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A cena constituinte da psicose maníaco-depressiva no Brasil

The emergence of manic depressive psychosis as a diagnosis in Brazil

Resumos

A intenção deste ensaio é esboçar a leitura da psicose maníaco-depressiva no Brasil, no começo do século XX. Destaca a transformação teórica ocorrida na psiquiatria brasileira, que se deslocou da tradição francesa para a alemã. Sublinha o modo como a problemática da histeria foi substituída pela da psicose maníaco-depressiva nesse contexto histórico.

mania; melancolia; histeria; psicose maníaco-depressiva; Brasil


This essay examines the early twentieth-century interpretation of manic depressive psychosis in Brazil, during a moment when Brazilian psychiatry witnessed a theoretical shift from the French to German traditions. It calls special attention to how the problem of hysteria was replaced by manic depressive psychosis within this historical context.

mania; melancholy; hysteria; manic depressive psychosis; Brazil


ANÁLISE

A cena constituinte da psicose maníaco-depressiva no Brasil

The emergence of manic depressive psychosis as a diagnosis in Brazil

Joel Birman

Professor titular do Instituto de Psicologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro; professor adjunto do Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro; diretor de estudos em Letras e Ciências Humanas e pesquisador associado do Laboratório de Psicanálise e Medicina/Université Paris VII. Rua Marquês de São Vicente, 250, 22451-040 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. joel.birman@pq.cnpq.br

RESUMO

A intenção deste ensaio é esboçar a leitura da psicose maníaco-depressiva no Brasil, no começo do século XX. Destaca a transformação teórica ocorrida na psiquiatria brasileira, que se deslocou da tradição francesa para a alemã. Sublinha o modo como a problemática da histeria foi substituída pela da psicose maníaco-depressiva nesse contexto histórico.

Palavras-chave: mania; melancolia; histeria; psicose maníaco-depressiva; Brasil.

ABSTRACT

This essay examines the early twentieth-century interpretation of manic depressive psychosis in Brazil, during a moment when Brazilian psychiatry witnessed a theoretical shift from the French to German traditions. It calls special attention to how the problem of hysteria was replaced by manic depressive psychosis within this historical context.

Keywords: mania; melancholy; hysteria; manic depressive psychosis; Brazil.

De olho no lance

A intenção fundamental deste ensaio é a de estabelecer as coordenadas teóricas por intermédio das quais se delineou a descrição clínica da psicose maníaco-depressiva na tradição da psiquiatria brasileira, nas duas primeiras décadas do século XX. Tal descrição foi realizada num contexto social e histórico de amplas transformações dos discursos e práticas de cuidados sobre a loucura no Brasil, em meio às quais outras descrições clínicas foram também forjadas, na medida em que um outro paradigma teórico (Kuhn, 1975) estava sendo incorporado por esse campo do saber. Por essa razão, enunciei que a descrição clínica da psicose maníaco-depressiva se fundava em certas coordenadas teóricas, condição de possibilidade desta e de outras descrições, formuladas nesse contexto histórico específico. Vale dizer que tais coordenadas seriam o correlato do novo paradigma, a partir de então inscrito no horizonte da psiquiatria brasileira.

Em decorrência disso, será necessário evocar como condição preliminar da descrição clínica da psicose maníaco-depressiva, a transformação ocorrida no campo da psiquiatria brasileira da época. A assunção de Juliano Moreira à direção do Hospício Nacional de Alienados, em 1905, foi um signo eloquente de tal transformação, que, no entanto, já havia sido iniciada algum tempo antes. Indicado para os novos poderes políticos da República por Afrânio Peixoto, para ocupar o cargo institucional mais importante na gestão da psiquiatria no Brasil, Juliano Moreira compartilhava com o primeiro os mesmos pressupostos teóricos para a leitura das perturbações mentais. Foi Afrânio Peixoto que empreendeu a leitura originária da loucura maníaco-depressiva no Brasil, no início do século XX, baseando-se para tanto na obra de Kraepelin (Peixoto, 1905). No entanto, foi sem dúvida Juliano Moreira que inscreveu de maneira sistemática o paradigma psiquiátrico de Kraepelin na totalidade do campo da psiquiatria no Brasil, marcando efetivamente a ruptura nesse campo, de forma indelével, com o que historicamente o antecedeu. Sendo assim, um arquivo (Derrida, 1994; Foucault, 1969) da psiquiatria no Brasil foi constituído nos seus menores detalhes, reorientando as linhas de força até então presentes na leitura da loucura. Um divisor de águas foi assim efetivamente estabelecido na memória histórica, na medida em que outros registros de leitura foram colocados em cena na interpretação dessa enfermidade.

Por isso mesmo, a assunção da direção do Hospício Nacional de Alienados por Juliano Moreira - e sua gestão efetiva até o início dos anos 1930 - foi cantada em prosa e verso por diversos historiadores da psiquiatria no Brasil como a fundação efetiva da psiquiatria em nossa tradição (Portocarrero, 2002; Venâncio, Carvalhal, 2005). Com efeito, devido à nova orientação por ele empreendida no registro teórico e na prática clínica de assistência aos enfermos mentais no Brasil, a psiquiatria teria saído decisivamente de suas indefinições iniciais (Teixeira Brandão, 1886), num processo disparado desde os anos 50 do século XIX, com a construção do Hospício de Pedro II (Machado et al., 1978). Enfim, os intérpretes que se debruçam sobre o tema indicam claramente a dimensão efetiva de ruptura, nos registros do discurso teórico e do campo de cuidados, que se teria materializado com a nova perspectiva trazida por Juliano Moreira.

No entanto, é preciso que fiquemos bem atentos ao lance, ao que estava efetivamente em pauta no dito redirecionamento das linhas de força na leitura da loucura no Brasil, sobretudo no que diz respeito ao lance decisivo, para não recebermos o cartão amarelo nem tampouco o vermelho na leitura do "jogo de verdade" (Foucault, 1994), colocado na cena psiquiátrica pelo novo paradigma teórico então instituído. Sendo assim, tal redirecionamento implicou o deslocamento decisivo do referencial teórico na leitura do campo da medicina mental no Brasil. Com efeito, se a tradição psiquiátrica francesa foi crucial no tempo inicial do alienismo no Brasil, foi a tradição alemã que passou a dar as cartas do jogo da verdade com a virada em questão. Além disso, a partir de então, ela tornou-se hegemônica, durante décadas, na direção das linhas de força da psiquiatria brasileira.

Neste artigo, a tradição alemã foi representada por um discurso teórico que tem nome e sobrenome, isto é, um nome próprio. Trata-se de Emile Kraepelin. Assim sendo, é preciso evocar que o dito divisor de águas paradigmático foi marcado pela leitura do campo das perturbações mentais realizada por este autor. Vale dizer que foi a incorporação efetiva do discurso teórico de Kraepelin que passou a dar, a partir de então, as cartas do jogo da verdade no campo da psiquiatria no Brasil.

Contudo, o efeito crucial do discurso teórico de Kraepelin no campo da psiquiatria, tanto internacional quanto brasileira, foi o de possibilitar a 'medicalização' da loucura de maneira ao mesmo tempo sistemática e infinita. Isso não quer dizer, evidentemente, que a loucura já não estivesse inscrita no campo da medicina, mas sim que a dita medicalização ainda era problemática.

Se a constituição do conceito de instinto criminoso permitiu a medicalização do alienismo e a leitura médica da loucura, possibilitando a institucionalização do primeiro no campo dos embates com o poder judiciário (Foucault, 1999), no registro estrito da clínica a medicalização da psiquiatria era francamente problemática. Isso porque lhe faltava uma leitura da loucura como enfermidade propriamente dita e que fosse condizente com o modelo presente na medicina somática, do ponto de vista epistemológico.

Assim, diante dos repetidos fracassos ocorridos nas primeiras décadas do século XIX com a medicalização da experiência da loucura, em decorrência da impossibilidade de explicar as perturbações mentais pelo paradigma da anatomoclínica (Birman, 1978) - como ocorria no campo da medicina somática (Foucault, 1976) - a teoria da degeneração procurou sustentar uma leitura biológica das ditas perturbações mentais. Inicialmente com Morel (1859) e posteriormente com Magnan e Legrain (1895), o paradigma degenerativo sobre a loucura foi forjado na tradição francesa, sendo retomado por Kraepelin desde os anos 1880, com vistas à construção de uma leitura etiológica e sistemática das perturbações mentais.

A ideia de causalidade na leitura das perturbações do espírito obcecava Kraepelin, que pretendeu modelar o discurso psiquiátrico conforme os cânones da medicina científica da segunda metade do século XIX. As inovações teóricas advindas com o discurso da bac-teriologia - inicialmente com Pasteur e em seguida com Koch - o incitaram a realizar algo análogo no campo da psiquiatria, visando dotá-la dessa mesma aura de cientificidade.

Esse paradigma teórico foi então incorporado de maneira sistemática por Juliano Moreira no campo da psiquiatria brasileira, paradigma este que, desde então, dominou inso-fismavelmente o regime de verdade de seus enunciados. Em decorrência disso, o cientificismo e o positivismo médicos marcaram a leitura das perturbações mentais de forma inequívoca. Nessa perspectiva, o discurso psiquiátrico passou a caracterizar-se pela presença obrigatória de um conjunto de enunciados que, além da descrição sintomática das diferentes pertur-bações mentais, deveria igualmente incluir aqueles oriundos da anatomia, da bioquímica, da fisiologia e da então recente teoria da hereditariedade. Foi a constituição desses novos registros enunciativos no campo do discurso psiquiátrico que marcou a diferença efetiva entre este e o discurso teórico que o antecedera historicamente. Enfim, a medicalização da experiência da loucura assumiu outras direções diante das novas coordenadas teóricas inscritas no discurso psiquiátrico.

O campo específico da psicose maníaco-depressiva foi um dos registros clínicos no qual essa transformação foi efetivamente realizada. Sua descrição clínica passou a ser inteiramente empreendida segundo os imperativos das novas coordenadas teóricas, não somente porque tais modalidades de experiência da loucura (mania e melancolia) foram então conjugadas, por Kraepelin, como uma enfermidade única e como um tipo de psicose endógena - ao lado da demência precoce -, mas também porque podemos reconhecer, em sua leitura, uma disseminação eloquente daqueles enunciados discursivos na psiquiatria brasileira, no contexto histórico em questão.

