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Neurastenia

Neurasthenia

Resumos

Apresenta a categoria médica da neurastenia, criada em solo estadunidense no fim do século XIX pelo neurologista George Beard. São apresentadas as características gerais do quadro clínico, bem como as principais hipóteses explicativas para os sintomas, e as proposições terapêuticas sugeridas nas obras do referido autor. Além disso, é discutida a recepção do diagnóstico fora dos EUA, tanto no que se refere ao seu uso na Europa quanto ao caso específico do Brasil.

neurastenia; George Beard (1839-1883); medicina mental; Brasil


The article addresses the medical category of neurasthenia, developed in the United States by neurologist George Beard at the close of the nineteenth century. Points of discussion include the principle features of the category's clinical presentation, the main hypotheses advanced to account for symptoms, and the treatment alternatives suggested in Beard's works. The article also looks at how the diagnosis was received outside the United States, both in Europe and, more specifically, in Brazil.

neurasthenia; George Beard (1839-1883); mental medicine; Brazil


ANÁLISE

Neurastenia

Neurasthenia

Rafaela Teixeira Zorzanelli

Pós-doutoranda do Instituto de Medicina Social/Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com apoio Faperj/Capes. Instituto de Medicina Social, UERJ. Rua São Francisco Xavier, 524, pavilhão João Lyra Filho, 7. a., bl. D e E, 20550-900 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. rtzorzanelli@yahoo.com.br

RESUMO

Apresenta a categoria médica da neurastenia, criada em solo estadunidense no fim do século XIX pelo neurologista George Beard. São apresentadas as características gerais do quadro clínico, bem como as principais hipóteses explicativas para os sintomas, e as proposições terapêuticas sugeridas nas obras do referido autor. Além disso, é discutida a recepção do diagnóstico fora dos EUA, tanto no que se refere ao seu uso na Europa quanto ao caso específico do Brasil.

Palavras-chave: neurastenia; George Beard (1839-1883); medicina mental; Brasil.

ABSTRACT

The article addresses the medical category of neurasthenia, developed in the United States by neurologist George Beard at the close of the nineteenth century. Points of discussion include the principle features of the category's clinical presentation, the main hypotheses advanced to account for symptoms, and the treatment alternatives suggested in Beard's works. The article also looks at how the diagnosis was received outside the United States, both in Europe and, more specifically, in Brazil.

Keywords: neurasthenia; George Beard (1839-1883); mental medicine; Brazil.

A neurastenia remonta a outras categorias diagnósticas que lhe são anteriores como a de nervosismo, neurospasmo e irritabilidade espinhal. Suas raízes estão no início do século XIX, tanto com a ideia de fraqueza nervosa, quanto com a de neuroestenia, seu oposto. Essas classificações, reminiscentes dos estudos sobre a excitabilidade do organismo realizadas pelo inglês John Brown (1735-1788), bem como dos estudos sobre a irritabilidade dos órgãos, do médico francês François Joseph Victor Broussais (1772-1838), trouxeram para o primeiro plano o conceito de astenia, definido como um estado de exaustão da medula, causada pela irritação que se seguia à estimulação.

George Miller Beard (1839-1883), neurologista nova-iorquino, definiu a neurastenia no artigo "Neurasthenia, or nervous exhaustion" (Neurastenia, ou exaustão nervosa), publicado em 1869, no Boston Medical and Surgical Journal. Depois desse primeiro artigo, seguiu-se, do mesmo autor, A practical treatise on nervous exhaustion (neurasthenia) (Um tratado prático sobre a exaustão nervosa - neurastenia), de 1880, e American nervousness - its causes and consequences (Nervosidade americana - suas causas e consequências), de 1881 - obras que caracterizavam a etiologia e a terapêutica da doença então emergente.

Segundo Beard (1880, 1881), nos EUA, nos idos de 1860, a neurastenia era mais comum do que qualquer outro tipo de doença nervosa. A resposta do autor sobre o motivo de essa doença escapar tão frequentemente da atenção dos homens da ciência é que seus sintomas eram subjetivos e, para os que não sofriam dela, pareciam insignificantes e irreais. Diferente do que ocorria com as doenças cirúrgicas, agudas e inflamatórias, o acesso aos sintomas dependia do relato do paciente, pois não eram detectáveis pelos instrumentos de que dis-punha a medicina da época.1 1 Beard assinala o modo indigno e obscuro com o qual a medicina costumava tratar as manifestações neurastênicas. Para o autor, a neurastenia era tratada, em sua geração, do mesmo modo que a loucura o teria sido em um passado recente da medicina mental. Se, por um lado, muitos dos sintomas da insanidade foram vistos como possessão demoníaca, os da neurastenia eram vistos como imaginação do paciente ou provas de sua hipocondria.

Os sintomas da neurastenia nunca tinham sido descritos inteiramente até 1880. Mesmo no primeiro artigo que Beard escreve sobre o tema, em 1869, só uma minoria deles é abordada. No entanto, em A practical treatise, o autor chega a uma seleção minuciosa e exaustiva de sintomas a partir de observações de seus casos clínicos. No centro do quadro sintomatológico estava a exaustão física e mental, ao que se somavam perturbações gástricas, sexuais e neuropsicológicas. Ao redor desse quadro, apresentavam-se outros sintomas como dores generalizadas, cefaleias, pressão e peso na cabeça, muscae volitantes, zumbidos no ouvido, dificuldade de concentração, medos mórbidos, inquietação, enrubescimento frequente, transtornos do sono, sensibilidade no couro cabeludo, pupilas dilatadas, sensibilidade da coluna (irritação espinhal), entre outros. Para chegar ao diagnóstico, Beard conversava longamente com seus pacientes, no intuito de acessar as queixas, mas também de excluir a possibilidade de outras condições orgânicas ou mentais.

