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Histeria e síndrome histeroide: comunicação à Sociedade de Psiquiatria e Neurologia

FONTES

Histeria e síndrome histeroide. Comunicação à Sociedade de Psiquiatria e Neurologia

Dr. A. Austregésilo

Médico do Hospício Nacional e do Hospital de Misericórdia. Membro da Academia Nacional de Medicina

A questão da histeria está em via de ser resolvida. De Babinski começou a reação contra a superabundância sintomática da histeria.1 1 Revue Neurologique, n. 8, ano XXI, abril 1908. Para maior desenvolvimento leia-se a Com. de Babinski à Sociedade de Neurologia, 7 de novembro , 1901 e o artigo Dutil e Laubry, Tr. de med. de Bouchard e Brissaud, v.1.

Devemos na clínica distinguir a síndrome histérica ou pitiática, da falsa histeria ou histeria sintomática nas afecções mentais e nervosas. Síndrome histeroide proponho chamar. Não é uma questão de novo nome para velhas coisas: é apenas a simplificação e a diferenciação das verdades clínicas. Assim como a paranoia distingue-se da demência paranoide de Kraepelin; assim como a paranoia distingue-se das síndromes paranoides de Moreira e Peixoto; logicamente a histeria ou pitiatismo deve distinguir-se desta histeria sintomática; apagada, móvel, incompleta, sem os caracteres essenciais da nevrose, conjunto de sintomas que de longe lembram a histeria, mas que não é a síndrome verdadeira, intacta, perfeita, uniforme, segundo as ideias de Babinski. Ao invés de histeria sintomática, de sintomatologia histeroide é preferível, segundo meu modo de ver, chamá-las síndrome histeroide.

Vejamos as razões clínicas, únicas em que me apoio. Trago-vos exemplos claros, e que o decurso de alguns anos vieram esclarecer a situação.

Conheceis, por certo as ideias originais que Babinski vem discutindo desde 1901 e que servem de assunto às sessões especiais da Sociedade de Neurologia de Paris no momento atual.2 2 Revue Neurologique, 1908.

Babinski reduziu o proteo - a histeria - a fórmulas mais positivas, e que ele propõe chamar de pitiatismo.

A histeria é, pois uma síndrome caracterizada pela sintomatologia oriunda da autossugestão, curável pela persuasão.

Em um trabalho anterior3 3 A. Austregesilo, Novas concepções sobre a histeria, Arq. Bras. de Psiq., 1908, vol. 12. dei as principais ideias de Babinski e dos autores sobre o assunto; é escusado pois fazer repetição.

Pertence pois à histeria o que pode ser reproduzido pela sugestão e curado exclusivamente pela persuasão, armada ou não. Podem haver acidentes primitivos e secundários. Os primitivos são os que pertencem ou se originam da autossugestão - como uma contratura. Secundários, que se originam dos primitivos como uma retração tendinosa, uma atrofia muscular.

Só podem pertencer à síndrome histérica ou pitiática perfeita o ataque, as paralisias, as contraturas, tremores, anestesias, perturbações sensoriais, hiperestesias, dores, perturbações intelectuais como delírio, afonia, gagueira, mutismo, amnésia, certos acidentes viscerais como soluço, tosse, anorexia, dispepsia, etc.

São excluídas do quadro clínico da histeria as modificações dos reflexos patelares; as paralisias não podem apresentar os caracteres das paralisias produzidas por destruição de nervos. Ela é incapaz de modificar os reflexos oculares, o líquido cefalorraquiano; produzir fenômenos tróficos ou vasomotores, perturbações esfincterianas, bem como certos fenômenos viscerais erroneamente descritos pelos autores, como albuminuria, febre histérica, etc.

Por outro lado, e isto é importante saber, não existem estigmas histéricos, que são sempre o produto da sugestão médica inconsciente, como afirmaram recentemente Babinski, Brissaud, em parte Dejerine, Meige, Souques, Rochon-Duvignaud, Ballet, Thomas, etc.

Logo, o que se chama em clínica - estigmas histéricos - isto é - hemianestesia sensitivo-sensorial, estenose do campo visual, abolição do reflexo faríngeo, zonas histerogêneas, etc., etc., são o resultado da sugestão inconsciente, fornecida pelo médico.

Isto posto, vejamos o nosso assunto propriamente dito.

