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As transformações no tratamento cirúrgico dos cânceres: das grandes incisões nos anos 1970 aos cortes quase invisíveis de hoje

Changes in the surgical treatment of cancers: from the large incisions of the 1970s to today's nearly invisible cuts

DEPOIMENTO

As transformações no tratamento cirúrgico dos cânceres: das grandes incisões nos anos 1970 aos cortes quase invisíveis de hoje

Changes in the surgical treatment of cancers: from the large incisions of the 1970s to today's nearly invisible cuts

Jaime L. BenchimolI; Ruth B. MartinsII

IPesquisador da Casa de Oswaldo. Cruz/Fundação Oswaldo Cruz Avenida Brasil, 4365 21040-900 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. jben@coc.fiocruz.br

IIJornalista da Casa de Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz Avenida Brasil, 4365 21040-900 - Rio de Janeiro - RJ- Brasil. rmartins@coc.fiocruz.br

RESUMO

O médico e cirurgião amazonense João Bosco Botelho mostra as transformações ocorridas no diagnóstico e no tratamento do câncer nas últimas décadas, ressaltando que até os anos 1970, quando existia apenas o raio X e a planigrafia, a ideia dominante era a da cirurgia radical, para retirar o tumor com margem de segurança. As imagens congeladas (ultrassom, tomografia computadorizada, ressonância magnética, cintilografias) e as dinâmicas em tempo real (endoscopias) foram determinantes para as mudanças nas cirurgias - com incisões que ficam quase invisíveis - e também na rádio e quimioterapia. O médico destaca ainda que esse desenvolvimento da tecnologia médica acompanhou o movimento social, quando se iniciou a valorização dos corpos como templos invioláveis.

Palavras-chave: João Bosco Botelho; câncer; diagnóstico; tratamento; história; cirurgia; evolução.

ABSTRACT

João Bosco Botelho, medical surgeon from the state of Amazonas, talks about the changes that have taken place in the diagnosis and treatment of cancer in recent decades. He calls special attention to the fact that the only options until the 1970s were X-rays and planigraphies, and the prevailing idea was radical surgery to remove the tumor with some margin of safety. Frozen images like ultrasounds, CT scans, MRIs, and scintigraphies along with real-time techniques like endoscopies were decisive in changing not only how surgery was performed (now with nearly invisible incisions) but also radiation treatment and chemotherapy. The surgeon likewise underscores how the development of medical technology kept pace with social trends, as bodies began to be transformed into sacred temples.

Keywords: João Bosco Botelho; cancer; diagnosis; treatment; history; surgery; change.

A entrevista com o médico João Bosco Botelho traz reflexão instigante sobre as profundas transformações ocorridas tanto no diagnóstico como no tratamento dos cânceres nas últimas quatro décadas, aliando sua vasta experiência profissional como cirurgião de pescoço e cabeça à trajetória igualmente respeitável como historiador da medicina e, mais recentemente, com interesse na antropologia.

Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Doenças Infecciosas e Tropicais da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), João Bosco Botelho chefia o Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial do Hospital Adriano Jorge. Leciona também no Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Entre as premiações e homenagens obtidas no Brasil e no exterior, destacam-se o Prêmio e Medalha Franz Escher, conferidos no 94º Congresso Suíço de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial, realizado em Berna, em 2007. Representam reconhecimento à nova técnica cirúrgica de acesso a bócios de grande volume - a incisão em U ou "incisão de Botelho" -, uma inovação frente àquela descrita pelo suíço Emil Theodor Kocher (18411917), Prêmio Nobel em fisiologia ou medicina em 1909.

Graduado em medicina em 1972 pela Escola de Medicina e Cirurgia, atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), Botelho fez doutorado em otorrinolaringologia e cirurgia cérvicofacial na Universidade de Paris VI Pierre et Marie Curie (1981) e pós-doutorado na Universidade de Paris VII Denis Diderot. Com livre-docência obtida na Faculdade de Medicina de Valença, em 1999, o professor e cirurgião mantém vínculos com várias escolas superiores e sociedades acadêmicas do país e do exterior.

Tem quase uma centena de trabalhos publicados em periódicos científicos, quase duzentos artigos em jornais e revistas e já apresentou número ainda mais expressivo de trabalhos em congressos e outros eventos ligados à medicina. Em História, Ciências, Saúde - Manguinhos, os leitores já terão se deparado com artigo de Botelho em colaboração com Hideraldo Lima da Costa, "Pajé: reconstrução e sobrevivência" (v.13, n.4, p.927-956, dez. 2006). Nosso entrevistado é autor de vários livros, entre os quais destacamos Medicina e religião: conflito de competência (Valer, 2005), História da medicina: da abstração à materialidade (Valer, 2004), O Deus genético (Universidade do Amazonas, 2000), Arqueologia do prazer (Metro Cúbico, 1993). Acaba de sair sua primeira incursão ficcional, Entre as sombras (Valer, 2009).

Foi com o organizador do XIV Congresso Brasileiro de História da Medicina, realizado em Manaus em 2009, que travamos contato pessoal pela primeira vez, antes de virmos a conhecer a fascinante trajetória desse cirurgião 'cabeça', compartilhada com você a seguir.

Jaime L. Benchimol

Ruth B. Martins

Qual é o seu ponto de vista, como cirurgião, sobre o câncer no Brasil?

Até os anos 70, em muitas cidades brasileiras, o diagnóstico e a terapêutica de alguns cânceres tinham um perfil que mudou muito a partir de então. Antes de 1970, nas cidades onde não havia registros epidemiológicos específicos, prevalecia a ideia, no senso comum, de que os carcinomas, os tumores dos epitélios, eram muito mais frequentes do que os sarcomas, os tumores dos ossos e músculos. A mudança veio em decorrência do Programa de Controle do Câncer do INPS, em 1977, e do Conclave Nacional de Atualização Propedêutica e Terapêutica da Cancerologia, também do INPS, iniciado no mesmo ano.

Eram programas do governo federal com o objetivo de instalar núcleos em todas as capitais para produzir melhorias no diagnóstico e tratamento dos cânceres, inclusive gerar estatísticas. Até os anos 1970, a maior parte dos pacientes que procuravam o ambulatório che-gava com tumores muito grandes, muitos fora das possibilidades terapêuticas (usavase, na época, a sigla FPT).

Chegavam assim porque os diagnósticos eram tardios?

