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Psicastenia

Psychasthenia

Resumos

Analisa a categoria médica da psicastenia, utilizada no fim do século XIX e início do século XX pela psiquiatria francesa. São apresentadas as características do quadro clínico bem como as principais hipóteses explicativas para os sintomas sustentadas por Pierre Janet, principal nome ligado à sistematização dessa categoria nosológica. É discutido ainda o modo como esse diagnóstico foi utilizado no Brasil, e as suas relações com o quadro da neurastenia no contexto da psiquiatria brasileira.

psicastenia; Pierre Janet (1859-1947); psiquiatria; Brasil


The article analyzes the medical category of psychasthenia, used by French psychiatry from the late nineteenth through the early twentieth centuries. It describes the clinical profile of psychasthenia and the main hypotheses meant to account for symptoms as defined and advanced by Pierre Janet, the central figure in systematization of this category. The article also looks at how this diagnosis was used in Brazil and how it related to the profile of neurasthenia within the context of Brazilian psychiatry.

psychasthenia; Pierre Janet (1859-1947); psychiatry; Brazil


ANÁLISE

Psicastenia

Psychasthenia

Rafaela Teixeira Zorzanelli

Pós-doutoranda do Instituto de Medicina Social/ Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com apoio Faperj/Capes. Instituto de Medicina Social, UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, pavilhão João Lyra Filho, 7. a., bl. D e E, 20550-900 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. rtzorzanelli@yahoo.com.br

RESUMO

Analisa a categoria médica da psicastenia, utilizada no fim do século XIX e início do século XX pela psiquiatria francesa. São apresentadas as características do quadro clínico bem como as principais hipóteses explicativas para os sintomas sustentadas por Pierre Janet, principal nome ligado à sistematização dessa categoria nosológica. É discutido ainda o modo como esse diagnóstico foi utilizado no Brasil, e as suas relações com o quadro da neurastenia no contexto da psiquiatria brasileira.

Palavras-chave: psicastenia; Pierre Janet (1859-1947); psiquiatria; Brasil.

ABSTRACT

The article analyzes the medical category of psychasthenia, used by French psychiatry from the late nineteenth through the early twentieth centuries. It describes the clinical profile of psychasthenia and the main hypotheses meant to account for symptoms as defined and advanced by Pierre Janet, the central figure in systematization of this category. The article also looks at how this diagnosis was used in Brazil and how it related to the profile of neurasthenia within the context of Brazilian psychiatry.

Keywords: psychasthenia; Pierre Janet (1859-1947); psychiatry; Brazil

A psicastenia foi um diagnóstico cunhado pelo neurologista francês Pierre Janet (1859-1947), na obra Les obsessions et la psychasténie (As obsessões e a psicastenia; 1903), cujo segundo volume foi escrito em coautoria com seu conterrâneo e também neurologista Fulgence Raymond (1844-1910). O diagnóstico de psicastenia foi discutido de forma dispersa e recorrente em diversas obras de Janet, mas sobretudo em Les obsessions et la psychasténie (Janet, 1903; Janet, Raymond, 1903); e em Les névroses (As neuroses; Janet, 1909), obra na qual o quadro psicastênico é diferenciado em relação à histeria.

Pierre Janet pertence a uma geração de nomes de destaque, como o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917); o mentor dos testes de medida do coeficiente de inteligência Alfred Binet (1857-1911); e o filósofo Henri Bergson (1859-1941). Além disso, foi aluno de Théodule Ribot (1839-1916), cujas ideias sobre a vontade contribuíram de forma significativa para o direcionamento dos interesses de Janet por uma psicologia dos processos superiores e da personalidade humana.

Logo na introdução do primeiro volume de Les obsessions, Janet afirma que o livro é uma aplicação do método de Ribot, que consiste em unir medicina mental e psicologia, extraindo desta última esclarecimentos para a classificação e interpretação das tipologias mentais. Além disso, caberia procurar nas alterações mórbidas da mente observações e experiências naturais que permitissem analisar o pensamento humano.

