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A odisseia do homem contada por outros navegantes

Man's odyssey told by other navigators

LIVROS & REDES

A odisseia do homem contada por outros navegantes

Man's odyssey told by other navigators

Cassius Schnell Palhano Silva

Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca/Fundação Oswaldo Cruz - cassius.schnell@ensp.fiocruz.br

Para algumas pessoas, a arqueologia pode remeter ao romantismo de personagens da literatura, cinema e televisão, envolvendo a busca de civilizações perdidas ou objetos míticos. Aos mais familiarizados, consiste no estudo de sociedades extintas por meio de vestígios físicos, o que, por vezes, nos ajuda a compreender o mundo em que vivemos. Geralmente esses estudos se baseiam em artefatos do cotidiano, expressões artísticas, ferramentas e utensílios, ou construções arquitetônicas. No entanto, marcadores biológicos também se prestam a reconstruir o modo de vida do homem antigo, sua interação com o ambiente e sua expansão pelo mundo. E algumas vezes, objetos de ouro e prata trancafiados em baús perdidos dão lugar a materiais tão valiosos quanto aqueles, mesmo que de natureza menos prestigiada.

Essa outra perspectiva é trazida pelo livro Paleoparasitologia, publicado em 2008 e que integra a coleção Temas em Saúde, da Editora Fiocruz. A coleção procura apresentar, a profissionais da área e público em geral, discussões sobre tópicos em saúde pública que estejam em sintonia com as produções científicas e discussões mais recentes. Em formato de bolso e com 128 páginas, o livro nos conduz a uma breve revisão sobre os estudos paleoparasitológicos no Brasil e no mundo, intercalando conteúdos científicos com relatos de experiências bem humoradas, vivenciadas pelos autores e outros pesquisadores da área.

O livro é assinado por três importantes pesquisadores. O primeiro é Luiz Fernando Rocha Ferreira da Silva, médico parasitologista reconhecido na sua área, doutor em medicina e pesquisador emérito da Fundação Oswaldo Cruz, onde atua na Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca. Luiz Fernando Ferreira acumula, em seu histórico, títulos como os de cofundador das sociedades brasileiras de Parasitologia e de Medicina Tropical, ex-presidente da Fundação Oswaldo Cruz, membro da Academia de Medicina do Rio de Janeiro e membro honorário da Academia Nacional de Medicina. O segundo autor é Karl Jan Reinhard, pesquisador norte-americano e Ph.D. em antropologia pela Texas A&M University. Reinhard é professor e pesquisador sênior da School of Natural Resources da Nebraska University - Lincoln, membro e especialista sênior em arqueologia da Fulbright Academy e diretor associado da Nebraska Institute of Forensic Sciences. O terceiro autor é Adauto José Gonçalves Araújo, médico parasitologista e doutor em saúde pública. É pesquisador titular da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, da qual já foi diretor, e também membro titular da Academia de Medicina do Rio de Janeiro.

A parasitologia, área em que atuam os autores, consiste em disciplina do campo biomédico e estuda as relações ecológicas entre duas ou mais espécies. Nessas relações, uma espécie tem o papel de hospedeiro das demais, constituindo fonte de alimento e nicho de desenvolvimento das espécies parasitas (Rey, 2002). A paleoparasitologia - palavra que deriva dos termos gregos paleo (À±»±¹Ì = antigo), para + sito (À±Á¬Ã¹Ä¿Â = junto de, ao lado + alimento); logos (»¿³¯± = palavra, estudo) - se distingue apenas pelo fato de o material analisado ser proveniente de populações antigas, pesquisando-se corpos mumificados, resquícios ósseos ou mesmo fezes fossilizadas (coprólitos). Assim, a paleoparasitologia, bem como os trabalhos em paleopatologia de modo geral, surge como ferramenta auxiliar no estudo de sociedades humanas ancestrais, possibilitando inferências sobre o modo de vida do homem, sua migração através do tempo e os processos saúde-doença por ele vividos (Araújo, 2003).

O livro abre com uma apresentação em que se colocam as motivações dos autores e os objetivos da obra. Seguem-lhe cinco capítulos. No primeiro, apresentam-se as origens da paleoparasitologia como disciplina e a sua expansão, por meio da colaboração interinstitucional de grupos de pesquisa formados em vários países da América e Europa. O termo paleoparasitologia foi cunhado pelo pesquisador Luiz Fernando Ferreira. Seu surgimento ocorreu em 1978, em uma conversa nas dependências da Escola Nacional de Saúde Pública, da Fiocruz, sobre a possibilidade de ser a esquistossomose uma doença autóctone das Américas. O consenso era de que Schistosoma mansoni, agente etiológico da doença, fora trazido da África para as Américas por escravos parasitados. Contudo, uma hipótese alternativa levantada por Bernardo Figueiredo Magalhães e Caio Benjamim Dias na década de 1940 especulava sobre uma possível origem americana da infecção. A discussão instigou Ferreira a pesquisar parasitos em fezes fossilizadas de épocas pré-colombianas, em busca de alguma evidência que pudesse sustentar a hipótese de Magalhães e Dias. No entanto, qualquer evidência que pudesse comprovar essa tese pouco ortodoxa jamais foi encontrada. Apesar do pioneirismo de Ferreira na estruturação desse novo paradigma, outros já haviam estudado materiais arqueológicos na busca de parasitoses.