Foram alguns casos de demência precoce que vieram despertar-me a atenção para essa sintomatologia histeroide de algumas moléstias mentais e nervosas.

É assim que antes de conhecer o relatório de Schnyder no Congresso de Genebra e Lausânia já havia notado como a demência precoce pode apresentar uma sintomatologia histeroide.

Esta comunicação é baseada sobre observações, de perto acompanhadas e diagnosticadas por mim, pelo Dr. Roxo, pelo malogrado amigo Dr. Fajardo e pelo próprio Babinski como casos de histeria. Os dois primeiros casos são de demência precoce pura.

A primeira observação é a seguinte:

J. brasileira, branca, 25 anos de idade. Da parte da mãe tara psicopática (tiques); tio-avô degenerado, tio alcoólico. As primeiras perturbações mentais de caráter obsediente, mani-festaram-se há mais ou menos cinco anos. Inteligência brilhante, cultura fina e gosto literário apurado.

Havia estados de tristeza, excitabilidade, terrores, anomalias de caráter. Em Paris foi internada como histeroneurastênica. Conforme narrou a família, surgiram reiteradas obsessões, tiques estereotípicos. As perturbações mentais acentuaram-se, com ideias de perseguição, religiosas e de grandeza, acompanhadas de alucinações auditivas, mas nas quais a memória parecia intacta. Crises nervosas histeroides. Gritos, lágrimas fáceis, falso sentimentalismo familiar, súbitas alterações de humor. Erotismo. Delírio onírico. Por conselho médico a paciente foi internada no Hospício Nacional e aí o médico firmou ainda o diagnóstico de histeria. As perturbações mentais acentuaram-se.

Dismenorreia com abundantes mênstruos. Ideias de perseguição claramente pronunciadas; o estado de alucinações auditivas e visuais continua. Onirismo e crises de confusão. Várias estereotipias. Decadência das faculdades mentais. Síndrome demencial acentuada.

Esta observação, um tanto resumida mostra-nos como as reações iniciais desta doente - crises nervosas, erotismo, onirismo, obsessões e tiques, durante muito tempo, conforme a velha escola, induziram a supor um caso de histeria ou histeroneurastenia.

O decurso, porém, engravescente até a demência, mostrou-nos a existência de uma falsa histeria com a qual a demência precoce começou sua marcha infeliz.

***

Obs. II - C.G.S.F., 22 anos de idade, mulato, brasileiro, empregado público, solteiro, entrou para o Hospício pela segunda vez em 1 de setembro de 1905.

Anamnese: Mãe morreu tuberculosa. Tem um irmão vivo. Pai morreu louco, segundo refere o paciente. No ano de 1899 teve 3 crises nervosas que conforme a descrição pareciam de natureza histérica. Até 16 anos de idade masturbara-se. As primeiras relações sexuais foram nesta idade. Nunca teve sífilis nem qualquer outra moléstia venérea. Hábitos alcoólicos moderados.

Exame somático: Fisionomia indiferente; estigmas físicos de degeneração. Orelhas pequenas e mal conformadas. Dentes viciosamente implantados e precocemente cariados. Língua saburrosa. Sensibilidade em suas várias manifestações, presente. Reflexos superficiais e profundos também presentes. Insônia. Não tem desorientação alo e autopsíquica. Tem consciência do lugar e do tempo. Humor vário. Alucinações auditivas e visuais (raras). Ideias religiosas.

Em resumo: ataques nervosos, ideias religiosas, alteração de humor, automatismo ambulatório, tudo isto fez acreditar no Pavilhão de Observações em um caso de histeria. O doente foi transferido para a Seção Pinel. Aceitei o diagnóstico de histeria.

O decorrer da doença veio demonstrar o falso diagnóstico. Sintomas claramente catatônicos vieram esclarecer o caso. O doente acha-se hoje em plena demência; é um típico caso de demência precoce.

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Obs. III - J.M. de O. 30 anos, pardo, brasileiro, natural do Rio de Janeiro, católico, lavrador, viúvo, instrução primária rudimentar. Enviado pela repartição central da polícia e procedente do Hospital da Misericórdia.