É, a pessoa não percebia. Porque uma coisa é você ver a doença no outro. Muito diferente é ter a consciência da doença em si mesmo. É o que nós, médicos, procuramos: a perda da continuidade do tecido, seja no exterior ou no interior dos corpos. Ao médico, cabe dizer se é benigno ou maligno, se precisa ou não tratamento, cirurgia. Nem sempre a pessoa se dá conta de que aquilo é um tumor; só percebe de forma consciente quando está em estádio avançado e disseminado. A pessoa olha para o tumor, mas não diz para si que é tumor. Aqui intervêm várias questões: uma relação sociocultural do indivíduo com a doença, a escolaridade do doente, a inexistência de crítica social no seio familiar e no trabalho. Uma mulher poderia olhar para a mama deformada pelo câncer e achar que era um abscesso, uma infecção. Uma senhora chegou ao ambulatório e disse-me: "Estou com uma inflamação aqui... tá muito inflamado". E apontou para o tumor da tireoide, completamente fora de condições terapêuticas. O câncer evidenciava clara disseminação no mediastino (Figura 1). A relação do doente com alteração do próprio corpo é muito variável. Parece que alguns, mais escolarizados, têm maior sensibilidade; ao se olharem, percebem a mudança. Mas não é uma regra. Até hoje, é possível encontrar em qualquer cidade pessoas que têm escolaridade universitária com tumores assim, fora de possibilidade do tratamento cirúrgico, porque não se dão conta da gravidade e do que é aquilo. A gente não sabe exatamente se é um mecanismo neuropsiquiátrico de recusa da identificação da deformidade, falta de confiança no serviço médico ou medo de ir ao médico, medo do diagnóstico...


Essa constatação é uma realidade do Norte do Brasil?

Veja, essa é uma observação minha. Mas na França não é muito diferente. Lá também vi doentes com tumores fora de possibilidades cirúrgicas. Isso durante o doutoramento, entre 1979 e 1982, na Universidade de Paris V (Pierre et Marie Curie), com a maioria dos créditos cursados no Instituto Gustave Roussy, em Paris, sob a orientação do professor doutor Yves Cachin, Professor Emérito do Collège de France. O pós-doutorado fiz na Universidade de Paris VII (Xavier-Bichat), sob a orientação do professor doutor Pierre Gehanno, entre 1991 e 1992.

Eu me graduei no Rio de Janeiro, na Escola de Medicina e Cirurgia, atual Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio), em dezembro de 1972. Vivi essa situação que estou descrevendo com o professor Ataliba Macieira Bellizzi, o chefe do serviço, um orientador maravilhoso.

Como estudante e em meus primeiros anos de médico, como se fazia o diagnóstico do câncer? Primeiro, pelo exame clínico: o médico olhava, apalpava, auscultava... No exame da cavidade oral, olhava a lesão. A visão alcançava a alteração da parte do corpo visível aos olhos desarmados. Além e aquém, o olho não via. Assim era o diagnóstico. O exame do pescoço era realizado pela palpação. E as radiografias eram simples, chapadas. O feixe dos raios X incidia sobre a parte do corpo lesionada, e toda a dimensão tridimensional era achatada num único plano. O que estava entre o exterior e o interior ficava por conta do exame clínico. A planigrafia dos anos 1970, a tomografia linear, que fazia cortes muito espessos e que nada tem a ver com a tomografia atual, já era um avanço. Quando saiu a primeira, dizíamos: "Olha! Que maravilha!" A ressonância magnética hoje faz cortes de 1mm. E qual era o desfecho? Cirurgia radical a qualquer preço. Lasque-se o doente! Só importava que o cirurgião mantivesse a radicalidade da cirurgia: retirar o tumor com margem de segurança, isto é, incisar com mais de um centímetro da borda macroscopicamente visível do tumor. Porque não havia instrumentos para ver qual era a margem real. Não existia a ressonância, nem tomografia computadorizada. É claro que todos sabiam que o câncer sempre estava além da margem visível... Então, o senso comum dizia: tira esse troço, o mais largo possível! Não importava se o paciente ficasse sem língua, sem mandíbula, sem mama, sem peito, braço ou perna. A ideia dominante era a radicalidade a qualquer preço.

Assim, esse conceito de 'cirurgia radical do câncer' estava presente na minha formação básica de graduação, aqui no Rio de Janeiro, e, no início do contato com a cancerologia, no estágio do 6º ano, em 1971, no Instituto Nacional do Câncer, sob a orientação do professor Bellizzi. Nas enfermarias, algumas vezes, senti o cheiro de carne apodrecida pelo câncer ou necrosada após o tratamento...

É importante assinalar que não se trata, absolutamente, de crítica ao passado. Esse é o processo da ciência que adiciona, sempre, a mudança na obtenção dos melhores resultados. Naquele tempo, era o melhor que se poderia fazer em benefício do doente.

Eis uma imagem de cirurgia que fiz, em Manaus, em 1976, logo depois de chegar do Rio de Janeiro, após a pós-graduação na PUC, também sob a orientação do professor Bellizzi, em rígida obediência ao processo teórico que rezava: a margem de segurança a qualquer custo. Um câncer na língua e soalho da boca com metástase nos linfonodos do pescoço; realizei a glossectomia parcial (retirada parcial da língua), hipoglossiectomia parcial (retirada parcial do soalho da boca), com esvaziamento cervical radical (retirada na mesma cirurgia dos linfonodos que estivessem ou não com metástases (Figura 2).


Esse tipo de atitude cirúrgica alcançou todas as partes do corpo. O tratamento do câncer de mama, por exemplo. Vejam essa imagem impressionante de mastectomia radical com esvaziamento axilar (Figura 3). As monstruosas deformidades visíveis nos corpos dos doentes, no mínimo, além do impacto emocional, impediam qualquer tipo de reinserções sociais após as cirurgias. Após tudo isso, havia garantia de cura? Não, infelizmente não.


A pessoa podia dizer: "Doutor, prefiro morrer!". Diziam isso para você?

Não. A vida é um bocado complicada. Sabemos que todo mundo vai morrer, mas ninguém tem pressa...

Mudaram os parâmetros?

Algumas variáveis interferem no processo do diagnóstico e tratamento: a presença e a respeitabilidade do médico, sua capacidade de convencer o doente de que aquilo é o melhor para ele, a escolaridade desse doente. Muitos doentes em Manaus, após o diagnóstico, disseram: "João, não vou operar em Manaus, irei para São Paulo". Respeitadas as devidas proporções, os ricos de São Paulo procuram os hospitais de Nova York. Os do interior do Amazonas procuram tratamento em Manaus. Essa relação do paciente com a grandeza e suposta competência do centro urbano é outra variável importante na relação centroperiferia.

Naquela época, a imagem associada ao câncer era muito mais apavorante do que é hoje, não é?