Ao artigo "Neurasthenia, or nervous exhaustion", atribui-se o gesto inaugural da criação da neurastenia como categoria nosológica. No entanto, o médico americano Edwin van Deusen (1828-1909), superintendente do Michigan Asylum for the Insane, publicou também em 1869, no American Journal of Insanity, o artigo "Observations on a form of nervous prostration (neurasthenia) culminating in insanity" (Observações sobre uma forma de pros-tração nervosa - neurastenia - culminando na insanidade), embora quase não tenha obtido nenhum reconhecimento por isso. Conforme ressalta Wessely (1994), Van Deusen era um alienista que tratava fazendeiros em Kalamazoo (Michigan), e Beard era um neurologista da costa leste dos EUA, cujos clientes pertenciam às altas camadas da sociedade. Essa disparidade é um dos ingredientes que fez seu trabalho obter mais destaque do que o de Van Deusen.

No artigo de 1869, Beard apresenta o transtorno e afirma que "a anemia é para o sistema vascular, o que a neurastenia é para o sistema nervoso"2 2 Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre. (Beard, 1869, p.218). Não se trata de uma analogia menor: Beard torna mais acessível a inserção daquele novo diagnóstico, por sua comparação com uma perturbação orgânica conhecida, que servia como analogia à condição nosológica emergente. A lógica foi a de comparar os dois casos, anemia e neurastenia, como uma decorrência da falta de algum substrato vitalizante. Se no caso de uma, tratava-se da necessidade de sangue, na outra, faltava energia nervosa. Até mesmo no caso da etiologia, a comparação é reiterada: "Tanto a anemia quanto a neurastenia podem ser o efeito de doenças crônicas e agudas, e ambas podem tanto ser agudas ou crônicas em seu curso. Assim, a neurastenia pode ser o efeito de febres inter-mitentes, ferimentos ..., daí por diante. A anemia, como é bem conhecido, pode resultar das mesmas doenças" (Beard, 1869, p.217).

Além de comparar as causas, Beard faz o mesmo com os tratamentos. Em ambos os casos, é preciso uma ação tonificante, mas no caso específico da neurastenia, o tônico deve ter um efeito sobre o sistema nervoso. A ideia de uma falta de tonicidade do sistema nervoso não é sem motivo. A hipótese etiológica sustentada pelo autor é que o sistema nervoso central perde a solidez de seus constituintes em razão de alterações mórbidas leves e indetectáveis em sua estrutura química e do empobrecimento na quantidade e qualidade da força nervosa.

Sabemos que a inteligência dos homens e animais é proporcional à quantidade e qualidade dos conteúdos cerebrais, que as proporções de água, fósforo e gordura, e de outros constituintes sólidos do sistema nervoso central variam mais ou menos com a idade, com a capacidade moral e intelectual, e que todas as formas de insanidade são dependentes de alguma condição mórbida central. Destes fatos estabelecidos, nós concluímos logicamente que mesmo o mais sutil e transitório dos transtornos do sistema nervoso são o resultado de mudanças mórbidas correspondentemente sutis no cérebro ou na medula espinhal. Eu admito que essa visão seja especulativa, mas tenho certeza de que isso será em algum tempo substancialmente confirmado pelos exames microscópicos e químicos dos pacientes que morrem em uma condição neurastênica (Beard, 1869, p.218).

Dessas primeiras ideias não tardaria para que, em A practical treatise, de 1880, o autor classificasse a doença como um transtorno funcional crônico, cuja base era o empobre-cimento da força nervosa, desgaste dos tecidos nervosos, falta de controle físico e mental, excessiva sensibilidade e irritabilidade. A ideia subjacente ao constructo de doença ou lesão funcional é que existiria um déficit de natureza orgânica que poderia ser encontrado por métodos não disponíveis naquele momento.

A distinção entre funcional e estrutural decorreria do modo como se classificavam os transtornos do sistema nervoso na segunda metade do século XIX, no terreno da neurologia francesa, britânica e germânica.3 3 A rigor, a ideia de 'funcional', segundo Trimble (1982), aparece no seio da medicina anglo-saxã, sendo o fisiologista escocês Andrew Combe (1797-1847) o primeiro a aplicá-la ao contexto das doenças nervosas, o que seria mais tarde retomado pelos médicos ingleses John Russel Reynolds (1828-1926) e John Hughlings Jackson (1835-1911). No momento de emergência da neurastenia, as doenças funcionais eram consideradas aquelas que não dependiam de alterações estruturais no organismo, e que, supostamente, relacionavam-se a modificações moleculares na nutrição que, mesmo não sendo suficientes para serem vistas, eram significantes para constituir um processo mórbido. Doenças nervosas significando afecções dos nervos já haviam sido reconhecidas desde o médico britânico William Cullen (1710-1790), responsável pela formação da categoria de neurose. Mas, a partir daí, outras classificações foram construídas, e de acordo com o neurologista britânico William Gowers (1893), houve uma divisão entre as então consideradas doenças do cérebro (anemia, hiperemia, hemorragia, inflamação, abcessos, tumores e aneurismas), as da degeneração (esclerose insular, atrofia, hidrocefalia), e as funcionais e gerais (coreia, torcicolo, tétano, neurose ocupacional, epilepsia, vertigem, cefaleias, neuralgia, alcoolismo, hemiatrofia facial, paralisias subsequentes a doenças agudas, histeria, hidrofobias, envenenamento por metal). Essa terceira categoria reunia doenças que mais tarde seriam consideradas puramente orgânicas e doenças para as quais ainda não se encontrava agente etiológico. No momento em que começam a ser pensadas, são reunidas sob um termo genérico aplicado a algumas condições mentais mórbidas supostamente produzidas pelo cérebro. O que nos interessa nessa distinção é o ponto já enfatizado por Gosling (1987), o fato dessa separação entre funcional e estrutural ter sido crucial para que os médicos incorporassem a neurastenia, a histeria e outras categorias situadas entre o somático e o psíquico ao modelo médico vigente.

