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Ciências sociais e educação sanitária: a perspectiva da Seção de Pesquisa Social do Serviço Especial de Saúde Pública na década de 1950

Social sciences and health education: the perspective of the Special Public Health Service's Social Research Section in the 1950s

Resumos

Transcreve e comenta três artigos publicados no Boletim do Serviço Especial de Saúde Pública, no início da década de 1950, pelo sociólogo José Arthur Rios. Os textos em pauta trazem importantes referências para a compreensão de um período no qual projetos de mudança cultural orientaram programas de saúde e, em particular, ações de educação sanitária. Na apresentação, procurou-se contextualizar as atividades realizadas pelo Serviço Especial de Saúde Pública, agência criada em 1942, como resultado de acordo de cooperação entre o governo brasileiro e o norte-americano. Destacam-se ainda aspectos da trajetória de José Arthur Rios e de suas influências intelectuais, propondo-se uma discussão sobre o papel do cientista social em áreas não acadêmicas e na formação de agências e políticas públicas no Brasil.

Serviço Especial de Saúde Pública; história das ciências sociais; educação sanitária; mudança cultural; ciências sociais em saúde


The article transcribes and comments on three papers published by sociologist José Arthur Rios in the Boletim do Serviço Especial de Saúde Pública in the early 1950s. These texts stand as valuable references in understanding a period in which projects for cultural change guided health programs and especially health education initiatives. The article begins by portraying the backdrop against which the Special Public Health Service conducted its activities following its 1942 creation as the result of a cooperation agreement between the Brazilian and U.S. governments. Aspects of José Arthur Rios' professional trajectory and intellectual influences are also examined, and the role of the social scientist in non-academic areas and in the shaping of public agencies and policies in Brazil is discussed.

Special Public Health Service; history of the social sciences; health education; cultural change; social sciences in health


FONTES

Ciências sociais e educação sanitária: a perspectiva da Seção de Pesquisa Social do Serviço Especial de Saúde Pública na década de 1950

Social sciences and health education: the perspective of the Special Public Health Service's Social Research Section in the 1950s

Nísia Trindade LimaI; Marcos Chor MaioII

IPesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). lima@coc.fiocruz.br

IIPesquisador da COC/Fiocruz. maio@coc.fiocruz.br. Avenida Brasil, 4036/400, 21040-361 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil

RESUMO

Transcreve e comenta três artigos publicados no Boletim do Serviço Especial de Saúde Pública, no início da década de 1950, pelo sociólogo José Arthur Rios. Os textos em pauta trazem importantes referências para a compreensão de um período no qual projetos de mudança cultural orientaram programas de saúde e, em particular, ações de educação sanitária. Na apresentação, procurou-se contextualizar as atividades realizadas pelo Serviço Especial de Saúde Pública, agência criada em 1942, como resultado de acordo de cooperação entre o governo brasileiro e o norte-americano. Destacam-se ainda aspectos da trajetória de José Arthur Rios e de suas influências intelectuais, propondo-se uma discussão sobre o papel do cientista social em áreas não acadêmicas e na formação de agências e políticas públicas no Brasil.

Palavras-chave: Serviço Especial de Saúde Pública; história das ciências sociais; educação sanitária; mudança cultural; ciências sociais em saúde.

ABSTRACT

The article transcribes and comments on three papers published by sociologist José Arthur Rios in the Boletim do Serviço Especial de Saúde Pública in the early 1950s. These texts stand as valuable references in understanding a period in which projects for cultural change guided health programs and especially health education initiatives. The article begins by portraying the backdrop against which the Special Public Health Service conducted its activities following its 1942 creation as the result of a cooperation agreement between the Brazilian and U.S. governments. Aspects of José Arthur Rios' professional trajectory and intellectual influences are also examined, and the role of the social scientist in non-academic areas and in the shaping of public agencies and policies in Brazil is discussed.

Keywords: Special Public Health Service; history of the social sciences; health education; cultural change; social sciences in health.