Entre 1893 e 1902, Janet trabalhou em um laboratório no Hospital de Salpêtriére, que lhe foi confiado pelo neurologista Jean Martin Charcot (1825-1893). Em 1902, Janet e Binet se candidataram ao posto deixado por Théodule Ribot no College de France, tendo a candidatura de Janet sido defendida por Henri Bergson. Os conceitos janetianos de tensão psicológica (tension psychologique) e de função do real (fonction du réel) têm estreita relação com as teorizações bergsonianas sobre a atenção à vida (attention à la vie), e apresentam pontos em comum com os temas tratados no Ensaio sobre os dados imediatos da consciência, publicado em 1889 (Ellenberger, 1970). Uma vez tendo sido aceito no College de France, passou a lecionar sobre condições mentais mórbidas, tais como a histeria e a psicastenia, e também sobre temas como consciência, psicoterapia e outros assuntos. Parte dessas aulas foram incorporadas aos volumes de Les obsessions et la psychasténie.

Juntamente com a histeria e a neurastenia, a psicastenia compõe o quadro mais amplo de condições neuróticas do fim do século XIX e por isso esta última categoria se situa em obras mais dedicadas a esquematizar uma teoria da neurose. Um ponto em comum entre quaisquer quadros ditos neuróticos naquele momento era o fato de não haver, para os mesmos, qualquer hipótese etiopatológica suficientemente elucidativa. Como afirma Janet (1909, p.295): "Infelizmente, é incontestável o fato de que hoje não podemos dar qualquer explicação anatômica ou fisiológica para essas perturbações curiosas".1 1 Nesta e na próxima citação de Pierre Janet, a tradução é livre. Tendo em comum a classificação das neuroses, Janet preocupa-se em diferenciar essas condições umas das outras para conferir à psicastenia uma caracterização distinta. Se em relação à histeria há diferenças dignas de nota, ao que ele dedica a totalidade da obra Les névroses, em relação à neurastenia Janet supõe que esta esteja subsumida ao quadro mais geral da psicastenia (Janet, 1903; Pitman, 1984).

Os sintomas da psicastenia diziam respeito à presença de ideias fixas, obsessões e impulsos, manias mentais, dúvidas, tiques, neurastenias, sensações de despersonalização. Esse rol de manifestações teria sido até então descrito sob o nome de doença de Krishaber. Os doentes, por sua vez, já teriam também sido descritos com diferentes denominações, tais como delirantes, degenerados, neurastênicos e frenastênicos. Em se tratando de defini-los, Janet preferia chamá-los de escrupulosos, porque o escrúpulo era a principal característica de pensamento desses indivíduos.

A despeito da grande diversidade dos sintomas, eles eram suficientemente relacionados entre si para formarem um grande grupo neurótico, cuja característica principal seria o enfraquecimento das funções psicológicas. Compreender esse quadro significava, para seu principal autor, estudar as operações psicológicas que permitiam ao homem entrar em relação com a realidade, agir sobre ela e alcançar o sentimento de certeza (Janet, 1903).

Entre as características do quadro estão uma série de alterações psicológicas, como sentimentos de incompletude, que abarcaria as operações intelectuais (alteradas pela dificuldade de sustentar a atenção e coordenar idéias), as emoções (transformadas em ruminações, tiques e ansiedade) e a percepção (invadida por sensações de despersonalização e desrealização). Outra característica eram os problemas na volição - como indolência, preguiça e procastinação -, os fisiológicos, como dores de cabeça e nas costas, e insônia. De modo geral, essas insuficiências psicológicas, como as denominava o autor, se mostravam tanto na fraqueza para a ação quanto na resistência à ação (Janet, 1903).

O primeiro fenômeno que se destacava no curso do desenvolvimento da doença era o aparecimento de uma ideia, em geral, invasiva, sem a ação da vontade, que se reproduzia de forma contínua. Seu conteúdo, em geral, girava em torno das obsessões de sacrilégio, crime, vergonha de si, vergonha do corpo e obsessões de doença. Sua presença insidiosa fazia o doente perder o poder de criticá-la e de resistir a essas obsessões, abandonando-se a elas.