Resenha do Pavilhão de Observações - Apresentação calma, facies abatida; comemorativos de ataques; ideias hipocondríacas; insônia; perturbações da cenestesia; hábitos alcoólicos moderados; simulação; carência de anamnese; reflexo rotuliano exaltado; normais os plantares, abdominais, cremastéricos e pupilares; diminuído o faríngeo. Anestesia ocular e faríngea, talvez hipotermia nas pernas.

Pai falecido há 12 anos, era de boa saúde mental; mãe viva com 80 anos é de temperamento nervoso muito irascível; espancava os filhos, tinha rixa com o marido. Teve quatro abortos. Tinha seis irmãos, todos falecidos; um deles, Leontino era psicopata, com pronunciadas ideias hipocondríacas, suicidou-se por submersão em um riacho. Sua mãe, dois de seus irmãos, assim como outrora o doente eram polidáctilos. O paciente nasceu de parto feliz; sua primeira infância foi doente, teve sarampão; levado para casa de um facultativo em Angra dos Reis, que o educou, foi por ele despedido por causa de suas traquinagens. Durante os anos seguintes à sua puberdade, começou com caráter instável, ora era folgazão, organizava noitadas de pandegas em sua casa, ora era violento e irritadiço; amante das façanhas arriscadas, dos rasgos de coragem, por via dos quais era tímido entre os seus companheiros. Tornou-se bebedor moderado de substâncias alcoólicas. Era amigo de um tal Marcolino que por duas vezes esteve internado neste Hospício. Nunca teve moléstias venéreas. Casou-se aos 17 anos; tinha 5 filhos, dos quais 2 são vivos e robustos. Aos vinte e cinco anos teve febre tifoide. Voltando do trabalho à tarde, isto há três anos e meses sentiu uma dor pelas costas, que não mais deixou de o impressionar: andou de consulta em consulta, com médicos, charlatães, curandeiros, três meses depois ficou bom e voltou ao trabalho, às festas, à caçada: uma vez, depois, tornou sua moléstia anterior com o caráter hipocondríaco mais pronunciado, e depois da peregrinação pelos consultórios foi internado neste Hospício; por duas vezes tentou suicidar-se; da primeira com uma espingarda, que estava descarregada, da segunda por enforcamento, mas não tinha força para apertar o laço.

Apresentação calma, atitude de profundo abatimento: tórax e membros inferiores imóveis quando deitados; quando sentados, tórax curvado para a frente, membros abandonados ao próprio peso; só se mantém em pé apoiado sobre alguma coisa.

Fisionomia de dor intensa; comissuras labiais abaixadas, músculos frontais e superciliares contraídos, caídas as pálpebras superiores. Altura um pouco acima da média, musculatura pobre, sem haver atrofia; panículo adiposo exíguo. Pouca barba e pouco cabelo. Alguns estigmas físicos de degeneração. Orelha em asa, de lobos aderentes; simetria facial; abóbada palatina funda; dentes mal implantados. Exame dos aparelhos: agudeza visual diminuída, existência da faixa circulativa normal; constipação e anorexia; quinze movimentos respiratórios por minuto. Pulsação por minuto 66; nenhuma lesão orgânica. Impotência sexual. A sensibilidade é normal; não existem zonas histerógenas; ausente sinal de Romberg. Motilidade decrescente das considerações que fizemos a respeito de sua atitude.

Reflexos rotulianos normais, abdominais idem, plantares e cremastéricos um pouco diminuídos: faríngeo não pode ser examinado porque o abaixamento da língua provoca vômitos. Ao entrarmos no seu quarto de isolamento, vemo-lo na atitude já escrita; às vezes está gemendo surdamente. É indiferente à nossa presença. Tem noção de tempo, lugar e meio; sua memória é normal, sua inteligência não está afetada: é de baixo nível intelectual. Tem alucinações visuais e auditivas, não de caráter aterrorizador. Tem atenção voltada só para si, para os seus padecimentos. Determinações volitivas diminuídas quase ausentes, de conformidade com o seu sentimento de impotência. Seus sentimentos afetivos estão embotados. Tem notáveis alucinações cenestésicas de mistura com as ideias hipocondríacas: há uma porção de bichos que o devoram entre a pele e a carne; seus estão quase despregados do tronco; sua perna está reduzida a pele somente, portanto, não pode andar, não pode ficar em pé; seu coração está batendo no estomago. Está um cadáver. Não quer mais viver e pede insistentemente que lhe deem um veneno; não se suicida para não comprometer o Inspetor.