A consideração da neurastenia como uma perturbação funcional do sistema nervoso é um elemento de base para compreendê-la, sendo o ponto comum entre as obras de diversos de seus propagadores, como as dos médicos ingleses Thomas Savill (1906) e Charles Edward Beevor (1898); as dos franceses Jean Martin Charcot (1888), Paul Blocq (1891), Émile Laurent (1897), Paul Levillain (1891), Léon Bouveret (1891), Adrien Proust e Gilbert Ballet (1897); e as do americano Silas Weir Mitchell (2004; 1881).

Na obra de Beard (1880) especificamente, a noção de transtorno funcional é diretamente relacionada àquilo que se pode ou não ver, e o rótulo era destinado a condições cuja patofisiologia não pudesse ser esclarecida pela observação dos sentidos por meio dos instrumentos externos: "O que o microscópio pode ver nós chamamos estrutural, o que ele não pode ver, nós chamamos funcional" (p.95). O transtorno funcional era considerado negativo, pois havia uma deficiência na quantidade ou qualidade dos constituintes normais da substância nervosa. Já as doenças estruturais, que diziam respeito às condições em que se podia esclarecer a etiologia pela observação direta dos sentidos ou pelos instrumentos médicos, eram positivas, porque havia uma substância adicional ou anormal que justificava a moléstia.

A neurastenia foi compreendida pelo autor como resultado de uma mistura de predis-posição constitucional - nervos fracos - e dos excessos dispendidos em uma sociedade que requisitava altos gastos do estoque de energia nervosa. Podemos centrar a neurastenia sobre esses dois principais pilares, igualmente importantes: a ideia de que a energia nervosa é escassa, e a pressuposição de que se trata de uma doença funcional, e no limite, orgânica. Essa natureza dupla da neurastenia é também evidenciada por Schmiedebach (2001), para quem a doença é vista como um produto dos tempos modernos, da superexcitação e das necessidades especiais do trabalho com o cérebro; ao mesmo tempo, supõe-se a existência de uma base somática, tal como uma perturbação nutricional da célula nervosa ou da constituição hereditária.

Porter (2001) relembra que, articulada por volta da metade do século XIX, a segunda lei da termodinâmica prevê que a quantidade de energia disponível no universo está diminuindo gradual e inexoravelmente. O conceito de conservação de energia em um sistema fechado, legitimado pela física e pela fisiologia da época apresentava considerável poder explicativo das experiências cotidianas e das doenças. Essa formulação foi incorporada e tornou-se bastante visível na conceituação da neurastenia, já que a sobrecarga mental ou física poderia retirar o suprimento nervoso dos indivíduos, deixando seu sistema deficiente. A doença era, portanto, o preço a ser pago pelo gasto de energia em determinadas áreas do corpo ou diretamente no cérebro. A aumentada demanda de força consumia energia cerebral e a retirava da periferia, causando fadiga e outros sintomas. Sendo a eletricidade o principal meio de energia industrial e urbano, propulsora de todos os tipos de processos associados à vida moderna de então, parecia plausível que, nas últimas décadas do século, o sistema nervoso estivesse sendo pensado como um amontoado de fibras e células ativadas por impulsos elétricos e fluxos energéticos do centro (cérebro) para a periferia (nervos e órgãos) e vice-versa.

Hipóteses etiológicas

Apesar de chamar a atenção para o papel da hereditariedade e da diátese nervosa, Beard não deixa dúvida quanto à etiologia da condição. A causa da nervosidade americana é a civilização e suas exigências sobre o sistema nervoso. De forma geral, as autoridades médicas viam no excesso de trabalho o agente por meio do qual o sistema nervoso ficava exausto, sendo essa uma inevitável consequência do novo cenário social. A neurastenia era, para muitos médicos e reformadores, o sinal mais visível da vida moderna. Quando se requisitavam novas funções ao sistema nervoso, a quantidade de força necessária poderia ser demasiada, tornando-se instável e insuficiente, e causando sintomas de toda ordem.

Culpar a civilização pelos males nervosos da população não foi uma novidade de Beard. A ideia da civilização como produtora de doença mental marca toda uma geração de alienistas do século XIX e é bem caracterizada por Dalgalarrondo (1997) em diversos médicos e reformadores daquele século. Mas em Beard (1881), a civilização hostil ganha alguns contornos detalhados: a máquina a vapor, a imprensa, o telégrafo, as ciências e a atividade mental das mulheres. Essa mistura, com o maior ou menor grau de seus ingredientes, originava a exaustão pelo excesso de demandas à energia nervosa estocada.

As causas da neurastenia americana são complicadas, porém passíveis de análise: a primeira delas, a civilização moderna. A expressão civilização moderna é usada com ênfase, uma vez que civilização por si só não causa nervosidade. Os gregos certamente eram civilizados, mas não eram nervosos e no idioma grego não há palavra para esse termo. Os antigos romanos eram civilizados quando julgados por qualquer critério. Civilização, portanto, é uma expressão relativa e é assim que será empregada em todo este estudo. A moderna civilização difere das antigas principalmente no que se refere a estes cinco elementos - a máquina a vapor, a imprensa, o telégrafo, as ciências e a atividade mental das mulheres. Quando a civilização, mais esses cinco fatores, invadem qualquer nação, levam consigo nervosidade e doenças nervosas (Beard, 2002, p.176).