Acho que sim, tanto dos tumores em si mesmos quanto dos resultados dos tratamentos. No momento, na França, é possível ver outdoors com a frase em destaque entre imagens: "Câncer é uma doença curável. Procure o hospital". Querem mudar o senso comum de que os cânceres são incuráveis. Sem dúvida, muitos são curáveis, muito mais do que nos anos 1970. Querem também mudar a noção de que o câncer é uma coisa homogênea e singular. Não é! São milhares de tipos diferentes de tumores englobados sob esse nome. Tem os mais malignos, isto é, com maior agressividade biológica de crescimento e disseminação, outros menos. Trata-se de mudar o ponto de vista hegemônico presente naquela década, associado ao que falei: a radicalidade cirúrgica a qualquer custo funcional para todos os cânceres, como se fossem todos iguais. Os cânceres não são iguais! Eu ouvia muito isso. "Tem de tirar, João", dizia o orientador. "Não pode ficar nada, pode ter metástase." E fazer uma cirurgia que não obedecesse a esse rigor, com certeza, o cirurgião criaria conflito de consciência consigo, por não ter realizado corretamente, de acordo com a recomendação da ciência reconhecida. É possível que esse pressuposto tenha sido uma das razões que levaram muitos cirurgiões a ficar pelo caminho. Muitos saíram para funções administrativas...

A razão é a taxa de insucesso ou o desgaste?

É principalmente o desgaste. As complicações da cirurgia que se viam no cotidiano. No pós-operatório, o cirurgião via as sequelas, e, se as complicações obrigavam a nova hospitalização e não havia respaldo de um bom hospital, a angústia do cirurgião se transformava em desespero, porque poderia ocorrer a morte em consequência do tratamento. Acabava sendo muito angustiante... De modo geral, muitos cirurgiões que não tiveram formação na cirurgia cancerológica evitavam operar pacientes com câncer porque as cirurgias envolviam grandes retiradas, deformidades monstruosas, e, quase sempre, obrigavam a hospitalizações de várias semanas. Como a imagem que vocês viram (Figura 2), tenho em arquivo outras, igualmente grotescas, de cirurgias feitas, em Manaus, em 1977, no Hospital Universitário Getúlio Vargas. Tinham de ser realizadas! Não havia alternativa!

E o paciente depois falava?

Alguns conseguiam falar com dificuldade... Outros não.

Como comiam?

Durante algum tempo, o alimento é introduzido no estômago por meio de uma sonda nasogástrica.

É da escola americana?

Não só a escola americana. De modo geral, todos preconizavam a radicalidade cirúrgica a qualquer custo para todos os doentes. Os cirurgiões que acompanhavam o pós-operatório percebiam, sem dificuldade, que para uns funcionava melhor; para outros, as complicações e sequelas se confundiam com a recidiva do tumor e a morte precoce. Essa simples observação evidenciava que os tumores e a resposta de cada doente eram diferentes entre si.

Tinha escolas divergentes?

Não. Havia o consenso. As sociedades mundiais seguiam a mesma orientação da American Cancer Society. A ordem da ciência é muito forte, cria atitudes coletivas, muitas vezes perigosas e letais. Basta ler as respeitadas enciclopédias de cirurgia da década de 1970 para comprovar que os cirurgiões retiravam o estômago para tratar a úlcera gástrica, que hoje se sabe está relacionada com a bactéria Helicobacter pilori. Se recuarmos até os anos 1950, se faziam pneumectomias (retirada do pulmão) para tratar as sequelas de algumas formas de tuberculose pulmonar. O paciente acreditava, o cirurgião acreditava... Muitos ainda estão sem estômago por aí por causa de uma úlcera. Eu, como cirurgião, há quarenta anos, vivi essa transformação; felizmente, construí a visão crítica da mudança. Como tive bons professores, não mantenho questões de consciência por ter realizado cirurgias que hoje não são mais aceitas. Nos últimos trinta anos, como chefe de serviço em hospital universitário, consegui, com a ajuda de médicos que orientei na graduação, residência médica, mestrado e doutorado, inserir-me em novo processo, diferente daquele imperante até os anos 1970. Mostro o que se fazia então aos meus alunos, e eles dizem: "João, mas que loucura!"

Você acha que as transformações desse período que você viveu foram mais aceleradas do que nas décadas anteriores, na época de Mario Kroeff?

Os professores Mario Kroeff e Jorge de Marsilac, dois ícones da cancerologia brasileira, introduziram o que havia de mais moderno em suas respectivas épocas. Eu tive a honra, em 1969, de ver a habilidade cirúrgica do professor Marsilac, durante uma mastectomia radical. Foram tempos passados. Quase tudo mudou na cancerologia, a partir das novas pesquisas no nível molecular, que geraram outras terapêuticas. É possível que muitos médicos não tenham percebido com clareza os novos rumos e acabassem fora do mercado. Para muitos outros, amantes incondicionais da arte cirúrgica, que vivenciaram as cirurgias radicais e que não aceitaram as mudanças, restou continuar nos serviços de urgência.

Eles não se atualizam, é isso?

Não, não disse isso. Afirmei que esses médicos não percebem o movimento de mudança no diagnóstico e no tratamento dos cânceres. Essa percepção nem sempre está relacionada à educação formal. Uma das grandes mudanças foi a cirurgia endoscópica. Por que esse tipo de cirurgia se tornou prevalente? Na realidade, a cirurgia endoscópica representa a antítese do axioma que dominou as práticas cirúrgicas até os anos 1970: "Grandes incisões, grandes cirurgiões". A grande incisão não combina com a tendência a pensar o corpo como algo sagrado. Estamos voltando às concepções do corpo sagrado, inviolável. Então, as cirurgias devem ser executas por meio de incisões pequenas que fiquem, rapidamente, invisíveis. A indústria se adaptou ao movimento, promovendo mudanças tecnológicas, produzindo equipamentos para atender à mudança social. Em muitas situações, é a mudança social que gera a tecnologia, e não o contrário. Estamos vivendo, desde os últimos anos do século XX, cada vez mais, a inviolabilidade do corpo. O corpo esbelto e musculoso, desejado por todos, não aceita a fealdade da cicatriz cirúrgica na barriga "sarada".

Porque são múltiplas as possibilidades de alteração desse corpo? É para torná-lo mais bonito?

Mais bonito! Mas na concepção social vigente que consagra a inviolabilidade. Então, as cicatrizes são cada vez menores. O que diz o cliente: "Doutor, vou operar, mas vai fazer a plástica para evitar a cicatriz?". De modo geral, o doente entende como "plástica" a cicatriz não deformante, a estética resultante das relações sociais.

E como era nos anos 1970?

Para operar o estômago, no abdome, o cirurgião utilizava a incisão "Belém-Brasília", isto é, a abertura do abdome compreendia a extensão da sínfise do esterno ao púbis. De certa forma, naquela época, o público não médico admirava essas incisões e as associava à competência e habilidade do cirurgião.

Depois da década de 1970, os estudos estatísticos de morbidade e mortalidade confirmaram a prevalência dos carcinomas. O senso comum deu lugar a dados estatísticos e epidemiológicos. O movimento científico nos conceitos alcançou tanto o diagnóstico quanto o tratamento: imagens congeladas (ultrassom, tomografia computadorizada, ressonância magnética, cintilografia) e as dinâmicas em tempo real (endoscopia), cirurgia, radioterapia e quimioterapia e terapêuticas combinadas. Então, do mesmo modo que a cirurgia adotou maior rigor e segurança, com margem de segurança abrangendo porções menores de tecido, tirando menos, a radioterapia também adotou programas mais precisos para identificar a topografia das regiões anatômicas a irradiar.