Ele é mesmo um miserável, por isso merecia o castigo; às vezes imputa seus males a três inimigos de uma maneira vaga. Fala arrastada, locução monótona, ansiedade.

Novembro - Tem passeado pelos corredores, a princípio por pedido, acompanhado, depois por sua própria vontade; continuam as ideias hipocondríacas e de suicídio. Em 20 de novembro pesou 57 quilos.

O doente suicidou-se com uma corda no pescoço.

Em resumo: ideias hipocondríacas, perturbações subjetivas de sensibilidade, comemorativos de ataques, anestesia ocular e faríngea, diminuição do reflexo faríngeo, ideias de negação parecendo simulação, levaram ao suposto diagnóstico de histeria. O meu diagnóstico foi de loucura maníaco-depressiva, estado melancólico.

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Além da demência precoce outras afecções mentais podem apresentar síndrome histroide ou falsa histeria.

No Congresso de neurologistas e psiquiatras da língua francesa que se realizou em Lausânia e Genebra Schnyder e Pailhas mais de uma vez referem-se à histeria sintomática que pode sobrevir na demência precoce, muito frequente diz o relator da questão, porque a demência precoce é uma moléstia da evolução, e é justamente neste momento que a histeria melhor aparece.

Schüle, Dejerine, etc. definindo a catatonia creem que esta síndrome sobrevém mais frequentemente em um fundo histérico.

Por outro lado segundo observações de Regis, em casos raros, a paralisia geral pode simular a histeria.4 4 Cit. de Raymond e Serieux, pág.141, Trat. de Med. de Brouardel, VIII vol.

Quantos casos de tumores cerebrais podem dar uma sintomatologia histeroide como nos refere Schnyder, Dupré etc.?

Vale a apena dar aqui o resumo da observação de um caso de tumor cerebral dos serviços dos Drs. H. Roxo e Carlos Sampaio em que a sintomatologia histeroide foi flagrante e cuja observação nos foi fornecida pelo prezado colega Ernani Lopes.

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Obs. IV - Leonor F. de S., branca, 37 anos, casada, brasileira, doméstica, deu entrada a 21 de dezembro de 1908 no Pavilhão de Observações.

Antecedentes hereditários - Pai falecido, ignora-se de que moléstia; a mãe teria sido alienada; uma irmã sofre de ataques que parecem histéricos.

Antecedentes pessoais - Infância sadia. Catamênio regular até o início da doença atual. Casou-se aos 14 anos, dando a luz, aos quinze anos, a um natimorto (parto anormal). Aos 16 anos enviuvou. Pouco depois, novo consórcio.

Há 3 ou 4 anos atrás, aparecem variados sintomas de nervosismo: "grande desanimo" , "intenso pavor" , "crises nervosas", "ataques", "alucinações visuais" , dormência nos dedos médios e indicador da mão esquerda. Passado um mês, foi repentinamente acometida de fortes contrações da região facial esquerda. Dois meses depois a "dormência" se tinha generalizado a todo o lado esquerdo, havendo desaparecido as contrações.

Estado presente - Apresentação calma; compleição regular; facies sofredora, hemiplegia braquicural esquerda, completa e flácida em absoluto; reflexo rotuliano esquerdo abolido, direito diminuidíssimo, reflexos aquileanos abolidos bilateralmente; reflexos plantares: à esquerda abolido, à direita, normalidade; reflexo masseterino presente; reflexos cutâneos abdominais abolidos; sinal de Argyll-Robertson; nem Babinski, nem clonus; reflexo faríngeo muito diminuído. Paresia facial esquerda inferior; estasibasifobia. Taquicardia (136 por minuto). Febrícula cotidiana (a temperatura sempre era alguns décimos mais alta na axila esquerda).

Incontinência habitual de fezes e de urina; enterite subaguda. Aparelho respiratório sem alterações. Fígado ligeiramente aumentado.

Sensibilidade - abolição da sensibilidade termotáctil algésica no membro inferior esquerdo. Ausência de linfocitose raquiana. Edema em todo o lado hemiplégico.

Sensibilidade geral exagerada; crises singultosas; colapsos cardíacos paroxísticos; anorexia; vômitos; emotividade exaltada; hipestesia ocular.

