é definida por Michel Foucault (2000) como governamentalidade. Segundo o autor, trata-se de

um conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma tão específica, quanto complexa de poder, que tem por alvo principal a população, por forma dominante de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança ..., provocando, de um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo e, de outro lado, o desenvolvimento de toda uma série de saberes (p.291-292).

Se o grande desafio do estadista passa a ser o governo da economia (e daí o grande sucesso conhecido pela economia política), as estatísticas tornam-se vitais, visto que 'constroem' os espaços públicos que o estadista deve conhecer e sobre eles agir:

as estatísticas vão revelar pouco a pouco que a população tem uma regularidade própria: números de mortos, de doentes, de acidentes, etc.; a estatística revela também que a população tem características próprias, e que são irredutíveis aos da família, como as grandes epidemias, a mortalidade endêmica, a espiral do trabalho e da riqueza. Revela, finalmente, que através de seus deslocamentos, de suas atividades, a população produz efeitos específicos (Foucault, 2000, p.288).

Em que pesem as inovações anteriores, só a partir do século XIX os censos passam a registrar e contar em nível individual, não mais se referenciando exclusivamente às casas como unidade mínima de enumeração, o que ocorre pari passu à publicidade e à ampla divulgação das informações. Ainda mais significativa é a separação das agências de estatística das instituições responsáveis pela cobrança de impostos e execução da lei, libertando esses espaços de sua antiga função de vigilância. Em 1800, na França napoleônica, é criado o Bureau Statistique de la Republique. Dotado de autonomia institucional e administrativa, surge o primeiro espaço oficial destinado exclusivamente às estatísticas, condição indispensável para o desenvolvimento de metodologias e técnicas de pesquisa, até então um tanto anunciadas - como o fez Petty -, porém muito pouco efetivas.

Estatísticas e conceitos científicos: breves considerações

Cultivado nesse novo ambiente, Adolphe Quetelet (1796-1874), um matemático estudioso da astronomia, se tornaria um dos principais founding fathers das estatísticas, especialmente se considerarmos o legado que deixou para a formalização das ciências sociais. Sua atividade intelectual começa a se destacar nos efervescentes anos 1830, em que se viviam, mais do que nunca, as incertezas revolucionárias de uma sociedade em mutação. O clima de insegurança levou o jovem Quetelet a dedicar-se às estatísticas, nelas buscando uma ciência da estabilidade e da previsão. Foi o primeiro a ver nas regularidades numéricas verdadeiras leis científicas, para além da simples revelação de fatos objetivos. Antecipando-se a Comte, cunhou e consagrou a expressão la physique sociale, título de sua obra máxima, para designar a estatística. Ao precursor do positivismo restou batizar o estudo da mecânica das relações sociais de sociologia. Quetelet defendia a adoção de um único método para todas as ciências. Combinando a vocação administrativa da estatística com as técnicas de astrônomos e matemáticos, negava a competência de reformadores sociais (médicos e higienistas) na matéria. O amor do astrônomo pela ordem natural proveria a fundação da ciência estatística.

Até o século XIX, as regularidades estatísticas, como a da razão entre os nascimentos de homens e mulheres e a uniformidade de assassinatos, roubos e suicídios, eram explicadas em termos naturais e teológicos, indicando a vontade divina, exprimindo a ordem geral do mundo. Quetelet propunha interpretação alternativa, baseada em cosmologia que fazia da regularidade um processo natural esperado para todos os domínios. Nas palavras de Theodore Porter (1986, p.51-52), "Quetelet interpretou as regularidades do crime como prova de que as leis estatísticas eram verdadeiras quando aplicadas a grupos inteiros, mesmo que fossem falsas em relação a um indivíduo particular. Além disso, acreditava que a obliteração do particular pelo coletivo era responsável pela própria preservação da sociedade". Nesse raciocínio, a sociedade se tornava independente das idiossincrasias de seus indivíduos constituintes. Enunciou a "lei dos grandes números", na qual advogava que os grandes fenômenos sociais são produzidos por causas gerais, dado que o acaso e o acidente não podem ter influência em fatos considerados coletivamente. Elaborou a noção de homem médio, um ser abstrato, definido pela média de todos os atributos humanos em um determinado país, considerado um 'tipo nacional', representativo de uma sociedade. Os desvios seriam anulados pela média resultante. A responsabilidade por crimes e desvios poderia ser então distribuída para o conjunto da comunidade considerada. Seu grande objetivo foi medir as mudanças experimentadas pelo homem médio ao longo do tempo, de modo a revelar a lei geral do desenvolvimento, descobrindo as forças que agem sobre o corpo social, para predizer seu curso futuro (p.54).

A contribuição de Quetelet para a história e a sociologia foi imensa. Vale nela nos determos, pois entre nossos propósitos conta-se o de revelar a riqueza da relação entre os estaticistas e as ciências, na própria constituição de seu saber e de sua prática. O historiador Henry Thomas Buckle, por exemplo, em sua obra History of civilization in England, denunciou a importância atribuída a instituições corporativas pela historiografia, como o Estado e a nobreza, e religiosas como a Igreja, consagrando em seu lugar a relação entre ciência e sociedade. Evitando a apresentação da história como crônicas de reis e de batalhas, Buckle foi uma das primeiras e mais ferozes vozes contra a história política tradicional. A substância da história não residiria na política e sim na sociedade, na lenta e contínua difusão do conhecimento. Incorrigível entusiasta do progresso material, Buckle se comprazia no liberalismo inglês da década de 1850. O fato é que as regularidades da ciência estatística provavam ao historiador que a ordem natural do universo não admitia exceção, aplicando-se ao conjunto dos fenômenos sociais (Porter, 1986, p.63). O desvio é reduzido ao mínimo; a liberdade e a vontade dos indivíduos são negadas, quando considerados coletivamente.

Influência semelhante pode ser observada em Karl Marx e em Émile Durkheim. O primeiro utilizou-se da teoria do homem médio de Quetelet para definir uma categoria uniforme e universal de trabalho e interpretar a teoria do valor do trabalho. Também o estudo de Durkheim sobre o suicídio paga tributo ao mestre da estatística, assim como sua noção de fato social, fenômeno objetivo e com regularidades próprias, isolado do mundo da natureza. Esse é o sentido de suas assertivas: "a força social não determina um indíviduo mais do que outro, apenas precisa um número definido de certos tipos de ação". E ainda: "qualquer fenômeno composto por fatos independentes deve exibir uma impressionante regularidade quando tomado em seu conjunto" (Durkheim, citado em Porter, 1986, p.70). Como escreveu certa vez o historiador Peter Gay (1995, p.461),

décadas antes de Durkheim, Quetelet mergulhou a bibliografia na sociologia. Depois que o físico social tivesse reunido informações sólidas suficientes, seria possível mostrar a probabilidade de uma 'escolha individual' entre abraçar uma vida de crimes ou cometer suicídio, entre se viciar em bebidas ou permanecer abstêmio. Mas esse determinismo, protestou Quetelet, um pouco na defensiva, não o tornava fatalista. O tipo de conhecimento coletivo que ele desejava propagar amplia, ao invés de reduzir, a esfera da liberdade da alma humana.