Que papel cabe ao cientista social nos programas de saúde pública? Esta pergunta, de indiscutível atualidade, motivou, no início da década de 1950, a elaboração dos três artigos que reproduzimos nesta seção. Redigidos pelo sociólogo José Arthur Rios e publicados originalmente no Boletim do Serviço Especial de Saúde Pública, os textos - "A saúde como valor social" (n.33, p.2-3, abr. 1953); "Ciências sociais e saúde pública" (n.38, p.2-3, set. 1953) e "Informar e convencer" (n.35, p.5-6, jun. 1953) - nos trazem importantes referências para a compreensão das ideias, valores, tensões e apostas próprias a um período no qual projetos de mudança cultural orientaram programas de saúde e, em particular, ações de educação sanitária.

Tais projetos não se restringiram à experiência brasileira. Desde o início da década de 1950, cientistas sociais na América Latina, com o apoio de agências norte-americanas, participaram de programas de saúde pública orientados pela perspectiva do que, à época, se denominava mudança social provocada ou dirigida, no contexto do pós-guerra, da Guerra Fria e do processo de descolonização. Em 1951, o Instituto de Assuntos Interamericanos, principal agência norte-americana de cooperação e assistência técnica em saúde em operação durante e após a Segunda Guerra Mundial, junto com o Instituto de Antropologia Social (ISA, na sigla em inglês), unidade da Smithsonian Institution, firmaram um acordo que marcou o engajamento de antropólogos em programas de saúde na América Latina, caracterizando especialmente a associação das ciências sociais com o desenvolvimento do Terceiro Mundo (Huffhines, 2004, p.3). Esse período também constitui importante capítulo da história das ciências sociais aplicadas (Figueiredo, 2009; Maio, Lima, 2009).

Em 1950, George Foster, diretor do ISA, coordenou um conjunto de pesquisas na Colômbia, México, Peru e Brasil sobre centros de saúde, sob o patrocínio do governo norte-americano. Fizeram parte também do projeto os antropólogos Charles Erasmus, Ozzie Simons, Kalervo Oberg e Isabel Kelly. O relatório, publicado em 1951, dedicou especial atenção às relações entre a população e os centros de saúde nos diversos países. Tratava-se de um projeto de 'engenharia humana' ou engenharia social, em que, segundo Foster (1951, p.2), a participação de cientistas sociais era de fundamental importância em programas de assistência técnica, "por chamar a atenção dos administradores dos meios os quais os padrões tradicionais de ação podem facilmente ser modificados e aqueles que são mais fortemente resistentes" (Maio, Lima, 2009). Os cientistas sociais envolvidos no programa verificaram que a medicina popular exercia grande influência sobre a população, que, por esse motivo, pouco frequentava os centros de saúde. O grande desafio consistia em sensibilizar a população ao uso da medicina científica ou moderna (Foster, 1951).1 1 O antropólogo Luiz Fernando Fontenelle, integrante da então Seção de Pesquisa Social do Sesp, realizou pesquisa em meados de 1950 em Aimorés (MG), onde analisou a resposta da população do município aos preceitos da educação sanitária (Fontenelle, 1959).

Preocupações semelhantes orientaram o Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), agência criada em 1942 a partir de acordo de cooperação entre o governo brasileiro e o norte-americano para atuar em áreas de interesse estratégico, mais especificamente na Amazônia e no vale do rio Doce (Campos, 2006).

A Divisão de Educação Sanitária do Sesp foi criada em 1944 e coordenada pelo antropólogo Charles Wagley, um dos idealizadores do programa de educação em saúde daquele organismo. Wagley, que realizava pesquisas no Brasil desde os anos 1930, integrava naquela ocasião o quadro administrativo da agência. Ao longo de três anos e meio, ele exerceu as seguintes funções: diretor do programa de migração para a Amazônia, coordenando os serviços médicos à população que se deslocava para trabalhar na região; assistente do superintendente; e diretor da Divisão de Educação Sanitária (Wagley, 1953, p.VIII; Maio, Lima, 2009).

