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A história da ciência pelo olhar do historiador

The history of science from the historian's perspective

LIVROS & REDES

A história da ciência pelo olhar do historiador

The history of science from the historian's perspective

Anny Jackeline Torres Silveira

Professora do Colégio Técnico da Universidade Federal de Minas Gerais. Av. Presidente Antônio Carlos, 6627. 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil. anejack@terra.com.br

Há pouco mais de três décadas a ciência era objeto que mobilizava escasso interesse em meio aos historiadores. Vista como domínio da reflexão filosófica voltada para o exame lógico-epistemológico ou de profissionais interessados no registro do passado de suas próprias disciplinas, escrevia-se a história da ciência dominada por abordagens que, na maioria, se caracterizavam por análise internalista, atemporal e socialmente desenraizada ou por narrativa convencional, linear, informada pelos postulados do progresso inexorável e da genialidade. A renovação surgida nas abordagens sobre a produção da ciência no âmbito da filosofia e da sociologia a partir de meados do século XX, além das mudanças vivenciadas pela própria disciplina da história no decorrer desse período, contribuiu para ampla redefinição desse quadro.

Nos anos recentes a postura negligente foi substituída por interesse crescente em torno da ciência, vista então como uma das formas de saber humano, como produto cultural intrinsecamente vinculado ao processo histórico e social. A percepção de que a ciência e sua produção são historicamente contextualizadas e o diálogo interdisciplinar favoreceram o aumento significativo não apenas de pesquisas, como também dos objetos e problemas propostos para análise, das fontes documentais utilizadas e das opções teóricas de abordagem. No Brasil essa mudança pode ser observada pelo surgimento de sociedades, instituições de pesquisa e programas de pós-graduação; pelo incremento de publicações, periódicos, eventos acadêmicos; pelo estabelecimento de apoio específico através das agências de financiamento; e pela ampliação do público interessado na temática - todos elementos constituintes do que podemos chamar de um processo de constituição do campo da história da ciência no país.

O livro Ciência, história e historiografia, publicado em 2008, é bom termômetro para se verificar como a história da ciência foi integrada à agenda dos historiadores e como esse campo de pesquisa foi transformado no país durante esse período. O volume é composto por 28 textos que refletem sobre temas diversos associando história e ciência e produzidos por estudiosos oriundos, quase todos, de instituições de pesquisa do Rio de Janeiro e de São Paulo. Parte dos trabalhos foi originalmente escrita para apresentação no seminário História das Ciências no Brasil, realizado na cidade do Rio de Janeiro em 2006 pelo Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast), em comemoração aos 21 anos de atividades da instituição. Como informam as organizadoras, pesquisadoras da instituição, a publicação que veio a lume em 2008 também traz contribuições de autores que não estiveram presentes ao evento.

Os trabalhos que integram a coletânea oferecem ao leitor amplo painel sobre as possibilidades de diálogo entre o campo da história das ciências e as novas abordagens - metodológicas, temáticas e documentais - que transformaram a escrita da história. Apesar do reconhecido caráter interdisciplinar da história da ciência, advertem as organizadoras, o objetivo que informou o projeto, quer do seminário ou da publicação, era enfatizar "o olhar do historiador ao objeto das ciências", contemplando "os pontos de intercessão entre a produção historiográfica mais recente sobre as ciências e a historiografia brasileira que lida com temas e questões convergentes à área" (p.7). Nessa perspectiva, um dos elementos que perpassam as análises é a preocupação em abordar a produção e a escrita da ciência e da história da ciência como atividades inseridas no tempo, como saber moldado pelas interações sociais, políticas, econômicas e culturais predominantes em momentos históricos definidos. Mais do que as proposições lógico-formais, o interesse dos autores volta-se para a práxis científica e suas interações e implicações na vida social.

Os textos abordam temas diversos, que vão de projetos e práticas ligados à institucionalização de disciplinas científicas - como engenharia, medicina, meteorologia e história - à atuação de cientistas e à construção de perfis profissionais, espaços, aparatos, objetos e veículos de divulgação associados à produção da ciência, além do papel das representações e da circulação de saberes e as tensões presentes na constituição do discurso científico. Ao lado dessa diversidade temática, a riqueza de abordagens sugere ao leitor a amplitude de perspectivas pelas quais a história tem dialogado com a ciência. Noções como modernização, nacionalidade, natureza, poder, política, civilização, educação, objetos/artefatos, divulgação, representação, patrimônio funcionam como porta de entrada para a problematização da ciência, como lentes pelas quais se definem as questões colocadas ao conhecimento. O período abordado é bastante amplo, recuando aos séculos XVI e XVII, mas com significativa concentração em instituições, personagens, teorias e práticas científicas que remetem ao período compreendido entre a segunda metade do século XIX e a primeira do XX.