Na luta incessante pelo reconhecimento do status científico da história e da sociologia, em uma época na qual predominava o paradigma das ciências naturais, autores como Marx e Durkheim não hesitaram em recorrer aos postulados da física social de Quetelet. Edificavam as metodologias de suas disciplinas, tendo por base os empréstimos à estatística, então a ciência social por excelência.

Para além da apropriação evidente, há uma transformação estrutural fundamental, mais obscura à nossa percepção, conquanto mais difusa e sutil. Pelo menos desde as formulações de Quetelet e da organização institucional da atividade, que será vista na próxima seção, a estatística construiu a primazia na classificação conceitual da experiência social. A consagração do probabilismo pela estatística elevou a grau extremo a demanda por sua capacidade de previsão e intervenção nos movimentos e na composição da sociedade. Desde a segunda metade do século XIX, os prazeres, os vícios, a violência e, mais recentemente, questões de foro íntimo, como sexo, sono, amizade e até medos públicos, têm sido implacavelmente tabulados.

Instrumento de governo, as estatísticas fundamentam tecnicamente as políticas de normalização e a individualização dos elementos desviantes. No polo da regulação da população, do "poder sobre a vida" (a expressão é de Michel Foucault), favorecem as intervenções que alvejam o corpo social, uma anatomia política focada no corpo, em processos biológicos: propagação, nascimentos e mortalidades, estado de saúde, expectativa de vida e longevidade. Na sociedade capitalista contemporânea, ajustam a distribuição espacial dos homens à acumulação do capital, articulam o crescimento dos grupos à expansão das forças produtivas e à repartição diferencial dos lucros. Compartimentam e hierarquizam o espaço, no qual os indivíduos podem ser isolados, facilmente acessados e localizados.

No polo da normalização/individualização, as estatísticas fundam as posições de sujeito. Dentro das categorias, os indivíduos se veem em face dos outros não mais em suas individualidades, e sim em suas individualizações. Desse modo, as estatísticas expressam de modo singular a sutileza com que se exerce o poder, pois o fazem na ordem do simbólico, à medida que constroem uma concepção homogênea (uma verdade) sobre as coisas que enumeram e anunciam, o que acaba tornando possível uma concordância entre as inteligências. As regularidades tornam-se percebidas em suas conexões com as condutas desviantes: suicídio, crime, prostituição, loucura, doença são alguns dos fenômenos que então começam a ser codificados e medidos, alimentados pela noção de ampliação do controle sobre a população desviante, a partir de sua enumeração e classificação (Hacking, 1990, p.3).

A força de tais codificações reside no realismo das agregações, pelo qual o convencional torna-se real. Essa é a base do poder individualizante das estatísticas. Ele está presente na apreciação dos indivíduos em geral sobre questões como raça, religião, saúde, inflação, renda, desemprego, pobreza, entre tantas, referenciadas pelas estatísticas, que, assim, fornecem os termos do debate público sobre todos os problemas a elas aparentados. Promovem as descrições de situações econômicas, denúncias de injustiças sociais, justificações de ações políticas, organizações dos grupos de interesse. Dessa maneira, sustentam discursos de verdade, que servem de apoio a tomadas de decisões de diferentes agentes (academias, governos, agrupamentos sociais, organismos internacionais etc.), interferindo na distribuição espacial de recursos públicos e privados, fato do qual resultam embates em torno do que será pesquisado e da metodologia adequada. Como referências, as definições e os critérios que regem as classificações podem ser discutidos e contestados, mas elas mesmas e seus objetos permanecem indisputáveis. Tal é o realismo das agregações.

Essa realidade de primeira ordem, que organiza a classificação conceitual da experiência social, também perpassa toda a produção científica, constituindo-se em seu verdadeiro quadro de referência. Desde meados do século XIX, e de forma cada vez maior, a construção dos conceitos científicos tem-se baseado em interpretações oriundas da análise das categorias de classificação das atividades e dos grupos sociais, como podemos avaliar no arguto comentário de Ian Hacking (1990, p.3): "Marx lia atentamente as minutas das estatísticas oficiais e os relatórios dos inspetores das fábricas. Alguém pode perguntar: quem exerceu maior impacto na consciência de classe, Marx ou os autores dos relatórios oficiais, que criaram a classificação por meio da qual as pessoas se reconheciam?". Se, como queria Buckle, a substância da história reside no crescimento gradual da produção e difusão do conhecimento, a historiografia não deveria prescindir da análise dos procedimentos de objetivação das estatísticas. Registremos o alerta aos historiadores da ciência, e mesmo aos estudiosos das práticas de leitura.

Por tudo isso, números, tabelas, cartogramas e classificações são tomados como realidade do quadro que descrevem, o que é indispensável para os discursos de verdade que sustentam, incluindo aí a construção dos conceitos científicos. Graças à linguagem bastante estável e amplamente reconhecida das estatísticas, confundem-se realidade e convenção. Realidade consagrada pela força da representação social, que se impõe ao pesquisador como problema fundamental a ser investigado. Ela se faz presente nas discussões acadêmicas dos estatísticos, assim como nos discursos dos órgãos oficiais de estatística junto às diferentes instâncias sociais. Estes procuram reduzir ao máximo os fundamentos convencionais de sua produção, visto que o 'realismo dos agregados' é a fonte que atribui legitimidade à sua atividade, além de estabelecer a concordância entre as inteligências, estabilizando as interações sociais.7 7 Função pouco visível e de vital importância, as estatísticas atuam na estabilização das interações sociais. Segundo Simon Schwartzman (2004, p.74), "as razões pelas quais os conflitos não permanecem irresolvidos para sempre são as mesmas que explicam por que outros conflitos sociais no final acabam sendo superados: a longo prazo, os ganhos coletivos de sistemas estabilizados tendem a ser maiores do que os benefícios privados obtidos através de conflitos alimentados por um longo tempo. Conceitos estatísticos e dispositivos técnicos desempenham importantes papéis no processo de estabilização da interação social, um 'papel moral' que não é imediatamente visível a partir de seus aspectos técnicos, enganosamente simples".

Temos aí um impasse, constatado por Alain Desrosières (1998, p.12; grifos do original):

por um lado, eles [estatísticos e profissionais correlatos] especificarão que a mensuração depende de convenções relativas à definição dos objetos e aos procedimentos de objetivação. Por outro lado, acrescentarão que a mensuração reflete uma realidade. O paradoxo é que, embora ambas as afirmações sejam incompatíveis, é impossível conceber uma resposta diferente.

Ao analista, caberia pensar os objetos das estatísticas simultaneamente em sua existência real e em seu caráter convencional, posição na qual a realidade do objeto é uma atitude metodológica: "a simultaneidade dessas interpretações sublinha o espaço de vinculação entre as linguagens técnicas e seus usos no debate social, reintegrando a razão estatística na cultura científica reflexiva" (Desrosières, 1998, p.2).