No entanto, é preciso não ser teoricamente ingênuo e atentar para outro lance que se processa igualmente na cena constitutiva desse novo jogo de verdade e delineia suas linhas de força. Como vimos, no novo paradigma psiquiátrico, a preocupação teórica e clínica com a psicose maníaco-depressiva passou a ocupar o lugar estratégico que era o da histeria no paradigma anterior. Com efeito, delineada pela concepção de Charcot, essa enfermidade era fartamente diagnosticada anteriormente, dominando a cena asilar com altas taxas de incidência e prevalência. Porém, com Babinski, que transformou sua concepção teórica passando a denominá-la pitiatismo - isto é, uma construção deslavadamente mentirosa, produzida pela sugestão e desconstruída pela persuasão -, seu campo de incidência e seus índices de internação encolheram de maneira significativa (Roxo, 1925, p.390). Tal encolhimento produziu, contudo, como contrapartida, a expansão efetiva da psicose maníaco-depressiva, que teve significativamente incrementadas suas taxas de incidência e internação.

O que estaria em jogo? Um avanço efetivo do discurso psiquiátrico como ciência que, ultrapassando obstáculos e adquirindo novos limiares de cientificidade, pôde enfim aceder a novos territórios de positividade? Foi esta a resposta dominante na psiquiatria brasileira de então (Cunha Lopes, 1927), que afirmou repetida e monotonamente o diagnóstico incorreto dos antigos histéricos, a partir de então devidamente enquadrados no campo nosográfico da psicose maníaco-depressiva. No entanto, seria preciso analisar de maneira crítica tal afirmação, enunciando que na suposta retificação então estabelecida, que se propunha a corrigir a ilusão de ótica do diagnóstico anteriormente formulado, estaria em pauta a constituição de um outro jogo de verdade sobre as perturbações mentais. Isso porque nada é menos ingênuo do que a formulação de qualquer sistema classificatório, no interior do qual será devidamente interpretada a constituição dos sistemas nosográficos tanto na psiquiatria quanto na medicina.

Tampouco podemos perder de vista outra dimensão crucial desse jogo de verdade que se desenrola na cena atual, o que seria não apenas trágico, mas principalmente cômico. Na contemporaneidade, ocorre um processo similar, equivalente e comparável ao que se passou no contexto social e histórico examinado neste artigo, porém as linhas de força e as coordenadas do processo agora em curso não são as mesmas. Com efeito, no neokraepelianismo, dominante no campo da psiquiatria atual, a denominada psicose bipolar teve o mesmo efeito mágico de varrer não somente a histeria do mapa da nosografia psiquiátrica, mas também a psicanálise do campo discursivo da psiquiatria, uma vez que ela se inscreveu no espaço teórico desta última durante décadas no século passado, ocupando uma posição primordial. A intitulada psiquiatria dinâmica foi o signo eloquente dessa conjunção entre psiquiatria e psicanálise. Contudo, o neokraepelianismo contemporâneo já não é mais ancorado na estrita teoria da causalidade delineada por Kraepelin, mas no discurso das neurociências, que passou a dar as cartas no jogo da verdade da psiquiatria.

Enfim, foi pelo percurso desenhado por essas inflexões teóricas que se realizou a leitura da psicose maníaco-depressiva nas duas décadas do século passado, na tradição da psiquiatria brasileira.

Enfermidade única

Desde a Antiguidade, a mania e a melancolia já eram consideradas perturbações da alma e independentes. Não obstante, formulava-se igualmente uma possível relação entre elas, seja porque pudessem se alternar, ou porque talvez pudessem estar implicadas. Essa era a concepção dominante até o início do século XIX, tal como se evidencia na leitura de Pinel (2005), ou na de Esquirol (1989a; 1989b).

Contudo, na segunda metade do século XIX outra concepção teórica, proveniente da psiquiatria francesa, começou a se delinear. Em 1851 e 1854, respectivamente, Falret e Baillarger descreveram a existência de uma mesma enfermidade, denominada loucura circular (Falret, 1851) pelo primeiro e loucura de dupla forma (Baillarger, 1854) pelo segundo. Para Falret, a loucura circular seria caracterizada pela reprodução sucessiva e regular do estado maníaco, do estado melancólico e de um intervalo lúcido, que poderia ter uma duração maior ou menor, conforme o caso. Em contrapartida, para Baillarger a loucura de dupla forma seria caracterizada pela sucessão de dois períodos, um de excitação e outro de depressão.

Em 1883 Ritti procurou articular o que delineou então como uma evidente novidade teórica e clínica, com as leituras de Falret e de Baillarger. Passou a sustentar, na França, a hipótese da existência de uma enfermidade única, caracterizada pela sucessão regular de crises de mania e melancolia no mesmo indivíduo. Na Alemanha, por sua vez, diversos autores também estudavam a nova enfermidade assim caracterizada, mas a denominaram psicose periódica (Ey, Bernard, Brisset, 1965, p.226).

Foi Kraepelin, contudo, que em 1899, na terceira edição de seu célebre Tratado de psiquiatria, passou a descrever minuciosamente tanto os estados de transição quanto as imbricações existentes entre as crises maníacas e melancólicas. Dessa maneira, enunciou o conceito de estado misto para demonstrar a existência de uma identidade profunda entre a mania e a melancolia (Kraepelin, 1927), sustentando a existência de um processo. Em decorrência disso, Kraepelin englobou todas as psicoses anteriormente descritas - chamadas de intermitente, circular, periódica, de dupla forma e alterna - em uma enfermidade fundamental denominada loucura maníaco-depressiva, passando a considerá-la uma "psicose endógena", isto é, de ordem essencialmente constitucional. Contudo, excluiu inicialmente a melancolia involutiva do registro clínico da loucura maníaco-depressiva, mantendo-a como uma enfermidade independente. Nos anos 1920, ele iria rever essa posição, no acabamento final de sua nosografia psiquiátrica (Roxo, 1925, p.367).

Foi, no entanto, a nova leitura sistemática desse autor sobre o campo psiquiátrico que modelou sua caracterização da loucura maníaco-depressiva. Foi ainda essa nova leitura que marcou a então recente psiquiatria brasileira, que, com Juliano Moreira como estrategista teórico, passou a se inscrever sistemática e decididamente no campo da tradição psiquiátrica alemã. Vale dizer que, se até então esse campo do saber, no Brasil, era profundamente marcado pela tradição francesa de psiquiatria (Machado, 1978), a partir de então foi a tradição alemã que passou a dar decisivamente as cartas do jogo, perdurando durante décadas na tradição psiquiátrica brasileira. No entanto, foi Kraepelin indubitavelmente o grande teórico de referência que, por intermédio de Juliano Moreira, marcou o redire-cionamento das linhas de força desse campo disciplinar no Brasil.

Nessa perspectiva, não foi um acaso que a comissão instituída em 1908 pela Sociedade Brasileira de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal - composta por Juliano Moreira, Afrânio Peixoto, Carlos Eiras, Antônio Austregésilo e Henrique Roxo -, para apresentar um projeto de classificação das doenças mentais que valesse em todo o território nacional, tenha construído um sistema nosográfico que era quase uma transcrição literal daquele de Kraepelin. Juliano Moreira foi evidentemente o relator do novo projeto, apresentado em 1910 (Cunha Lopes, 1960, p.108-110).

Assim, antes de delinear a leitura da loucura maníaco-depressiva realizada no Brasil, no início do século XX, é fundamental destacar alguns aspectos cruciais da visão de Kraepelin sobre a psiquiatria, que marcaram de maneira indelével esse campo disciplinar no Brasil. Como observaremos adiante, a concepção de endógeno que se destacou na leitura da loucura maníaco-depressiva realizada por Kraepelin evidencia não somente a dimensão organicista de tal leitura, mas também a dimensão de periculosidade social representada pelos enfermos mentais, o que justificaria e legitimaria seu isolamento asilar.

Cientificismo, positivismo e periculosidade

Não obstante o fato de ter sido inicialmente marcada pela tradição teórica de Wundt no campo da psicologia, a perspectiva de Kraepelin no campo psiquiátrico era essencialmente organicista, procurando estabelecer uma leitura médica das perturbações mentais. Pode-se afirmar assim, sem titubear, que assim como Wundt pretendeu fundar a cientificidade da psicologia nos seus diversos domínios, Kraepelin quis empreender o mesmo projeto teórico no campo da psiquiatria. Para tanto, ela deveria ser naturalista e organicista, inscrevendo-se no campo da medicina, de fato e de direito.

Nesse sentido, Kraepelin procurou realizar o esforço teórico de superar o registro da descrição sintomática das perturbações mentais, considerado superficial e epifenomênico, para apreender a dimensão etiológica e patogênica das ditas perturbações mentais. Seria por esse viés que se poderia efetivamente caracterizar o campo das diferentes enfermidades mentais. No entanto, como a psiquiatria não conseguiu realizar a mesma operação teórica empreendida pela medicina somática - que, com o discurso da anatomoclínica, estabeleceu a relação entre os registros do sintoma e da lesão (Foucault, 1976)1 1 No campo psiquiátrico, essa realização ficou restrita ao empreendimento de Bayle, que no início da década de 1920 estabeleceu a articulação causal entre a paralisia geral progressiva e a lesão anatômica cerebral (Birman, 1978). -, coube a ela um contorno tático para sustentar sua leitura naturalista das perturbações mentais.

Por conta disso, realizou duas operações teóricas complementares. Primeiro, procurou remeter o registro clínico do sintoma e da síndrome àquele definido pela oposição endógeno/exógeno, de maneira a situar o campo da etiologia de uma dita perturbação mental no interior ou no exterior do organismo. Em seguida, no entanto, colocou igualmente em evidência a dimensão evolutiva das perturbações mentais, visando avaliar no registro estrito da diacronia de que modo evoluíam no tempo os campos do sintoma e da síndrome. A esse respeito, não existe qualquer dúvida de que a grande novidade introduzida por Kraepelin no discurso psiquiátrico foi o ponto de vista evolutivo no campo das perturbações mentais. Tal novidade teórica foi devidamente reconhecida por diversos autores, entre os quais podemos evocar Lacan (1975; 1966), Lanteri-Laura (1984) e Postel (2007, p.307-327).