Mas se a civilização e seus males são supostamente produtores da doença, eles não explicam o mecanismo que, no corpo do paciente, produz uma condição de enfraqueci-mento físico e da vontade. A necessidade de oferecer uma resposta convincente sobre a patogenia da doença que, ao mesmo tempo, a desvendasse e legitimasse sua pertinência ao campo médico repousou, sobretudo, no conceito de lesão funcional. Atribuía-se ao neurastênico um funcionamento deficitário, embora impalpável, de seu sistema nervoso. As alterações patológicas eram supostamente submicroscópicas e relativas à nutrição das células do cérebro e, portanto, invisíveis, embora reais. Considerar a neurastenia um transtorno funcional significava admitir que era uma doença legítima, e supor que sua realidade estava na forma insuficiente de os nervos desempenharem suas propriedades. Para Beard e seus contemporâneos, nunca se duvidou do fato de a neurastenia ser uma doença orgânica: a ausência de características macroscópicas refletia as limitações das técnicas investigativas então disponíveis (Rosenberg, 1962).

O papel etiológico da hereditariedade, no entanto, não pode ser minorado. A relação dos fatores hereditários com as causas adquiridas constitui um debate recorrente entre os médicos da época e ajuda a responder à pergunta sobre os mecanismos responsáveis pela perda da vitalidade física e mental dos sofredores. Savill (1906), por exemplo, admitia para a neurastenia uma etiologia puramente adquirida. O neurologista americano William Broadus Pritchard (1905) também advogava que a doença era um estado adquirido em decorrência da atmosfera de possibilidades ilimitadas em campos como o comércio, a arte, a literatura, o trabalho. Também em Bouveret (1891), observamos que a neurastenia pode se desenvolver a despeito de traços hereditários, sendo o esgotamento cerebral suficiente para produzi-la.

No entanto, na obra do psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1896), os casos de neurastenia são abordados a partir da distinção entre quadros ocasionados pelo mero acúmulo de causas fatigantes e os que se devem a uma estrutura patológica advinda da diminuição da resistência nervosa, de caráter inato. Por sua vez, para o médico inglês Thomas Strecht Dowse (1895), a neurastenia estava ligada a processos de deterioração e degeneração da matéria viva, embora não se tratasse necessariamente de uma doença hereditária. Para Laurent (1897), causas menores podiam fazer eclodir a doença naqueles com propensões hereditárias - razão que explicava também a resistência de outros indivíduos. Já para Levillain (1891) a hereditariedade, a sobrecarga intelectual, as emoções prolongadas, os excessos sexuais, os traumatismos, as doenças crônicas ou agudas atuavam como causas determinantes da neurastenia, embora a heditariedade fosse capaz de, isoladamente, gerá-la.

Segundo Blocq (1891), a maioria dos casos de neurastenia era hereditária, ainda que alguns pudessem se desenvolver sem herança - ou seja, a predisposição poderia estar ausente e a condição originar-se-ia diretamente da atividade excessiva de um órgão. Proust e Ballet (1897), por sua vez, afirmam que o caso mais frequente é que a hereditariedade seja apenas uma causa predisposicional agindo em conjunto com outros fatores, embora admitam a possibilidade de que ela gere, de forma isolada, o quadro neurastênico. As causas por excelência seriam a hereditariedade neuroartrítica e a má-educação.

Cabe observar o caráter lamarckista da hereditariedade sobre o qual se assentava a compreensão da neurastenia. Por herdarem uma constituição fraca dos nervos, os neurastênicos não poderiam ser curados, e por isso, deviam ser educados para viver de acordo com suas insuficiências e/ou neutralizá-las. Sobre a disposição hereditária incidia a necessidade de aumentar os esforços da vontade do indivíduo para superar os efeitos particulares de sua natureza (Schmiedebach, 2001; Slijkhuis, 2001). As explicações para a neurastenia combinavam, assim, a fraqueza herdada com o esforço próprio.

Outro ponto do debate em torno da etiologia da neurastenia merece ser observado com mais detalhes. À doença atribui-se o status de ter sido uma das primeiras categorias diagnósticas em que os fatores socioculturais eram considerados os principais desen-cadeadores (Ehrenberg, 1998). Mas como se pode observar, o papel da hereditariedade e o do conceito de lesão funcional não deixam dúvidas de que a afirmação de que a doença era o resultado do choque com a modernidade não anulava o complexo jogo entre moral e orgânico, sobre o qual se assentavam as explicações médicas para essa e outras doenças daquele momento. Os trabalhos de Rosenberg (1989, 2006) chamam a atenção para a onipresença do somático como chave de compreensão preferencial para doenças e comportamentos desadaptados no final do século XIX, ressaltando que o privilégio concedido às explicações físicas foi um dos preços retóricos a pagar para tornar possível a abordagem médica das doenças nervosas.

Terapêutica

A despeito de sua obscura etiologia, a maioria dos casos tinha bons prognósticos e alcançava a cura. A filosofia do tratamento se sustentava na ideia de que doenças desse tipo eram aliviadas e curadas por qualquer meio terapêutico, externo ou interno, capaz de produzir uma mudança na constituição nervosa geral. Para reverter a má nutrição e fraqueza dos nervos dos doentes, qualquer elemento modificador da nutrição nervosa poderia oferecer alívio e efeito curativo.

Segundo Beard (1880), o tratamento devia ser geral (constitucional) e local, com atenção especial às manifestações locais quando se tornassem severas. As curas mais frequentes envolviam, grosso modo: exercícios (para os homens); descanso (para as mulheres); hidroterapia, eletricidade, dieta e massagem. O prognóstico era variável: se a neurastenia fosse aguda, sua recuperação seria rápida; quando crônica, o tratamento levaria mais tempo. A tendência hereditária - cujo grau de contribuição na formação do quadro, como discutido, variava nos diferentes autores - podia ser combatida pelo esforço da vontade do paciente.

Beard (1869) observou que alguns sintomas eram prontamente aliviados no início do tratamento. A insônia, por exemplo, ou a depressão mental, podiam desaparecer em uma só consulta, quando o paciente recebia informações claras sobre a natureza de sua doença e suas possibilidades de cura. Uma sugestão do autor era de que o tratamento fosse suspenso por completo em intervalos intermitentes, o que trazia efeitos benéficos - "[os] pacientes às vezes imaginam que essa seja uma prova do valor dos remédios; mas essa é na verdade uma prova do seu poder" (Beard, 1880, p.134).