Seguindo a orientação proposta por Desrosières, defendemos aqui a ideia de que as estatísticas se situam no plano da dualidade. Uma dualidade constitutiva, que, assim me parece, percorre todo o seu circuito de produção, nos aspectos conceitual, associativo e processual. Voltando ao início deste artigo, vemos tal perspectiva como resultado da dupla inserção da atividade estatística, na esfera sociopolítica, que funda e ajusta o programa estatístico, e no domínio tecnocientífico, que formaliza a estabilidade de sua linguagem e de suas referências. A leitura da seção que segue poderá esclarecer meu ponto de vista.

A organização institucional da atividade estatística

A dualidade cognitiva de que temos tratado já transparece no momento de criação do Bureau Statistique de la Republique, na Paris de 1800. Conhecer os departamentos e suas municipalidades era o imperativo que recaía sobre o órgão. Diante da formação do Estado republicano, à estatística caberia representar a nação em termos eleitorais, não mais reduzir-se a 'espelho do príncipe'. Esse era o horizonte que justificava a criação do Bureau, sua estabilidade e relativa independência institucional. Podemos imaginar que seus dirigentes, estatísticos avant la lettre, buscariam entregar-se ao mundo de sua atividade, onde quase tudo restava por ser feito, identificando-se e afirmando-se através dela.

Nesse processo, sobrevêm duas estratégias radicalmente opostas, assumidas por Peuchet, diretor encarregado do órgão entre 1800 e 1805, e Duvillard, que o substitui em 1806. Enquanto o primeiro promovia descrições escritas que facilitavam narrativas e memorizações, criticando a natureza reducionista das tabulações, o segundo apreciava a precisão numérica e suas leis, representadas por equações. Duvillard pensava que as informações enviadas pelos departamentos e municípios só seriam rigorosas se suas administrações preservassem os registros, como protótipo dos procedimentos de codificação. Reprovavam-se mutuamente, um desqualificando a premissa do outro: "tábulas secas" e "cálculos herméticos" rivalizavam com o "estilo elegante de uma polidez sedutora" (Desrosières, 1998, p.35-40).

A polêmica em si já se nos afigura como recurso para provocar as mentes cultivadas, chamando a atenção para a importância e a necessidade das estatísticas. Convidando uma fração da elite intelectual a tomar partido no debate, escolhendo entre a força argumentativa e a precisão numérica, esses homens buscavam notabilizar o seu ofício. Não obstante, talvez sem o saber, fermentavam um campo de discussão e análise do qual emergiria, anos mais tarde, Adolphe Quetelet, entre outros notáveis. As acusações que Peuchet e Duvillard trocaram nos memorandos e relatórios do Bureau são o primeiro registro oficial de uma tensão constitutiva da atividade estatística.

A defesa dos quadros descritivos e didáticos, da adoção de uma linguagem mais acessível e literária, praticada por Peuchet, pode ser associada ao papel administrativo da atividade estatística, como instrumento de governo. Traduzir linguagens e comunicar realidades aos governantes é tarefa indispensável à formulação das políticas públicas. Não se deve perder de vista que a legitimidade das estatísticas assenta em seu caráter oficial. No microcosmo da atuação de Peuchet insinua-se a luta por visibilidade, fundada sempre na demanda ex ante do Estado, na dimensão sociopolítica das estatísticas.

Duvillard situava-se no polo oposto. Sublinhava o componente técnico e o profissionalismo envolvidos na produção e interpretação dos resultados. Em outras palavras, ocupava-se da formalização da atividade, recorrendo aos parâmetros de cientificidade de sua época para dotar as estatísticas de uma linguagem estável. Esse é o sentido da relação que estabelece entre os registros e os procedimentos necessários à codificação.

Peuchet e Duvillard tiveram diversos seguidores, na França e no mundo; discípulos compulsórios, que não conheceram seus nomes, mas que atuaram constrangidos por essa dualidade fundamental da atividade estatística. Sua ênfase ora recai no caráter convencional do conhecimento estatístico, visível na necessidade de comunicar/traduzir realidades ao campo político-pragmático, ora se assenta no 'realismo dos agregados', quando a primazia é da formalização de seu espaço tecnocientífico. É verdade que a oposição entre os partidos foi um tanto suavizada à medida que se acelerou o processo de institucionalização desse saber. Uma vez mais, fiamo-nos na pena lúcida de Alain Desrosières (1998, p.39-40):

Ao longo do tempo, a expressão desses dois modos de discurso tornou-se mais refinada, e a oposição entre eles menos brutal do que a de Peuchet e Duvillard. Todavia, esta tensão básica é inerente à natureza dos institutos de estatística, cuja credibilidade depende tanto de sua visibilidade quanto dos aspectos técnicos. A maneira pela qual este duplo requisito é abordado e transformado, segundo a era e o país em questão, é um dos principais tópicos da história destes institutos.

Voltaremos a encontrar dualidade semelhante no contexto dos congressos internacionais de estatística, durante a segunda metade do século XIX. Momento capital no processo de institucionalização da atividade, a estrutura desses eventos foi idealizada por Quetelet, revelando-se assim o principal agente organizador da área. O primeiro congresso foi realizado em Bruxelas, em 1853, e teve no presidente da comissão central de estatísticas da Bélgica, o próprio Quetelet, o seu grande orientador. Nas minutas de seu relatório final, podemos ler:

O alvo pretendido, ao se organizar o Congresso, foi especialmente o de promover a unificação das estatísticas oficiais que os governos publicam, promovendo resultados comparáveis. Os trabalhos específicos serão mais fáceis quando se estabelecerem bases gerais que os associem e se adotem, em diferentes países, nomenclaturas e tabelas uniformes: essa espécie de língua universal, simplificando os trabalhos, lhes asseguraria mais importância e solidez.

Para dar unidade aos trabalhos oficiais, é preciso relacioná-los a um centro comum; é preciso que os principais funcionários, encarregados da apresentação dos diferentes segmentos da estatística geral, possam se ver e se entender conjuntamente, aceitando as mesmas divisões, adotando, após detido exame, os mesmos nomes e os mesmos números para representar os mesmos objetos, não deixando nenhuma lacuna nas tabelas gerais e evitando, de outro lado, as duplicidades. O meio mais seguro de se chegar à unidade desejada parece ser a criação, em cada Estado, de uma comissão central de estatística, ou de uma instituição análoga, formada por representantes das principais administrações públicas, aos quais se somariam algumas pessoas que, por seus estudos e conhecimentos especiais, possam iluminar a prática e resolver as dificuldades essencialmente científicas.

... é desejável, de outro lado, que as instituições centrais de diferentes países se relacionem promovendo a troca de suas publicações e modelos de tabelas empregadas para juntar documentos, classificá-los e resumi-los (Rapport..., 1983, p.4).