O que implicaria o ponto de vista evolutivo? Nada mais, nada menos do que descolar o discurso psiquiátrico dos registros estritos do sintoma e da síndrome para lançá-lo em direção à apreensão do processo em pauta, no caso de uma dita perturbação mental. Seria essa a condição de possibilidade para transformar esta última numa enfermidade mental propriamente dita, pela circunscrição de sua causalidade. Além disso, do ponto de vista evolutivo, a operação do diagnóstico estaria intimamente articulada à dimensão do prognóstico, de modo que diagnosticar uma doença implicaria necessariamente a antecipação de sua evolução, bem como do possível destino do doente no futuro.

Em decorrência disso, a oposição endógeno/exógeno tinha uma funcionalidade operacional na leitura de Kraepelin (1927). Com efeito, enquanto as enfermidades exógenas seriam relativamente reguláveis e curáveis, as endógenas, em contrapartida, estariam fadadas à cronicidade, uma vez que enraizadas num fundo constitucional e degenerativo. Nessa perspectiva, a concepção de endogeneidade de Kraepelin estaria em continuidade com a concepção de degeneração, forjada no campo da psiquiatria francesa por Morel (1859) e Magnan e Legrain (1895).

Por isso mesmo, numa crítica aguçada ao organicismo de Kraepelin, tendo em mente um futuro teórico possível para a psiquiatria no cenário do pós-guerra, Ey (1956) colocou em destaque o que existia de inquietante e mesmo de perigoso no conceito de endógeno na disciplina, no contexto de um seminário teórico voltado para o centenário de Kraepelin:

Dizer que uma psicose é endógena é afirmar que ela resulta no seu aspecto clínico de uma organização interna da pessoa. É colocar o acento sobre a constituição biopsicológica do indivíduo, isto é, afirmar que a estrutura genotípica sobre a qual se edificou a pessoa e seu mundo é de uma importância maior. É afirmar ainda que a psicose não é apenas um acidente de percurso, mas esposa a trajetória da existência e do destino do homem doente. Enfim, é afirmar ainda e principalmente que a psicose reside essencialmente numa alteração, senão numa alienação definitiva da pessoa (p.956).2 2 Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.

É evidente que o discurso psiquiátrico de Ey precisava delinear uma perspectiva teórica para o futuro da psiquiatria, num contexto histórico marcado pela disseminação da psicanálise e da dita psiquiatria dinâmica. Para tanto, seria necessário colocar um limite ao fatalismo constitucionalista presente na leitura psiquiátrica de Kraepelin. Com isso, Ey pretendia relativizar o peso conferido à herança genética e atribuir um lugar de destaque ao registro do acontecimento na existência do sujeito, no processo causal de produção da enfermidade mental.

Contudo, no paradigma cientificista e positivista enunciado por Kraepelin, o que se impunha decisivamente era o imperativo de realizar na psiquiatria o mesmo paradigma presente no campo da medicina clínica. Seu ideal teórico seria o de realizar, na medicina mental, o que Koch forjou no campo da tuberculose, conjugando a descrição clínica com os registros da etiologia e da patogenia, nos rastros da bacteriologia de Pasteur.

Por isso mesmo, o ponto de partida de Kraepelin para a construção de seu sistema teórico foi a retomada da descrição clínica da catatonia, tal como delineada, na Alemanha, por Kahlbaum. O grande mérito deste autor, aos olhos de Kraepelin, foi o de ter delimitado com precisão o aspecto processual e evolutivo da catatonia. Ao lado disso, esta última, como perturbação mental, teria a virtude prototípica de exibir simultaneamente, no primeiro plano da enfermidade, as dimensões neurológica e psicomotora, o que lhe conferiria um substrato material consistente, quase anatômico, na 'mostração' da enfermidade em pauta.

Além disso, Kraepelin retomou a leitura de Hecker sobre a hebefrenia, na qual a demência na juventude seguramente indicaria o início pós-pubertário na evolução da enfermidade. Essa base hebefrênico-catatônica foi o núcleo constitutivo da demência precoce - termo inicialmente forjado por Morel - como psicose endógena. Foi somente algum tempo depois que as demais formas clínicas da demência precoce foram arroladas, seja inicialmente a forma paranoide ou delirante, seja posteriormente a parafrenia (sistemática, expansiva, confabulante e fantástica). Paralelamente a essas questões, Kraepelin (1927) referiu-se igualmente à forma simples, à forma depressiva, à forma pseudoperiódica e, finalmente, à forma demencial da demência precoce. Seja como for, a demência precoce, em sua diversidade clínica, evoluiria inexoravelmente em direção à demência terminal.

Em função ainda da leitura processual que privilegiou, Kraepelin (1927) forjou a loucura maníaco-depressiva como outra modalidade de psicose endógena. Nesse caso, existiria igualmente uma base constitucional que determinaria o processo em questão. Entretanto, na psicose maníaco-depressiva não se verificaria a demência como estudo terminal, como ocorreria na demência precoce. Além disso, o processo em pauta seria entrecortado por intervalos lúcidos, que, como seu nome já indica, estaria presente entre as duas fases da enfermidade.

Nesse contexto, Kraepelin (1927) elaborou um quadro com as formas clínicas da loucura maníaco-depressiva: (1) estados maníacos; (2) estados depressivos, nos quais destacou a existência da melancolia simples, da melancolia grave e da melancolia constitucional; (3) estados fundamentais - a excitação constitucional, a depressão constitucional e a irritabilidade constitucional -, que permaneceriam entre as fases e poderiam até mesmo constituir a doença em si; (4) estados mistos, que seria a elaboração mais original de Kraepelin, fundamentando a constituição da concepção da psicose maníaco-depressiva, uma vez que a fase maníaca se conjugaria com a depressiva.

Finalmente, é preciso destacar que a problemática da periculosidade social colocada pelas perturbações mentais se articularia intimamente com esse fundo constitucional e endógeno, isto é, degenerativo, presente no discurso psiquiátrico de Kraepelin. Foi por esse viés que ele retomou a perspectiva entreaberta por Morel e Magnan no século XIX, com a 'problemática da degeneração', para delinear a constituição do campo da 'anormalidade' como alvo e objeto por excelência da psiquiatria, ultrapassando com isso o tempo inicial do alienismo, como nos disse Foucault (1999). Daí porque a problemática da periculosidade estaria no centro da leitura de Kraepelin, desdobrando-se numa perspectiva marcadamente repressiva em relação aos doentes mentais. As ameaças representadas por estses últimos para o espaço social receberam de Kraepelin um verniz supostamente positivo e científico, evidenciando, contudo, um pessimismo fundamental no que tange às possibilidades terapêuticas.

Sendo assim, logo no início da segunda edição de sua Introduction à la psychiatrie clinique (Introdução a Psiquiatria Clínica), publicada em 1905, Kraepelin pôde afirmar não apenas a periculosidade presente no campo das perturbações mentais, como também seu correlato, qual seja, os limites terapêuticos da psiquiatria. Em decorrência disso, ela resultaria numa prática eminentemente repressiva, voltada para a proteção social:

Todo alienado constitui um perigo permanente para o seu meio e sobretudo para ele mesmo: um terço ao menos dos suicidas advém das perturbações mentais; os crimes passionais, os incêndios, as agressões, os roubos e as escroquerias são cometidos por alienados. Não se contam mais as famílias cujo membro doente causou a ruína, desperdiçando a sua fortuna sem reflexão ou se encontrando na impossibilidade de gerir seus negócios e de trabalhar após uma longa doença. Apenas uma parcela pequena dos incuráveis é destinada a uma morte rápida, a imensa maioria continua a viver durante anos e cria assim, para a família e o Estado, uma carga cada vez mais pesada, cujas consequências repercutem profundamente na nossa vida social. É por isso que se impõe cada vez mais ao médico, que quer estar à altura de sua tarefa, o dever de se familiarizar, na medida do possível, com as manifestações da loucura, se bem que os limites de seu poder sejam muito restritos, em face de um tão temível adversário (Kraepelin, 1984, p.7).

A leitura positivista e cientificista sobre o campo da loucura, no paradigma fundamen-talmente organicista delineado por Kraepelin, estaria portanto intimamente articulada à regulação e ao controle ostensivo do campo da periculosidade social nela implicado. No que diz respeito a essa questão, aliás, não existiria a exterioridade de um desses aspectos em relação ao outro, uma vez que a 'governabilidade' sobre o campo da loucura passaria necessariamente, a partir de então, pela leitura cientificista do campo dos anormais. Por isso mesmo, não existiriam mais fronteiras cortantes e bem estabelecidas para o registro da constituição no discurso psiquiátrico com um território bem delimitado, mas sim bordas sempre fluidas que possibilitariam a expansão infinita do campo da leitura psiquiátrica, no intuito de afrontar a periculosidade do social.

Incorporação do paradigma

Foi por intermédio da incorporação do discurso teórico de Kraepelin que a psiquiatria brasileira se deslocou de sua referência francesa e se inscreveu decisivamente na tradição da psiquiatria alemã, como disse acima. Juliano Moreira foi o maior responsável por tal deslocamento teórico. Investido de poder ao assumir a direção do Hospício Nacional de Alienados, teve a possibilidade de realizar a reconstrução do campo da assistência psiquiátrica ao conjugar a prática clínica ali realizada com a construção de colônias para os doentes mentais, na periferia do Rio de Janeiro. Com isso, a cartografia assistencial foi reformulada para oferecer diferentes destinos aos pacientes 'agudos' e 'crônicos', bem como estratégias terapêuticas de curta e longa duração.

Nesse contexto, a loucura maníaco-depressiva inscreveu-se no discurso psiquiátrico brasileiro e nos espaços asilares, passando a caracterizar uma modalidade relativamente frequente de doença mental. O primeiro autor a teorizar sobre a nova doença foi Afrânio Peixoto, que posteriormente indicou, para os poderes da República, o nome de Juliano Moreira para a gestão do Hospício Nacional de Alienados. Psiquiatra, médico legista, romancista e, posteriormente, membro da Academia Brasileira de Letras, Afrânio Peixoto era originário da Bahia, assim como Juliano Moreira.

Seu ensaio inicial sobre a psicose maníaco-depressiva, publicado em 1905 sob o título "A loucura maníaco-depressiva" (Peixoto, 1905), transformou-se numa referência fundamental sobre a dita psicose no Brasil. Teve assim ressonâncias importantes nas produções teóricas posteriormente publicadas, não obstante as resistências que também encontrou para se impor como referência crucial.