Conforme enfatizava o autor, o descanso e o isolamento eram fundamentais para alívio e/ou cura dos sintomas. No entanto, ele admitia que os doentes nem sempre precisavam suspender o trabalho cerebral, já que mesmo o cérebro fatigado também precisava de uma cota de exercício. "O trabalho de alto nível do intelecto nos salva de emoções de baixo nível" (Beard, 1880, p.143) - ou seja, quando um músculo está desgastado, deve-se torná-lo mais forte por meio de exercício passivo e moderado, acreditando que sua nutrição seria melhorada. O cérebro, em tese, obedecia à mesma lei. Não era necessário, portanto, abandonar a profissão para curar-se: em alguns casos, manter alguma ocupação era terapêutico.

Outro ponto ressaltado por Beard (1880) era a necessidade de estudar profundamente a psicologia do paciente. Havia pacientes que se regozijavam em seu sofrimento e, por isso, a atenção do médico a esse quesito poderia ajudar a compreender as particularidades de cada caso. No entanto, afirma o autor, era um erro acreditar que a mente sozinha, sem qualquer medicação ou influência de tratamentos corporais, fosse suficiente para a melhora. A confiança exclusiva em terapêuticas mentais, sem a eletricidade, massagem, medicação, não era considerada científica e, por isso, tendia ao insucesso. A mente, considerada uma força importante no tratamento do neurastênico, não devia ser a única fonte usada no controle das afecções nervosas funcionais. Essa concepção errônea pode ter emergido, segundo Beard, da ideia de que a neurastenia era imaginária - e que, portanto, deveria ser tratada pela mesma influência que a criava.

Também por isso o princípio de tratamento era a oferta de tônicos para o sistema ner-voso: ar, luz do sol, água, comida, descanso, diversão, exercício muscular, além da admi-nistração de alguns remédios para estimulá-lo, como a estriquinina e o arsênico em doses controladas. O sono e o descanso, em tese, capacitavam o paciente a reestocar a energia nervosa, e por isso, eram frequentemente induzidos por hipnóticos ou sedativos disponíveis na época, tais como o cloral, o trional e os bromídeos.

Além disso, era considerado favorável o uso de eletrização4 4 Beard era um profundo estudioso de métodos de eletrização, tendo publicado até aquele momento obras de referência para o uso médico desses métodos. - as contrações musculares produzidas durante a aplicação ajudavam no processo de reparação da energia perdida. Em tese, quando uma corrente elétrica passava pelo corpo, era capaz de causar uma perturbação molecular que modificava a nutrição orgânica, aliviando a dor. Aplicada ao corpo, a eletricidade agiria tanto direta quanto indiretamente - na parte onde a aplicação é feita e através da ação reflexa dos nervos.

Outro tratamento importante era a massagem. Beliscar os músculos e percuti-los aumentariam a circulação do sangue, a sedação geral e a disposição para dormir e, além disso, aliviaria as dores. Recomendava-se também a hidroterapia, utilizando-se duchas na coluna e atrás do pescoço, banhos turcos e russos. Era aconselhado o uso de contrairritantes, cujo princípio de ação era a obtenção de alívio da dor em determinada parte do corpo pela irritação de outra, pelo uso de compressas de água quente, gelo, vibração, pressão, estimulação elétrica.

A falta de conhecimento da patogênese dessa condição incapacitava os médicos de fazer algo além de tratar suas manifestações. Ainda que muitos fossem os sintomas da doença, eles acreditavam que as causas deveriam ser buscadas a partir de um olhar apurado para o estilo de vida do paciente. Os homens de negócios, por exemplo, recebiam fre-quentemente o diagnóstico de excesso de trabalho, a não ser que revelassem tendências ao consumo do ópio ou tabaco, ou ao abuso de algum outro tipo de droga - ou ainda, que revelassem exagero do apetite sexual.

Já as mulheres eram percebidas como excessivamente sobrecarregadas, e raramente se suspeitavam, em relação a elas, de excessos sexuais ou adicções. "A causa mais provável da neurastenia em mulheres, os médicos concluíam, era biológica" (Gosling, 1987, p.XI). Pode-se concluir que as causas eram dirigidas pelo julgamento do considerado moralmente aceitável ou não, levando-se em conta o gênero e a classe social do paciente. Enquanto nos homens, as causas precipitantes eram o excesso de trabalho mental e os vícios, as causas da neurastenia nas mulheres eram frequentemente biológicas e atribuídas ao seu delicado equilíbrio nervoso.

Não há exemplo mais emblemático desse processo do que a cura pelo descanso proposta por Mitchell. Segundo Gosling (1987), ela foi inicialmente utilizada no tempo da guerra civil, para soldados fatigados, mas, a partir de 1870, seu uso foi expandido para pacientes neurastênicos, especialmente mulheres. No intuito de renovar a vitalidade daquelas "mulheres emotivas de sangue fino" (thin blooded emotional women; Mitchell 2004, p.37), propunha-se a combinação de descanso total e alimentação regulada. O caso da escritora norte-americana Charlotte Perkins Gilman, tratada por Mitchell, tornou-se exemplar.

Por muitos anos, sofri por causa de um colapso nervoso contínuo que tendia à melancolia - e além. Durante o terceiro ano desse problema fui, em fé devotada e uma frágil comoção de esperança, a um notável especialista em doenças nervosas, o mais conhecido do país. O sábio homem colocou-me na cama e aplicou a cura pelo descanso, a qual o físico ainda conservado respondeu tão prontamente, que ele concluiu que não havia mais nenhum problema comigo, e enviou-me para casa com conselhos solenes de "viver uma vida o mais doméstica possível", "ter no máximo duas horas de vida intelectual por dia" e "nunca mais tocar a pena, pincel ou lápis" enquanto eu vivesse (Gilman, 1913, p.1).

