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Um panorama da saúde bucal no Brasil

A panorama of buccal health in Brazil

RESENHAS

LIVROS & REDES

Paulo Nadanovsky

Professor do Departamento de Epidemiologia do Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro. nadanovsky@ims.uerj.br

Saúde bucal no Brasil tem o formato de livro de bolso. Integra a coleção Temas em Saúde, da Editora Fiocruz, que busca informar estudantes, profissionais e público em geral sobre os conteúdos fundamentais das áreas de saúde. Eu o li de uma só vez, em menos de três horas. Fui informado de várias coisas de que não sabia, relacionadas principalmente ao histórico da atenção e assistência à saúde bucal no Brasil (Capel e Frazão diferenciam atenção e assistência, o último se referindo ao cuidado pessoal e o primeiro, às atividades não pessoais voltadas para a saúde), desde o período colonial até o presente, com ênfase no período iniciado em 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde. Esse relato histórico encontra-se principalmente nos capítulos 5 ("Saúde bucal: direito?") e 6 ("Saúde bucal no Sistema Único de Saúde"). O capítulo 6 é o mais longo e corresponde a mais de um quarto do livro (40 páginas).

O capítulo 1 - "Saúde bucal" - reafirma três ideias importantes: que saúde bucal não é separada da saúde geral, que não se limita ao estado dos dentes e que a saúde bucal da população não é resultante principalmente da atividade clínica odontológica, mas sim de fatores biológicos, psicológicos e sociais amplos. No capítulo 2 - "Problemas de saúde bucal" - são identificados os problemas prioritários. Acertadamente, a cárie dentária é identificada como o principal deles, constituindo um problema de saúde pública. Os outros são doença pariodontal, má oclusão dentária, fissuras labiopalatais e câncer de boca. Fluorose dentária, traumatismo bucomaxilofacial e cárie dentária radicular foram identificados como problemas emergentes.

O capítulo 3 - "Mutilação dentária e percepção da saúde bucal" - relembra uma associação histórica importante entre expansão do consumo de açúcar e deterioração dos dentes, e consequente extração em massa de dentes destruídos (ou a serem destruídos) pelo açúcar. A lembrança dessa associação é fundamental, pois apesar do declínio marcante na cárie dentária, ocorrido nos últimos trinta anos, e da contribuição do flúor, muitas pessoas ainda são vítimas do problema. Portanto, a população ainda está exposta a uma quantidade exagerada de açúcar na dieta cotidiana.

Ainda nesse mesmo capítulo, dois outros pontos merecem destaque. O primeiro refere-se à tentativa dos dentistas em convencer público e pacientes de que, diante da destruição contínua dos dentes, seria mais indicado a recuperação do que a extração dos dentes. Infelizmente, nesse ponto, nós, profissionais da odontologia, temos que reconhecer que nossas bases não são sólidas. A recuperação de dentes em certas situações é uma tentativa mais complexa, mais dolorosa para o paciente e menos eficaz para a saúde bucal do que a extração. Por exemplo, uma proporção considerável de dentes molares tratados endodonticamente e recuperados/restaurados gera problemas consecutivos para o paciente e acabam tendo que ser extraídos. Nesses casos, o paciente talvez tivesse se beneficiado mais de uma extração inicial, se esta fosse uma opção aceitável para ele. Mas tal postura parece inaceitável para muitos dentistas. Parece-me que existe uma real dificuldade em tomar decisões apropriadas diante de opções de tratamentos factíveis e efetivos. Quanta ênfase deve-se dar ao factível (possível de ser realizado) e quanta ao efetivo (aquela que ao final, provavelmente, trará mais benefício do que custo ao paciente)? Na minha opinião, esse é um ponto a merecer mais atenção de pesquisadores e fazedores de políticas públicas, pois há muitas dúvidas e poucas certezas em relação a vários procedimentos odontológicos preconizados atualmente (por exemplo, checkup semestral ou anual, remoção de tártaro, tratamento ortodôntico e extração de terceiro molar).