As técnicas de radiação mudaram muito?

Mudaram. Irradiavam-se áreas grandes, muito além dos limites do tumor. As imagens tomográficas permitem ver onde está o tumor, e uma programação cirúrgica de melhor qualidade está associada a aparelhos que fazem feixes de radiação mais precisos e mais competentes. Então, ocorreram mudanças significativas. Melhoraram os equipamentos e as técnicas de radioterapia. Estamos falando em mudanças que acompanharam o movimento social. As transformações também alcançaram os protocolos de quimioterapia: novas drogas e novos protocolos. Antes dos anos 1970, a quimioterapia oncológica era sinônimo de irreversível queda de cabelo e outras severas complicações hematológicas e digestivas que, algumas vezes, levavam o doente à morte. Não há como comparar a quimioterapia de hoje com a daquela época. A associação de radioterapia e quimioterapia, após esse período, possibilitou aumento dos anos de vida e curas nunca antes imaginadas: leucemia linfoblástica aguda, leucemia mieloide aguda, alguns linfomas não Hodgkin, doença de Hodgkin, alguns sarcomas e carcinomas de testículo e de ovário. Por outro lado, com todos os novos recursos, permanecem as baixas resoluções em alguns tipos de melanomas, de certos cânceres no pâncreas, fígado, cérebro e muitos outros.

Essas imagens produzidas nos últimos anos (Figuras 4, 5) estão associadas a tratamentos cada vez mais personalizados, isto é, cada doente apresenta certas condições clínicas e tipos de tumores que impõem tratamentos específicos, envolvendo cirurgia, radioterapia e quimioterapia com menores perdas funcionais. Não se tira a mama toda, tira-se um segmento, faz-se radioterapia ou associação da radio com a quimioterapia (Figura 6). O que dá mais certo? Tirar só um pedaço é melhor. Então, publicam-se os trabalhos, e os médicos, no mundo, reproduzem.




Contudo, é necessário desvendar o porque da maior preservação dos corpos. O que motiva esse movimento científico: o início da valorização dos corpos como qualidades invioláveis. Especificamente, a valorização dos seios é inerente ao feminino e ao olhar masculino. Eu testemunhei isso nos anos 1970, na universidade, intensamente. Apesar da ditadura, podia-se ter mais liberdade no tocante aos corpos. Os vestidos pesados e largos dos anos 1960 começaram a ser abandonados. As roupas eram mais justas, mais colantes e até transparentes. Esse movimento, que não se restringiu ao Brasil, está associado aos movimentos políticos de 1968, àquele grito de liberdade política. O conjunto de mudanças alcançou as representações sociais e os olhares sobre os corpos. Essa é minha leitura.

Concomitantemente, as estatísticas produzidas confirmavam o senso comum: os carcinomas - tumores epiteliais da pele e das mucosas, os tecidos que forram o corpo por dentro -, são os mais frequentes, na proporção de nove para um.

Tem explicação para isso? Maior exposição dos corpos ao sol? Poluição?

Sim, você está falando da pele. É mais provável que a etiologia seja multifatorial, envolvendo a conjunção intrínseca (componente genético) e extrínseca (do meio ambiente, da vida em relação). Os dois juntos tocam determinadas teclas, gerando os "sons", aqui entendidos como os tumores, os cânceres. Vamos imaginar um instrumento com milhares de cordas, capaz de emitir sons diferentes, mas só se alguém as vibrar. Essas cordas seriam o genoma, o elemento intrínseco, e o agente provocador dos sons, o extrínseco. Para aparecer o câncer tem de haver o componente intrínseco e o extrínseco. Entre os extrínsecos, não só poluição. Hoje, no mercado, existem milhares de substâncias artificiais, produzidas nos laboratórios, que servem para corar e marcar os sabores de alimentos também produzidos artificialmente. Não sabemos direito como esses compostos atuam no organismo. A União Europeia obrigou o abandono de muitos e exige que cada embalagem apresente a fórmula da substância. Em Paris, as prateleiras de produtos naturais aumentam a cada ano... As pessoas querem produtos menos contaminados com substâncias artificiais, apesar de serem mais caros.

Então, vamos lá, as mudanças nos diagnósticos... Após os anos 1970 atingiram em cheio as imagens, que ganharam muito melhor definição. Isso foi um dos subprodutos de enormes investimentos feitos nos anos anteriores, de auge da Guerra Fria, no desenvolvimento de novas tecnologias militares de vigilância, inclusive por satélites. O ultrassom é subproduto do radar. A partir daquela década, recebemos inovações decorrentes das imagens produzidas com fins militares, o que resultou em salto impressionante na qualidade do diagnóstico: tomografia computadorizada, ressonância magnética, ultrassom com dopller, cintilografia com isotopos radioativos... É importante ressaltar que o valor dessas imagens congeladas, após certo tempo, é muito relativo porque são imagens congeladas num determinado tempo e espaço. A tomografia de hoje pode não valer amanhã... O corpo de hoje é diferente do outro, de ontem; em poucas horas é possível ocorrer incalculáveis mudanças dentro dele. Apesar disso, as pessoas guardam as imagens congeladas, às vezes por anos... É comum os doentes chegarem nos ambulatórios e dizerem: "Doutor, fiz uma radiografia há dez anos...".

É a primeira coisa que nossos filhos vão jogar fora quando batermos as botas.

Algumas vezes, não. Os mais próximos ainda guardam as imagens como elos físicos com a pessoa amada que morreu... Quando existe pouco apego, realmente, vai tudo para o lixo no dia seguinte.