Como nos disse Henrique Roxo (1925, p.368) em seu Manual de psiquiatria, Peixoto mostrou-se um "adepto da concepção germânica". Com efeito, esse autor reconheceu sua dívida com Kraepelin logo no parágrafo inicial de seu ensaio, de maneira ao mesmo tempo solene e eloquente: "A concepção da loucura maníaco-depressiva é uma das sínteses gloriosas que marcam época nos fatos da psiquiatria". Deve-se ao Professor Emil Kraepelin" (Peixoto, 1905, p.33; grifos meus).

Logo em seguida, a concepção teórica de Kraepelin sobre a dita loucura foi condensada em seus aspectos fundamentais, sem que Peixoto apresentasse qualquer diferença na descrição clínica e na etiologia da loucura maníaco-depressiva. Assim, "entende-se por esta designação uma doença mental ordinariamente hereditária, sobretudo frequente no meio-dia da vida, manifestando-se por acessos isolados, sub-intrantes, intermitentes, de excitação ou depressão, puros ou combinados, deixando intervalos de saúde, sem aparente lesão da inteligência" (Peixoto, 1905, p.33).

Ao mesmo tempo, Peixoto (1905) colocou devidamente em destaque a ruptura teórica e clínica representada pela concepção de Kraepelin em relação à tradição anterior, incluindo o remanejamento operado em relação a Falret e Baillarger: "Tanto vale dizer que aí ficaram compreendidas todas aquelas consideradas espécies clínicas chamadas de mania, de melancolia, loucura de dupla forma, periódica, alterna, atípica e suas variantes de intensidade e de manifestação clínica" (p.34). Sendo assim, o deslocamento da tradição psiquiátrica francesa para a alemã foi sacramentado.

O deslocamento do estrito registro sintomático do acesso para o do processo foi também sublinhado por Peixoto (1905), que nesse caso assumiu uma perspectiva essencialmente kraepeliniana: "O que se supunha, tomando isoladamente a observação de um acesso, ou mesmo, mais ainda, a preponderância da fase, de um acesso, como doença especial, é trazido ao rol da síndrome clínica, aparecendo só ou acompanhado, repetindo-se ou alternando-se, de modo a justificar o conceito, bem fundado, da loucura maníaco-depressiva" (p.33).

Essa formulação de Peixoto foi enunciada posteriormente de maneira ainda mais clara e imperativa, colocando-se em evidência a dimensão do processo em causa e sublinhando-se a dimensão constitucional:

A observação de todos os fatos, mesmo variadíssimos, sobremaneira os mistos e aglutinados, a penetração no estudo de cada um deles na sua evolução, condenando o vezo de esquecer o doente e fazer dos sintomas concepções de doença, trouxe a Kraepelin a conclusão que existe uma espécie de enfermidade mental, assente sobre um terreno de herança neuropática, que se manifesta por síndromes de excitação e de depressão, isoladas, combinadas, misturadas ou alternadas, em intensidade, duração e disposição variáveis, passando sem lesão considerável da inteligência e se repetindo e recidivando através da vida: é a loucura maníaco-depressiva (Peixoto, 1905, p.34-35).

A etiologia fundamental da enfermidade seria indubitavelmente de ordem hereditária. A marca infalível da hereditariedade nessa modalidade de loucura seria bastante intensa, talvez apenas um pouco menor do que a encontrada na idiotia, na imbecilidade e na debilidade mental. Com efeito, se a degeneração mental e as psiconeuroses (histeria, epilepsia e neurastenia) seriam produções patológicas que se produziriam de imediato, num terreno regado pelo álcool, pela sífilis, pelas 'provações' e pelos 'excessos', a loucura maníaco-depressiva se forjaria, em contrapartida, num campo largamente preparado. Sendo assim, essa modalidade de loucura não seria decorrente de uma outra patologia, mas sim de uma constituição longamente cultivada (Peixoto, 1905, p.35).

Além disso, tal 'tara familiar' seria frequentemente homeomorfa (Peixoto, 1905, p.35). Vale dizer que a herança transmitiria não somente a doença, mas também a forma clínica por ela assumida (p.36). Contudo, tal herança não se manifestaria pelos signos e estigmas patentes da degeneração no registro somático, o que implicaria dizer que o desequilíbrio constitucional em pauta seria relativo, caracterizando tão somente "uma miopragia cons-titucional do sistema nervoso" (p.36).

No entanto, o "desencadeamento" efetivo da doença dependeria da conjunção obriga-tória de "causas ocasionais", entre as quais se deveriam destacar as "violências psíquicas de toda ordem", principalmente as de ordem "afetiva". Dever-se-iam considerar ainda os desdobramentos advindos de tais consequências, tais como "abusos alcoólicos", "excessos", "fadigas", "insônias" e "privações alimentares" (Peixoto, 1905, p.36). Além disso, seria preciso colocar em destaque certas experiências especificamente femininas - como o puerpério e a menopausa -, assim como sexuais, como o "coito imoderado", sem esquecer, é claro, das fadigas decorrentes do estudo e do trabalho físico (p.37).

No entanto, do ponto de vista epidemiológico, existiria uma variação importante em relação ao anteriormente formulado por Kraepelin. Assim, se para este autor a loucura maníaco-depressiva estaria presente entre 10% e 15% das internações manicomiais, no Hospício Nacional de Alienados a loucura maníaco-depressiva somente estaria presente em 6,5% da população internada, no período entre 1894 e 1903. Além disso, contrariamente ao que ocorria na Europa, onde a doença em pauta incidiria principalmente sobre as mulheres, nas estatísticas do Rio de Janeiro a dominância seria masculina. Com efeito, as mulheres representariam 6,2% das internações com diagnóstico da loucura maníaco-depressiva, enquanto os homens corresponderiam a 6,6% dos casos (Peixoto, 1905, p.37). Vamos retomar essa disparidade epidemiológica no final deste artigo, pois será por seu intermédio que enfatizaremos os efeitos do deslocamento do paradigma psiquiátrico francês para o alemão, assim como a substituição do diagnóstico da histeria pelo da psicose maníaco-depressiva, que estaria no cerne desse deslocamento.

Retomemos, assim, Peixoto (1905). Nas estatísticas do Hospício Nacional de Alienados, entre 1894 e 1903 a psicose maníaco-depressiva ocupava a quarta posição no total da população internada. Assim, se a doença prevalente era indiscutivelmente o alcoolismo (28%), a qual se seguiam a demência precoce (13,5%) e a epilepsia (13%), a loucura maníaco-depressiva englobava 9,5% dos internados. Se a melancolia involutiva (0,75%) fosse incorporada a esta última, segundo a concepção posterior de Kraepelin, a população internada contaria com 10,25% de psicose maníaco-depressiva (p.38).

No entanto, o campo da patogenia da loucura maníaco-depressiva seria o mais obscuro na caracterização médica da enfermidade. Por isso mesmo, Peixoto (1905, p.40) pôde afirmar de maneira eloquente que "de Areteo a Meynert não se tem adiantado muito na explica-tiva de como se processam as manifestações mórbidas da loucura maníaco-depressiva". Vê-se, portanto, que o campo da patogenia estaria completamente truncado no discurso psiquiátrico, apesar de todas as supostas certezas referentes à causalidade hereditária, o que não deixa de ser paradoxal, uma vez que o registro da causalidade deveria delinear o campo possível para a sustentação da leitura patogênica, o que não era efetivamente o caso.

No campo da semiologia clínica, por sua vez, a leitura da loucura maníaco-depressiva estaria mais bem estabelecida. Retornamos assim ao ponto de partida que Kraepelin pretendia superar no discurso psiquiátrico, visto que o que existiria de seguro na leitura da enfermidade seria a sintomatologia e não o processo da causalidade devidamente conjugado à patogenia. Sendo assim, a loucura maníaco-depressiva seria uma "perturbação do tônus vital", isto é, uma "discenestesia", que se manifestaria por uma "alteração do humor", seja este alegre ou triste (Peixoto, 1905, p.40). Teríamos aqui um aspecto fundamental na caracterização da enfermidade em questão, de forma que as "alterações da inteligência", os "erros sensoriais" e as "interpretações delirantes" seriam decididamente secundárias, isto é, efeitos da alteração do tônus vital e do humor (p.41). Paralelamente a isso, as alterações do registro do pensamento e do movimento seriam os correlatos destas alterações primordiais.

Por isso mesmo, ao conferir ainda mais ênfase à concepção teórica de Kraepelin, Peixoto (1905, p.41) pôde afirmar sem titubear e de maneira triunfante que

a aparência diversa dos casos extremos, de máxima excitação à máxima depressão, não importam, porque um é o mecanismo de sua produção e apenas inversas as suas manifestações, é porque os fenômenos essenciais são constantes. É um erro supor que nos maníacos as funções físicas se exaltam e consoantemente se deprimem nos melancólicos: em aparência favoreça nesta suposição aos primeiros (grifos meus).

De qualquer modo, a variação do humor entre a alegria (mania) e a tristeza (depressão) estaria associada à ideação rápida e à movimentação exagerada na mania, bem como à ideação lenta e à diminuição da movimentação na melancolia. Em ambas seriam igualmente verificadas alterações da atenção e da memória, bem como da associação de ideias em decorrência da aceleração e da diminuição do pensamento, que seria o correlato da alteração do humor (Peixoto, 1905, p.41).

A questão central de Peixoto (1905), para arguir em favor da tese de Kraepelin, é a de sus-tentar que os tipos puros (mania e melancolia) seriam raros, sendo mais frequente encontrar as formas clínicas marcadas pela predominância seja da mania seja da melancolia. Observa-se então que o mais comum seriam os tipos caracterizados pela predominância (p.42). Sendo assim, formulou-se um esquema classificatório, com o comentário sobre a raridade e a frequência (Quadro 1):


Para provar estatisticamente sua formulação teórica, Peixoto (1905, p.43-44) afirmava que, de 413 pacientes diagnosticados com loucura maníaco-depressiva no Hospício Nacional de Alienados, 409 se inscreviam no registro da predominância, o que provaria fartamente a dominância de tal tipo clínico sobre os demais. Contudo, a predominância melancólica ultrapassaria à maníaca de maneira significativa. Nesse caso, o primeiro tipo clínico contaria com 291 casos e o segundo, com 118. Os homens sobrepujariam as mulheres em ambos os registros. Se no período examinado (1894-1903) existiam mais homens diagnosticados com loucura maníaco-depressiva do que mulheres, não seria de se espantar que a desproporção se mantivesse igualmente na predominância dos tipos clínicos.