Os doentes eram também acometidos por sentimentos de lassidão e devaneio, por dificuldades em manter a atenção e em permanecer em uma só atividade. Os acontecimentos recentes não se fixavam em suas mentes, ocasionando amnésia intermitente. No caso do controle dos impulsos, havia uma tendência à realização de atos extravagantes e desar-razoados, cuja tentativa de inibição gerava grande aflição. Além disso, os psicastênicos eram tomados por dúvidas incessantes, que se apresentavam como manias de interrrogação e de precisão.

Os sintomas eram distribuídos em diferentes modalidades que Janet denominou agitações forçadas: as mentais, as motoras e as emocionais. As agitações mentais eram as manias e tiques intelectuais como as de interrogação, de deliberação e de excesso, entre outras. No caso das agitações motoras, tratava-se de tiques ou crises de agitação difusa. As agitações emocionais, por sua vez, eram divididas entre difusas - a ansiedade - e específicas - as fobias. Este segundo grupo se dividiria, por sua vez, em fobias do próprio corpo, de objetos externos, de situações e de ideias.

No campo da linguagem, apresentavam crises de tagarelice, tiques com palavras, paralisias na fala por medo ou timidez. Além disso, passavam a procurar algo que os pudesse retirar desse estado, como excentricidades e formas de excitação física e moral (bebidas alcoólicas, excesso de comida, saltos, gritos).

Também como parte do quadro apareciam a emotividade patológica, caracterizada pela amplitude exagerada das modificações viscerais e circulatórias, e a paralela tendên-cia a sentir essas modificações de modo muito drástico. No entanto, Janet (1903; 1909) chama a atenção para o fato de que, embora pareçam indivíduos emotivos, os psicastênicos não sentiam nada vivamente, e a tal ponto eram indiferentes aos sentimentos novos que reproduziam com exagero automático os sentimentos antigos. De forma geral, as funções (mentais, motoras e emocionais) eram modificadas ora por paralisias, ora por insuficiências: os pensamentos não chegavam a se estabilizar em crenças nem os atos alcançavam sua execução completa. No limite, o sujeito não conseguia agir, crer ou sentir, e sua mente se perdia em manias de precisão, tiques e angústias variadas. A ausência de decisão, de resolução voluntária, de crença e de atenção, a incapacidade de experimentar um sentimento exato em relação ao presente lhe impediam de se envolver com a realidade. Também por isso, a vivência do tempo era mais uma das dificuldades do psicastênico: o presente não os absorvia e, desse modo, o passado e o futuro adquiriam importância descomunal, que consistia mais em uma negação do presente do que na aposta no futuro.

No que se refere ao prognóstico e as possibilidades de melhora, Janet enfatizava que os sintomas podiam ocorrer em períodos intermitentes da vida do sofredor, ficando restritos a períodos mais ou menos longos que, em geral, começavam depois de uma doença orgânica, de um episódio de fadiga ou de certas emoções. As alterações causadas pela doença não eram definitivas nem profundas, tampouco aboliam a possibilidade de que as funções voltassem ao normal. Transcorrido algum tempo, os psicastênicos retomavam suas atividades normalmente. No entanto, com frequência havia recidivas do quadro.

Janet (1903) assinalava o quanto grande parte dos psicastênicos se queixava de senti-mentos de incompletude, de inacabamento, de falta de finalização nas operações da realidade. Tratava-se, para o autor, de um mesmo fato: havia uma conservação das funções psicológicas, mas uma perda do sentimento fundamental de pertencimento à realidade e ao mundo presente.

Com o objetivo de compreender esses fenômenos, Janet empreendeu uma investigação sobre as funções da mente e o nível de tensão necessário para atingi-las. O estudo da psicastenia marcou um estágio importante do desenvolvimento das ideias janetianas, no que se refere aos diferentes graus de atividade psicológica. Les obsessions é dedicado a fazer uma teoria da psicastenia segundo a qual o princípio da doença seria a hierarquia dos fenômenos psicológicos. Essa hierarquia significava que as funções mentais iriam das mais simples e automáticas até as mais complexas e integradas (Janet, 1903; 1909); e que - também em processo crescente - as mais simples requisitariam menos tensão psicológica para sua execução e as mais complexas, mais.