Em resumo: crises de nervos, sugestibilidade fácil, mutações de humor, perturbações sensitivo-sensoriais, etc., davam o cunho de um estado histérico, de modo a ser diagnosticada a doente por médicos distintos como histérica.

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Dupré chamou atenção para o caráter infantil dos pacientes de tumores cerebrais, puerilismo, diz o autor citado. É mais uma prova do estado histeroide desses doentes, porque sabemos que o caráter psicológico do histérico muito é análogo ao caráter infantil.

As demências orgânicas, os amolecimentos cerebrais podem trazer a persuasão em clínica de casos de histeria. É assim que logo após o ictus, despertam-se estados de nervosismo, muito semelhantes à histeria e que positivamente não pertencem a ela e sim às perturbações psíquicas das lesões de déficit existentes. A sífilis cerebral pode também despertar uma sintomatologia histeroide, como a clínica registra.

Mutatis mutandis, pode-se dizer o mesmo para as intoxicações. A seguinte observação serve de exemplo:

Obs. V - M.J., com 57 anos, de cor negra, brasileiro, trabalhador, casado, analfabeto, entrou para o Hospício Nacional de Alienados no dia 26 de maio de 1908.

Nota do Pavilhão de Observações - "É de 2a entrada. A 1a ocorreu em 09 de maio de 1908. Diagnosticou-se Histeria".

Não conheceu seu pai, não sabe de que faleceu ele. Sua mãe no último quartel de vida apresentava sintomas de alienação mental; certa vez desapareceu de casa e foi encontrada morta 5 dias depois. Um tio seu, sofria de ataques epiléticos. Aos 7 anos mais ou menos sofria de ataques parecidos com os do seu tio, de quem foram adquiridos, porque o doente e seu tio comiam nas mesmas vasilhas. Estes ataques desapareceram poucos anos depois. Gozava de boa saúde até há cerca de dois anos, época em que começaram os sinais (mencionados abaixo) da moléstia que o traz a este manicômio. No ano passado em Petrópolis, teve alucinações visuais; via um vulto branco, que voava a seu lado, ora atrás dele o seguia constantemente. Diz que até esta ocasião fazia largo consumo de aguardente, abandonando então estes hábitos. Em começo de maio, deste ano, teve uma crise de automatismo ambulatório: saiu de casa (rua das Laranjeiras) passou pelos quintais das outras casas, e recobrou a íntegra consciência no alto de um morro. Por isso foi mandado para o Pavilhão de Observações, donde teve alta no fim dos 15 dias, regressando dois dias após.

Apresenta-se calmo, fisionomia e humor sem particularidades interessantes. Estatura baixa; compleição forte. Estigmas físicos de degeneração. Normais os órgãos de vida vegetativa. Come e dorme bem. Tem oligúria e constipação do ventre. Nada anormal para o lado da sensibilidade objetiva e da motilidade. Círculo senil bilateral. Reação pupilar à luz, morosa. O doente tem noção de tempo e lugar. Memória regular. Afetividade e vontade boas. Seu nível intelectual é baixo; atribui seus fenômenos de parestesias a espíritos maus que lhe entraram no corpo; tem a pronúncia muito deturpada.

Nota-se o que os franceses chamam sensiblerie. Tem salivação exagerada, mas não retém a saliva na boca. São estes os únicos fenômenos objetivos que lhe notamos. Queixa-se das seguintes perturbações subjetivas da sensibilidade geral e especial: tem em todo o corpo e mormente no braço direito, sensações ora de grande calor e mesmo queimadura, ora de frio parecendo então que lhe deitam água nas espadas; sente passarem-lhe uns bichinhos pelo corpo; às vezes passa-lhe uma nuvem diante dos olhos obstando-lhe completamente a visão; tem alucinações auditivas. É nas ocasiões em que ele narra os sintomas acima, que se exageram as crises de sensiblerie. Ele responde às nossas perguntas com coerência, mas dubiamente e sem precisão, talvez por causa de seu nível intelectual.

Junho de 1908 - traz um lenço vermelho atado à cabeça para combater, diz, suas cefaleias. Certo dia abordou-nos para nos dizer que lhe tinham ido matar, pois fizera muitas maluquices em casa de seu patrão; tinha então acabado de ouvir as queixas de um alcóolico com mania de perseguição, seu vizinho de leito.

Teve alta, curado.