No que concerne à questão do intervalo lúcido entre as fases, com implicações médico-legais, Peixoto (1905) indicava as diferentes leituras sustentadas pela psiquiatria francesa e pela alemã. Assim, enquanto para a primeira existiria uma volta ao estado de saúde inicial nos ditos intervalos - ao menos nas situações em que as fases fossem bem distanciadas no tempo - para a segunda, em contrapartida, existiria uma inferioridade psíquica evidente no intervalo lúcido em relação ao estado inicial (p.44).

Evidentemente, Peixoto (1905) posicionava-se a favor da leitura alemã, associando-se então a Kraft-Ebing, Shule, Weigandt e Kraepelin. Com efeito, no intervalo lúcido existiria "energia psíquica diminuída, irritabilidade exagerada, emotividade muito fácil, impulsividade muito pronta, aí estão fatos toda hora certificados com que rebater a pretendida restituição ao normal. A observação destes mestres parece-me irrefutável, na clínica" (p.44).

Porém, não obstante a suposta clareza na descrição clínica da loucura em pauta, na primeira crise "o diagnóstico não é sempre fácil" (Peixoto, 1905, p.44). As dificuldades maiores estariam no diagnóstico diferencial entre a demência precoce e a melancolia involutiva. Contudo, com a repetição da crise, o diagnóstico seria bastante facilitado e a periodicidade da fase diminuiria então qualquer dificuldade quanto a isso (p.44-45).

O prognóstico seria incerto, contudo, dependendo amplamente da maior ou menor frequência na repetição das fases, bem como da duração dos intervalos lúcidos. Com efeito, quanto maior a frequência das fases, menor a duração do intervalo lúcido, daí resultando a "transformação do humor" e as "lesões da inteligência". Além disso, a previsão de novos acessos seria bastante difícil, sendo enorme a incerteza. Isto porque o paciente "quando não está no desequilíbrio de seu acesso, está no equilíbrio instável da tendência para um outro acesso" (Peixoto, 1905, p.45).

O tratamento implicaria a internação e o isolamento durante as crises agudas, o que invariavelmente provocaria "magníficos efeitos". No tipo clínico com predominância maníaca, seria necessário o uso de banhos permanentes e de sedativos para dominar a excitação. Em contrapartida, naquele com predominância depressiva, os banhos frios deveriam ser associados a ópio, quinina, estricnina, purgativos e eupépticos, que seriam as melhores prescrições terapêuticas (Peixoto, 1905, p.46).

De qualquer modo, o exame do cadáver dos doentes indicava um absoluto silêncio lesional, sendo então "uma página em branco a escrever na história da loucura maníaco-depressiva. Isso porque, num refrão monótono e repetido desde o início do século XIX, que atravessou a história da psiquiatria, os meios de apreciação são muito grosseiros e a vista científica do momento ainda muito pouco penetrante" (Peixoto, 1905, p.46).

Sendo assim, pode-se depreender com facilidade que a leitura da psicose maníaco-depressiva realizada por Kraepelin foi incorporada quase que ipse littere na leitura realizada por Peixoto. Seu esforço teórico é o de tornar consistente a leitura do primeiro, principalmente ao colocar a ênfase na descrição clínica dos tipos de predominância. No entanto, se a leitura evolutiva da dita psicose foi bastante enfatizada - como pretendia Kraepelin para a totalidade do campo da psicopatologia -, os vazios do modelo kraepelineano saltam igualmente aos olhos. Com efeito, a causalidade constitucional não passaria de uma petição de princípio. Além disso, a patogenia da suposta enfermidade seria marcada pelo silêncio, o que retirava a consistência teórica dos enunciados biológicos, como pretendia Kraepelin. Ainda era de fato a descrição clínica que conferia consistência à incorporação do modelo realizada por Afrânio Peixoto, mas ela também encontrou resistência e oposição, como veremos em seguida.

Crítica do paradigma

Num ensaio intitulado "Sobre a psicose maníaco-depressiva", publicado no mesmo ano e no mesmo periódico, Franco da Rocha (1905) resolveu responder ao artigo de Afrânio Peixoto. Ocupando então a direção médica do Asilo-Colônia de Juqueri (no estado de São Paulo), a resposta de Franco da Rocha constituiu efetivamente uma crítica à leitura de Peixoto e de Kraepelin sobre a dita psicose.

Antes de mais nada, Franco da Rocha (1905) reconhecia o efeito teórico do discurso de Kraepelin sobre a psiquiatria brasileira de então, uma vez que era um consenso, com ampla aceitação nesse meio. Destacava ainda como a fácil incorporação da leitura desse autor sobre a loucura maníaco-depressiva seria o signo eloquente dessa realidade.

Contudo, a decisão de escrever um artigo contra a leitura de Kraepelin visava "expor os motivos que nos impedem de segui-lo em toda linha nessa inovação, motivos esses que, oriundos da clínica, nos parecem por isso mesmo perfeitamente justificados." Portanto, sem querer "fazer frente a Kraepelin", Franco da Rocha o contesta na leitura da psicose maníaco-depressiva, no registro estrito da clínica (Rocha 1905, p.279).

Qual seria então o cerne do argumento crítico de Franco da Rocha? A proposição de que a loucura periódica nem sempre se inscreveria no campo da loucura maníaco-depressiva. Nessa perspectiva, o autor propõe uma "inversão" das "posições hierárquicas" ocupadas por tais enunciados clínicos no discurso de Kraepelin, formulando que a loucura periódica seria o "gênero" e a psicose maníaco-depressiva, a "espécie", e não o oposto. Com efeito, ao "invés de fazer como Kraepelin da expressão loucura maníaco-depressiva o gênero e da loucura periódica a espécie, fazemos o inverso: para nós a loucura periódica, sendo designação mais vaga, é o gênero; e a maníaco-depressiva é uma espécie com suas variedades - circular, dupla forma, etc...". Isso porque, para ele, existiria a mania periódica e a melancolia periódica, mas não necessariamente a conjunção maníaco-depressiva, como pretendia Kraepelin em sua concepção clínica. Nas situações acima enunciadas haveria efetivamente uma psicose periódica intermitente (Rocha, 1905, p.280).

Paralelamente a isso, haveria igualmente situações clínicas nas quais a mania se circunscreveria a um único acesso, que se desdobraria na cura completa ou na cronicidade, materializando-se inequivocamente na demência (Rocha, 1905, p.280) Na melancolia ocorreria algo análogo, como era o caso, aliás, para a melancolia involutiva, naquele momento ainda não inscrita por Kraepelin no campo da loucura maníaco-depressiva.

Ademais, diferentemente da leitura de Kraepelin, Franco da Rocha supunha ainda a existên-cia de crises melancólicas em pessoas jovens e não somente naqueles na faixa etária entre 40 e 45 anos, como sustentava o primeiro. Tais casos ocorriam em mulheres e sua eclosão estaria associada à gravidez e à lactação. Se, para Kraepelin, tais casos podiam suscitar dúvidas quanto ao diagnóstico, na leitura de Franco da Rocha, em contrapartida, "não vemos motivo para tal dúvida, a não ser a necessidade doutrinária" (Rocha, 1905, p.281-282).

Portanto, na perspectiva delineada por esse autor, podia-se afirmar: "vimos que na clinica se encontram: a mania isolada e a mania intermitente; a melancolia isolada e a intermitente, como tipos extremos, embora pouco frequentes" (Rocha, 1905, p.283).

No entanto, a reunião das síndromes opostas seria mais frequente na clínica, sendo uma delas predominante e mascarando a síndrome contrária. O tipo misto seria aquele que combinaria então os elementos das síndromes opostas (Rocha, 1905, p.283). Segundo Kraepelin, seria apenas em decorrência de tais casos que a designação da psicose maníaco-depressiva se aplicaria.

Por esta mesma razão, Franco da Rocha excluía do quadro clínico da psicose maníaco-depressiva os tipos puros, tais como descritos na classificação de Afrânio Peixoto. Com efeito, o tipo simples (mania e melancolia) e o intermitente (mania e melancolia) não fariam parte decididamente do campo da psicose maníaco-depressiva.

Assim, na argumentação crítica de Franco da Rocha, a extensão clínica conferida à psicose maníaco-depressiva, tal como estabelecida por Kraepelin e sancionada por Peixoto, não se sustentaria no registro clínico. Mesmo o critério evolutivo, tão valorizado como operador teórico pelo primeiro, se mostraria insustentável e francamente inconsistente. Rigorosamente falando, uma "base sólida para a classificação psiquiátrica" implicaria não somente a descrição clínica precisa, mas também a circunscrição etiológica e anatomopatológica da loucura circular, o que ainda não existia naquele momento. Trata-se de uma forma de Franco da Rocha afirmar, em alto e bom som, que a unificação clínica baseada numa causalidade biológica, proposta por Kraepelin, seria justamente o que de mais falho haveria em sua sistematização teórica e nosográfica (Rocha, 1905, p.285).

Entretanto, outras consequências impuseram-se ainda nesse confronto teórico. Franco da Rocha (1905, p.285) admitia a degeneração como fundamental na causalidade da loucura periódica, mas considerava a existência de uma gradação no processo degenerativo em causa. Assim, nos tipos clínicos isolados (mania e melancolia), o potencial degenerativo seria menor. Porém, tal potencial seria incrementado nos tipos intermitentes, atingindo seu apogeu na psicose maníaco-depressiva propriamente dita.

Esse comentário sobre a causalidade teria igualmente efeitos sobre a leitura dos interva-los lúcidos: quanto menor o potencial degenerativo da perturbação em pauta, maior o intervalo lúcido e a presença de marcas da saúde mental neste último. Portanto, os tipos puros da loucura periódica teriam intervalos lúcidos efetivamente mais longos do que os tipos intermitentes; na loucura maníaco-depressiva, contudo, já não existiria qualquer intervalo lúcido (Rocha, 1905, p.288). Revelava-se assim uma outra maneira de Franco da Rocha criticar a leitura de Kraepelin e a sua retomada literal por Peixoto. Enfim, a impor-tância desse aspecto diz respeito aos problemas colocados pela medicina legal na avaliação da responsabilidade desses indivíduos.