Nesse longo trecho, sobressai a tentativa organizada de consolidar e ampliar a comunidade científica internacional centrada na atividade estatística. O esforço principal concentra-se no estabelecimento dos fundamentos normativos (conceituais e operacionais) que devem regê-la, unificando números, nomenclaturas e tabelas na representação dos objetos. Quetelet e seus consortes estavam, então, cientes da necessidade de estabilizar a linguagem estatística para promover outro objetivo central dos congressos: criar equivalências que permitissem a comparação entre as atividades e as riquezas das nações. Vale dizer que se cogitava uma organização centralizadora para dar unidade às comissões de cada país, cada qual detentora dos registros administrativos. Pensa-se, assim, em coordenação, no desenvolvimento de instrumentos de coordenação (Senra, 2005, p.83). Entre os pontos de inflexão dos congressos, conta-se o da formação da disciplina. Atenção especial é dispensada à capacitação profissional, o que inclui os conhecimentos básicos que devem compor o currículo do 'especialista'.

Quer-se estimular o desenvolvimento das comissões nacionais, oferecendo-lhes respaldo técnico e uma prestigiosa filiação. Mas, para tanto, era preciso cumprir outro objetivo fundamental dos congressos: conquistar os governos dos Estados nacionais, convencendo-os de que seria vantajoso dotar de autonomia suas comissões estatísticas (criar, quando fosse o caso) e despender com elas vultosas somas do erário público. Essa intimidade com a política dos Estados pesava nas deliberações dos congressos. Recomendava-se expressamente que as comissões nacionais fossem compostas por "representantes das principais administrações públicas", o que significava agregar políticos proeminentes, ao lado de intelectuais ilustrados em questões estatísticas. Outrossim, compareciam aos congressos diversos representantes dos governos nacionais, o que atribuía caráter oficial aos certames. Com efeito, o problema da viabilização política se apresentava, de uma só vez, como horizonte e obstáculo ao sucesso dos congressos. A curta jornada desses eventos conheceria seu fim na nona edição, realizada em Budapeste em 1876, dois anos após a morte de seu inspirador, Adolphe Quetelet. O diagnóstico de Nelson Senra (2005, p.86; grifos do original) é lapidar:

O fato é que os Congressos de Estatística nunca conseguiram equacionar a polêmica controvérsia da representação. A representação aos congressos deveria ser pública e oficial, era essa a intenção, justo a fonte da polêmica. Assim, em que medida os participantes efetivamente representavam seus países? Em que medida poderiam deliberar e assumir inequívocos compromissos? Em que medida, ao retornarem, com as pastas recheadas de resoluções, conseguiam implementá-las? Em medida nenhuma, sem meias palavras, ou seja, as representações, embora oficiais, eram frágeis, ocasionais, burocráticas, não raro ignorando o cotidiano da elaboração estatística, donde a reduzida aplicação das resoluções. Ademais de serem as resoluções bastante genéricas, até para poder-se alcançar consenso, o que dificultava as aplicações práticas.

Uma vez mais nos deparamos com a dualidade de uma necessidade. Com os congressos, a formalização técnica da atividade se sofisticou, alcançando novos patamares, em pontos como padronização das codificações, metodologia disciplinar, capacitação profissional, desenvolvimento das associações formais e difusão do conhecimento. Ao mesmo tempo, os congressos funcionavam como embrião de um organismo mundial, capaz de dialogar diretamente com os governos nacionais. Entretanto, a visibilidade política, presente na forma da representação das comissões nacionais e das delegações oficiais, não foi suficiente para que se implementasse a maior parte das conquistas da comunidade científica. Mais um exemplo da relação tensa e dinâmica entre a tradução/recepção sociopolítica das estatísticas públicas e a formalização técnica de seu campo disciplinar.

Passemos agora à análise da intimidade teórica e processual dos institutos de estatística, segundo seu perfil tecnocientífico. Na linha de Bruno Latour, essas entidades são 'centros de cálculo'. Trazem próximas e presentes realidades distantes e/ou ausentes para o Estado, tornando-as pensáveis e, portanto, potencialmente governáveis. Constituem, assim, tecnologias de governo, por meio da ação à distância. Constroem coletivos sociais, úteis à regulação, ao disponibilizá-los nas mesas dos decisores, na forma de tabelas, gráficos e cartogramas.

Essa produção ocorre no plano da oferta aos Estados nacionais, da demanda ex post, na expressão de Nelson Senra. Dimensão que não revela, em si mesma, a complexidade técnica e operacional da rede em que se produz o conhecimento estatístico. Para analisá-la, é preciso fazer emergir a intimidade do centro de cálculo. Há, antes do mais, um ciclo de acumulação das inscrições, graças ao qual se estabelece um convívio relacional entre dois lugares: um centro (as agências coordenadoras) agindo a distância sobre muitos outros pontos periféricos (as zonas de levantamento e pesquisa). Nesse movimento, é absolutamente necessário que haja portabilidade e estabilidade na transmissão das inscrições (os formulários distribuídos aos agentes de campo), de forma que seja possível 'trazê-las de volta', e os enviados seguintes possam acumular novas inscrições. Configura-se, assim, uma tecnologia de distância sobre eventos, pessoas e lugares, com base em três condições: o centro de cálculo deve "inventar meios que (a) os tornem móveis para que possam ser trazidas; (b) as mantenham estáveis para que possam ser trazidas e levadas sem distorção, decomposição ou deterioração; e (c) sejam combináveis de tal modo que, seja qual for a matéria de que são feitas, possam ser acumuladas ou agregadas, embaralhadas como um maço de cartas" (Latour, 2000a, p.362; grifos do original).

A relação dinâmica entre os centros e suas periferias constitui o que Latour (2000a) cunhou de "logística dos móveis imutáveis". Trata-se de procedimentos científicos de objetivação, como gabaritos, totalizações, listas, gráficos e tabelas, que possibilitam o tratamento complementar das inscrições por parte dos centros de cálculo. Nesta direção, as estatísticas são particularmente eficazes na ampliação do alcance das inscrições, quando recorrem às médias, e do controle sobre a sua dispersão, desde a invenção da variância e da amostragem (p.385-386). Esse ciclo de capitalização das inscrições as transforma em informações manuseáveis para os governantes, referências estáveis para a sociedade e meios de análise para os pesquisadores.

Realizado o programa estatístico, submerge a complexidade dos ciclos de acumulação/capitalização e das redes que os movimentam, formadas por instituições, instrumentos, equipamentos e pessoas, entre as quais cientistas (economistas, demógrafos, antropólogos e sociólogos), mas também por uma burocracia ramificada nos estados e municípios, supervisores e agentes de campo, coletores com variadas formações, além dos próprios informantes. Aos olhos dos principais usuários das estatísticas - governos, organizações sociais, academias -, desaparece a complexidade de sua rede científica. Fato sem dúvida corroborado pelo argumento amplamente reconhecido da autonomia tecnocientífica das instituições de estatística.

Esquadrinha-se, novamente, uma dualidade constitutiva. Sim, porque o espaço científico das estatísticas é indispensável ao atendimento da demanda, que norteia o programa estatístico. Garante a credibilidade de seus produtos, estabilizando as referências de uma série de interações sociais. Não obstante, esse argumento favorece a ilusão tão recorrente de que tais instituições estão suficientemente distantes, quando não mesmo isoladas, das redes políticas e científicas, que, na verdade, perpassam o seu próprio circuito de produção. Uma representação perigosa, partilhada pela maioria dos envolvidos na elaboração e utilização das estatísticas públicas.