Curiosamente, o gênero Schistosoma também figura como protagonista de outro marco nos estudos paleopatológicos. Em 1910, Sir Marc Armand Ruffer faz a primeira descrição de parasitos em material antigo. Ruffer era médico e diretor do Instituto Britânico de Medicina Preventiva. Em certa ocasião, quando investigava o bacilo da difteria, contraiu a doença e acabou desenvolvendo grave sequela por paralisia, o que o compeliu a afastar-se de seu cargo e ir convalescer no Egito. No Cairo, tornou-se professor de bacteriologia na Faculdade de Medicina e chefe do serviço de microbiologia do Hospital do Cairo. Em seu tempo vago, dedicava-se a estudar múmias do museu. Entre suas descobertas, Ruffer encontrou ovos de Schistosoma haematobium em tecido renal de múmias e estabeleceu técnicas para o estudo histológico de tecidos mumificados (Ruffer, 1910). Seus trabalhos foram fundamentais para o desenvolvimento da paleopatologia.

A exemplo do fato exposto, o capítulo 2 presta justa homenagem à memória daqueles que contribuíram para o desenvolvimento dos estudos de parasitoses em material antigo. Um dos importantes nomes lembrados é o de Aidan Cockburn, médico inglês e grande colaborador no desenvolvimento da paleopatologia. Seu interesse acerca da evolução das doenças infecciosas e seus estudos com necropsias em múmias egípcias o levaram a fundar, em 1973, a Paleopathology Association, e pouco tempo depois ao lançamento da publicação Paleopathology Newsletter. Cockburn (1963) advogava que a evolução das doenças infecciosas acompanha a evolução humana, repercutindo em sua sociedade e cultura. Essa premissa converge para os estudos parasitológicos de materiais antigos na busca de uma melhor compreensão sobre transformações de processos saúde-doença através do tempo. Além do registro da experiência pioneira de diferentes pesquisadores, como os arqueólogos norte-americanos Robert Heizer, Jesse Jennings, Gary Fry e Henry Hall - alguns dos primeiros a analisar coprólitos - e de trabalhos concomitantes desenvolvidos nas décadas de 1960 e 1970, também são apresentadas algumas considerações sobre os métodos abordados e os substratos utilizados nos trabalhos paleoparasitológicos. O mesmo capítulo ainda contextualiza o conceito de patoecologia, que, por meio de outros dados obtidos a partir do material, analisa a história evolutiva das interações entre a composição ambiental, o comportamento e as condições de saúde dos indivíduos das populações ancestrais.

No terceiro capítulo, intitulado "Interpretando resultados", mostram-se interessantes achados de estudos paleoparasitológicos. Ali é descrito um pouco da biologia de alguns dos mais importantes parasitos humanos, seus ciclos evolutivos e suas relações com os hospedeiros. A partir desses pontos são introduzidas as teorias de evolução dessas espécies e sua eventual transformação em parasitos exclusivos (ou quase) do homem, derivados de espécies antecessoras outrora albergadas em hominídeos ancestrais, outros grandes primatas e demais animais domésticos e sinantrópicos.

Inicialmente são feitas considerações sobre as espécies mais comuns de parasitos intestinais. Os ancilostomídeos, por exemplo, configuram um grupo de espécies que aderem à mucosa intestinal para se alimentar de sangue, causando anemia e astenia (quem não se recorda do caboclo Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato da obra Urupês, dotado de notória 'preguiça', que na verdade se traduz como sintoma do amarelão, ou ancilostomíase?). O fato de se encontrarem espécies como Ancylostoma duodenale (ou uma muito próxima) em outros grandes antropoides pode sugerir que sua árvore filogenética acompanhe o homem e demais primatas desde a origem e a diferenciação entre grandes símios e primeiros hominídeos. Ascaris lumbricoides (vulgo lombriga) e Trichuris trichiura, os vermes mais prevalentes entre humanos, também são descritos e analisados. Tanto o primeiro grupo quanto estes dois últimos fazem parte do que chamamos geo-helmintos, conjunto de parasitos que dependem, em seu ciclo biológico, da ida de seus ovos ao solo para que sofram processo de maturação e viabilidade.