Por último, Franco da Rocha (1905, p.286) destacava ainda outra crítica à leitura teórica de Kraepelin. Assim, se a loucura maníaco-depressiva seria uma discenestesia, com alteração do tônus vital e do humor, o processo em pauta não poderia ser o mesmo na fase maníaca e na melancólica, diante da diferença clínica existente entre elas. Desse modo, o autor "rompia com a ideia de uma patogenia única", proposta por Kraepelin para a loucura maníaco-depressiva e caucionada por Peixoto, defendendo a existência de diferentes processos patogênicos. Verifica-se, desse modo, que a totalidade do edifício teórico cons-truído por Kraepelin, em seus diferentes registros, foi colocada em questão na leitura crítica de Franco da Rocha.

Triunfo do paradigma

Roxo (1925, p.365) criticou a nomeação da psicose maníaco-depressiva realizada por Kraepelin - "é evidentemente uma péssima designação, pois associa em mau português duas coisas antagônicas" - "preferindo que se mantivesse a ideia de psicose periódica, apesar de que o uso dessa expressão podia dar uma extensão maior ao que constitui a entidade clínica, pois há muita doença mental em que o período é consuetudinário". "Porém, se o uso consagrou o mau termo, para que não se produza a confusão", "força é repeti-lo". Reconhece assim literalmente que a leitura de Kraepelin sobre a loucura maníaco-depressiva foi triunfante na tradição psiquiátrica brasileira, apesar de preferir a antiga denominação francesa de psicose periódica. Preferiu, ainda assim, inserir-se no consenso teórico que instituiu a hegemonia do paradigma kraepelianiano no Brasil, apesar do termo espúrio escolhido para enunciá-lo em língua portuguesa.

Contudo, não obstante essa pequena firula retórica quanto à denominação do mal em questão, a leitura empreendida por Roxo (1925) significou a realização da perspectiva teórica entreaberta por Kraepelin e defendida por Peixoto, o que implicou a medicalização sistemática da loucura maníaco-depressiva. Destacava-se no trabalho de Roxo a este respeito, em seu Manual de psiquiatria, a 'multiplicação' e a 'disseminação' de enunciados biológi-cos em seu texto, o que fornecia subsídios cruciais à perspectiva de Kraepelin. Tal aspecto pode ser facilmente depreendido de sua escrita, tendo em vista o destaque às múltiplas considerações sobre a patogenia da psicose maníaco-depressiva. Enfim, o discurso teórico de Roxo sobre tal psicose representa o triunfo incontestável do paradigma kraepeliniano no Brasil, ultrapassando em muito o discurso teórico inicial de Afrânio Peixoto sobre a mesma problemática.

Antes de mais nada, Roxo assumiu a veracidade científica da leitura de Kraepelin, visto que a conjunção entre a mania e a depressão seria efetivamente predominante na experiência clínica e que "só excepcionalmente se apresentam puras e únicas durante a vida do indivíduo". Além disso, ele pôde ainda afirmar que as estatísticas confirmavam fartamente suas afirmações em nível internacional, pela autoridade de diversos pesquisadores: Henrichen, Tralman, Thomsen, Weygandt, Meyser, Finzi, Vedrant, Laudranzi, Perazzolo e Claus. Tanto na tradição psiquiátrica alemã quanto na italiana, diferentes pesquisadores puderam realizar a 'verificação' da hipótese de Kraepelin no registro estatístico, o que conferiria à sua leitura uma caução científica incontestável (Roxo, 1925, p.367).

Assim, os casos de psicoses periódicas e intermitentes destacados pela tradição psiquiátrica francesa foram definitivamente englobados na psicose maníaco-depressiva. Porém, se a psiquiatria francesa não teria se conformado "com as ideias alemãs", Serieux, um crítico severo desta tradição, não teria contado com adeptos no campo da psiquiatria internacional (Roxo, 1925, p.367). No entanto, na própria cidadela francesa, a resistência à perspectiva alemã teria finalmente se esgotado quando Ballet, em 1913, com sua autoridade incontestável de professor de psiquiatria da Universidade de Paris, "mostrou-se entusiasta das formas mixtas da psicose periódica" (p.368).

Portanto, a hegemonia teórica da leitura de Kraepelin sobre a psicose maníaco-depressiva impôs-se no cenário internacional e, sendo assim, a psiquiatria brasileira igualmente aderiu a essa hegemonia incontestável. Em decorrência disso, Roxo (1925) passava a descrever as fases da psicose maníaco-depressiva de acordo com os parâmetros destacados por Kraepelin. Com efeito, se a mania se caracterizaria pelo humor alegre, a associação rápida de ideias e a movimentação exagerada, a melancolia seria caracterizada pelo oposto, a saber, o humor triste, a associação lenta de ideias e a movimentação vagarosa (p.368, 376).

Paralelamente a isso, a percepção, a atenção e a memória estariam alteradas de formas opostas na mania e na melancolia. Seria pelo desvio da atenção que tanto a percepção quanto a memória estariam perturbadas na mania, do que resultaria ainda a fuga de ideias, típica dessa fase. Contudo, as "alucinações" seriam raras, tampouco sendo verificados "delírios", já que tais perturbações não seriam sistematizadas. Na melancolia, em contrapartida, o humor triste teria a potência de fixar a atenção em percepções catastróficas e de selecionar a experiência da ruína no campo da memória. Dependendo da intensidade da melancolia, poderia até mesmo haver a produção de alucinações e delírios de cunho paranoide e até mesmo fantástico, assim como inúmeras "ilusões" no registro sensoperceptivo (Roxo, 1925, p.376).

Roxo passou a aplicar de maneira sistemática um "dispositivo científico" voltado para a avaliação da "duração dos atos psíquicos", então bastante em voga na psiquiatria internacional, de modo tal que pôde verificar o incremento dessa duração na mania e sua diminuição na melancolia. Com tal dispositivo supostamente científico, procurava estabelecer enunciados positivos e objetivos que não permanecessem atrelados ao subjetivismo da descrição clínica. Foi nesse contexto que realizou uma pesquisa sistemática sobre o tema, o que redundou em sua tese de professor em psiquiatria, intitulada Duração dos atos psíquicos elementares nos alienados (Roxo, 1925, p.372, 378).

O autor procurou, contudo, aprofundar-se na descrição das formas mistas da psicose maníaco-depressiva. Assim, se a mania e a melancolia seriam caracterizadas por traços opostos nos registros do humor, do pensamento e do movimento, seria possível depreender daí que a mistura entre tais características opostas poderia dar conta da descrição das formas mistas (Roxo, 1925, p.381-382).

Assim, se o humor alegre fosse substituído pelo humor triste, mas conjugado com as demais características da mania, teríamos a "mania com furor". Porém, se o humor alegre e a movimentação exagerada se conjugassem com a associação lenta de ideias, teríamos a "mania improdutiva" ou a "mania pobre de ideias". Em seguida, se a movimentação vagarosa se conjugasse com o humor alegre e a associação rápida de ideias, teríamos então a "mania com inibição motora". Contudo, se a associação lenta de ideias e a movimentação vagarosa se articulassem com o humor alegre, teríamos o "estupor maníaco". Se, por sua vez, o humor triste e a associação lenta de ideias se conjugassem agora com a movimentação exagerada, teríamos então a "mania depressiva" ou a "excitação com depressão". Final-mente, se o humor triste se articulasse com a movimentação vagarosa e com a associação rápida de ideias, teríamos a "depressão com fuga de ideias" (Roxo, 1925, p.382).

Visando constituir uma leitura mais detalhada dos ditos estados mistos, Adauto Botelho propôs ainda a existência de mais dois estados mistos, além daqueles acima mencionados. Nestes, com efeito, não existiriam a alegria ou a tristeza, mas a "cólera". Assim, se para muitos autores haveria uma equivalência entre a cólera e a tristeza, esta leitura seria questionável para Botelho, que defendia a existência da "mania com cólera e a melancolia com cólera". Para este autor, a psicose maníaco-depressiva seria de base hereditária. Contudo, discordando frontalmente de Peixoto, ele afirmava que a herança homeomorfa seria rara (Roxo, 1925, p.383). Porém, além da degeneração presente na psicose maníaco-depressiva, seria preciso igualmente destacar a "instabilidade do humor" como signo do processo degenerativo. Roxo evocou para tanto o conceito de ciclofrenia, formulado por Rybakow (1914), segundo o qual existiria a oscilação de humor entre a alegria e a tristeza, que se conjugaria com a oscilação entre a agitação e a paralisia, assim como com aquela verificada entre a logorréia e o mutismo. Esta descrição corresponderia ao que outros autores denominavam, então, ciclotimia. Esta, com efeito, constituiria uma psicose maníaco-depressiva em "miniatura"; para Barret, por sua vez, haveria aqui um processo degenerativo que se traduziria pela "constituição ciclóide" (Roxo, 1925, p.384).

Porém, para o desencadeamento efetivo da psicose maníaco-depressiva seria necessária a intervenção de uma dimensão "afetiva", que funcionaria como "causa ocasional". Por essa mesma razão, Griesinger denominou psicoses afetivas a mania e a melancolia (Roxo, 1925, p.384). Devido ao peso inquestionável que Roxo conferia ao fator afetivo, ele pôde afirmar: "sem o abalo moral só excepcionalmente surgirá a psicose maníaco-depressiva". Contudo, não se poderia esquecer, conforme o comentário pertinente de Parchappe, que seria sempre a tristeza o afeto resultante de um abalo moral, aspecto que que explicaria o fato de a psicose sempre começar pela fase depressiva. Tal interpretação seria condizente com o comentário de Gresinger, segundo o qual apenas excepcionalmente a alegria seria a causa desencadeante de uma psicose afetiva (p.385).

Deslocando-se agora do registro da etiologia para o da patogenia, o capítulo de Roxo sobre a psicose maníaco-depressiva estava fundamentalmente marcado pela leitura neurobiológica da psicose em pauta. Com isso, a marca medicalizante em sua leitura teria signos indiscutíveis de cientificidade, residindo justamente aí a grande 'novidade teórica' enunciada em sua escrita. Além disso, ao caucionar o fundamento do modelo teórico de Kraepelin e formular a hegemonia desse autor no campo da psiquiatria brasileira de então, Roxo pôde superar em muito a leitura inicial de Peixoto, ainda bastante colada à descrição clínica do mal em questão.