Examinemos um exemplo bastante especial: o chamado postulado do olhar delegado. Esse fundamento pretende que as ações da rede de coleta sejam normatizadas pela instância de concepção da pesquisa, o centro de cálculo. Considera como único referencial dos agentes de campo os procedimentos uniformizados adquiridos nos treinamentos de pessoal, ao lado do corpo normativo dos manuais de instrução dos agentes. Qualquer possibilidade de interação com os entrevistados é formalmente negada, tendo em vista o eventual desvirtuamento do quadro conceitual que originou os formulários. Em suma, a determinação da situação de entrevista é aqui um dado previsto e reificado.

Dado que as inscrições devem ser móveis, estáveis e combináveis, a delegação do olhar serve muito bem à pesquisa estatística, permitindo a expropriação do relativismo de seus observadores. As agências centrais precisam superar o perspectivismo da observação e emergir como o único observador privilegiado. Não é outro o sentido da afirmação de Latour (2000b, p.39): "É justamente porque os observadores delegados ao longe perdem seu privilégio - o relativismo - que o observador central pode elaborar seu panóptico - a relatividade - e encontrar-se presente ao mesmo tempo em todos os lugares onde, no entanto, não reside". Equivalem-se todas as posições do sujeito e todas as posições do objeto, em benefício do transporte estável da informação pela instituição-vetor. Do relativismo dos observadores passamos à relatividade dos centros, condição de mobilidade e de imutabilidade das inscrições.

A equivalência entre as posições emerge como suporte básico da relatividade. Não obstante, o fundamento básico da delegação do olhar não deve obscurecer a percepção das redes de informação em que está inserida a produção estatística. Não deve obscurecer o reconhecimento das distâncias entre os níveis da cadeia produtiva, desde a burocracia especializada dos centros de cálculo até as redes de coleta. Afinal, reconhecer as distâncias é já um passo para minimizá-las. E aqui seguimos Jean Peneff (1988, p.534):

De um lado, há o controle burocrático e a supervisão dos trabalhos rotineiros de gabinete; de outro, autonomia quase total dos agentes de campo. Essa separação é agravada pela ausência de relações e trocas de informações sobre a natureza do trabalho entre os dois níveis. O topo ignora o campo e continua a acreditar na efetividade e relevância da padronização, porque é incapaz de apreciar as realidades práticas do trabalho dos entrevistadores de campo. Se a direção começasse a entender este último trabalho, toda a organização e sua hierarquia estariam sob questão.

Amortizar as distâncias entre as esferas de produção supõe considerar as interações sociais e, portanto, os diferentes níveis de aproximação do objeto da entrevista, variáveis conforme as situações enfrentadas. Há empatias, mas também antipatias, as dissimuladas e as nem sempre bem disfarçadas, pois é sempre de um jogo de aproximação que se trata (Álvaro, 2006, p.4). Disso resulta o paradoxo da relação social da entrevista, ao exigir, por um lado, que o entrevistador se mantenha suficientemente distante do entrevistado para não perder a sua objetividade; por outro, que ele se aproxime suficientemente do entrevistado para ganhar a sua confiança. Cabe, portanto, integrar a dimensão processual da rede de coleta ao referencial das pesquisas. Isso significa reconhecer as interações simbólicas, as negociações, as estratégias de apresentação dos pesquisadores, as adaptações de práticas, procedimentos e mesmo dos questionários às situações de entrevista, sempre cambiáveis.

Temos aí uma contribuição fundamental que a sociologia da ciência pode proporcionar às estatísticas públicas. Ao investigar os diferentes atores que tomam parte em sua produção, as traduções complexas, mudanças de significado, interpretações e responsabilidades que têm lugar, o enfoque sociológico mostra aos organismos geradores e usuários que há limitações e escolhas implícitas presentes em todos os procedimentos estatísticos, insistindo que é impossível oferecer soluções técnicas a conflitos de interesse que não podem ser acomodados (Schwartzman, 2004, p.98).

Em contrapartida, há o sério risco de que essa abordagem seja interpretada como falta de competência desses espaços oficiais, como necessidade de reforçar os fundamentos técnicos e normativos, os mesmos que silenciam sobre as incertezas e tensões do processo científico da atividade, pois antes de se constituírem em centros de pesquisa, essas agências são órgãos de planejamento, atuam na conformação política e administrativa do país. Essa é a razão pela qual são ciosas de manter a qualquer custo a integridade de sua estabilidade, afastando-se de debates e polêmicas, os acadêmicos incluídos. Daí o imperativo de que se implemente e se fortaleça nesses institutos um ambiente permanente de reflexão sociológica e histórica, dirigido para a análise do saber e da prática da atividade estatística. Revelando-lhes a intimidade, a semântica (processo de construção) e a sintática (resultado da construção), torna-se possível suprimir as incongruências e traduzir a linguagem acadêmica da mudança em ganho efetivo de legitimidade, sem prejuízo da indispensável credibilidade.

Conclusão: o espaço da pesquisa histórica

Vimos, portanto, nossa hipótese sobre os três níveis em que opera a dualidade da atividade estatística, cada qual em seu estudo de caso. O aspecto cognitivo revela a ênfase, por parte dos produtores, de que suas pesquisas refletem a realidade, especialmente ao término da capitalização das informações, quando divulgam os resultados para a imprensa, ao tempo da demanda ex-post.

O plano associativo pode ser interessante por mostrar o valor da argumentação, da representação e das imbricações políticas na moldagem dos grandes organismos internacionais de estatística (International Statistical Institute - ISI; Inter-American Statistical Institute - Iasi; Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO; Organização Internacional do Trabalho - OIT; Organização das Nações Unidas Para a Educação, a Ciência e a Cultura - Unesco), em sua íntima relação com os diferentes Estados. Um nível particularmente importante para analisar o processo de institucionalização da atividade, visto que as tensões e negociações sobre a implementação das resoluções e dos avanços no campo disciplinar aparecem aí com mais evidência.

A dualidade processual é a mais delicada de todas, ao tratar da face oculta, ou que se quer oculta, dos órgãos oficias de estatísticas públicas. Remete à dimensão cognitiva, porquanto ambas expressam a defesa da autonomia tecnocientífica, de fato necessária à estabilização das interações sociais. Nela estão em destaque as engrenagens do processo produtivo, escolhas e decisões, como a preferência por determinados quesitos nas pesquisas, em detrimento de outros. Por essa via, somos levados à laboratory life de Bruno Latour, onde se constroem os hard facts, a envolver homens, máquinas, experiências, papéis e estratégias. É o locus de irredutível liberdade da atividade estatística. Por isso mesmo, é o ambiente em que a análise sociológica e histórica pode primeiro render frutos, ajudando as instituições estatísticas a realizar sua missão. Ao reconhecer a interdependência das instâncias sociais, os institutos podem melhor atender às demandas e diversificar a oferta, em benefício de sua autonomia técnica.8 8 Em esforço desbravador, Nelson Senra coordenou a coleção História das Estatísticas Brasileiras (1822-2002). Em seus quatro volumes, a obra mapeia os caminhos percorridos pela institucionalização da estatística entre nós. Vale a pena conferir também o artigo, de sua autoria, "Pesquisa histórica das estatísticas: temas e fontes", publicado nesta revista (Senra, 2008), que recupera documentos e sugere temas e cronologias essenciais para qualquer análise da atividade estatística em perspectiva histórica.