Seguindo à risca as prescrições de seu médico, Gilman piorou drasticamente. Rebelando-se contra o método de Mitchell, voltou a escrever e produziu o conto "The yellow wallpaper" (O papel de parede amarelo), em 1899, no qual descreve ironicamente o método de tratamento de uma personagem presa em um quarto e sufocada pelo isolamento. O conto é o relato de como a famosa cura pelo descanso foi gradualmente levando a jovem personagem à insanidade. Essa pequena obra tornou-se até hoje objeto de análises de correntes da teoria literária, da história da medicina e dos estudos de gênero. A "The yellow wallpaper", seguiu-se "Why I wrote The yellow wallpaper" (Por que escrevi 'O papel de parede amarelo'; 1913), em que Gilman declara ter enviado "The yellow..." a Mitchell para fazê-lo repensar sua prática terapêutica, evitando que outras pessoas passassem por aquele mesmo tormento.

Michael Kimmel, prefaciador da edição mais recente de uma das principais obras de Mitchell - Fat and blood or hints for the overworked (Gordura e sangue ou sugestões para os sobrecarregados), de 1878 - considera que a neurastenia foi a doença mais ligada aos papéis sociais, incluindo os de gênero, do fim do século XIX. Tanto para homens quanto para mulheres, tratava-se de uma inconformidade com os papéis esperados, e a cura, uma tentativa de conformidade com as atividades consideradas naturalmente apropriadas para mulheres e homens. A terapêutica de Mitchell, por exemplo, era gênero-divergente: para homens, um pouco de descanso, logo retomado pelo retorno ao trabalho; para mulheres, descanso absoluto sem data final, vida doméstica e afastamento da vida mundana. O regime de quietude e reclusão recomendado para as mulheres era relacionado, segundo Lutz (1989) às noções de decoro feminino, de exclusão das mulheres dos espaços públicos e de obediência à autoridade paterna. Para Will (1998), o tratamento era uma forma de regressão infantil forçada das pacientes ao policiamento dos médicos e das enfermeiras, enquanto os homens eram tratados como se a doença fosse uma irrupção temporária de sua capacidade de conduzir uma vida produtiva.

Recepção do diagnóstico fora dos EUA e seu declínio

O interesse pela fadiga invadiu as décadas finais do século XIX, e só fazia confirmar a ansiedade novecentista de que a sociedade não suportaria as demandas da modernização crescente (Rabinbach, 1990). Para os médicos, fisiologistas e reformadores do século XIX, a fadiga não existia isolada de questões como a vontade, a moralidade, e do conjunto de forças sociais. Extenuadas, as nações desenvolvidas estavam entregues às vicissitudes da vontade desregulada, às emoções e aos inimigos da ordem produtiva. A fadiga, além de expressar a entropia que acompanhava a conservação de energia, consistia também em uma ameaça à modernização.

Por isso ela se tornou um tema a preocupar os interessados no desenvolvimento da civilização. É nesse contexto que emerge, por exemplo, La fatigue intellectuelle (A fadiga intelectual; 1898), de Alfred Binet e Victor Henri, que discutia as influências produzidas pelo desgaste intelectual sobre o organismo e as diferentes funções psíquicas, tomando como ponto de base o problema da sobrecarga escolar. A década de 1890 é um momento de emergência de pesquisas específicas sobre a exaustão intelectual, já que a saúde da juventude americana e europeia se encontrava em um mau momento, em decorrência das novas demandas feitas, ora pelo sistema educacional, ora pelo mundo do trabalho.

Sendo um adepto do evolucionismo social, Beard estava imerso na terminologia e no olhar evolucionista. Não é sem motivo que tal doença era considerada o preço que, a princípio, os americanos, e mais tarde, todas as sociedades desenvolvidas, tinham a pagar pelo progresso. Ela atingia, preferencialmente, os brain-workers - cujo estoque de força nervosa estava sendo destruído pelas imposições da vida urbana industrializada - e as moças de classe alta, com seus sistemas nervosos delicados e inaptos para as demandas da vida nascente das grandes cidades.

A partir dessas origens, a neurastenia oferecia uma prontidão conceitual e uma clima-tização social que tornou A practical treatise um sucesso imediato (López-Piñero, 1983). A partir de então, a neurastenia passou a ser mais uma das doenças da moda, recebendo a adesão e atenção dos neurologistas da época. O sucesso do termo fez esquecer que ele foi criado para se referir a uma doença particular dos norte-americanos, tendo o diagnóstico cruzado o Atlântico e alcançado a Europa.

Um período decisivo na propagação da neurastenia foi o modo como ela apareceu nas Leçons du mardi (Conferências das terças-feiras), de Charcot (1888). O médico utilizou-se das referências de Beard para classificar suas próprias observações clínicas dos pacientes que se queixavam de fadiga e outros sintomas. Para Charcot (1888, t.2) era em menor frequência que se podia encontrar a neurastenia desvencilhada dos sintomas histéricos, e em estado de pureza nosográfica. Por isso, ele sugeria a existência de uma forma híbrida chamada histeroneurastenia. Sua contribuição se deu sobretudo pela difusão do uso desse diagnóstico entre seus discípulos e alunos franceses.

A neurastenia como diagnóstico começou a ser mencionada aos poucos nos jornais secundários do fim da década de 1860 e teve seu status aumentado enquanto adentrava as melhores residências das nações industrializadas. No fim do século XIX, poucas famílias da classe alta na Europa e nos EUA não tinham sido atingidas pela neurastenia, e em torno de 1920, o diagnóstico já tinha se espalhado para os operários, fazendeiros e, comerciantes. Paralela à sua carreira como doença, ideias e metáforas de debilidade, excitabilidade e falência nervosa apareciam em discussões da economia, política, religião, arte, literatura, ética, sexualidade, trabalho, classe. O discurso sobre a neurastenia tornou-se uma forma de articulação dos debates sociais, morais e culturais (Lutz, 1989, 1991).