Assim, o dito abalo moral provocaria uma perturbação 'vasomotora'. Segundo Meynert, se houvesse a 'congestão' cerebral, desencadear-se-ia a mania. Em contrapartida, se houvesse a 'anemia' cerebral, produzir-se-ia a melancolia. Não obstante a existência de críticas a essa hipótese, Roxo (1925) a ela aderia, pois "se atentarmos para a fisiologia, veremos que é per-feitamente racional o que ele diz, e as nossas comparações com a excitação alcoólica e com a hemorragia abundante demonstraram bem a razão de ser desta interpretação" (p.384). Com efeito, a autópsia de pacientes, mortos por causas outras, mas que se encontravam em estados maníacos ou depressivos antes do falecimento, verificariam a veracidade da hipótese de Meynert (p.384).

Como explicar, no entanto, a passagem da fase da melancolia para a da mania, isto é, da 'anemia' para a 'congestão' cerebral neste contexto fisiopatológico? Pela ação de um 'reflexo vasomotor'. Com efeito, verificar-se-ia a produção de 'uma irritação do centro vasomotor, determinando vasoconstrição e isquemia cerebral'. Pouco tempo depois, 'cansa-se a vasoconstrição, cessa e se segue a vasodilatação com a congestão consequente' (Roxo, 1925, p.385).

Considerando então a presença efetiva deste "distúrbio vasomotor cerebral", poder-se-ia depreender facilmente de que modo uma perturbação endócrina poderia suscitá-lo. No que tange a esse aspecto, no entanto, seria preciso bastante atenção, pois se tal pertur-bação endócrina for muito intensa uma "grave autointoxicação" poderia se produzir, desencadeando-se a demência precoce. Se ela for ligeira, por sua vez, será suficiente para provocar o dito reflexo vasomotor, podendo então ser desencadeada a psicose maníaco-depressiva (Roxo, 1925, p.385). Vê-se, portanto, que Roxo se deslocou aqui, com muita desenvoltura neurobiológica, de uma psicose endógena para outra, a fim de sustentar uma leitura fisiopatológica das psicoses.

No entanto, para fundamentar ainda mais sua leitura fisiopatológica da psicose maníaco-depressiva, Roxo deslocou-se para o discurso teórico da histologia, apossando-se agora das pesquisas de Ramón e Cajal. Para ele, com efeito, a vasodilatação presente na mania e a vasoconstrição presente na melancolia seriam explicadas pela ação e pela disposição das células da 'neuroglia', que, colocadas ao lado dos vasos sanguíneos, emitiriam prolon-gamentos que os apertariam e reduziriam seu calibre, ou se retrairiam significativamente, permitindo que o vaso se dilate. Para tanto, em contrapartida, a psicose maníaco-depressiva ainda deveria ser explicada como efeito de uma sensibilidade especial do cérebro às toxinas internas. Haveria, assim, uma "auto-intoxicação do organismo e reação exagerada". Numa leitura similar, Lewis Bruce pressupunha que na fase maníaca existiria uma intoxicação cerebral, manifesta nas taxas de 'aglutininas' no sangue, na modificação da flora intestinal, no aumento do azoto na urina e na hiperleucocitose (Roxo, 1925, p.385).

Parlieu e Marbe, em contrapartida, apostavam na existência de um distúrbio da tireóide, colocando em destaque uma gênese semelhante à doença de Basedow. Lange, por sua vez, procurou articular a psicose maníaco-depressiva à gota, uma vez que existiria uma diminuição da eliminação de ácido úrico na urina durante a fase depressiva. Em contrapartida, Pelcz destacou a grande frequência com que a psicose maníaco-depressiva se associava a lesões cerebrais. De maneira similar, Saiz e Taubert destacaram a existência de inúmeros casos de cicatrizes no crânio dos pacientes (Roxo, 1925, p.386).

Ao examinar as fezes desses doentes, Pardo, por sua vez, considerou a possibilidade de uma autointoxicação em decorrência do incremento da flora intestinal. Ele supôs até mesmo que se pudesse tratar de um cocobacilo. Von Bechterew concebeu a hipótese da existência de uma autointoxicação pela presença do indoxil na urina dos pacientes com psicose maníaco-depressiva. Supôs, então, que a tal toxina atuaria pelo sistema vasomotor, concordando, assim, com a hipótese de Meynert. Anglade e Joquim analisaram a relação existente entre a psicose maníaco-depressiva e a epilepsia, indicando como em ambas a neuroglia teria um aspecto infantil e pressupondo, assim, a semelhança dos processos degenerativos presentes nas duas enfermidades (Roxo, 1925, p.386).

Santenoise propôs, em seguida, como patogenia a existência de um distúrbio do sistema neurovegetativo que seria decididamente desequilibrado. Assim, na excitação maníaca ocorreria a hiperexcitabilidade do vago. Além disso, o aumento do tônus parassimpático precederia regularmente o aparecimento dos acessos maníacos. Em sua pesquisa, valeu-se do exame do reflexo oculocardíaco para a investigação do tônus parassimpático e do reflexo solar, para em seguida delinear a excitabilidade do sistema simpático. Desse modo, teria comprovado que o reflexo solar se mostrava nulo ou invertido na mania, ao passo que o oculocardíaco estaria acentuado nas crises maníacas e ansiosas. A experiência clínica lhe fazia reconhecer que os indivíduos com reflexo oculocardíaco muito nítido seriam exageradamente sensíveis aos tóxicos, de forma que a mania e a melancolia estariam na estrita dependência de fenômenos autotóxicos, devido ao aparecimento de fases em relação à susceptibilidade a tais substâncias, que seria paralela ao aumento de vagotonia. Nos períodos intercalados, por sua vez, haveria a hipervagotonia. Por fim, haveria ainda uma leucopenia acentuada e rápida após as refeições, indicando então a hipervagotonia (Roxo, 1925, p.386, 387).

Finalmente, um último registro analítico destacado por Roxo, a partir das pesquisas de Thalbitzer, seria o de que no exame anatomopatológico existiriam múltiplas modificações nos vasos motores que efetivamente perturbariam a nutrição cerebral e 'afinariam' as fibras nervosas (Roxo, 1925, p.387).

Contudo, os discursos da anatomia, histologia, bioquímica, fisiologia, anatomia patológica e fisiologia patológica, fartamente utilizados para a caracterização da patogenia da psicose maníaco-depressiva, foram igualmente empregados para o estabelecimento de seu diagnóstico diferencial em relação a outras perturbações mentais. Seria, portanto, necessário ultrapassar o registro estrito da fenomenologia clínica e dar um passo teórico decisivo para tornar consistente a medicalização da psicose maníaco-depressiva, como pretendia Kraepelin.

O primeiro obstáculo a ser vencido seria o diagnóstico diferencial em relação à demência precoce, principalmente porque a agitação e o estupor presentes na catatonia poderiam ser confundidos com a mania e a melancolia. Para ultrapassar a leitura do registro sintomático - indiferença afetiva, intensa afetividade, riqueza alucinatória e ausência de alucinações, decadência da inteligência (demência) e sua preservação -, seria preciso caminhar decisivamente em direção à leitura biológica do organismo. Dessa perspectiva, Adauto Botelho constatou que a reação de Abderhalden seria sempre positiva na demência precoce em relação às glândulas sexuais, ao cérebro, à tireóide e ao timo. Em contrapartida, Juschtzchenko, Plotnikoff e Fauser verificaram que tal reação seria negativa na psicose maníaco-depressiva, invariavelmente em relação ao cérebro e muitas vezes em relação às glândulas sexuais. Fauser verificou ainda que ela seria igualmente negativa no que concerne à hipófise, ao timo, ao músculo, ao rim, ao fígado e às glândulas suprarrenais (Roxo, 1925, p.388, 389).

Pahron indicou, entretanto, que, na psicose maníaco-depressiva, a reação de Abderholden na tireóide indicava grande variação, sendo em muitos casos negativa e em alguns poucos fortemente positiva. Contudo, no que concerne ao cérebro, tal reação seria sempre positiva na demência precoce e negativa na psicose maníaco-depressiva. Finalmente, Santenolse destacou que o reflexo oculocardíaco seria pouco acentuado na melancolia, muito acentuado na demência precoce e na psicose maníaco-depressiva, de modo que "se houver ausência do reflexo poder-se-ia logo eliminar a hipótese da mania" (Roxo, 1925, p.389).

Com a confusão mental, o diagnóstico diferencial poderia ser algumas vezes difícil, mas não impossível no registro sintomático. No registro do somático, no entanto, a diferença poderia ser facilmente estabelecida, uma vez que sempre ocorreria um processo tóxico-infeccioso (Roxo, 1925, p.390).

A paralisia geral poderia ser igualmente confundida com a psicose maníaco-depressiva, mas os exames de laboratório para a sífilis e o exame neurológico (sinal de Argyl-Robertson), além da consideração dos distúrbios da memória e da disartria indicariam facilmente a presença da paralisia geral (Roxo, 1925, p.390).

Se anteriormente muitos pacientes haviam sido diagnosticados como portadores de psicose maníaco-depressiva como a histeria, por exemplo, esse impasse seria superado com a leitura dessa perturbação mental feita por Babinski, que faria cair por terra a concepção anterior de Charcot. Com efeito, somente seriam da ordem da histeria os sintomas engendrados pela sugestão e que desapareceriam com a persuasão (Roxo, 1925, p.390).

Finalmente, a neurastenia poderia ser clinicamente confundida com a melancolia, pela similaridade existente entre a astenia e a tristeza. Para a realização do diagnóstico diferencial, seria necessário recorrer às provas orgânicas. Foi a partir dessa perspectiva que Altens (Munique) verificou, para a melancolia, um aumento do peso específico na urina, com a diminuição correlata da eliminação de fosfatos e de creatinina, assim como a presença de glicose. Enfim, ocorreria igualmente nesse caso um aumento da 'viscosidade' sanguínea (Roxo, 1925, p.391).

O tratamento das fases maníaca e depressiva implicaria a internação obrigatória. A primeira em decorrência da grande excitação causada pela perda do "poder frenador cerebral", a segunda devido ao risco de suicídio. Em ambas, os doentes deveriam ter uma "fiscalização muito rigorosa" (Roxo, 1925, p.391-393). Além disso, Roxo propunha a com-binação de banhos e o uso de medicamentos. No que concerne a esse aspecto, aliás, a prescrição farmacológica do autor era significativamente mais pormenorizada do que a de seus antecessores, destacando o uso de múltiplas drogas para cada uma das fases, mas igualmente propondo doses bastante específicas nas combinações que prescrevia (Roxo, 1925, p.391-393).