O livro está dividido em quatro grandes seções, além do texto de apresentação elaborado pelas organizadoras. O primeiro módulo, Ciência, Nação e Poder, reúne sete trabalhos que examinam a produção e institucionalização do saber científico e suas relações com o sentido de nacionalidade. Uma das questões discutidas refere-se ao modo pelo qual certos elementos que compunham o imaginário construído em torno da ideia de nação foram 'apropriados' como instrumentos de mediação profissional e política por grupos, personagens e instituições científicas de finais do século XIX e início do XX. O tema é tratado nas análises de Pedro Eduardo Mesquita de M. Marinho sobre o Instituto Politécnico e o Clube de Engenharia; de Maria Amélia Dantes e Margarida de Souza Neves, sobre as disputas em torno da regulamentação das práticas de cura e das teorias sobre a epilepsia; e de Christina Helena Barboza, em estudo sobre a trajetória da meteorologia no Observatório Nacional. Outro aspecto explorado diz respeito às articulações e tensões que se estabelecem entre o discurso nacional e alguns projetos estrangeiros de cooperação, como se observa nos textos de Gilberto Hochman, sobre as interações entre organizações internacionais e conformação das estruturas e políticas sanitárias durante o governo Vargas; e de Marta de Almeida, sobre a interferência das rivalidades nacionais no projeto de consolidação de uma medicina latino-americana, no interior dos Congressos Médicos Latino-Americanos realizados entre 1901 e 1922. Fecha a seção o diálogo entre ciência e pintura histórica proposto por Maria Ligia Coelho Prado, que associa conhecimento científico, imaginário nacional e o tema da febre amarela.

O conjunto de textos da seção Ciência, Trajetórias e Biografias oferece diferentes exemplos da renovação verificada nos estudos biográficos a partir da década de 1980. Negligenciada durante muito tempo pela historiografia dominada pelo paradigma estruturalista, em virtude de sua identificação com um modelo de história tradicional (Schmidt, 1997, p.5), a abordagem de cunho biográfico tem contribuído significativamente para a superação de uma perspectiva descarnada da ciência, revelando inter-relações entre a prática científica e as diferentes dimensões da experiência de vida do biografado. É o que nos sugerem os textos de Antônio Augusto dos Passos Videira e Silvia F. de M. de Figueirôa, sobre Guido Beck e Guilherme Schüh de Capanema, respectivamente. Essa percepção do cientista como sujeito inserido em seu tempo também está presente na análise de Nísia Trindade Lima sobre as excursões científicas de Roquette-Pinto e Arthur Neiva e Belisário Penna, ao mostrar a autora como as imagens do sertão produzidas a partir dessas viagens são perpassadas tanto por uma percepção de ciência de matriz iluminista quanto por tradição romântica. O artigo de Nara Azevedo, Luiz Otávio Ferreira e Bianca A. Cortes volta-se para a associação entre gênero e ciência, afirmando que a modernização capitalista operada na sociedade brasileira a partir da década de 1920, em especial no âmbito das políticas públicas edu-cacionais, contribuiu para expressiva transformação na escolarização e nas perspectivas de profissionalização femininas, e favoreceu o ingresso das mulheres no ensino superior como também nas carreiras científicas. Ao examinar a trajetória de Delgado de Carvalho e Luiz Camillo de Oliveira Penna, Marieta de Moraes Ferreira discute diferentes projetos em torno da institucionalização do ensino universitário de história no Rio de Janeiro. Os últimos trabalhos que compõem a seção, escritos por Ricardo Salles e Renato Lemos, são dedicados a Joaquim Nabuco e Benjamim Constant. Nos dois a ciência surge como elemento de interlocução para a apreensão de determinados posicionamentos intelectuais e políticos dos atores em estudo.