O segundo ponto refere-se à importância que o público confere à saúde bucal e à tentativa de evitar que ela seja desvinculada da saúde geral e vista como odontologia (algo separado do sistema de saúde). Não há muita dúvida de que as pessoas, em geral, atribuem importância à saúde bucal para a saúde e a qualidade de vida. Portanto compartilho da idéia de que a sociedade e os governos têm responsabilidade em relação à saúde bucal, tal como em relação a saúde de forma geral.

O capítulo 4 - "Modelos de atenção à saúde bucal" - identifica problemas relacionados ao fato de a odontologia, no Brasil, ser praticada principalmente no consultário particular (Capel e Frazão a identificam como odontologia de mercado). A esse respeito, o problema principal seria a impossibilidade de acesso ao tratamento por parte de pessoas que não podem paga. Além disso, são apresentadas iniciativas históricas de prática odontológica no setor público (estatal) que envolvem não só o atendimento individualizado em consultório odontológico, como também ações populacionais não pessoais (por exemplo, fluoretação da água de abastecimento).

O programa atual de saúde bucal do governo brasileiro, o Brasil Sorridente ("Diretrizes da política nacional de saúde bucal"), é explicado no capítulo 6 - "Saúde bucal no Sistema Único de Saúde". As medidas a serem adotadas são, resumidamente, as seguintes: fluoretação das águas; educação em saúde; higiene bucal supervisionada; aplicação tópica de flúor; diagnóstico precoce; tratamentos para manutenção dos dentes evitando-se a extração; reabilitação (prótese) parcial ou total. Além dessas, devem ser buscadas formas de ampliação de oferta para implementar as medidas de prevenção e controle do câncer bucal; ampliação do pronto-atendimento (emergência); procedimentos mais complexos como pulpotomias, restauração de dentes com cavidades complexas e a fase clínica da instalação de próteses dentárias elementares; e tratamento periodontal não cirúrgico. Também serão implantados e melhorados os Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) - unidades de referência para as equipes de saúde bucal da atenção básica. Os CEOs proverão, por exemplo, tratamentos periodontais cirúrgicos, endodontia, dentística complexa e cirurgia oral menor. Entre as metas para o período 2004-2007 constavam distribuir anualmente 1,9 milhão de kits de higiene bucal e implantar 550 CEOs e 2,8 milhões de procedimentos.

Nessas diretrizes chama a atenção, além dos vários aspectos positivos - sobretudo a preocupação em implementar medidas populacionais de promoção da saúde e aumentar o acesso ao tratamento odontológico -, a ausência de metas de saúde bucal, o pouco detalhamento sobre a definição das medidas a serem implantadas e a inclusão de outras que carecem de evidência científica quanto à efetividade, e a ausência de selantes de fossas e fissuras, o que, se utilizados de forma racional e não universal, direcionados por exemplo a grupos de maior risco, parecem ser altamente efetivos. Quanto ao pouco detalhamento, cita como exemplo o trecho, "o diagnóstico deve ser feito o mais precocemente possível". O que isso significa? Estaria incluído, por exemplo, identificar gengivite precoce e opacidade de esmalte dentário ou manchas brancas? E se esse tipo de lesão for identificada, qual é o procedimento indicado? O custo/benefício de algumas das medidas propostas é provavelmente ruim, entre elas a educação em saúde por dentistas e outros profissionais de saúde bucal; higiene bucal supervisionada em populações que já escovam os dentes com pasta fluoretada; aplicação tópica de flúor em populações que já utilizam pasta de dente fluoretada e, muitas vezes, já bebem água fluoretada; distribuição de kits de higiene bucal em populações que já escovam os dentes com pasta fluoretada. Parece-me que tais questões deveriam ser mais debatidas, com o intuito de aprimorar a política nacional de saúde bucal.

Ao final do capítulo 6 discute-se o significado do termo, saúde bucal coletiva, (SBC). Em certas passagens do texto tive dificuldade de entender o que estava sendo argumentado. Por exemplo, num trecho lê-se:

Pretende-se que a SBC substitua toda forma de 'tecnicismo' e de 'biologismo' presentes nas formulações específicas da área de odontologia social e preventiva, realizando a reconstrução teórica de modo articulado e orgânico com o pensamento e a ação da saúde coletiva, e reforçando o compromisso histórico desta com a qualidade de vida na sociedade em defesa da cidadania, em relação tanto à ação predatória do capital quanto à ação autoritária do Estado (p. 124).