O doente foi diagnosticado por outros médicos como histérico porque apresentou perturbações parestésicas, crises de automatismo ambulatório, ausência de reflexo faríngeo, e comemorativos de ataques nervosos.

Ora, por um exame posterior e mais constante verifiquei que as queixas dele eram de caráter hipocondríaco, que os seus ataques foram outrora de epilepsia.

Evidentemente o preto era um degenerado inferior, alcoólico inveterado. O quadro alucinatório, vagamente persecutório, com algumas perturbações da memória indicam intoxicação etílica, dando a sintomatologia histeroide apenas esboçada.

Aí não se esgota a questão.

Quanta vez, loucos maníaco-depressivos, sobretudo na fase de exaltação, degenerados simples em delírios episódicos, são rotulados falsamente de histéricos porque apresentam, além da psicose fundamental uma sintomatologia histeroide?

O caso seguinte fornecido gentilmente pelo Dr. Carlos Sampaio Correia serve de prova a minha asserção:

Obs. VI - F.C.F., 26 anos, branca, solteira. Entra neste manicômio pela segunda vez, depois de já ter estado por duas vezes em uma casa de saúde desta Capital. Antecedentes neuropáticos na família. (Mãe - tentou por três vezes suicidar-se; prima-irmã - internada na Seção Morel). Na primeira infância - convulsões; na segunda - sarampo, varicela, paludismo. Por ocasião da primeira entrada notou-se o seguinte: noção completa de tempo, lugar e meio; atenção impossível de se fixar; percepção difícil justamente por causa da mobilidade da atenção; ideação rápida; agitação intensa, memória boa. No fim de poucos dias se dissipou este estado e a doente torna-se calma e pede alta que lhe é recusada. Tem ela nesta ocasião uma verdadeira crise histeroide de exibicionismo: atira-se ao chão, rasga as vestes, grita, chora e injuria as pessoas presentes. Notamos depois zonas hiperestésicas mamárias e ovarianas. Alguns dias passados, procurou-nos ela, perfeitamente calma, para pedir alta e nesta ocasião conta-nos que sempre teve humor irascível e que por diversas vezes tem sido sujeita as crises de que falamos.

Refere também que é perseguida e acusa-nos de injusto por mantermo-la aqui. Vai às oficinas de costura onde trabalha durante alguns meses; continuando bem o seu estado mental assinamos a sua alta. Passados alguns meses volta ela novamente a este estabelecimento em verdadeiro estado de excitação maníaca que desaparece para dar lugar ao exibicionismo exagerado e a sugestibilidade moderada. Não são por esta ocasião encontradas as zonas hiperestésicas de que falamos.

Depois de alguns dias de perfeita calma apresenta ela uma nova crise de agitação. Erotismo acentuado. Daí para cá continuamos a notar na doente de quando em quando verdadeiros estados maníacos de duração de alguns dias e nos intervalos observamos um estado mental particular, assim constituído: irritabilidade de humor, exibicionismo, sugestibilidade.

Neste estado é de inteligência perfeita, memória e afetividade boas, vontade fraca, atenção e percepção regular.

Foi estabelecido para esta doente o diagnóstico provisório de loucura maníaco-depressiva (síndrome histeroide).

O que se dava outrora com a paranoia dá-se agora com a histeria.

Nos manicômios, há 10 anos passados, tudo era paranoia: qualquer delírio mais ou menos sistematizado com ideias de perseguição ou grandeza era rotulado de paranoia; chamavam pois, paranoias primária, secundária, aguda, periódica, masturbatória - um horror!

Hoje com a separação de paranoia tipo Kraepelin, com a aparição da demência paranoide e das síndromes paranoides, o número de paranoicos de nosso Hospício restringiu-se de uma maneira espantosa.

A mesma reação há de se dar com a histeria.

Assim como há uma síndrome histérica pura, com os seus acidentes primários e secundários, reproduzíveis pela sugestão e curáveis pela persuasão, assim também existem fragmentos desta síndrome, mascarando perturbações orgânicas e funcionais, que estão ligados a afecções ou síndromes maiores e dominantes, e nos quais a persuasão não pode remover, porque não se prende à autossugestão e sim à causa principal.

Fato idêntico vemos nas intoxicações em que a sintomatologia é curada quando o tóxico é suprimido. Lembro o episódio de Charcot, que ao visitar uma mulher que diziam histérica, olhou para o vidro de absinto e disse - voilà l'hysterie.