Para tanto, importa revelar as metodologias, as tensões em torno das concepções técnicas, as relações externas das instituições estatísticas, as disputas simbólicas da comunidade de pesquisadores, que caracterizam o plano da descoberta, e não apenas o plano da justificativa, moldado no período de 'ciência normal', no entender de Thomas Kuhn. Nas palavras de Gilberto Hochman (2008, p.25),

A partir da década de 1990, emergiu uma prolífera e profícua produção sobre os espaços de ciência no Brasil na qual o IBGE e a estatística não foram contemplados. A história da ciência institucionalmente organizada no Brasil, mais preocupada com a medicina, a física, a biologia, a matemática e as ciências humanas, não atentou para outras ciências e instituições que estiveram no centro da construção simbólica e material do Brasil.

Inserir as estatísticas públicas em uma agenda mais ampla de reflexão no cenário da história das ciências - esta é a contribuição decisiva que o espaço da pesquisa histórica pode trazer às instituições estatísticas. Tornam mais disponíveis e utilizáveis os documentos produzidos e guardados por tais instituições, ordenando-os segundo as exigências da historiografia.

Essa perspectiva favorece a compreensão do quadro técnico sobre os métodos produtivos das grandes pesquisas, como o postulado do olhar delegado, as interações sociais nas entrevistas, a geração dos cadastros, a configuração de classificações de atividades e ocupações, entre muitos outros. O mesmo se aplica às trajetórias e evoluções de temas e categorias censitárias, como a investigação de suas concepções e utilizações.

Ao universo acadêmico, por sua vez, a pesquisa histórica revela os processos de construção intelectual das categorias de classificação, bem como os sentidos subjacentes às suas aplicações, com base na semântica que lhes é atribuída por diferentes grupos sociais. Vale dizer que o historiador deve partir do entendimento das metodologias aplicadas às produções estatísticas para pensar em termos políticos seus significados.

Através da pesquisa histórica, é possível recuperar as trajetórias dos estaticistas e, sobretudo, suas contribuições para a composição das principais obras de interpretação da nacionalidade. Figuras aparentemente opacas e de perfil técnico, seus grandes trabalhos se viram despojados da aura de luminosidade e da polêmica que marcaram a prolífica tradição do pensamento ensaístico e a dos representantes das disciplinas fortemente ligadas ao controle social (como a medicina e a psiquiatria). Situados no aparelho de Estado, foram, em grande medida, marginalizados pelos estudos acadêmicos, que preferiram priorizar os cientistas provenientes do campo universitário. Portadores de uma linguagem árida e de forte conteúdo estatístico, seus trabalhos sofreram a ambivalência de ser excessivamente técnicos para os historiadores sociais das ideias e sociológicos demais para os estudiosos da estatística. A pesquisa deve reabilitar esses agentes centrais, tendo como foco a circularidade existente entre, de um lado, os discursos intelectuais que forjaram os grandes projetos nacionais e, de outro, os procedimentos materiais e conceituais que possibilitaram a objetivação das realidades do país.9 9 No Brasil, devem ser mencionados vários nomes que imprimiram sua marca pessoal na organização da atividade estatística, em diferentes tempos, do Império à Nova República. Cito alguns, em razão de sua inegável centralidade nos períodos em que atuaram: Roberto Jorge Haddock Lobo (1817-1864) e Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891), autores de relatórios com importantes incursões metodológicas; Sebastião Ferreira Soares (1820-1887), considerado o primeiro estatístico brasileiro; Manoel Timóteo da Costa (1855-1934), realizador do censo geral de 1890, responsável pela introdução das estatísticas no projeto positivista do início da República; Aureliano Portugal (1851-1924) e Hilário de Gouveia (1843-1923), demógrafos-sanitaristas, principais analistas das estatísticas na Primeira República; Oziel Bordeaux Rego (1874-1926), avaliador e sistematizador das estatísticas culturais e sociais; José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho (1866-1940), considerado o fundador da estatística brasileira; Mario Augusto Teixeira de Freitas (1890-1956), criador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e do Sistema Estatístico Nacional, um dos maiores produtores e analistas das estatísticas educacionais em todos os tempos; Rafael Xavier (1894-1982), principal organizador do municipalismo como via alternativa para o desenvolvimento nacional; Lourival Câmara (1911-1973), responsável pela estruturação dos cursos superiores de estatística; Giorgio Mortara (1885-1967), um dos maiores demógrafos do século XX, que se refugiou da guerra no Brasil (dada sua condição judia), onde formalizou esse campo disciplinar, tarefa continuada por João Lyra Madeira (1909-1979); Isaac Kerstenetzky (1926-1991), que transformou as instituições estatísticas em centros tecnocientíficos capazes de responder aos desafios do moderno planejamento econômico, produzindo seus próprios registros, indicadores sociais e pesquisas amostrais e domiciliares permanentes; Simon Schwartzman (1939- ) que repensou o Sistema Estatístico Nacional ao presidir o IBGE e a quem devemos nossas primeiras reflexões sobre a sociologia das estatísticas.

Mais do que tudo, a nova abordagem constitui um campo de investigação inteiramente original. Na expressão de Jean-Claude Perrot, configura-se uma "história concreta da abstração". Uma história do governar por números, em que a construção do Estado nacional é analisada pelo prisma da materialidade das políticas e da racionalidade instrumental dos processos decisórios. Uma história das utilizações e traduções das estatísticas, em que sua força argumentativa como discurso de verdade, presente nos planejamentos indicativos, transforma-se gradualmente na sustentação quantitativa das políticas públicas, que pautam os planejamentos tecnocientíficos.10 10 Nesse caso, vale avaliar a recepção das resoluções e recomendações dos organismos internacionais no Brasil, desde os primeiros congressos, ocorridos ao tempo do Império, até a lenta consolidação do International Statistical Institute (ISI), fundado em 1885. O exame da composição das delegações oficiais do Brasil encaminhadas às grandes reuniões mundiais, a tradução operada por seus membros aos diferentes governos nacionais, os esforços para institucionalizar a atividade com a criação de órgãos oficiais e associações formais, o intercâmbio com organizações privadas na defesa de atividades correlacionadas (como o campo educacional e o movimento municipalista, no caso brasileiro), a utilização das estatísticas na imprensa periódica, em livros didáticos escolares e nas grandes obras sobre a identidade nacional são alguns horizontes metodológicos indispensáveis para investigar a construção do reconhecimento social do saber estatístico e da posição do estaticista. Uma história da emergência da mentalidade estatística como ingresso do país na modernidade, tendo como ponto de partida o momento em que se fixa o desejo pelas estatísticas. Abrem-se outras dimensões para a história política e social.