Janet (1903) faz uma importante distinção entre força e tensão psicológica. A força seria a quantidade de energia psíquica disponível para o indivíduo, e existiria nas formas latente e manifesta. A transformação da força latente em forma manifesta seria o processo de mobilização de energia. A tensão psicológica, por sua vez, dizia respeito à capacidade individual para usar a energia psíquica. Quanto maior o nível de tensão psicológica, mais operações mentais um indivíduo seria capaz de realizar. Essas diferenças entre variações individuais da força e da tensão psicológicas importavam à observação clínica e terapêutica. Pelo baixo suprimento de tensão psicológica, os psicastênicos teriam dificuldades com novas situações de vida - como casamento, promoção no trabalho - e o aparecimento dos sintomas diante dessas situações significaria que são demandas excessivas às suas funções mentais.

Como a teoria da hierarquia das funções psicológicas se aplicava à compreensão da psicastenia? Supondo que as operações mentais se realizassem com base em uma hierarquia, seus graus superiores seriam inacessíveis aos psicastênicos, enquanto os níveis mais basais permaneciam à disposição. A operação mais difícil - e não sem motivo, a que desaparece mais frequentemente - seria exatamemente a apreensão da realidade, que permitia agir sobre os objetos exteriores e sobre o meio social. A queda do nível de tensão psicológica implicaria a diminuição da capacidade de perceber os detalhes da realidade, a redução da autoconsciência dos sentimentos, a restrição de ideias e de comportamentos intencionais (Van den Hart, Freidman, 1989).

O conhecimento das variações da tensão se aplicava bem à interpretação dos sintomas psicastênicos, e permitia inferir o caráter geral da doença: os estados mentais que envolviam enfrentamento e responsabilidade davam lugar a fobias e obsessões diversas, a agitações motoras e fantasias, que exigiam baixo grau de tensão psicológica. Era em razão da psicolepsia, isto é, da queda da tensão psicológica que as funções mais complexas desapareciam na psicastenia. Ou nas palavras do autor: "[a] psicastenia é uma forma da depressão mental caracterizada pela diminuição da tensão psicológica, pela diminuição das funções que permitem agir sobre a realidade e peceber o real, pela substituição de operações inferiores e exageradas sob a forma de dúvidas, agitações e angústias, e pelas ideias obsediantes" (Janet, 1909, p.311).

O interesse de Janet pelas formas mais elementares e simples da atividade humana já se apresentava desde suas primeiras obras dedicadas ao tema do automatismo psicológico, no contexto das manifestações de amnésia histérica e dos fenômenos de desdobramento da personalidade: "A atividade humana se apresenta às vezes sob formas anormais, movimentos incoerentes e convulsivos, atos inconscientes ignorados pela própria pessoa que os realiza, desejos impulsivos contrários à vontade e aos quais o sujeito não pode resistir" (Janet, 1889, p.22). No entanto, para o autor, esse automatismo dos atos mais simples do homem pressuporia a consciência e a sensibilidade, de forma simultânea e indissociável. É também por esse motivo que Pereira (2008) observa que o conceito de automatismo psicológico em Janet diferia do de automatismo mental, definido mais tardiamente por Gaëtan Gatian de Clérambault (1872-1934). Para o primeiro, tal fenômeno se referia à consciência e à história pessoal e para o segundo tratar-se-ia de uma irrupção inesperada no campo do eu, ao qual o psiquismo deveria reagir ou adaptar-se.