A terceira seção reúne oito trabalhos sob o título Artefatos e Visões da Modernidade. Os dois primeiros filiam-se aos estudos em ciência, tecnologia e sociedade (CTS) e abordam a noção de híbrido como sendo associada à percepção de ciência que advoga a superação de uma visão de mundo instituída com a modernidade, fundada em categorias estanques, como natureza e sociedade, e substituídas pela noção de 'rede de atores', que congrega séries heterogêneas de elementos animados e inanimados, humanos e não humanos, conectados e agenciados. É essa noção de híbrido que fundamenta a análise de Henrique Luiz Cukierman, sobre o enquadramento dos chamados crimes virtuais, e o trabalho de Ivan da Costa Marques, em torno da alternativa representada pelos estudos em CTS para uma abordagem e reescrita da história das ciências, das comunidades científicas e da própria sociedade. Outro tema focaliza as coleções científicas: Heloisa Barbuy sugere a interpretação dos gabinetes de curiosidade como lócus de germinação tanto de uma cultura de exposições como de uma cultura científica, inicialmente organizadas em torno da curiosidade sobre o mundo e, mais tarde, de sua classificação. Por sua vez, Maria Margaret Lopes, apoiando-se nos recentes debates da museologia, propõe abordagem que confere aos objetos integrantes dessas coleções o status de sujeitos de investigação, atribuindo-lhes papel de centralidade, quer na prática museológica como na prática científica. Outros três artigos são dedicados ao periodismo no Brasil, na passagem do século XIX para o XX. Moema Vergara aborda a divulgação científica na Revista Brasileira, através da coluna assinada por Luiz Cruls. Heloisa de Faria Cruz relaciona a produção editorial científica paulista com as transformações urbanas vivenciadas por sua sociedade, na virada do século XIX e primeiras décadas do XX. Os dois artigos também dialogam com o texto de Monica Pimenta Velloso, que articula a formulação e a divulgação da ideia de moderno na sociedade brasileira com o periodismo e as conquistas tecnocientíficas nas primeiras décadas do século, e com o trabalho de Alda Heizer, que analisa permanências e mudanças nas imagens construídas sobre o país em duas publicações: Le Brésil, organizada para a Exposição de Paris de 1889, e o Boletim Comemorativo da Exposição Nacional, encomendado pelo governo republicano para o evento realizado em 1908.

A última seção, Representações e Saberes Sobre a Natureza, é composta por seis textos articulados em torno das formas e questões colocadas pelo conhecimento do mundo natural. Lorelay Kury discute a importância das artes da representação no estabelecimento dos registros produzidos durante as viagens científicas do século XIX. Luís Miguel Carolino examina os debates entre jesuítas e dominicanos sobre as possibilidades de conciliação entre a ideia de graça divina e o livre-arbítrio, e suas implicações sobre as formas de explicação dos fenômenos da natureza. As tensões no interior do pensamento religioso também são objeto do exame de Carlos Alberto de M.R. Zeron e Rafael Ruiz, que explora os argumentos em defesa dos paulistas excomungados pela caça aos índios, presentes no documento "Apologia pro Paulistis". Em abordagem ancorada nos estudos etnográficos e filológicos, Luiz C. Borges e Flavia Pedroza Lima observam a controvérsia em torno da precedência tupi ou portuguesa no estabelecimento da constelação do Cruzeiro do Sul. Pela atuação dos jesuítas no Novo Mundo, Heloísa Meireles Gesteira discute a circulação de conhecimentos e práticas ligadas à medicina, defendendo que a troca de informações sobre as virtudes relativas à fauna e flora não esteve restrita a colônias e metrópoles, mas também entre as próprias regiões coloniais, por meio do deslocamento de missionários e textos manuscritos. Fechando o módulo e o livro, o texto de Priscila Faulhaber propõe discussão histórico-antropológica em torno dos significados do conceito de patrimônio, com base na atuação e no destino dos artefatos coletados por Curt Nimuendaju entre os índios Ticuna.

O caráter múltiplo dos temas e dos olhares expressos nos textos é, ao mesmo tempo, positivo e problemático. Por um lado, o leitor é brindado com ampla perspectiva dos estudos atualmente desenvolvidos no campo da história da ciência e de como a abordagem histórica pode contribuir para percepção mais ampliada daquilo que se tem entendido como o fazer científico e seus atores, assim como a própria ciência em suas inter-relações com as dimensões políticas, econômicas e culturais. Por outro lado, muitas das ideias sugeridas pelos autores acabam não encontrando desenvolvimento mais aprofundado, em razão do espaço reservado para sua expressão. No âmbito de um seminário isso se resolve pelo recurso ao debate, quando é possível se estender sobre as opções metodológicas, a pesquisa empírica, a documentação privilegiada, as sugestões analíticas. No caso do texto impresso essa possibilidade é limitada. Fica-se algumas vezes privado de maior detalhamento sobre percurso analítico, hipóteses de trabalho, proposições interpretativas. Não deixa, porém, de ser um mérito dos autores o fato de instigarem o leitor a vislumbrar objetos e problemas a partir de novas e diversas perspectivas.

Por fim, outro aspecto a salientar é a necessidade do cuidado editorial, especialmente de revisão atenta. Percebem-se ao longo da leitura repetição de informações, contradição em datas e ausência, na bibliografia, de referências mencionadas por alguns autores - aspecto importante na avaliação da qualidade das publicações acadêmicas e que deve ser permanentemente aperfeiçoado.

  • SCHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias... Historiadores e jornalistas: aproximações e afastamentos. Revista de Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.10, n.19, p.3-21. 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2010
  • Data do Fascículo
    2010
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