Nos anos 1950, o Sesp tornou-se gradativamente um amplo órgão voltado para os problemas de saúde pública do Brasil (Campos, 2006). E foi nesse processo que se criou, em 1953, no âmbito da Divisão de Educação Sanitária, a Seção de Pesquisa Social, sob a liderança do sociólogo José Arthur Rios. Coube a ele definir os objetivos das ações de pesquisa e da pedagogia a serem empreendidas junto às populações rurais que eram alvo da atuação da agência. E foi com a criação dessa seção que ocorreu a efetiva incorporação de cientistas sociais nas atividades de educação sanitária. Nela atuaram pesquisadores brasileiros com formação em universidades norte-americanas, além de consultores da Escola Livre de Sociologia e Política e do Smithsonian Instituto de Antropologia Social, com a colaboração da Divisão de Saúde e Saneamento do Instituto de Assuntos Inter-Americanos (Iaia). Dela participaram os antropólogos Kalervo Oberg e Luiz Fernando Fontenelle e os sociólogos José Arthur Rios e Carlos Alberto de Medina. A ciência social então praticada enfatizava a importância do desenvolvimento de comunidades rurais para o processo de mudança social (Maio, Lima, 2009).

O quadro até o momento esboçado teve por objetivo contribuir para a compreensão dos condicionantes da criação do Sesp e, mais especificamente, dos artigos publicados por José Arthur Rios e aqui reproduzidos. Antes, porém, de apresentarmos seu conteúdo, parece-nos adequado tecer breve comentário sobre a trajetória do sociólogo, cuja carreira intelectual e profissional, nos anos que antecederam seu ingresso no Sesp, revela grande riqueza e nos permite também pensar no papel do cientista social em áreas não acadêmicas e na formação de agências e políticas públicas no Brasil, principalmente a partir da década de 1950.

Do mesmo modo que outros cientistas sociais de sua geração, José Arthur Rios não se graduou nessa área, mas em direito, ainda que tenha cursado, sem concluí-lo, o curso de ciências sociais na Faculdade Nacional de Filosofia. Após lecionar história e literatura em ginásios e na Faculdade Santa Úrsula, foi para os Estados Unidos em 1946, onde cursou, sob orientação de Lynn Smith, o mestrado em sociologia rural na Universidade de Lousiana. Smith, um dos mais destacados sociólogos rurais norte-americanos e bastante reconhecido no Brasil nas décadas de 1940 e 1950, manteve estreito relacionamento profissional e pessoal com Rios, convidando-o posteriormente a ministrar cursos na Universidade de Vanderbilt, em Nashville, em 1948, e na Universidade da Flórida, em 1964 (Rios, 2006).

Na Universidade de Vanderbilt, o sociólogo brasileiro estabeleceu contato com Emilio Willems, cientista social de nacionalidade alemã que construíra sua carreira acadêmica no Brasil, como professor da Escola Livre de Sociologia e Política e da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Willems era reconhecido, naquele momento, como uma das mais importantes referências para o estudo dos ritmos desiguais nos processos de mudança cultural, tendo-se dedicado ao estudo de populações caboclas ou rústicas, como as denominava, e aos processos de assimilação de imigrantes (Corrêa, 1987; Lima, 1999; Villas Bôas, 2000). De acordo com José Arthur Rios (2006), a compreensão da agricultura cabocla, tal como discutida em artigo de Willems, no qual enfatiza alguns aspectos positivos que deveriam ser levados em conta nas ações direcionadas para a modernização, propiciou a base teórica necessária às atividades que viria a realizar entre 1952 e 1953, quando foi convidado a organizar a Campanha Nacional de Educação Rural, vinculada ao Ministério de Educação e Saúde. Para isso também concorreram a metodologia de pesquisa empírica adotada na universidade norte-americana e os trabalhos de organização de comunidades que Rios teve a oportunidade de conhecer nos Estados Unidos.

Outra contribuição relevante para seu trabalho na educação rural decorreu do contato com o padre dominicano francês Louis-Joseph Lebret, criador do movimento Economia e Humanismo, apresentado como uma alternativa humana e solidária tanto aos problemas do capitalismo quanto à proposta comunista (Valladares, 2005). O padre dominicano visitou o Brasil pela primeira vez em 1947, para ministrar um curso na Escola Livre de Sociologia e Política a convite da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).2 2 As principais referências sobre a atuação de Lebret no Brasil indicam sua forte presença no planejamento urbano de cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Recife e em estudo realizado no final da década de 1950 sobre as favelas do Rio de Janeiro, que contou com José Arthur Rios como diretor técnico da pesquisa (Valladares, 2005; Leme, Lamparelli, 2001; Pelletier, 1996). Estabeleceu, então, relações com importantes lideranças intelectuais e políticas, a exemplo do engenheiro Lucas Garcez, que viria a governar o estado de São Paulo de 1951 a 1954, e do médico Josué de Castro, que, durante o segundo governo de Getúlio Vargas, realizou uma grande pesquisa nacional sobre condição de vida, baseado no método de pesquisa proposto pelo padre dominicano. Já em 1947 foi criado, em São Paulo, o escritório de planejamento da Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas Aplicadas aos Complexos Sociais (Sagmacs). A seguir estabeleceram-se novos escritórios em Belo Horizonte e Recife e, por fim, no Rio de Janeiro, e todos contaram com ativa participação do criador do movimento Economia e Humanismo (Valadares, 2005).