Mas quais seriam as funções mentais superiores? É interessante notar que, em estudo sobre o automatismo psicológico, Janet (1889) definiu apenas dois níveis de funções mentais - o de síntese e o das funções automáticas. Com o desenvolvimento de sua obra, a hierarquia das funções mentais se expandiu para cinco níveis, os três primeiros sendo considerados funções superiores, que requereriam maior envolvimento com a realidade. O primeiro deles seria a função do real, relacionada à atenção e à percepção de elementos da realidade externa; o segundo seria a atividade desinteressada, as ações habituais e indiferentes; o terceiro, as funções da imaginação como o raciocínio abstrato, a fantasia, o devaneio e a memória representativa; o quarto, as reações emocionais; o quinto envolveria os movimentos musculares sem utilidade. Os sintomas da doença apontariam para uma perturbação da função do real, que alteraria o modo como o sujeito a apreendia, tanto no campo da percepção quanto no da ação. Isso significa que a relação com a realidade constituía uma função psicológica deficiente nos psicastênicos.

Duas características estariam presentes nos níveis mais altos da hierarquia psicológica: a síntese mental e a riqueza dos elementos da consciência que nela aparecem. Uma alteração no primeiro nível das funções superiores, ou seja, na função do real, modificaria todas as operações seguintes (Pitman, 1984). Abaixo do nível mais alto estariam operações despojadas de perfeição, de acuidade e do sentimento de realidade. Tratar-se-ia de ações sem adaptação aos fatos novos, das percepções vagas e sem fruição do presente. Seriam ações e percepções desinteressadas, que trariam ideias, imagens, raciocícios, representações inúteis do passado, devaneios. Em um nível ainda mais abaixo de tensão psicológica estariam as agitações motoras mal adaptadas e inúteis, as reações viscerais ou vasomotoras - elementos primordiais da emoção.

Quanto à etiologia da doença, Janet não hesitava em afirmar o papel determinante da hereditariedade na formação da patologia, muito embora não se pudesse determinar exatamente qual. Sua influência se fazia ver nos estigmas de degenerescência do paciente, nos sinais de sua organização mental considerada incompleta ou defeituosa, tais como como a assimetria facial e a altura maior ou menor que a média (Janet, 1903). Ainda que ressalte a importância da atenção aos possíveis estigmas, o autor não deixa de remarcar que, com significativa frequência, eram encontrados doentes sem quaisquer dessas marcas de degenerescência.

No que se refere aos tratamentos, um de seus eixos era o campo somático: nutrição adequada, boa qualidade de sono, ar fresco, evitação de fadiga. O outro era o moral, considerado mais importante do que o físico, a tal ponto que, com frequência, o tornava inútil (Janet, 1903). Além disso, mais do que demandar ao cérebro aquilo que ele não teria condições de oferecer, era importante diminuir as demandas sobre ele, por meio de uma simplificação do estilo de vida. Para o autor, as ideias obsessivas eram uma expressão de um estado subjacente e o tratamento deveria ser dirigido para esse estado, envolvendo a reeducação da função do real e o aumento da tensão nervosa. Como não se sabia como promover esses processos diretamente, era necessário recriar condições em que o nível de tensão mental crescesse. A estimulação da emoção podia ter um efeito benéfico e os esforços mentais e físicos diretamente aplicados à realidade deviam ser encorajados.

É digno de nota que a abordagem da psicastenia sugerida pelo autor não pertencia inteiramente ao modelo organicista, tampouco às teorias psicogênicas sobre a doença mental: Janet distinguiu, na psicastenia, tanto um processo psicogenético derivado dos eventos da vida e das ideias fixas, quanto um substrato orgânico, que era a predisposição neurótica. No entanto, ainda que reconhecesse a importância da hereditariedade e de fatores orgânicos, o autor atribuía papel determinante à dinâmica da energia psíquica. É também por isso que os trabalhos de Janet são considerados contribuições decisivas para a constituição de um sistema de psiquiatria dinâmica e para o desenvolvimento da psicoterapia como método de tratamento de transtornos mentais (Ellenberger, 1970; Pitman, 1984).

A utilização da psicastenia como categoria diagnóstica durou pouco, pela força das novas classificações psicanalíticas então em ascensão, sendo indiretamente substituída pelas neuroses obsessivas e fobias no decorrer das primeiras décadas do século XX. Assim, muitos dos sintomas atribuídos à psicastenia seriam redescritos, depois do declínio da categoria, pela psicanálise freudiana. Hoje, a psicastenia ainda é mencionada na décima edição da Classificação Internacional das Doenças (OMS, 1993), sob a alcunha de 'outros transtornos neuróticos especificados', relacionados a transtornos de etiologia incerta, que misturam comportamento, crenças e emoções ocorrentes em culturas particulares.