Em outra direção, a formação da comunidade de pesquisadores e dos espaços de mediações simbólicas são exemplos de questões que contemplam a história das ciências. A criação das sociedades e revistas científicas, das influências intelectuais (livros teóricos, manuais de divulgação, circuito de autores) e das formações nacionais técnicas (escolas, cursos, currículos) encontram-se nessa perspectiva de investigação. Trata-se de perceber o processo de especialização da atividade estatística, sua passagem de um perfil tipicamente administrativo, quando a produção das estatísticas se baseia na obtenção dos registros administrativos (oriundos de hospitais, escolas, alfândegas, tribunais), para um perfil propriamente científico, quando as técnicas amostrais e as pesquisas domiciliares serão amplamente adotadas pelas agências nacionais de estatística, em caráter permanente e sistemático. Essas, então, passam a produzir seus próprios registros científicos, configurando centros de cálculo - na acepção de Bruno Latour.

Enfim, não nos coube aqui arrolar um inventário de temas, abordagens e objetos adequados à perspectiva histórica da atividade estatística, terreno ainda em aberto que foi apenas principiado em outras ocasiões.11 11 Vale citar algumas iniciativas nessa área: o documento "Fundamentos preliminares para uma linha de pesquisa histórica no IBGE", que elaboramos em parceria com Nelson Senra; os dois encontros intitulados A Pesquisa Histórica no IBGE, ocorridos em 2006, quando foram ouvidos vários historiadores e especialistas de renome, que ajudaram a formalizar uma linha de investigação; o citado artigo "Pesquisa histórica das estatísticas: temas e fontes" (Senra, 2008). Em vez disso, quisemos apresentar alguns desafios e possibilidades que o universo das estatísticas públicas pode trazer à sociologia da ciência. A história recupera e revela a potência do acervo documental das instituições estatísticas a toda uma comunidade de usuários acadêmicos, enriquecendo as possibilidades de compreensão das metodologias e de utilização das estatísticas. Já a sociologia norteia-se pela dimensão prescritiva, apontando para o precário equilíbrio dos divisores do programa estatístico: o modelo do desejável na esfera sociopolítica, nem sempre executável tecnicamente, e o realismo do possível na esfera da produção científica, nem sempre compreendido socialmente. Em comum, os dois enfoques estão comprometidos com o espaço de atuação das instituições estatísticas, para que estas possam cumprir cada vez melhor sua missão.

NOTAS

Recebido para publicação em julho de 2008.

Aprovado para publicação em abril de 2009.