Contudo, alguns fatores contribuíram, nas primeiras décadas do século XX, para o gradual desaparecimento do uso desse diagnóstico em ambiente europeu e norte-americano: a aproximação do paradigma psicodinâmico produziu outras categorias de doenças mais adaptadas aos pressupostos psicogenéticos então emergentes. O ceticismo médico relacionado à neurastenia crescia, e a sofisticação da nosologia psiquiátrica tornou a generalidade do diagnóstico insustentável (Wessely, 1990). Pierre Janet definiu as características de uma nova categoria, a psicastenia; e Sigmund Freud pouco depois o fez com a neurose de angústia.5 5 Freud (1996) separa o quadro da neurose de angústia a partir da categoria da neurastenia, chamando a atenção para a distinção entre os determinantes etiológicos das duas. No caso da primeira estavam em jogo um conjunto de perturbações e influências da vida sexual do sofredor. A neurastenia, as neuroses de ansiedade e a hipocondria formariam, na obra de Freud, o quadro mais amplo das neuroses atuais, cuja formulação configuraria um passo teórico importante para a formação do campo da psicossomática psicanalítica ao longo do século XX. A queda da prevalência da neurastenia entre 1920 e 1930 coincide, portanto, com o estabelecimento das subcategorias de psiconeurose. O diagnóstico desapareceu, mas não os sintomas, que foram realocados nas novas categorias surgidas.

A pressuposição de uma organicidade, que sempre sustentou indiretamente o diagnóstico, foi questionada pela atribuição de uma origem psíquica dos sintomas. Por volta de 1920, a categoria perde popularidade, sob a emergência da psicanálise freudiana que afirmava, entre outros aspectos, que a origem dos sintomas estava em processos mentais, e não em um transtorno do sistema nervoso central. As bases do modelo somaticista que sustentavam o quadro neurastênico estavam em xeque (Shorter, 1992).

Mesmo a aparente eficácia dos tratamentos elétricos passou a ser atribuída a razões psicológicas, mais do que a possíveis modificações orgânicas dos centros nervosos. Houve um declínio do uso da cura pelo descanso, que deu lugar às emergentes terapias pela fala (Will, 1998). Assim, o modelo orgânico da neurastenia tornava-se enfraquecido em favor do status crescente das novas escolas de pensamento. O manejo do paciente neurastênico se deslocou lentamente do neurologista para o psiquiatra.

Antes da emergência do paradigma psicogênico, a neurastenia servia a um propósito: em um tempo no qual os médicos sentiam-se à vontade somente com transtornos claramente orgânicos, um diagnóstico como esse permitia que o quadro fosse medicamente tangível, oferecendo uma terapia essencialmente moral, sob um rótulo somático. Com a ascensão da escola psicogênica, essa função do diagnóstico foi perdida (Sicherman, 1977).

Uma análise de registros históricos do National Hospital Queen Square, em Londres, oferece um cenário ilustrativo tanto do declínio do diagnóstico quanto de sua difusão às classes proletárias. Com atividades iniciadas em 1860, o Queen Square era um hospital de caridade, cujo objetivo claro era o de oferecer cuidado médico aos pobres, sendo o primeiro hospital londrino a especializar-se em transtornos do sistema nervoso. Em quarenta anos, a instituição cresceu significativamente, tendo se tornado um centro de excelência na formação, tratamento e pesquisa dos transtornos funcionais, atraindo pacientes do país inteiro e de outros países. Relatórios anuais do hospital foram analisados cobrindo o período de 1860 a 1947, contendo registros médicos como número de altas dos pacientes neurastênicos, diagnóstico, sexo e resultados obtidos.

O diagnóstico apareceu pela primeira vez em 1886, após o que seguiu-se um crescimento linear com pico em 1906, com 11% de altas por ano. Houve pequena queda em 1908, com a média de altas decrescendo para 7,4%, e outro pico de 10% em 1928. A isso se seguiu um abrupto declínio, 3% de altas, em 1930; e 1%, em 1935 - depois disso o diagnóstico praticamente desaparece. De 1932 a 1944, a prevalência de novas categorias ligadas às psiconeuroses atingiu a média de 7%, caindo para uma média de 3% entre 1945 e 1957, quando se interrompe o relatório do Queen Square (Taylor, 2001). Os dados presentes, ainda que nessa amostra particular, exemplificam a difusão do diagnóstico entre as classes trabalhadoras. No entanto, há um notável lapso de tempo entre a primeira descrição que Beard faz da doença, em 1869, e a primeira aparição desse diagnóstico no Hospital Queen Square, que se supõe ter sido o tempo necessário para a difusão do diagnóstico aos outros continentes e para que se estendesse das classes altas aos proletários. Outras etiologias passam a ser sugeridas, tais como moradias ruins ou má higiene dental, prevalente entre crianças das classes baixas (Savill, 1906). Aos poucos, a doença perde sua função de destaque social e de signo de sofisticação.

Ao longo do século XX, a neurastenia foi reavivada particularmente na China, onde era chamada de shenjing shuairuo (fraqueza neurológica), no decorrer das décadas de 1970 e 1980. Nas culturas ocidentais, o diagnóstico considerado mais semelhante ao de neurastenia é a síndrome da fadiga crônica, surgida nas publicações médicas norte-americanas e europeias a partir do fim dos anos de 1980. Seus sintomas são também a exaustão física e mental, além de uma diversidade de outras perturbações funcionais gerais. Atualmente, a neurastenia se preserva no DSM-IV-TR como uma síndrome ligada à cultura (APA, 2002). No CID-10, aparece sob a denominação de "outros transtornos neuróticos" (OMS, 1993).