É evidente que a farmacopeia específica de Roxo para a psicose maníaco-depressiva era coerente com a leitura fartamente biológica do mal em questão. Paralelamente ao tratamento das fases patológicas, ele também pretendia medicar os intervalos lúcidos, tanto na mania e na melancolia quanto nos estados mistos. Vale dizer que propunha uma prevenção para as possíveis crises futuras, destacando a farmacologia mas levando também em consideração a regulação das emoções dos indivíduos, devido ao papel que elas desempenhavam no desencadeamento dos acessos. Com isso, Roxo pôde afirmar, sem hesitação: "os recursos sociais modernos que visam a profilaxia da loucura terão no caso, talvez, a sua mais vantajosa aplicação" (Roxo, 1925, p.394).

Assim, a psicose maníaco-depressiva seria, a partir de então, uma doença crônica, e tal cronicidade seria o contraponto necessário de sua endogeneidade, devendo ser cuidada na crise e nos intervalos lúcidos, numa conjunção ao mesmo tempo terapêutica e preventiva. Para tanto, seria preciso regular continuamente as 'emoções' e os 'abalos morais' que pudessem afetar os indivíduos ao longo de suas vidas - indivíduos estes que passariam a ter sobre si e suas existências o permanente e perscrutante olhar médico.

Discurso barroco

Pode-se depreender facilmente desse percurso, no então recente campo da psicose maníaco-depressiva, que a tradição alemã da psiquiatria assumiu a hegemonia teórica na tradição brasileira, sendo representada pelo discurso de Kraepelin. O mesmo ocorreu com as demais entidades clínicas, num processo estratégico orientado por Juliano Moreira, como vimos. Paralelamente, a tradição francesa da psiquiatria, perdia terreno a olhos vistos no Brasil, deslocando-se do lugar destacado que ocupara na segunda metade do século XIX. A partir de então, a Alemanha transformou-se na Terra Prometida da psiquiatria brasileira, de tal modo que os profissionais brasileiros em atividade até os anos 1960 não somente dominavam a língua alemã, como também viajavam para a Alemanha no intuito de aprender com os mestres - como Roxo, por exemplo que, em 1913, frequentou os cursos de Kraepelin em Munique (Roxo, 1925, p.394).

Com Roxo, o paradigma teórico de Kraepelin foi desdobrado naquilo que ele pretendia fundamentalmente, a saber, o desenvolvimento de hipóteses patogênicas e etiológicas que conferissem uma marca científica ao discurso psiquiátrico. Estaria aí o triunfo do paradigma em questão na psiquiatria brasileira, que inseriu em sua escrita enunciados advindos dos diferentes discursos biológicos, conferindo uma suposta marca de cientificidade ao discurso psiquiátrico.

Paralelamente a isso, o discurso clínico sobre a psicose maníaco-depressiva assumiu uma dimensão efetivamente 'barroca', multiplicando suas particularidades descritivas de modo a constituir novos registros nosográficos e classificatórios. O ensaio de Adauto Botelho, publicado em 1929 sob o título "Estados mistos da psicose maníaco-depressiva", é o documento mais eloquente sobre a questão (Botelho, 1929)..Como vimos anteriormente, na citação feita por Roxo acerca do lugar da cólera na leitura de Adauto Botelho, houve o efetivo imperativo de constituição de novas espécies e superfícies diagnósticas para a psicose maníaco-depressiva, o que talvez tenha evidenciado a fragilidade teórica das hipóteses etiológicas e patogênicas.

Com efeito, não obstante o frenesi de incorporar os enunciados biológicos que fundamentariam cientificamente a leitura da psicose maníaco-depressiva, a medicalização em questão era um santo de pés de barro, que se voltava para o barroquismo nosográfico diante da evidente fragilidade científica dos seus enunciados biológicos. Sendo assim, o barroquismo classificatório e nosográfico na leitura da psicose maníaco-depressiva significou, no discurso psiquiátrico, a contrapartida da fragilidade teórica de suas formu-lações biológicas e médicas.

Da histeria à psicose maníaco-depressiva

É preciso ainda evocar de que modo a leitura da psicose maníaco-depressiva passou a ocupar o campo empírico das perturbações do espírito então designadas como histeria. Isso implica dizer que houve uma 'expansão' do campo clínico da psicose maníaco-depressiva que se deu às expensas da 'redução' correlata do campo clínico da histeria. Essas expansão, por um lado, e redução, por outro, encontram-se no ponto de corte produzido com o deslocamento do lugar da tradição psiquiátrica francesa para a tradição da psiquiatria alemã, tal como verificado no Brasil.

Nas referências aqui feitas ao ensaio de Cunha Lopes (1927) e ao Manual de psiquiatria de Roxo (1925), no capítulo sobre a psicose maníaco-depressiva, a redução da histeria foi devidamente destacada. Vale dizer que, quando a leitura de Babinski sobre a histeria substituiu a anterior, realizada por Charcot - para quem somente seriam histéricos os sujeitos cujos sintomas fossem engendrados pela sugestão e suprimidos pela persuasão -, muitos dos antigos histéricos passaram a ser diagnosticados como psicóticos maníaco-depressivos, o que indicava o cruzamento e o deslocamento entre os dois registros clínicos. Em seu livro Psicopatologia forense, Afrânio Peixoto (1923) nos diz exatamente o mesmo, indicando como tal aspecto constituia, ao mesmo tempo, um critério e um consenso muito bem estabelecidos na psiquiatria brasileira da época.

Seria necessário, porém, que nos indagássemos um pouco mais sobre essa questão, à guisa de conclusão deste ensaio. Para tanto, valeria destacar alguns elementos históricos no diagnóstico de ambas as enfermidades, realizado no Hospício Nacional de Alienados, por um lado, e considerar o deslocamento de um discurso teórico por outro.

Como vimos, na estatística estabelecida por Peixoto em seu ensaio "A loucura maníaco-depressiva", havia mais homens do que mulheres diagnosticados com a enfermidade. Isso porque naquele período histórico, entre 1894-1903, havia mais homens internados do que mulheres. Além disso, havia mais homens brancos do que negros internados, não obstante a população do Rio de Janeiro ser predominante negra e mestiça, o que evidencia um paradoxo demográfico (Facchinetti, Ribeiro, Muñoz, 2008).

Contudo, nas décadas subsequentes, tais distribuições nosográficas foram claramente modificadas. Assim, nas décadas de 1900 a 1920, as doenças prevalentes entre os homens eram a sífilis, o alcoolismo e a demência precoce respectivamente, ao passo que entre as mulheres, a prevalência seria a da histeria, da psicose maníaco-depressiva, da confusão mental e da psicose periódica respectivamente (Facchinetti et al., 2008). Nos anos 1930, no entanto, a psicose maníaco-depressiva assumiu claramente a dianteira em face da histeria, passando a ser a doença mais frequente entre as mulheres.

Pode-se afirmar, desse modo, que foi a consolidação do paradigma teórico de Kraepelin que conduziu o discurso psiquiátrico a diagnosticar com maior frequência a psicose maníaco-depressiva no lugar da histeria, na população feminina internada no Hospício Nacional de Alienados. Paralelamente, de modo complementar e em conjunção com esse processo, a nova leitura de Babinski sobre a histeria, que substituiu a antiga concepção de Charcot, esvaziava o amplo campo de prevalência da histeria na antiga leitura psiquiátrica.

Entretanto, cabe ainda destacar que essa inflexão teórica implicou também uma outra direção doutrinária na psiquiatria. O peso etiológico conferido à degeneração e à consti-tuição na leitura de Kraepelin esvaziou, em contrapartida, os fatores circunstanciais e históricos da experiência do sujeito para o desencadeamento efetivo das enfermidades em questão. Com efeito, a ênfase de Kraepelin na marca degenerativa da psicose maníaco-depressiva retirava dela a incidência dos acontecimentos vividos pelo sujeito. O endógeno era francamente dominante na leitura da psicose maníaco-depressiva feita por Kraepelin, com todos os impasses que isso representava para a psiquiatria, conforme enunciado criticamente por Ey nos anos 1950.

Mas o que se expulsava pela sala de jantar da psiquiatria brasileira voltava freneticamente pela porta da cozinha, devido à ênfase que Peixoto e sobretudo Roxo conferiam aos 'abalos morais', designados como causas ocasionais para o desencadeamento da psicose maníaco-depressiva. Eram essas causas ocasionais, denominadas traumáticas, que se articulariam à histeria, na leitura anterior de Charcot. Além disso, no campo de tais traumas, o corpo feminino estaria significativamente mais em foco do que o masculino, uma vez que experiências femininas como parto, puerpério e amamentação seriam as destacadas pelos autores brasileiros. Pode-se depreender daí, sem muita dificuldade, que a substituição da figura da histeria por aquela da psicose maníaco-depressiva, com base na nova perspectiva kraepelianiana, visava estabelecer um paradigma psiquiátrico centrado na degeneração, que esvaziava a dimensão histórica da experiência psíquica do sujeito. A radicalização da dimensão biológica, no modelo psiquiátrico radicado no Brasil, conduziu, assim, nesse contexto histórico específico, a substituição da histeria pela presença maníaco-depressiva. Enfim, os ditos traumas e 'abalos morais' da experiência do sujeito foram para o ralo em nome da causalidade degenerativa e hereditária, na leitura das perturbações mentais.

Desde os anos 1950 as tradições fenomenológica, existencial e psicanalítica retomaram a dita causalidade centrada na história do sujeito, a ela conferindo toda a ênfase em oposição à estrita causalidade biológica, e essas mesmas concepções foram varridas do discurso psiquiátrico desde os anos 1980. Com isso, a enfermidade bipolar passou novamente a ocupar o lugar da histeria, fundando-se agora em uma leitura pelo viés das neurociências. Enfim, como dizia Marx (1967), a história se repete, não mais como tragédia, mas agora como farsa.

Esta foi, enfim, a cena constituinte da psicose maníaco-depressiva no Brasil.

NOTAS

Recebido para publicação em abril de 2010.

Aprovado para publicação em setembro de 2010.

N.E - O presente artigo é uma reflexão crítica baseada em texto de Afrânio Peixoto, "A loucura maníaco-depressiva", reproduzido neste número de História, Ciências, Saúde - Manguinhos.

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  • 1
    No campo psiquiátrico, essa realização ficou restrita ao empreendimento de Bayle, que no início da década de 1920 estabeleceu a articulação causal entre a paralisia geral progressiva e a lesão anatômica cerebral (Birman, 1978).
  • 2
    Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      Set 2010
    • Recebido
      Abr 2010
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