No que se refere à recepção desse diagnóstico no Brasil, no período entre a metade do século XIX e metade do século XX, a psicastenia se encontrou muitas vezes misturada a outras entidades nosológicas que lhe eram contemporâneas, como é o caso da neurastenia. Apesar de serem diagnósticos comuns no fim do século XIX, neurastenia e psicastenia provieram de lugares e autores diferentes, a primeira ligada ao contexto norte-americano e a segunda, ao francês. Mas entre os médicos brasileiros elas se encontravam frequentemente reunidas, a ponto de a segunda ter sido compreendida como um subtipo da primeira, juntamente com o nervosismo (Roxo, 1916a).

De fato, os sintomas da neurastenia eram tão abrangentes que poderiam incluir tanto as manifestações clássicas - exaustão e transtornos neuropsicológicos - quanto sintomas psicastênicos ou de nervosismo, este último centrado em manifestações de ansiedade e perturbações da cenestesia. Por isso, Roxo (1916a; 1916b) considera a psicastenia uma modalidade da neurastenia em que predominariam obsessões, fobias e compulsões. Se em Janet (1903) a neurastenia estaria incluída na psicastenia, em Roxo (1916a) trata-se do contrário - a psicastenia seria um subtipo da neurastenia.

Além da sintomatologia em comum, há outro ponto que também torna esses quadros mais homogêneos - a etiologia. A explicação é, como enfatiza Roxo (1916a), a fraqueza irritável do sistema nervoso em razão de uma constituição nevropática. O indivíduo com uma constituição frágil esgotar-se-ia com facilidade, principalmente se vulnerabilizado por um abalo moral ou por uma infecção tóxica. Nesses casos, o sistema nervoso ficaria mal nutrido e o organismo inteiro se ressentiria. Em ambos os casos, estaríamos diante de um esgotamento nervoso originário, que acompanharia o indivíduo desde seu nascimento e seria acirrado pelos fatos da vida.

No que concerne a esse ponto, Roxo (1916b) destaca o papel do aspecto moral na produção do quadro psicastênico. Em todos os casos por ele analisados houve um profundo esgotamento nervoso, em que o elemento emotivo representou papel preponderante. Se se observa a gênese da doença, detecta-se quase sempre um forte abalo moral, e uma emoção interna e duradoura que perturbou o doente. É nesse contexto que o autor afirma ser a emoção a causa fundamental do quadro psicastênico, embora admitisse a celeuma em torno do poder (ou não) das emoções de gerarem, por si, quadros patológicos. Nos doentes que atendia, Roxo observou organizações emotivas que vinham sendo fatigadas e contrariadas. Mesmo quando havia um fator infeccioso, associava-se a ele o fator emotivo. Desse modo, a patogenia da psicastenia diria respeito, para o autor, a dois fatores: o degenerativo-hereditário e o emotivo, ao qual se somaria, em algumas vezes, o fator tóxico-infeccioso. Como observou o autor: "Inibido na vontade ou indolente no seu desempenho, o psicastênico é uma presa que não se libera facilmente das obsessões, fobias e impulsões" (Roxo, 1916b, p.198).

Algumas conclusões

Rabinbach (1990) ressalta que a análise que Théodule Ribot (1845-1893) empreende em Les maladies de la volonté (As doenças da vontade; 1888), especificamente sobre a abulia, toca em um aspecto importante da compreensão da psicastenia. Para Ribot, a vontade era uma proteção contra as imagens e pensamentos destrutivos. O desejo representava a forma primitiva da vida afetiva, não se diferenciando dos movimentos reflexos complexos. A vontade, por sua vez, representava a mais elevada forma de poder material que contra-efetuava seus efeitos negativos. Ela era, assim, o mais alto estágio do desenvolvimento moral e fisiológico, enquanto o desejo, um estágio situado entre o reflexo e as ações voluntárias. Atuava como um poder inibitório agindo como uma supressão da excitação ou como um mecanismo de inibição. Para Ribot, as patologias da vontade não eram estados da consciência, mas sim consciência dos estados internos de esgotamento, nos quais se enquadravam o pessimismo, a falta de iniciativa, o medo da ação e a recusa de se envolver em atividades produtivas. Em sua psicologia, a energia insuficiente era a substância material da patologia, que produzia representações irracionais e dava origem a forças do ócio e da lassidão.

