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Carta do editor convidado

CARTA DO EDITOR CONVIDADO

No Brasil, por toda a primeira metade do século XX, o câncer foi visto como problema menor, uma doença de pequena incidência. Para os responsáveis pelas políticas de saúde da época, seu controle deveria se restringir à medicina curativa de base hospitalar e às ações pontuais de propaganda sanitária, que mostravam a importância de sua detecção e seu tratamento precoce. No último quartel do século passado, no âmbito de profundas mudanças no sistema de saúde brasileiro, o câncer começou a ser visto como um problema de saúde pública que não poderia estar restrito à medicina curativa. Hoje a doença está no centro dos debates da saúde pública, sendo a base das ações para o seu controle os cuidados primários, tanto os exames preventivos como a promoção de hábitos saudáveis. Apesar dessas mudanças, as dificuldades persistem. Segundo o Instituto Nacional do Câncer, a doença representa a segunda causa de morte da população brasileira, e a estimativa para o ano de 2010 é de que ocorram quase quinhentos mil casos novos. Não obstante o sucesso das políticas públicas contra o tabaco e a diminuição da mortalidade por câncer de pulmão, alguns cânceres evitáveis, como o do colo do útero, ainda apresentam altas taxas de mortalidade em nossa população.

Hoje há consenso quanto ao fato de que a mortalidade por câncer não se deve somente a aspectos biológicos, mas está relacionada também às condições de vida, à eficiência do sistema de saúde e a hábitos e padrões culturais específicos das diversas sociedades. Por outro lado, os tratamentos de vários tipos de câncer exigem cada vez mais tecnologias de ponta e gastos elevados, trazendo dificuldades para as políticas de saúde, principalmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil, onde a pobreza e a carência de cuidados básicos de saúde convivem com tecnologias complexas e um vigoroso sistema de pesquisa e inovação em diversos campos da saúde.

Nesse contexto, os estudos históricos voltados para as ciências e a saúde se apresentam como ferramentas importantes para a compreensão da história e mesmo dos aspectos contemporâneos da doença, e assim contribuem para o sucesso das ações que buscam o controle do câncer.

Os primeiros trabalhos de caráter histórico a esse respeito remontam à década de 1980. No bojo da expansão da vertente historiográfica que ficou conhecida como história das doenças, a médica e historiadora francesa Marie-Joseph Imbault-Huart publicou, em 1985, um artigo sobre a história do câncer em edição da revista L'Histoire inteiramente dedicada à história das doenças. No ano seguinte, outro artigo de sua autoria foi publicado num livro também voltado para essa vertente historiográfica, dirigido pelo historiador Jacques Le Goff. Na década seguinte surgiram novos trabalhos históricos sobre o câncer, destacando-se entre eles o hoje clássico Naissance d'un fléau: histoire de la lutte contre le cancer (1890-1940), onde Patrice Pinell apresenta detalhado painel das ações relacionadas à doença no período mencionado. A partir desses estudos pioneiros, vários outros pesquisadores se voltaram para o tema, incluindo-o definitivamente no rol dos agravos estudados pela história das doenças.

Em 2007, o Bulletin of the History of Medicine dedicou um número especial ao câncer no século XX. Educação e saúde, terapêutica, prevenção e riscos foram os principais campos cobertos por estudiosos de diversas nacionalidades.

A forte relação do câncer com áreas de ponta das ciências e com as inovações tecnológicas tornou o tema cada vez mais atraente para pesquisadores da sociologia e da história das ciências, em particular os que atuam na área que se convencionou chamar de estudos sociais das ciências. Nesse campo, vêm-se destacando os trabalhos relacionados ao risco, em suas mais diversas acepções. Vários outros aspectos, como a visão dos pacientes, as campanhas de prevenção, as políticas e propagandas antitabagistas e as relações entre terapias de câncer e medicina militar foram alvo de vigorosos estudos de autores como Ilana Löwy, Robert Aronowitz, Elizabeth Kirsten, Robert Proctor, Ornella Moscucci e David Cantor.

No Brasil, embora seja extensa a produção sobre o câncer no campo da medicina e da saúde coletiva, os estudos históricos são ainda poucos. Há 21 anos veio a lume o primeiro livro de caráter histórico, História e saúde pública: a política de controle do câncer no Brasil, coordenado por Regina Bodstein, que traçava grande painel da ação estatal contra a doença desde o começo do século XX até a década de 1980. Recentemente, foi lançada uma nova publicação, mais alentada, sobre a doença: De doença desconhecida a problema de saúde pública: o Inca e o controle do câncer no Brasil. Escrito por mim e pela pesquisadora Cristina Fonseca, o livro retomou os passos da obra anterior a partir de novas fontes, que possibilitaram ampliar a análise da atuação médica contra a doença no século XX.

Continuam a surgir trabalhos relacionados principalmente às instituições e políticas concernentes ao câncer.

A presente edição de História, Ciências, Saúde - Manguinhos é a primeira coletânea de estudos no Brasil voltada para o tema. Em suas páginas o leitor encontrará diferentes abordagens sobre a doença, elaboradas por pesquisadores daqui e de outros países. Esperamos que, com esta publicação, venhamos a contribuir para o enriquecimento das análises sobre o câncer no âmbito da história das ciências e da saúde.

Luiz Antonio Teixeira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2010
  • Data do Fascículo
    Jul 2010
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