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CARTA DO EDITOR

Caros leitores,

Queremos dedicar esta edição de História, Ciências, Saúde - Manguinhos ao homem excepcional que acaba de falecer, José Ephim Mindlin, filho de imigrantes judeus vindos da Rússia, ex-jornalista, ex-advogado, empresário e fiel amante da cultura e dos livros. Temos uma razão 'institucional' para fazer essa homenagem. Como membro do conselho da Fundação Vitae, Mindlin teve participação importante na aprovação de projetos do Museu da Vida, da Fundação Oswaldo Cruz, bem como de outros centros culturais ligados à ciência e tecnologia. Mindlin era um dos raros exemplares de empresário que investia em educação e cultura, como fizeram e fazem os grandes magnatas anglo-saxônicos, cujos nomes e fortunas estão associados a universidades, museus e outras instituições de grande importância e prestígio. Na sociedade agrocapitalista brasileira, o hábito de fazer isso foi e é raro - leiam o excelente estudo de Giselle Sanglard, Entre os salões e o laboratório: Guilherme Guinle, a saúde e a ciência no Rio de Janeiro, 1920-1940 (Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, 2008). Essa tradição tem sido incentivada há apenas década e meia pelas leis de incentivo à cultura, que permitem converter impostos devidos ao Estado em investimentos na área - muitas vezes ainda selecionados, infelizmente, por critérios oportunistas de merchandising.

Temos razões pessoais para homenagear José Mindlin, que se acham condensadas na frase: "Num mundo em que o livro deixasse de existir, eu não gostaria de viver".

Millôr Fernandes, em brilhante crônica intitulada "L.I.V.R.O."1 1 Disponível em Amigos do Livro: o portal do livro no Brasil ( http://www.amigosdolivro.com.br/lermais_materias.php?cd_materias=3689; acesso em 5 mar. 2010). , já expôs as razões 'tecnológicas' para defesa desse invento revolucionário que não requer "fios, circuitos elétricos, pilhas. Não necessita ser conectado a nada nem ligado. É tão fácil de usar que até uma criança pode operá-lo. Basta abri-lo!". De fato, o amor a esse objeto modelador da imaginação e inteligência nasce na relação da criança com o livro, e vocês, leitores, como eu, sabem a importância que têm pela vida afora as poderosas e duradouras imagens mentais que formamos nas primeiras leituras. Se forem pais como eu, preocupados em transmitir aos filhos esse sentimento de amor ao livro, nadando contra poderosas correntes, teriam com certeza sentido o mesmo calafrio que experimentei ao deparar com esta cena: em meio a pequena multidão entediada, a aguardar um de nossos crônicos voos (muito) atrasados, uma mãe entretém dois filhos. O mais velho, pré-adolescente, preme nervosamente as teclas de um videogame; o mais novo, de apenas dois anos, também! A incompetência das companhias aéreas e essa cena são, a meu ver, emblemáticas de uma sociedade de consumo supostamente moderna, que devora mercadorias de forma acrítica e rasa. Nessa sociedade sem longa tradição cultural, que superou a escravidão há pouco mais de um século sem se desvencilhar ainda totalmente da mentalidade escravocrata, onde políticos populistas de esquerda ou direita (tanto faz) inauguram tudo menos bibliotecas, já se discerne a onda avassaladora dos e-books em meio à onda avassaladora dos apagões.

Mindlin me levou a um aeroporto, e então peço licença aos leitores para embarcar numa viagem que lhes proporcionará um relance do homem que homenageamos. Transcrevo a seguir relato (inédito) de Miriam Junghans, hoje competente pesquisadora em história das ciências e ótima tradutora de alemão. Abro aspas:

Durante alguns anos da minha vida fui comissária de bordo da saudosa Varig. Naqueles tempos eu tinha o hábito de espiar por sobre os ombros dos meus passageiros para ver o que liam. Podia fazer listas dos dez livros mais lidos a bordo a cada mês, no Brasil e no exterior.

Em um final de tarde tranquilo, voltávamos de Buenos Aires, e um velhinho simpático estava entretido com Bóris Fausto, Negócios e ócios, lançado aquela semana. Quando cheguei com a bandeja do serviço de bordo lhe disse para trocar, por alguns momentos, o alimento do espírito pelo do corpo. Ele concordou, encantado, e depois me chamou para conversar.

Logo estávamos, os dois, entregues a uma troca entusiasmada de ideias sobre livros e leituras. O que sabia eu sobre Bóris Fausto? Ah, sim, eu estudava história, entre um voo e outro. Meu novo amigo gostava muito de história e também de histórias, e logo começamos a descobrir outras felizes afinidades: por exemplo, pertencíamos à tribo dos que não saem de casa, nem para ir à esquina, sem um livro no bolso. Concordamos logo com que todos os livros são viagens, e que se viaja, na maioria das vezes, apenas para poder narrar o que nos aconteceu. Para poder compartilhar, como se faz depois de ler um bom livro.

E, suspensos no ar, a muitos quilômetros de altitude, pusemo-nos a imaginar o que aconteceria se fossemos parar, de repente, numa ilha deserta. Uma mala de viagem é como uma ilha deserta. Há que decidir o que levar para a eternidade. Ele não duvidou nem por um segundo: levaria Proust e, tendo todo o tempo do mundo, poderia reencontrar todos os tempos perdidos. Eu também não tinha dúvida: levaria As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, inigualável metáfora da desmesura dos sonhos humanos, contrapostos à fragilidade do que conseguimos concretizar.

Nosso avião logo começou os procedimentos de descida e, pesarosos, retomamos os papéis que nos cabiam naquele teatro, o bibliófilo e a comissária de bordo.

Tempos depois recebi de meu novo amigo algumas cartas gentilíssimas e alguns livros e artigos. Pesa-me o coração constatar que fui eu que interrompi tão preciosa correspondência. As cidades que imaginamos em nossos sonhos têm alicerces frágeis, e o tempo perdido só volta em momentos como este, quando lembro dos momentos mágicos que compartilhei com José Mindlin.

Até hoje me comove a imensa generosidade que pude perceber nele, generosidade que se expressava sob a forma de amor pelos livros e pelas pessoas que escrevem e lêem livros. Uma insaciável curiosidade pela vida de verdade, além das páginas e dos papéis.

Jaime L. Benchimol

Editor

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    Disponível em Amigos do Livro: o portal do livro no Brasil (
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010
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