Então, ocorreram mudanças no diagnóstico histopatológico (o resultado da biopsia). A Organização Mundial da Saúde estabeleceu maior rigor ao definir o tamanho do tumor na data do primeiro exame, o que resultou no sistema TNM, onde T é o tamanho do tumor canceroso; N, a sua presença ou dos linfonodos (ínguas) metastáticos regionais ou a distância, e M indica a presença das metástases viscerais (por exemplo, o tumor de mama que apresenta metástase no cérebro). O médico que bolou isso foi o professor Pierre Denoix, que presidiu a minha banca de doutorado na Universidade de Paris VI (Pierre et Marie Curie). Na época, em 1981, era o diretor do Instituto Gustave Roussy, em Villejuif, no subúrbio de Paris, o maior instituto de cancerologia da Europa. As regras TNM e os bancos estatísticos municiaram o combate mundial ao câncer. Os registros epidemiológicos dos cânceres, no mundo, traziam dados sobre o tamanho do tumor, se tinha metástase na data do primeiro exame. O prontuário e a informação médica foram valorizados. Vamos exemplificar a importância do registro TNM com um pressuposto teórico: eu opero cem doentes com câncer da tireoide, especificamente adenocarcinomas foliculares, com idades acima de cinquenta anos. Realizo a tireoidectomia total em todos. Os exames histopatológicos das glândulas comprovam o tipo de câncer e que não havia metástases. O controle pós-operatório dos cem doentes evidenciou que 100% deles estão vivos e sem sequelas após cinco anos. Estudo retrospectivo realizado em outro país, analisando a sobrevivência de doentes com situação semelhante, mostra que somente 50% estão vivendo bem e sem sequelas. São esses resultados publicados que possibilitam rever bons e maus tratamentos oferecidos aos doentes, especialmente nas instituições universitárias. Isso não significa que os hospitais privados e os públicos sem vínculo acadêmico não possam fazê-lo. Mas nos hospitais universitários existem os programas de residência médica, mestrados e doutorados; os alunos são naturais agentes fiscalizadores do sistema. O 'bambambam' que só atende no consultório privado pode ficar à margem desse mecanismo de fiscalização. O aluno estuda, vê o professor realizar determinado procedimento, e se já leu que é incorreto, comentará com outros alunos. Esse processo retroalimenta a crítica, o controle dos procedimentos. Por outro lado, infelizmente, nos ambulatórios de cance-rologia, as melhoras nos diagnósticos não se refletiram na mudança do número de doentes portadores de cânceres sem possibilidade de tratamento, nas consultas de primeira vez. Vejam essas imagens de doentes dos anos 2000 (Figuras 7 e 8). Não eram doentes analfabetos e sem acesso ao SUS.



João, os critérios de classificação dos cânceres mudaram com a evolução das tecnologias de imagem?

Sim. A União Internacional de Combate ao Câncer (UICC), da Organização Mundial de Saúde, fortaleceu o sistema TNM, para classificar os quadros clínicos dos muitos cânceres na data do primeiro exame. Nós classificamos tudo; a ciência é essencialmente classificatória. E quando a gente não entende, classifica mais ainda. Com a melhoria das imagens, alguns tumores T1 (o estádio inicial, em princípio, restrito ao órgão primário de origem, menores de dois centímetros, sem metástases) foram reclassificados para T2, T3... Essa nova abordagem também interferiu fortemente nas indicações cirúrgicas de muitos cânceres, muitos deixaram de ser operados e passaram a ser tratados pela quimioterapia e radioterapia isoladamente ou associadas, diminuindo o sofrimento e as deformidades, melhorando a qualidade de vida do tempo residual.

Um dos objetivos da Campanha Nacional do Câncer era aumentar a proporção de diagnósticos precoces. Você acha então que houve avanços nesse sentido?

Houve avanços, sim. O Programa de Controle do Câncer do INPS foi iniciado em 1977 e perdurou até meados dos anos 1980. Publicou vários livros didáticos com normas de diagnóstico e tratamentos de muitos tipos diferentes de cânceres, divulgou o sistema TNM, chamou atenção para a necessidade de o Estado brasileiro compreender os cânceres como problema de saúde pública. Também fortaleceu a importância do Instituto Nacional do Câncer (INCa), no Rio de Janeiro, e dos hospitais de câncer, em outras cidades, inclusive o de Manaus. Essas mudanças geraram demandas públicas que obrigaram a maiores investimentos em equipamentos de diagnóstico por imagens. Com a possibilidade de saber, previamente, os limites do tumor, pelas imagens da tomografia computadorizada e da ressonância magnética, ficaram mais claras as margens do tumor para programar a cirurgia e reconstrução funcional.

A cirurgia continua radical, mas se torna mais funcional (comparem as Figuras 3 e 6; 2 e 12 ). No tumor de mama, faz-se uma mastectomia parcial; retira-se um ou dois quadrantes da mama. Com a possibilidade de localizar exatamente onde está o linfonodo sentinela, a cirurgia é muito mais seletiva: extrai somente o linfonodo com metástases, sem determinar o edema linfático permanente do braço. No pós-operatório, os doentes são submetidos a radioterapia e quimioterapia, também muito mais bem programadas em comparação com as terapêuticas dos anos 1970.




Isso tem relação com o desenvolvimento da cirurgia plástica?

Sem dúvida, sem dúvida. Em muitos hospitais públicos, como o Hospital Adriano Jorge, da Universidade do Estado do Amazonas, pode haver um ou mais cirurgiões plásticos que interferem no processo das reconstruções: trata-se da cirurgia funcional, cujo maior objetivo é reconstruir a função do órgão danificada pela cirurgia. Como disse, esse conjunto está associado à mudança das mentalidades, algo que está substituindo com competência o velho pelo novo. Veja como os processos de mudanças alcançam também incontáveis itens da cultura material. Por exemplo, o jeans. Ingressei na Universidade em 1966, no Rio de Janeiro. Pois bem, havia uma galeria de pequenas lojas, em Copacabana, o Mercadinho Azul. A gente ia lá comprar calça Lee importada!

Havia em Copacabana as muambeiras que traziam escondido para vender em seus apartamentos!

Quando a Levi Strauss chegou, desbancou a Lee. Dezenas de jovens ficavam horas na fila esperando a calça Levi Strauss chegar... O jeans substituiu o modelo anterior com competência. O que a indústria fez? Adaptou-se e seguiu em frente: inundaram o mundo com os jeans. Os cirurgiões também perceberam a mudança, ouviam as queixas dos pacientes operados, que expunham a agonia da deformidade, e devem ter pensado: "Tenho que bolar algo para melhorar a aparência desses doentes...". E começaram a mudar a técnica... A maior parte das mudanças nas reconstruções foi introduzida por cirurgiões norteamericanos.

Foi um período de muitas inovações?

Muitas! Em meados de 1971 comecei a ler livros que tratavam de reconstrução por meio dos retalhos de pele ou pele-músculos. A produção técnica foi impressionante no que concerne a novas técnicas cirúrgicas. Nesse mesmo período, começou a aparecer literatura sobre as primeiras abordagens cirúrgicas endoscópicas. Hoje, são elas que estão no mercado. Já não acompanho mais... Agora, são os assistentes, médicos residentes, alunos dos programas de mestrado e doutorado que correm para se especializar na execução dessas cirurgias cada vez mais instrumentalizadas.

A cirurgia endoscópica está associada a equipamentos diferentes?

Sim, porque a indústria se adaptou...

Está associada às mesmas habilidades só que usadas de maneira diferente?