Lebret dirigia o Centro de Pesquisa de Economia e Humanismo em La Tourette, próximo a Lyon, na França, onde esteve José Arthur Rios em 1950, após participar do 1º Congresso Internacional de Sociologia. Em entrevista concedida à Casa de Oswaldo Cruz, este último ressaltou a importância do treinamento em pesquisa empírica nos Estados Unidos e da orientação prática da metodologia proposta pelo padre dominicano para as ações da Campanha Nacional de Educação Rural. Em suas palavras: "eu introduzo, através da campanha, as técnicas de pesquisa do padre Lebret; fiz uma costura entre as técnicas de pesquisa do sociólogo e o método de pesquisa do padre Lebret" (Rios, 2006).

A campanha contou com a participação de representantes estaduais e, no âmbito da coordenação, com o geógrafo Miguel Alves de Lima e o sociólogo Carlos Alberto de Medina, que viria a trabalhar novamente com José Arthur Rios no Sesp e, posteriormente, em pesquisa realizada pela Sagmacs nas favelas cariocas, no final da década de 1950.3 3 Conforme seu depoimento (Rios, 2006), após a saída do Sesp e depois de exercer a advocacia por curto período, José Arthur Rios passou a dirigir, no Rio de Janeiro, um escritório de pesquisas sob orientação inicial do padre Lebret. Em 1958 foi contratado pelo jornal O Estado de S.Paulo, para realizar ampla pesquisa sobre as favelas do Rio de Janeiro, publicada no periódico sob o título "Aspectos humanos da favela carioca". A repercussão desse trabalho levou o governador do recém-criado estado da Guanabara, Carlos Lacerda, a convidá-lo para assumir a Secretaria de Assuntos Sociais (uma secretaria das favelas, conforme observação do sociólogo); sua saída do cargo decorreu da mudança na orientação para as favelas, com a adoção da política de remoções. De 1964 a 1967, participou do Conselho da Capes e de 1966 a 1968, da Comissão Fullbright. De 1969 a 1976 foi professor de Sociologia da PUC-Rio. Durante a década de 1970 participou de várias iniciativas educacionais no país e de programas de agências internacionais, sobretudo na ONU, tendo sido membro do Conselho Consultivo do Instituto Latino-americano de Pesquisas Criminais. Nessa área da criminologia realiza atividades até o presente, tendo integrado o Conselho de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, de 1986 a 1989. A partir de 1993, passou a participar da União dos Juristas Católicos, que tem por finalidade o debate dos problemas da modernidade à luz da doutrina católica. É membro do Pen Clube do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Publicou vários artigos e livros, entre os quais destacamos, pela reflexão sobre o papel da educação na Fundação Sesp, Educação dos grupos (Rios, 1954). A experiência na educação rural foi decisiva para o trabalho da Seção de Pesquisa Social do Sesp. Naquela primeira iniciativa consolidou-se uma percepção sobre o trabalho educativo e a importância do conhecimento sociológico sobre as populações rurais que eram alvo das políticas públicas. À luz de tal compreensão se elaboraram os artigos aqui transcritos.

Importa observar que o Boletim do Sesp, no qual os artigos foram veiculados, passou a ser editado pela Divisão de Educação Sanitária em 1953, um indicador da importância dessa atividade na constituição de uma identidade 'sespiana'. De acordo com perspectiva da época, todo profissional dos quadros da agência - médicos, enfermeiros, visitadores, administradores - deveria realizar uma ação pedagógica. Aos sociólogos caberia orientar tal pedagogia, por meio de atividades de treinamento dos demais profissionais e da pesquisa na comunidade, conduzida também para identificação de lideranças que apoiariam a ação dos sanitaristas. Nesse trabalho de levantamento de dados e organização de comunidade, evidencia-se a influência do método de trabalho do padre Lebret.