Neurastenia no Brasil

Chama a atenção a presença da neurastenia nos discursos médicos do final do século XIX que, como enfatizou Duarte (1986), parecem repercutir as categorias estrangeiras com significativa rapidez no ambiente acadêmico brasileiro. Ainda que mais concentrados no campo da insanidade, os psiquiatras brasileiros Juliano Moreira e Afrânio Peixoto (1906) comentaram o assunto da neurastenia no Brasil, sustentando que os dados estatísticos sobre a doença eram exíguos, devido ao fato de que provinham sobretudo do Hospital Nacional de Alienados, onde os doentes eram levados em casos de urgência - situação atípica na neurastenia. No entanto, na clínica particular, os episódios eram frequentes. Se a neurastenia não era estatisticamente tão evidente no Brasil quanto em sua terra de origem, isso se deveria à ausência, mesmo nas capitais, daquilo que, para os referidos autores, lhe era precondição: a sobrecarga pelo trabalho e os excessos sexuais. Os neurastênicos brasileiros, com frequência, viajavam para realização de tratamento com os grandes especialistas na Europa e nos EUA.

O também psiquiatra brasileiro Henrique Roxo (1916) utiliza a categoria da neurastenia de forma particular, considerando que ela abrange tanto as manifestações ligadas ao nervosismo quanto a psicastenia. Dom Justino (1907), por sua vez, não se afasta das ideias propaladas pelos autores americanos e europeus, tanto no que concerne à sinto-matologia, quanto à etiologia, relacionada aos excessos de esforço e perda de energia do sistema nervoso, mais suscetível à fraqueza em decorrência de traços hereditários, bem como às perturbações de nutrição moleculares provenientes dos transtornos funcionais. No que concerne à terapêutica, o autor propunha princípios de intervenção física, dietética, tônica e psíquica, em que se pressupunham o fortalecimento do corpo pela ingestão de alimentos fortificantes, o comedimento nos hábitos, a aeroterapia, a balneoterapia, a eletroterapia, a regularização da dieta e do modo de viver do doente. Além disso, adotavam-se tratamentos medicamentosos com uso de tônicos como auxiliar aos processos acima descritos.

O tratamento psíquico era também considerado um fator importante para o êxito do tratamento. Captar a confiança do doente, aceitar suas queixas com discrição e tato, individualizar o tratamento e manter a paciência e a perseverança eram atitudes que trariam benefícios diretos ao progresso da condição do paciente. Como afirma dom Justino (1907), o médico que esperar somente dos medicamentos a cura da doença sofrerá decepções, porque o neurastênico é um indivíduo cuja compreensão da vida falhou, que perdeu a crença na energia própria e que não tem interesse no mundo. Por isso, o eixo psíquico do tratamento ganha tanta relevância, por meio do qual o médico deve incentivar no paciente uma visão prática e sã da vida.

A neurastenia - juntamente com outros quadros imponentes do fim do século XIX como a histeria e a psicastenia - é morbidade cujos sintomas se apresentavam sem substrato orgânico identificável, e que, por isso, se tornou emblemática do modo como a medicina da virada daquele século lidava com doenças cujos sinais e sintomas não encontravam correspondência na estrutura anatômica. Novos horizontes históricos se abrem por meio de doenças como a neurastenia, histeria e psicastenia, contribuindo não somente para a criação de uma noção particular de morbidade psíquica, mas para um gênero novo de clínica médica centrado sobre as condutas, os ditos, as crenças e os desejos inferidos, qual seja, a cura pela palavra, de que a psicanálise freudiana seria um primeiro passo no início do século XX.

NOTAS

Recebido para publicação em dezembro de 2009.

Aprovado para publicação em setembro de 2010.

N.E. - O presente artigo é uma reflexão crítica baseada em texto de dom Justino, "Neurastenia (revista crítica)", reproduzido neste número de História, Ciências, Saúde - Manguinhos.

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  • 1
    Beard assinala o modo indigno e obscuro com o qual a medicina costumava tratar as manifestações neurastênicas. Para o autor, a neurastenia era tratada, em sua geração, do mesmo modo que a loucura o teria sido em um passado recente da medicina mental. Se, por um lado, muitos dos sintomas da insanidade foram vistos como possessão demoníaca, os da neurastenia eram vistos como imaginação do paciente ou provas de sua hipocondria.
  • 2
    Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
  • 3
    A rigor, a ideia de 'funcional', segundo Trimble (1982), aparece no seio da medicina anglo-saxã, sendo o fisiologista escocês Andrew Combe (1797-1847) o primeiro a aplicá-la ao contexto das doenças nervosas, o que seria mais tarde retomado pelos médicos ingleses John Russel Reynolds (1828-1926) e John Hughlings Jackson (1835-1911). No momento de emergência da neurastenia, as doenças funcionais eram consideradas aquelas que não dependiam de alterações estruturais no organismo, e que, supostamente, relacionavam-se a modificações moleculares na nutrição que, mesmo não sendo suficientes para serem vistas, eram significantes para constituir um processo mórbido.
  • 4
    Beard era um profundo estudioso de métodos de eletrização, tendo publicado até aquele momento obras de referência para o uso médico desses métodos.
  • 5
    Freud (1996) separa o quadro da neurose de angústia a partir da categoria da neurastenia, chamando a atenção para a distinção entre os determinantes etiológicos das duas. No caso da primeira estavam em jogo um conjunto de perturbações e influências da vida sexual do sofredor. A neurastenia, as neuroses de ansiedade e a hipocondria formariam, na obra de Freud, o quadro mais amplo das neuroses atuais, cuja formulação configuraria um passo teórico importante para a formação do campo da psicossomática psicanalítica ao longo do século XX.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Aceito
      Set 2010
    • Recebido
      Dez 2009
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