Um dos fatos narrados que ilustram a dimensão das possíveis contribuições da paleoparasitologia à construção do conhecimento encontra-se ainda no capítulo três. São resultados derivados dos estudos de coprólitos encontrados em grutas de Unaí, município de Minas Gerais, com datações anteriores à Era Cristã. No início do século XX foram formuladas as primeiras teorias científicas sobre o povoamento humano das Américas, que preconizam a migração através das pontes congeladas do estreito de Bering há alguns milhares de anos. Essa foi a concepção hegemônica durante décadas. Em paralelo, havia a ideia de que parasitos como ancilostomídeos teriam sido introduzidos na América por meio dos conquistadores europeus, não existindo nas populações nativas no período pré-colombiano. Entre os achados do material de Unaí estavam ovos de ancilostomídeos e Trichuris trichiura, geo-helmintos que, se dependessem do solo do estreito de Bering, não sobreviveriam às condições gélidas do ambiente e, consequentemente, à migração humana, desaparecendo nas populações americanas pré-históricas. Com isso reforçam-se outras teorias sobre a ocupação das Américas além da clássica, por rotas de migração transmarítimas. Assim, a busca por parasitos não apenas proveria pistas sobre o modo de vida do homem ancestral e nosso processo evolutivo, mas também contribuiria para o entendimento sobre a nossa dispersão pelo mundo, atuando como marcadores biológicos (Araújo, 2008).

Nesse sentido, podemos nos remeter ao exemplo dos dados paleoparasitológicos sobre a infecção por Trypanosoma cruzi, parasito não intestinal e agente causal da doença de Chagas. Inicialmente acreditava-se que a infecção chagásica teria surgido entre populações humanas da região andina, após a adoção de hábitos sedentários e a domesticação de pequenos animais no interior das casas. Esta última teria atraído os insetos vetores do Trypanosoma (os triatomíneos, ou barbeiros), concorrendo para a introdução sustentável do homem no ciclo da zoonose. Contudo, investigações conduzidas a partir da década de 1990, por meio de técnicas de biologia molecular e análise de tecidos moles mumificados e ósseos, vêm encontrando vestígios de Trypanosoma cruzi em materiais oriundos de outras localidades não andinas e anteriores ao estabelecimento de povos sedentários e domesticadores. Configura-se, assim, um modelo alternativo da epidemiologia evolutiva da infecção chagásica nas Américas, sendo ela provavelmente tão antiga quanto a própria presença humana no território.

O quarto capítulo reserva suas páginas aos ectoparasitos, aqueles que nos acompanham pelo lado de fora do corpo, como é o caso dos piolhos e pulgas. Provavelmente a infecção por piolhos se originou em nossos ancestrais africanos, dispersando-se pelas diferentes ramificações filogenéticas dos grandes primatas até os dias de hoje. No capítulo são pontuadas considerações sobre a contribuição de estudos paleoparasitológicos dos ectoparasitos, na reconstrução da história evolutiva humana.

O quinto e último capítulo realiza uma síntese das perspectivas da paleoparasitologia e suas possíveis aplicações. É bem verdade que a assimilação de novas tecnologias de biologia molecular tende a trazer ainda mais consistência aos estudos da área: a utilização de técnicas que visam a identificar DNA ancestral (Pääbo, 1989) possibilitaria o diagnóstico de infecções em materiais em que a preservação do parasito não tenha se dado de forma íntegra, semelhante ao realizado nos estudos sobre tripanossomíase, por exemplo. Todavia, barreiras técnicas e metodológicas ainda precisam ser transpostas para que esses meios se tornem uma rotina eficaz (Nogueira, 2006). Os autores sugerem que a difusão dessa nova ciência, juntamente com outros dados da arqueologia e antropologia podem contribuir de forma consistente para a obtenção de informações sobre o modo de vida e a saúde de populações já extintas. Ao final da obra, disponibilizam algumas sugestões de leitura que podem enriquecer essa discussão e auxiliar o leitor mais interessado no aprofundamento do tema.

Paleoparasitologia é livro de leitura simples, breve e prazerosa para qualquer público. Àqueles já iniciados nos estudos das doenças infecto-parasitárias, apresenta novos horizontes de atuação e conhecimento. Aos que não têm familiaridade com a área, mas nutrem algum interesse por ecologia humana, promove uma leitura no mínimo interessante, instrutiva e divertida. Enquanto isso, resta-nos esperar que os parasitos que albergamos venham um dia a contar nossas histórias.

  • ARAÚJO, Adauto et al. Parasites as probes for prehistoric human migrations?. Trends in Parasitology, Oxford, v.24, n.3, p.112-115. 2008.
  • ARAÚJO, Adauto et al. Parasitism, the diversity of life, and paleoparasitology. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, v.98, suppl.1, p.5-11. 2003.
  • COCKBURN, Aidan. The evolution and eradication of infectious diseases Baltimore: Johns Hopkins University Press. 1963.
  • NOGUEIRA, Joseli Maria da Rocha et al. Paleoparasitologia: revisão bibliográfica e novas perspectivas para os estudos microbiológicos. Revista de Patologia Tropical, Goiânia, v.35, n.2, p.87-102. 2006.
  • PÄÄBO, Svante et al. Ancient DNA and the polymerase chain reaction: the emerging field of molecular archaeology. Journal of Biological Chemistry, Bethesda, v.264, n.17, p.9709-9712. 1989.
  • REY, Luis. Bases da parasitologia médica. 2.ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. 2002.
  • RUFFER, Marc Armand. Note on the presence of Bilharzia haematobia in Egyptian mummies of the Twentieth Dynasty (1250-1000 BC). British Medical Journal, London, v.1, p.16. 1910.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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