No primeiro artigo aqui publicado, "A saúde como valor social", Rios refere-se à natureza histórica do valor social atribuído à saúde, argumentando que sua caracterização como uma finalidade desenvolveu-se em países de cultura urbana e que, por esse motivo, seria extremamente difícil que tal concepção surgisse em áreas rurais de economia pré-capitalista. Ou seja, a afirmação da saúde como valor seria algo externo às populações-alvo das ações do Sesp e, portanto, se trataria de "dinamizar as comunidades paralisadas pela rotina cultural" (p.3).

Na visão de Rios, o educador sanitário deveria estar atento ao "lastro cultural" dos diversos grupos sociais. A recepção de novas práticas médicas não ocorreria em ambiente necessariamente favorável; o profissinal deveria "vencer resistências culturais, remover práticas já radicadas na estrutura dos hábitos, cristalizadas em atitudes. Não se trata de escrever novas palavras num livro em branco, mas de raspar caracteres já gravados pelo penetrante estilete da tradição cultural" (p.2). A expressão "raspar caracteres" denota certa ambivalência ao reconhecer a importância da cultura, seu papel na sedimentação dos comportamentos das populações rurais e, simultaneamente, creditar aos atores do campo da saúde a missão de transformar hábitos e valores dessas populações - em suma, de promover a mudança cultural.

No segundo artigo, "Ciências sociais e saúde pública", discute-se o papel específico do sociólogo, que, na perspectiva de José Arthur Rios, não deveria monopolizar o planejamento, tampouco se confundir com o gestor das políticas em pauta. A primeira tarefa do sociólogo seria "servir de intérprete nessa conversa, traduzir a cultura do assistido nos termos racionais e científicos do grupo cultural que o administrador representa...". Os quatro pontos a seguir resumiriam a função do cientista social nos programas de saúde pública: (1) fazer o levantamento prévio da comunidade, para facilitar o planejamento do trabalho sanitário; (2) determinar os grupos e descobrir os líderes da comunidade que servirão como marcos de referência e vanguarda na ação do sanitarista; (3) alertar a autoridade sanitária para os pontos frágeis do trabalho, para os focos de conflito e desajustamento; e (4) manter o administrador informado sobre as técnicas de trabalho de grupo e sobre os resultados positivos ou negativos de sua ação na comunidade (p.3).

"Informar e convencer", o terceiro artigo, apresenta discussão de grande importância, em torno da qual seria possível propor um amplo diálogo acerca de outras contribuições coetâneas, a exemplo de textos de Emilio Willems e Florestan Fernandes sobre mudança social, publicados ao longo das décadas de 1940 e 1950 (Lima, 1999; Maio, Lima, 2009; Maio, 2009). Os principais conceitos mobilizados - mudança cultural, resistência cultural e inércia cultural - estiveram presentes nos fóruns em que se debatiam o desenvolvimento de comunidades rurais e as resistências à mudança (Anais..., 1960). Com base nessa discussão sobre mudança cultural, o autor tece crítica aguda ao uso de material educativo pelos programas de saúde pública, quer os impressos, quer as palestras ou mesmo as técnicas audiovisuais. Tal trabalho seria inócuo se não houvesse a preocupação com o conhecimento da vida cultural das comunidades, acompanhada pela identificação de lideranças e o desenvolvimento de comunidades como fatores de mudança orientada.

Com efeito, mudança social dirigida e resistências culturais à mudança foram termos frequentes nos debates intelectuais e políticos no Brasil e em outros países da América Latina, durante a década de 1950. Deles participavam economistas, sanitaristas, médicos com atuação no campo da nutrição e cientistas sociais; no caso destes últimos, tanto os que atuavam nos espaços universitários em que se institucionalizavam os cursos e o campo profissional dessas ciências, como os que participavam de projetos de desenvolvimento implementados por agências estatais e organismos internacionais, sobretudo os que se voltavam para as áreas rurais.