É outra habilidade, mais fina... A sua observação está correta. Trata-se de inovação técnica associada a equipamentos. Em Manaus, no hospital universitário, com o passar dos anos e maior consistência do Serviço de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, que eu criei, em 1976, percebi a dificuldade de abordar cirurgicamente os bócios de grande volume por meio da incisão clássica de Kocher. Pouco a pouco, introduzi mudanças que acabaram produzindo a incisão em U para melhorar o acesso aos bócios de grande tamanho (Figuras 9 e 10). Mas por que desenvolvi isso? Eu chegava ao hospital desesperado e pensava: "Não dá para fazer essa cirurgia pela técnica tradicional". Foram muitos ensaios de tentativas e erros até chegar na incisão que tem o meu nome, "incisão de Botelho". Foi a necessidade... Lembra da margem de segurança? Disse que as imagens diminuíam a radicalidade ou contra indicavam a cirurgia. Antes dessa nova geração de imagens, o cirurgião ia abrindo o campo cirúrgico e, com angústia, verificava que deveria aumentar a incisão da via de acesso para ampliar as margens de segurança. Essa incisão foi descrita pelo suíço Emil Theodor Kocher, Prêmio Nobel de Medicina em 1909. Eu ganhei o Prêmio Franz Escher conferido pela Sociedade Suíça de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvicofacial em 2007. A justificativa foi que a incisão representou a primeira mudança depois de Kocher, o mais importante cirurgião da tireoide na história da Medicina, que ganhou o único Nobel conferido para trabalho cirúrgico. Ninguém tinha feito isso antes. Fui levado pela necessidade de minha prática cirúrgica cotidiana.

Kocher foi um dos professores de Adolpho Lutz na Universidade de Berna, você sabia? João, você ainda encontra muitos bócios na Amazônia?

Muitos. Nós estamos numa área bociogênica, longe do mar. Tenho três alunos de doutorado que trabalham com o gene da conexina 32. O projeto é identificar a determinante genética do bócio amazônico. Qual é o objetivo disso? Se der certo, proporemos ao SUS fazer o estudo genético de algumas populações, em que há bócio de grande volume; se for identificado, o tratamento será iniciado com o hormônio sintético da tireoide por via oral. O pressuposto teórico será interromper ou diminuir o feed-back hipotálamo-hipófisetireóide, evitar o crescimento não tumoral da tireoide (bócio) e, assim, evitar cirurgia. Por isso ganhei a medalha Franz Escher.

Antes dos anos 1970, em alguns casos, a gravidade do tumor ia sendo descoberta durante a operação?

Sim, prevalecia essa ideia, reveladora da incerteza do cirurgião e aceita pelos doentes e familiares: "Vamos abrir para ver o que tem". Quem não se lembra dessa sentença que enchia todos de medo?

Acontecia de abrir e fechar: não tem jeito!

Sim. E a família agradecia ao médico. Hoje, existem outros instrumentos para fazer um diagnóstico pré-operatório com muita segurança. Há exceções? Há. Contudo, de maneira geral, não tem mais esse "vamos abrir para ver o que vai acontecer". As imagens podem mostrar que o tumor não é operável, mas é tratável pela radioterapia e quimioterapia. Além de tudo, a qualidade da sobrevivência é muito melhor. Vamos exemplificar: um paciente tem um câncer na tireoide com intensa cefaleia. A tomografia computadorizada préoperatória diagnostica várias metástases cerebrais, nos linfonodos cervicais e mediastínicos. Nessa condição, não existe o "vou abrir para ver". Não há indicação para operar esse doente. Além de evitar sofrimento desnecessário, diminui custos. Todos os serviços de assistência médica públicos e privados têm de pensar na relação custo-benefício, porque alguém paga. Nada é de graça. Ou são os impostos ou alguém paga.

Não pode operar o tumor porque é cerebral - no caso, a que você se refere?

Não só porque a metástase é cerebral. No caso dessa doente, as metástases não eram operáveis. Reside nisso a radicalidade da cirurgia dos cânceres: tanto o tumor primário quanto as metástases devem ser tratados. De nada adianta tirar uma parte do tumor ou deixar as metástases. Na década de 2000, quatro doentes podem bem exemplificar a importância das imagens como instrumentos para melhorar a programação cirúrgica ou contraindicar o tratamento pela cirurgia. No primeiro, o câncer do soalho da boca perfurou a mandíbula (Figura 5); na outra imagem veem-se dois doentes com câncer da tireoide: ambos tinham metástases no pescoço e no mediastino que inviabilizavam a cirurgia (Figura 7); no quarto, o tumor era tão grande que se tornou impossível determinar onde iniciara, transformando em única úlcera o terço inferior da face, lábios, língua e soalho da boca (Figura 8). Qual a cirurgia a fazer? Nenhuma! Antes dos anos 1970, sem qualquer outra possibilidade terapêutica, esses doentes eram levados à mesa de operação para cirurgias radicais que, na maioria dos casos, não prolongavam suas vidas.

Nos anos 1970 você teria feito?

Com certeza. Voltando às mudanças, em outro curso. Tumores que pareciam grandes eram pediculados, com solução cirúrgica simples (Figura 11). Existe, portanto, o outro lado da moeda. Após os anos 1970, a união entre as melhores imagens, os extraordinários progressos da radioterpia e da quimioterapia e cirurgias mais programadas e com pressuposto da funcionalidade, evitando as retiradas desnecessárias de tecidos, possibilitaram imensa melhoria na qualidade de vida dos doentes operados. Veja as imagens pré-operatórias e o resultado pós-operatório desse doente com câncer de amígdala e metástase no linfonodo submandibular fixo à mandíbula (Figura 12 ). Não é um tumor qualquer. Não pode ser operado sem uma programação cirúrgica que envolva a serra elétrica, para seccionar a mandíbula, e o preparo do retalho deltopeitoral para reconstrução. As melhoras nas imagens não pararam na ressonância. Nos anos 1990, o PETscan (Positron Emission Tecnography) mostra metástases que são invisíveis aos olhos. O exame trabalha com a oxigenação do tecido, com átomos de oxigênio. Como os cânceres são mais vascularizados, têm mais aporte de oxigênio, a máquina detecta isso. É outra linha de imagem, diferente da ressonância magnética e da tomografia computadorizada (Figura 13). Vejam a qualidade da imagem endoscópica de um câncer da laringe (Figura 14). Esse exame é realizado no ambulatório: a fibra óptica de dois milímetros de diâmetro é introduzida pela boca, vê-se pelo monitor e se faz o laudo, em não mais de cinco minutos. No mesmo dia o doente é encaminhado para tratamento radioterápico no hospital do SUS.



E é um tratamento rápido?

Quatro ou cinco semanas, dependendo da programação da radioterapia. Então, a mesma academia que nos anos 1970 dizia "tira tudo" mudou. Diz agora: "Vamos tirar, mas preservando a função". Dito de outro modo: mantém-se a radicalidade, mas se preserva a função. Vejam como esse princípio se aplica à retirada de metástases nos linfonodos cervicais secundários de vários tipos de cânceres da boca e da laringe (Figura 15). Particularmente importante é a história clínica desse paciente. Tinha um pequeno nódulo com um centímetro de diâmetro, próximo da orelha. Um amigo médico disse que poderia retirar o nódulo no ambulatório, com anestesia local. Felizmente, o médico amigo enviou a pequena peça cirúrgica para o exame histopatológico, e o resultado mostrou um tipo de câncer normalmente agressivo, o adenocarcinoma de glândula salivar (parótida). A cirurgia teve de retirar a área de pele da incisão anterior e dissecar o nervo facial para possibilitar a retirada do tumor residual, com margem de segurança. E o cirurgião plástico traçou os retalhos da pele para recobrir a área cirúrgica exposta (Figura 16).