  • ÁLVARO, Maria Angela Gemaque. O IBGE bate à porta: vivência e perspectiva dos que trabalham na coleta de dados. Trabalho apresentado no 2. Encontro Nacional de Produtores e Usuários de Informações Estatísticas, Sociais, Econômicas e Territoriais, ago. 2006. Rio de Janeiro. 2006.
  • CAMARGO, Alexandre de Paiva Rio. Classificações raciais e campo estatístico no Brasil (1870-1940). In: Senra, Nelson de Castro; Camargo, Alexandre de Paiva Rio (Org.). Estatísticas nas Américas: por uma agenda de estudos históricos comparados. Rio de Janeiro: IBGE. (no prelo).
  • CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Trad., Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes. 1996.
  • DESROSIÈRES, Alain. The politics of large numbers: a history of statistical reasoning. Cambridge: Harvard University Press. 1998.
  • DESROSIÈRES, Alain. Do singular ao geral: a informação estatística e a construção do Estado. Trabalho apresentado no 1. Encontro Nacional de Produtores e Usuários de Informações Sociais, Econômicas e Territoriais. Paris: Insee/Crest. 1996.
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  • FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In: Foucault, Michel. Microfísica do poder Org., introd., trad. e rev. técnica, Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. p.277-293. 2000.
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  • GAY, Peter. O cultivo do ódio. Trad., Sérgio Goes de Paula, Viviane de Lamare Noronha. São Paulo: Companhia das Letras. 1995.
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  • LATOUR, Bruno. Redes que a razão desconhece: laboratórios, bibliotecas, coleções. In: Baratin, M.; Jacob, C. (Org.). O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Trad., Marcela Mortara. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ. p.21-44. 2000b.
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  • SENRA, Nelson de Castro. Pesquisa histórica das estatísticas: temas e fontes. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.15, n.2, p.411-425. 2008.
  • SENRA, Nelson de Castro. Aritmética política no Brasil: desejos políticos manifestos. In: Senra, Nelson de Castro (Org.). História das estatísticas brasileiras (1822-2002) v.1: Estatísticas desejadas (1822-c.1889). Rio de Janeiro: IBGE. p.61-82. 2006.
  • SENRA, Nelson de Castro. O saber e o poder das estatísticas: uma história das relações dos estaticistas com os Estados nacionais e com as ciências. Rio de Janeiro: IBGE/Centro de Documentação e Disseminação de Informações. 2005.
  • STARR, Paul. The sociology of official statistics. In: Alonso, William; Starr, Paul (Ed.). The politics of numbers New York: Russel Sage Foundation. p.7-58. 1983.
  • 1
    Vale ressaltar que as correlações possíveis entre os fenômenos e as unidades de análise previstas no espaço dos quadros estatísticos de diferentes temporalidades fundamentam uma investigação central sobre as representações sociais, as concepções políticas e os conceitos científicos, implícita ou explicitamente empregados na produção e utilização das informações estatísticas. Nessa direção, alerta Hernán Otero (2006, p.47): "é preciso ler as matrizes e as tabelas estatísticas como textos, mediante sua tradução em proposições e sistemas de hipótese, expressáveis em linguagem verbal. Assim, por exemplo, dois quadros sobre níveis de mortalidade tabulados segundo a estação do ano ou segundo os grupos sócio-ocupacionais dos falecidos remetem a duas hipóteses científicas e a dois universos teóricos radicalmente diferentes: a mortalidade como fato climático ou como fato social". Essa perspectiva de análise eleva-se em importância, ao revelar os componentes implícitos da ideologia estatística, entendida como "conjunto de critérios pseudocientíficos, políticos e culturais que fundamentam a seleção e a definição das variáveis, os valores e as unidades de análise; determinam o tipo de instrumento estatístico a ser privilegiado (formas de construção dos quadros, indicadores e medidas); orientam a interpretação dos resultados e legitimam seus usos, através de procedimentos discursivos" (p.50).
  • 2
    Nessa frente, a investigação sobre a construção e a evolução das categorias de classificação apresenta especial interesse. Através da análise de minutas, relatórios e pareceres de comentaristas e equipes de recenseamento, é possível delimitar a extensão e o significado dessas categorias. As demográficas, em geral, são polêmicas e descontínuas, quanto ao âmbito de investigação adotado nas pesquisas estatísticas: ocupação, renda, migração, fecundidade, instrução, trabalho. O caso das categorias sociais, como religião e cor (cor ou raça, segundo o censo de 2000) é ainda mais grave. As opções deixadas para que os recenseados se incluíssem e se classificassem raras vezes foram as mesmas no tocante a esses quesitos, o que mostra que a pesquisa das categorias está condicionada aos discursos sociais dominantes e à imagem do país que se quer produzir. A oscilação na investigação das diversas categorias estatísticas e a pluralidade dos significados implicados nos contextos históricos de sua produção representam um grande desafio à análise social, a exigir detida atenção dos historiadores. No que diz respeito à classificação racial, teço em outro lugar uma abordagem preliminar, comparando a aparição do quesito nos censos de 1872, 1890, 1920, 1940 e 1950 (Camargo, no prelo).
  • 3
    Cabe ressaltar que vários autores de prestígio se dedicaram a refletir sobre as relações entre o saber estatístico e a construção da ordem social. Entre muitos nomes, vale destacar os de Michel Foucault, Bruno Latour, Theodore Porter, Ian Hacking, Alain Desrosières, Laurent Thévenot, Nikolas Rose, Peter Miller, Hernán Otero, Jean-Pierre Beaud. No Brasil, Simon Schwartzman e Nelson Senra teceram considerações valiosas, tornando-se referências obrigatórias. Tomados em conjunto, seus estudos prefiguram horizontes e ferramentas para a análise das estatísticas públicas, que, todavia, ainda carece de melhor formalização em um campo de investigação, sobretudo no Brasil.
  • 4
    Ver, a esse respeito, o interessante trabalho de Senra (2006) sobre a aritmética política inglesa e sua apropriação no quadro administrativo do Brasil imperial.
  • 5
    Nesse livro pode-se conferir o pragmatismo resultante das concessões políticas de William Petty (1983, p.111): "O método que adotei para fazê-lo [aos cálculos apresentados] ainda não é muito costumeiro; ao invés de usar apenas palavras comparativas e superlativas e argumentos intelectuais, tratei de (como exemplo de aritmética política que há tempos é meu fito) exprimir-me em termos de número, peso e medida; de usar apenas argumentos baseados nos sentidos e de considerar somente as causas que têm fundamento visível na natureza, deixando à consideração de outros as que dependem das mentes, das opiniões, dos apetites e das paixões mutáveis de determinados homens ... . Ora, as observações expressas em número, peso e medida, sobre as quais apoio o discurso que se segue, ou são verdadeiras, ou não aparentemente falsas, e se não forem verdadeiras de maneira certa e evidente, poderão sê-lo pelo poder soberano,
    nam id certum est quod certum reddi potest [pois é certo aquilo que se pode converter em certo]".
  • 6
    Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
  • 7
    Função pouco visível e de vital importância, as estatísticas atuam na estabilização das interações sociais. Segundo Simon Schwartzman (2004, p.74), "as razões pelas quais os conflitos não permanecem irresolvidos para sempre são as mesmas que explicam por que outros conflitos sociais no final acabam sendo superados: a longo prazo, os ganhos coletivos de sistemas estabilizados tendem a ser maiores do que os benefícios privados obtidos através de conflitos alimentados por um longo tempo. Conceitos estatísticos e dispositivos técnicos desempenham importantes papéis no processo de estabilização da interação social, um 'papel moral' que não é imediatamente visível a partir de seus aspectos técnicos, enganosamente simples".
  • 8
    Em esforço desbravador, Nelson Senra coordenou a coleção História das Estatísticas Brasileiras (1822-2002). Em seus quatro volumes, a obra mapeia os caminhos percorridos pela institucionalização da estatística entre nós. Vale a pena conferir também o artigo, de sua autoria, "Pesquisa histórica das estatísticas: temas e fontes", publicado nesta revista (Senra, 2008), que recupera documentos e sugere temas e cronologias essenciais para qualquer análise da atividade estatística em perspectiva histórica.
  • 9
    No Brasil, devem ser mencionados vários nomes que imprimiram sua marca pessoal na organização da atividade estatística, em diferentes tempos, do Império à Nova República. Cito alguns, em razão de sua inegável centralidade nos períodos em que atuaram: Roberto Jorge Haddock Lobo (1817-1864) e Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891), autores de relatórios com importantes incursões metodológicas; Sebastião Ferreira Soares (1820-1887), considerado o primeiro estatístico brasileiro; Manoel Timóteo da Costa (1855-1934), realizador do censo geral de 1890, responsável pela introdução das estatísticas no projeto positivista do início da República; Aureliano Portugal (1851-1924) e Hilário de Gouveia (1843-1923), demógrafos-sanitaristas, principais analistas das estatísticas na Primeira República; Oziel Bordeaux Rego (1874-1926), avaliador e sistematizador das estatísticas culturais e sociais; José Luiz Sayão de Bulhões Carvalho (1866-1940), considerado o fundador da estatística brasileira; Mario Augusto Teixeira de Freitas (1890-1956), criador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e do Sistema Estatístico Nacional, um dos maiores produtores e analistas das estatísticas educacionais em todos os tempos; Rafael Xavier (1894-1982), principal organizador do municipalismo como via alternativa para o desenvolvimento nacional; Lourival Câmara (1911-1973), responsável pela estruturação dos cursos superiores de estatística; Giorgio Mortara (1885-1967), um dos maiores demógrafos do século XX, que se refugiou da guerra no Brasil (dada sua condição judia), onde formalizou esse campo disciplinar, tarefa continuada por João Lyra Madeira (1909-1979); Isaac Kerstenetzky (1926-1991), que transformou as instituições estatísticas em centros tecnocientíficos capazes de responder aos desafios do moderno planejamento econômico, produzindo seus próprios registros, indicadores sociais e pesquisas amostrais e domiciliares permanentes; Simon Schwartzman (1939- ) que repensou o Sistema Estatístico Nacional ao presidir o IBGE e a quem devemos nossas primeiras reflexões sobre a sociologia das estatísticas.
  • 10
    Nesse caso, vale avaliar a recepção das resoluções e recomendações dos organismos internacionais no Brasil, desde os primeiros congressos, ocorridos ao tempo do Império, até a lenta consolidação do International Statistical Institute (ISI), fundado em 1885. O exame da composição das delegações oficiais do Brasil encaminhadas às grandes reuniões mundiais, a tradução operada por seus membros aos diferentes governos nacionais, os esforços para institucionalizar a atividade com a criação de órgãos oficiais e associações formais, o intercâmbio com organizações privadas na defesa de atividades correlacionadas (como o campo educacional e o movimento municipalista, no caso brasileiro), a utilização das estatísticas na imprensa periódica, em livros didáticos escolares e nas grandes obras sobre a identidade nacional são alguns horizontes metodológicos indispensáveis para investigar a construção do reconhecimento social do saber estatístico e da posição do estaticista.
  • 11
    Vale citar algumas iniciativas nessa área: o documento "Fundamentos preliminares para uma linha de pesquisa histórica no IBGE", que elaboramos em parceria com Nelson Senra; os dois encontros intitulados A Pesquisa Histórica no IBGE, ocorridos em 2006, quando foram ouvidos vários historiadores e especialistas de renome, que ajudaram a formalizar uma linha de investigação; o citado artigo "Pesquisa histórica das estatísticas: temas e fontes" (Senra, 2008).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2009
    • Recebido
      Jul 2008
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