Os termos 'tecnicismo' e 'biologismo' não me são familiares, e imagino que também não o seja para outros leitores do livro, que se dirige também ao público em geral. Portanto seria útil se esses termos tivessem sido definidos. Mesmo presumindo que os autores rejeitem os exageros na incorporação de novas tecnologias e na preocupação com os mecanismos proximais das doenças bucais, não fica claro como a SBC pretende atingir esses objetivos, nem o que a SBC considera 'excesso de tecnologia' e 'excesso de biologia'.

Mais adiante, lemos:

A ruptura epistemológica com a odontologia (de mercado) que a SBC pretende operar implica desenvolver uma práxis que deve, dialeticamente, romper também com a prática odontológica hegemônica. Tal ruptura requer que o trabalho odontológico seja desenvolvido com base na necessidade das pessoas (de todas as pessoas) e que, opondo-se à lógica do mercado, rompa, portanto, com o status quo caracterizado fundamentalmente pela mercantilização dos serviços e pela manutenção do monopólio do acesso aos recursos (todos os recursos) odontológicos pelas elites. Assim, é inerente à SBC uma dupla pretensão: de um lado, quer 'desodontologizar' a saúde bucal; de outro, quer assegurar a todos o acesso a todos os recursos que necessitam para que cuidados odontológicos sejam, efetivamente, um direito humano (p.125).

Uma vez mais não consegui entender a que Capel e Frazão se referem com o termo 'desodontologizar'. Particularmente também sou favorável a um serviço de saúde, incluindo saúde bucal, totalmente público e que esteja fora das leis do mercado. No entanto, os principais problemas da odontologia que são atualmente evidentes na prática particular seriam reproduzidos mesmo se a odontologia fosse socializada, permanecendo graves limitações em relação a acesso a tratamento e resolutividade. Alguns desses problemas advêm de dentistas definirem necessidades de forma inapropriada; proverem tratamentos inefetivos; deixarem de prover tratamentos efetivos; utilizarem tecnologias inapropriadas (caras, de baixo benefício e/ou desconfortáveis); serem ineficientes (utilizam insuficientemente pessoal auxiliar e/ou atendem número menor de pacientes do que poderiam); se comunicarem mal com pacientes e com o público; terem, talvez, expectativas de renda maior do que a sociedade está disposta a pagar - além do excessivo número de dentistas a se formar a cada ano. Nem a política nacional de saúde bucal, nem Capel e Frazão, nesse livro, discutem como resolver várias dessas questões, que a meu ver são cruciais. Talvez acreditem que, com o fim da odontologia particular, esses problemas desapareçam naturalmente, mas esta não é a minha opinião. Como disse, a meu ver essas são questões que transcendem o fato de a odontologia ser particular ou socializada (ou, na terminologia de Capel e Frazão, 'de mercado' ou 'SBC').

No capítulo 7 - "Algumas palavras sobre o futuro" -, experiências de outros países são brevemente comentadas, contrastando odontologia de mercado com odontologia socializada. Considera-se também como os prováveis avanços tecnológicos e na área de planejamento dos serviços de saúde podem influenciar, no futuro, a saúde bucal. Mais uma vez, Capel e Frazão reiteram a importância de ações intersetoriais na promoção da saúde. Chamam a atenção para a vigilância sanitária, a exemplo do monitoramento da qualidade da água e teor de flúor, de dentifrícios, de clínicas e das doenças bucais no nível populacional. Apontam a necessidade de utilizar pessoal auxiliar de forma mais decisiva na odontologia, com o objetivo de aumentar o acesso a tratamento odontológico. Finalmente indicam a necessidade de alterar o sistema brasileiro de formação de recursos humanos odontológicos, tomando-se como referência as indicações contidas nas "Diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação".

O livro é um sucesso, pois consegue oferecer, resumida e objetivamente, um panorama da saúde bucal no Brasil. É bem escrito e, sem dúvida alguma, Capel e Frazão conseguiram atingir com competência o objetivo de informar tanto o profissional quanto o público em geral.

  • Um panorama da saúde bucal no Brasil

    A panorama of buccal health in Brazil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2010
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