Essas imagens de cirurgias, da década de 2000, são lindíssimas! Representam atos de criação, como esculpir, pintar... Não se pode errar. É a habilidade na ponta do bisturi. Nenhuma imperfeição. Isso aqui é uma aula de anatomia.

Infelizmente, a cirurgia, de modo isolado ou associado, não é a solução para todas as doenças. Para complicar ainda mais, ela pode representar excelente solução para um doente e, para outro, com o mesmo tipo de tumor, um desastre. Ainda continuamos no reino das imprevisibilidades. Isso aqui não é 2+2=4. São muitas variáveis, e ainda não é possível identificar todas. Complicações pré-operatórias, complicações pós-operatórias, pósquimioterápicas, pós-radioterápicas. A quimioterapia ou a radioterapia, como a cirurgia, podem servir para um, e não para outro. Quando combinadas e bem indicadas, oferecem os melhores resultados, em muitos tipos de cânceres.

É impressionante!

Nós não sabemos em qual dimensão da matéria o normal se transforma em doença, se é que tem doença como a compreendemos. Corpo, órgão, célula, molécula, átomo, partículas subatômicas, bóson de Higgs... Onde está a doença? Dentro de uma célula tem bilhões de moléculas; em cada molécula, incontáveis átomos; nos átomos, outras incontáveis partículas. E as partículas subatômicas? O próton e o bóson têm participação na mudança do normal em doença? Em qual dessas dimensões da matéria viva ocorre mudança para que o "normal" se transforme em "doença"? Nada nos impede de teorizar que a causa elementar dos cânceres pode ser a mudança na direção do spin de um elétron ou, se formos ainda mais corajosos, pensar que grande parte da atual epistemologia da doença está errada. Na realidade, apesar dos avanços nos diagnósticos e nos tratamentos de muitos cânceres, ainda compreendemos muito pouco. A ciência continua a 'melhorar' só as consequências. E quando a pessoa tem um segundo câncer? Depois de o primeiro câncer ter sido tratado e curado, após tempo variável, aparece outro tumor, em outro local. Não é metástase tardia, é um segundo tumor. Não podemos deixar de pressupor maior componente genético nesses tipos de cânceres.

E quando esse segundo tumor, do mesmo tipo de câncer, reage de maneira diferente?

A pergunta é muito boa! Um paciente com história social de alcoolismo e tabagismo tem um câncer na borda da língua, o exame histopatológico identifica o tipo como escamocelular (tumores epiteliais sólidos do tecido epitelial), com metástase em linfonodo submandibular do mesmo lado do tumor primário. Esse tumor foi tratado por cirurgia e, em seguida, radioterapia. O segundo, do mesmo tipo histopatológico, que foi diagnosticado no esôfago, normalmente se comporta de modo mais agressivo.

Outra situação é a metástase de tumor desconhecido. Que significa isso? A pessoa chega no ambulatório com metástase no linfonodo cervical. A PAAF (punção aspirativa de agulha fina) indica ser um adenocarcinoma (câncer originado em tecido epitelial secretor, sem esclarecer em qual tecido secretor se originou). Os exames de imagens devem necessariamente incluir a endoscopia realizada com endoscópio rígido das vias aéreas digestivas e as tomografias do crânio, do tórax, do abdome. Ainda assim, o tumor primário não é identificado. Esse linfonodo que assume a definição de "metástase de tumor desconhecido" é tratado e "curado" sem que nunca se tenha identificado o tumor primário. O que se supõe? As células NK (natural killer), entre outras defesas inatas à carcinogênese, curaram o tumor primário, mas antes disso ele emitiu uma metástase. Mas, para a metástase, o sistema imunológico do doente é incompetente.

Essa é uma suposição; mas é claro que o indivíduo teve o tumor em algum lugar. Do mesmo modo, também podemos teorizar que, durante a vida, podemos ter vários cânceres e que o nosso sistema imunológico é competente para combatê-los ainda na dimensão de poucas células.

Toda vez que há metástase significa que o sistema imunológico declarou falência?

Não, não é assim que funciona. Vejam como é complicada uma metástase. É necessário haver migração da célula que compõe o câncer em direção ao vaso, para que seja viável fora do tumor. Supõe-se que muitas células tumorais malignas (cancerosas) circulam na corrente sanguínea e linfática, mas só uma pequena percentagem se torna metastática. Como disse, as etapas são complexas: uma ou mais células, dessas que já estão circulando na corrente sanguínea ou linfática, precisam sair dos vasos e manter a capacidade de multiplicação cancerosa, que é muito diferente da do tecido normal. Existem grupos de genes, indubitavelmente, relacionados à carcinogênese, como o antígeno carcinoembrionário. As células NH3 T também estão relacionadas ao transporte dessas células... São os oncogenes, genes relacionados à carcinogênese.

Significa então que, em certos casos, se o sujeito não tomasse providência alguma, com o passar do tempo ele ficaria bom?

Não, infelizmente, não.

Se a natural killer tiver competência...

Ah, talvez venhamos a ter essa resposta quando entendermos como o bóson de Higgs e outras partículas subatômicas se relacionam com a carcinogênese. Ainda estamos muito distantes. Dizendo de outro modo, não se sabe se certas condições mentais podem interferir no curso de alguns cânceres já tratados pela cirurgia, radioterapia ou quimioterapia. Por essa razão, se rezar, cantar ou meditar faz bem ao doente, por que impedir que ele o faça? O principal, me parece, é não abandonar o tratamento que a ciência oferece, com todos os senões, para só rezar. Continuam a existir muitos tumores que se apresentam com muita agressividade biológica, tanta que o crescimento tumoral excede a capacidade de neoangiogênese (novos vasos sanguíneos para suprir as necessidades do tumor), e o tumor necrosa em algumas partes.

Vejam essa imagem de uma criança índia do Alto Rio Negro, que chegou ao hospital nessas condições, com um rabdomiossarcoma, o câncer dos músculos estriados. Morreu duas semanas depois (Figura 17). A criança vivia em ambiente completamente natural, sem poluição, sem corantes...


O que se espera nos próximos anos? Uma compreensão melhor das metástases e da neoangiogênese. Para que um tumor cresça precisa de suporte vascular, o que requer crescimento dos vasos em seu interior. Então, teoricamente, se você conseguir diminuir a formação dos vasos, o tumor crescerá menos. Alguns laboratórios de biotecnologia estão investindo milhões de dólares nessa premissa teórica. As possibilidades desse tipo de tratamento seriam absolutamente extraordinárias. A única deformidade no corpo seria aquela provocada pelo desaparecimento do tumor! Imaginemos alguém tomar o remédio para diminuir o suporte vascular, "atrofiar" os vasos arteriais, impedir que o sangue chegue e que o tumor cresça.