É verdade que pensar em termos como distância cultural, atraso e rotina das populações rurais não consistia uma novidade, se considerarmos a tradição intelectual brasileira. Desde o início do século XX, visões as mais diversas colocavam em relevo a posição de intelectuais que consideravam tais populações indolentes, atrasadas ou mesmo doentes (Lima, 1999). Contudo, a partir da década de 1940, em trabalhos como os de Emilio Willems, emerge a defesa do papel do cientista como ator crucial nos processos de mudança social. Segundo a perspectiva desse sociólogo, muitos dos erros cometidos na tentativa de desenvolver ações pedagógicas junto a populações sertanejas ou rurais eram atribuídos a medidas que consideravam inadequadamente seu contexto cultural: "Para os médicos, o caboclo é um doente e um subalimentado; para o educador todo mal reside no analfabetismo; o agrônomo verifica a inexistência de conhecimentos racionais de agricultura; os economistas dão pela falta de crédito, de mercados e meios de comunicação; os moralistas desejam erradicar certos vícios e assim por diante" (Willems, 1944, p.21). Segundo o autor, esses especialistas não poderiam ignorar o papel das ciências sociais, especialmente da sociologia e da antropologia, às quais se poderiam associar a ecologia, a demografia e a psicologia social, na elaboração de planos científicos voltados à análise cultural e organização do processo de transição para uma sociedade moderna.

O que a experiência do Sesp e os artigos de José Arthur Rios nos indicam é a proposição de um novo papel e de um método de ação para o cientista social e o sociólogo em particular. Rotina cultural e resistência, termos que hoje nos parecem tão distantes na análise dos programas de saúde pública, foram apontados como obstáculos a superar.

José Arthur Rios faz parte de uma 'tradição esquecida', caracterizada pela atuação de sociólogos em organismos públicos - a exemplo de Guerreiro Ramos -, que vem sendo recuperada recentemente, sobretudo no campo da saúde pública (Maio, Lima, 2009; Figueiredo, 2009; Maio, Lopes, 2009, Campos, 2006; Oliveira, 1995). No âmbito da burocracia estatal, o autor dos artigos que transcrevemos criou espaços para a produção e disseminação de conhecimento científico tendo em vista a realização de projetos de intervenção social. Desse modo, seu trabalho representa um importante capítulo da história das ciências sociais brasileiras.