Essas ideias esclarecem um dos principais pontos em jogo na psicastenia, que é a fraqueza da vontade e a entrega passiva do doente às expressões mais rudimentares de suas funções mentais. Como enfatiza Pereira (2008, p.305), "trata-se de um mecanismo de base econômica segundo o qual o enfraquecimento da capacidade de síntese expõe o eu a ser passivamente invadido por elementos mentais que deveriam manter-se afastados e submetidos ao restante do psiquismo". Em outras palavras, em decorrência da escassez de energia volitiva, o indivíduo não conseguia ter controle sobre as ideias obsessivas, sendo a desnutrição do sistema nervoso o fator produtor dessa falta de energia. O psicastênico, por isso, vivia à mercê de suas obsessões, fobias e impulsos, sem energia para refrear os conteúdos que tomavam conta de sua consciência. Era a debilidade nervosa que o impossibilitava de desempenhar a vontade. Em algumas vezes, faltava-lhe o impulso inicial para agir. Em outras, a ação falhava em sua plenitude.

Diante desse quadro explicativo que sustentava a compreensão da doença, a principal inovação de Janet em relação ao conceito de psicastenia é que os sintomas físicos eram entendidos como uma sequela do estado psicológico e não o contrário (Shamdasani, 2001). Essa ideia traz uma consequência direta a suas proposições terapêuticas. Pode-se dizer que, de modo geral, o tratamento dos psicastênicos consistia na reeducação da função do real e em um aumento do nível mental; em exercícios, passeios de bicicleta e ginástica.

Além dessas atividades, um dos modos pelos quais o nível mental aumentava era também o encontro clínico, pelo próprio reconhecimento, por parte do médico, do estado do paciente como algo digno de cuidado e atenção. O tratamento proposto por Janet tinha, assim, uma clara direção moral, e isso não se deu sem motivo, já que o autor teve uma clara dedicação ao tema da psicoterapia, como é o caso em La médicine psychologique (A medicina psicológica; Janet, 1923), no qual defende essa prática como uma forma particular de medicina. Na obra, Janet afirma que os esforços em transformar o comportamento humano não podem separar radicalmente o físico do moral, já que as palavras contêm fenômenos físicos e a conduta humana contém movimentos e ideias. Todos os métodos empregados em sua época, como as eletroterapias, a balneoterapia e a massoterapia, deveriam envolver uma mescla de físico e moral.

A psicoterapia, por exemplo, diria respeito a um conjunto de procedimentos físico-morais aplicado a doenças, com essa mesma mistura etiológica. Esses procedimentos seriam determinados pelo conhecimento de leis que regulariam o desenvolvimento dos fatos psicológicos, de sua associação entre si e com os fatos fisiológicos. Nesse panorama, Janet observava, por exemplo, que frequentemente a presença de um amigo fazia cessar os sintomas de seus pacientes, cabendo também ao médico cumprir essa função moral e demonstrar interesse pelo paciente.

NOTAS

Recebido para publicação em dezembro de 2009.

Aprovado para publicação em setembro de 2010.

N.E. - O presente artigo é uma reflexão crítica baseada em texto de Henrique Roxo, "Psicastenia", reproduzido neste número de História, Ciências, Saúde - Manguinhos.

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  • JANET, Pierre. Les névroses Paris: Ernest Flammarion. 1909.
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  • 1
    Nesta e na próxima citação de Pierre Janet, a tradução é livre.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      Dez 2009
    • Aceito
      Set 2010
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