A literatura tem registrado, aqui e ali, a presença de carcinomas escamocelulares na boca de pessoas mais jovens, não fumantes e abstêmias (Figura 18), portanto diferentes do perfil social dos anos 1970, quando prevaleciam os alcoólicos e fumantes inveterados.


Por que isso? São tipos diferentes de tumor?

Não, estamos falando apenas de carcinoma escamocelular na boca. Contudo, trata-se de um novo perfil. O que é que aconteceu? Mudou alguma coisa no hospedeiro ou no tumor? Ou foi nos dois?

O que pode ter mudado num tumor?

Ninguém sabe.

Para muitas patologias, diz-se que o crescimento do número de casos é decorrência do fato de se ter recursos diagnósticos melhores. Alzheimer, então, teria existido sempre, mas agora as pessoas vivem mais, e a doença aparece mais...

Responderei com outra pergunta. E as crianças com câncer? Não tem nada a ver com idade, 10% dos tumores são infantis.

Mas quanto a seus pacientes, se ficassem entregues a si mesmos, teriam sobrevivido?

Ah, não sei, acho que ninguém sabe. Por outro lado, existem abundantes evidências de que muitos tipos de cânceres, se não tratados adequadamente, determinam a morte precoce.

Estou me referindo a um cálculo individual. É melhor correr para o médico em busca do diagnóstico precoce ou rezar para que o corpo dê conta da história?

Faça as duas coisas. Vá para o médico e reze. Exclua as atitudes agressivas e invasoras sobre os tumores, isto é, nesse caso, somente nos tumores visíveis na pele e nas mucosas, não colocando sobre esses cânceres líquidos cáusticos ou corrosivos, como algumas substâncias químicas ou a seiva de certas plantas. As rezas e meditações não fazem mal para ninguém.

Tem muita terapia popular voltada para o câncer na Amazônia?

Não; não conheço nenhuma publicação com resultados conclusivos após ensaios clínicos.

João, como é sua relação, como cirurgião, com outras especialidades médicas que lidam com o câncer?

Posso assegurar que é excelente com especialistas da radioterapia, quimioterapia, cirurgia plástica, cirurgia de tórax e radiologistas, entre outros.

Não, não falo de sua equipe.

É disso que estou falando, a maior parte desses especialistas não trabalha comigo no mesmo hospital. Uns, em hospitais do SUS; outros, em clínicas privadas que mantêm convênios com o SUS.

São muito diferentes as possibilidades do trabalho num hospital no Amazonas, em São Paulo e em Paris?

Faço o que eles fazem. Claro, há recursos que não tenho, de imediato, mas peço para a agência financiadora ou para a gerência do SUS. Algumas vezes, fui atendido. De modo geral, essas foram as mudanças que presenciei nos quarenta anos de vida profissional como cirurgião: cirurgias igualmente rigorosas nos limites e mais funcionais, extraordinárias melhorias nas imagens, radioterapia e quimioterapia. O que se passou é objeto de fácil interpretação. Nada me impede de teorizar ainda mais. O que vai acontecer no futuro? Acredito que na cancerologia as cirurgias serão cada vez menos utilizadas. Porque não têm sentido...

Não têm sentido?

O que terá mais sentido será entender cada vez mais os cânceres, desvendar em qual dimensão da matéria a estrutura "normal" se transforma em "doença". Nessa condição, quando for possível tratar o câncer de maneira semelhante à tuberculose ou qualquer outra doença infecciosa, a cirurgia será desnecessária. Quando será desse modo? Não tenho a menor ideia. Mas será! As pneumectomias e os pneumotóraxes eram usados como tratamento da tuberculose quando se desconhecia o agente etiológico.

E as cirurgias endoscópicas?

Como disse, não sei fazer, os meus alunos estão na vanguarda.

Por que, João?

Acho que eu não tive tesão, atração por esse novo.

O instrumental é diferente?

É muito diferente. O cirurgião trabalha com endoscópios introduzidos na fossa nasal ou na cavidade oral e manipula os instrumentos com o auxílio de um ou mais monitores. Os melhores resultados estão concentrados, na maior parte, nos tumores benignos e, em menor proporção, em alguns tumores malignos.

É uma ruptura maior então do que a que você testemunhou?

Não, considero a cirurgia endoscópica uma adaptação às mudanças. As cirurgias endoscópicas são variantes de uma ruptura anterior, que é a mais significativa: preservar a integridade do corpo, certa santificação do corpo para ser mostrado, para ter prazer sem medo da gravidez indesejada. A cirurgia se adaptou a essa forte vertente social, fortalecida na proporção do acesso a métodos anticoncepcionais.

Mas a apreciação estética que você tem em relação ao trabalho cirúrgico bem feito? Como fica na cirurgia endoscópica?

Sem dúvida, a cirurgia endoscópica, quando bem indicada, oferece resultado estético muito melhor. Porém, não poderia ser utilizada em nenhum dos doentes apresentados nessas imagens.

Mas a habilidade manual é de outra natureza?

Pelo menos parte da habilidade manual é construída. Requer uma curva de aprendizado; não tenho mais tempo para essa tarefa. O meu projeto de vida foi construído para, em determinado momento, entre 62 e 65 anos de idade, me afastar das atividades cirúrgicas abrindo caminho para os ex-alunos do doutorado. Estou nesse processo, não de aposentadoria, mas de diminuição da minha presença no teatro cirúrgico. Considero-me satisfeito. Publiquei 13 livros, dois no prelo, mais de trezentos trabalhos apresentados em congressos médicos, outras tantas conferências e algumas dezenas publicadas em revistas. Nesse semestre, no Hospital Adriano Jorge, da Universidade do Estado do Amazonas, oriento três médicos residentes da Otorrinolaringologia e 12 alunos da graduação, na iniciação científica. No Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia, da Universidade Federal do Amazonas, tenho três doutorandos sob minha supervisão.

A ciência médica é um trem rumo às menores dimensões da matéria. Nossa competência vai ser diretamente proporcional à compreensão da menor dimensão da matéria viva que conhecemos como doença. Do lugar onde me encontro hoje apenas vejo a direção que esse trem toma. Meus alunos e os alunos dos meus alunos, com sorte, verão ele chegar.

Ficha técnica:

Data: abril de 2009.

Local: Copacabana, Rio de Janeiro.

Entrevistado: João Bosco Botelho.

Entrevistadores: Jaime L. Benchimol, Ruth B. Martins.

Transcrição de fitas: Mônica de Souza Alves da Cruz Caminha.

Edição: Jaime L. Benchimol.

Entrevista com/Interview with João Bosco Botelho

  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jul 2010
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