NOTAS

  • ANAIS... Anais do Seminário Nacional sobre as Ciências Sociais e o Desenvolvimento de Comunidade Rural no Brasil Rio de Janeiro: Serviço Social Rural. 1960.
  • CAMPOS, André Luiz Vieira de. Políticas internacionais de saúde na era Vargas: o Serviço Especial de Saúde Pública, 1942-1960. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2006.
  • CORRÊA, Mariza (Org.). História da antropologia no Brasil (1930-1960): testemunhos - Emílio Willems e Donald Pierson. v.1. Campinas: Editora da Unicamp. 1987.
  • FIGUEIREDO, Regina E.D. Histórias de uma antropologia da 'boa vizinhança': um estudo sobre o papel dos antropólogos nos programas interamericanos de assistência técnica e saúde no Brasil e no México (1942-1960). Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2009.
  • FONTENELLE, L.F. Raposo. Aimorés: análise antropológica de um programa de saúde. Rio de Janeiro: Dasp/ Serviço de Documentação. 1959.
  • FOSTER, Geroge M. et al. A cross-cultural anthropological analysis of a technical Aid program Washington D.C.: Smithsonian Institution. 1951.
  • HUFFHINES, G. Erwin. Register of the records of the Institute of Social Anthropology: Smithsonian Institution, 1942-1952. Revised, Meghan Gelardi. Suitland, MD: National Anthropological Archives/Smithsonian Institution. Disponível em: http://www.nmnh.si.edu/naa/fa/isa.pdf Acesso em: jun. 2010. 2004.
  • LEME, Maria Cristina da Silva; LAMPARELLI, Celso. A politização do urbanismo no Brasill: a vertente católica. Trabalho apresentado no 9. Encontro Nacional da Anpur, Rio de Janeiro. 2001.
  • LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan; Iuperj; Ucam. 1999.
  • MAIO, Marcos Chor. Estudos de comunidade e relações raciais: o convênio Columbia University/Estado da Bahia/ Unesco na década de 1950. Cadernos de Campo, São Paulo, v.18, p.257-271. 2009.
  • MAIO, Marcos Chor; LIMA, Nísia Trindade. Tradutores, intérpretes ou promotores de mudança?: cientistas sociais, educação sanitária rural e resistências culturais (1940-60). Sociedade & Estado, Brasília, v.24, n.2, p.529-561. 2009.
  • MAIO, Marcos Chor; LOPES, Thiago da Costa. Saúde e infância na sociologia de Guerreiro Ramos (1943 - 1952). In: Simpósio Nacional de História, 25., 2009, Fortaleza. Anais... S.l.: Associação Nacional de História. 1 CD. 2009
  • OLIVEIRA, Lucia Lippi. A sociologia do Guerreiro Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. 1995.
  • PELLETIER, Denis.1996 Économie et humanisme: de l´utopie communautaire au combat pour le Tiers Mond, 1941-1966. Paris: Cerf. 1996.
  • RIOS, José Arthur. Entrevista realizada por Nísia Trindade de Lima, Marcos Chor Maio e José Leandro Cardoso. 2006.
  • RIOS, José Arthur. Educação de grupos. Rio de Janeiro: SNES. 1954.
  • VALLADARES, Licia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem à favela. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2005.
  • VILLAS BÔAS, Glaucia. De Berlim a Brusque, de São Paulo a Nashville: a sociologia de Emílio Willems entre fronteiras. Tempo Social, São Paulo, v.12, n.2, p.171-188. 2000.
  • WAGLEY, Charles. A study of man in the tropics New York: Macmillan. 1953.
  • WILLEMS, Emilio. O problema rural do ponto de vista antropológico São Paulo: Secretaria da Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo. 1944.
  • 1
    O antropólogo Luiz Fernando Fontenelle, integrante da então Seção de Pesquisa Social do Sesp, realizou pesquisa em meados de 1950 em Aimorés (MG), onde analisou a resposta da população do município aos preceitos da educação sanitária (Fontenelle, 1959).
  • 2
    As principais referências sobre a atuação de Lebret no Brasil indicam sua forte presença no planejamento urbano de cidades como São Paulo, Belo Horizonte e Recife e em estudo realizado no final da década de 1950 sobre as favelas do Rio de Janeiro, que contou com José Arthur Rios como diretor técnico da pesquisa (Valladares, 2005; Leme, Lamparelli, 2001; Pelletier, 1996).
  • 3
    Conforme seu depoimento (Rios, 2006), após a saída do Sesp e depois de exercer a advocacia por curto período, José Arthur Rios passou a dirigir, no Rio de Janeiro, um escritório de pesquisas sob orientação inicial do padre Lebret. Em 1958 foi contratado pelo jornal
    O Estado de S.Paulo, para realizar ampla pesquisa sobre as favelas do Rio de Janeiro, publicada no periódico sob o título "Aspectos humanos da favela carioca". A repercussão desse trabalho levou o governador do recém-criado estado da Guanabara, Carlos Lacerda, a convidá-lo para assumir a Secretaria de Assuntos Sociais (uma secretaria das favelas, conforme observação do sociólogo); sua saída do cargo decorreu da mudança na orientação para as favelas, com a adoção da política de remoções. De 1964 a 1967, participou do Conselho da Capes e de 1966 a 1968, da Comissão Fullbright. De 1969 a 1976 foi professor de Sociologia da PUC-Rio.
    Durante a década de 1970 participou de várias iniciativas educacionais no país e de programas de agências internacionais, sobretudo na ONU, tendo sido membro do Conselho Consultivo do Instituto Latino-americano de Pesquisas Criminais. Nessa área da criminologia realiza atividades até o presente, tendo integrado o Conselho de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça, de 1986 a 1989. A partir de 1993, passou a participar da União dos Juristas Católicos, que tem por finalidade o debate dos problemas da modernidade à luz da doutrina católica. É membro do Pen Clube do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Publicou vários artigos e livros, entre os quais destacamos, pela reflexão sobre o papel da educação na Fundação Sesp,
    Educação dos grupos (Rios, 1954).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010
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