É, pois, nesses e naqueles casos que há a sintomatologia histeroide, tão frequentes nas afecções orgânicas, nos idiotas, nos imbecis e nos degenerados sem rótulo.

Vejamos a observação seguinte:

Obs. VII - R.B.L., 32 anos de idade, português, branco. Servente de pedreiro, solteiro, analfabeto.

Antecedentes familiares - seu pai, que era alcoolista imoderado, faleceu há 15 anos mais ou menos de um insulto cerebral. Sua mãe goza de regular saúde. Sabe, não por ter presenciado, mas sim, porque lhe contaram, que uma sua irmã costuma ser tomada de crises histéricas. Tem um primo alienado.

Antecedentes pessoais - Quando criança teve ancilostomíase; mais tarde, na idade adulta teve concomitantemente impaludismo e febre tifoide. Confessa que abusava de bebidas alcoóli-cas. Há 3 anos começou a ser acometido de ataques que descreve do seguinte modo: qualquer contrariedade que sofre, provoca-lhe profundo choro, após o qual cai sem sentidos dando gritos agudos. Duram estes ataques 15 minutos mais ou menos. Desconhece o motivo porque foi internado neste estabelecimento. Conta que, estando em casa de uma sua irmã, à rua do Catete, foi preso sem saber por que razão por um policial e levado a uma delegacia de onde foi transferido para aqui. A última vez que teve ataque estava internado no Pavilhão de Observações.

Inspeção geral - apresenta-se calmo com fisionomia indiferente. É de altura um pouco abaixo da mediana e constituição física sofrível. Orelhas mal conformadas. Língua com tremores fibrilares, tremor das extremidades digitais. Dentes cariados. Ligeira assimetria facial.

Exame somático - língua ligeiramente saburrosa. Aparelho circulatório e respiratório normais.

Hiperestesia a sensibilidade geral - reflexos plantares, rotulianos, cremastéricos, abdominais e pupilares normais. O reflexo faríngeo também não apresenta alteração. Não há perturbações de motilidade.

Exame mental - tem noção do tempo, do lugar e do meio. Humor um tanto indiferente. A percepção um pouco demorada. Reações morosas. Baixo nível intelectual. A memória tanto dos fatos recentes como antigos está bem conservada. Não tem nem alucinações nem ilusões. Não manifesta delírio de espécie alguma.

Tentado a sugestão hipnótica não foi possível consegui-la. Na Seção Pinel o doente apenas tinha lágrimas e às vezes choro fácil com emotividade exagerada. Nos primeiros dias quando se falava da morte da sua irmã ele se debulhava em lágrimas; hoje este fato lhe é indiferente.

Outrora mandava-se-lhe chorar, com facilidade chorava. Hoje isto não é absolutamente conseguido.

O nível intelectual, como vimos muito baixo, e o espírito infantil dão a prova de debilidade mental, próximo da imbecilidade do paciente.

Uma objeção estou pressentindo: por que não se trata de uma associação de histeria com esses estados tóxicos ou mórbidos?

Por que não se trata de desenvolvimento dessas afecções em terrenos histéricos?

Tenho a responder:

1º O indivíduo até então não era histérico. Fora preciso uma demência precoce, um tumor cerebral, uma paralisia geral para desenvolver-se a histeria? É forçar muito a lógica.

2º Não é associação porque nem pela persuasão nem pelo isolamento conseguimos a cura da síndrome histeroide em questão. Assim, não vi, nos casos citados desaparecer a sintomatologia histeroide e a outra afecção conservar-se pura.

3º Na demência precoce a sintomatologia histeroide não é associação de histeria com a demência, porque antes do começo da moléstia o indivíduo não tinha manifestações puras da histeria; porque, bem apurados os acidentes, não são verdadeiramente histéricos; porque a sugestão não os reproduz nem os modifica; porque a persuasão não os remove e nem os cura.

Podemos aproximar do nosso raciocínio o que se dá com a paranoia e a demência precoce paranoide.

Ninguém pensou até agora que seja a paranoia que se associe à demência precoce para dar uma forma híbrida; é uma sintomatologia paranoide que vem imprimir uma fisionomia especial à demência precoce. Não se encontra a personalidade paranoica pura na demência precoce; é uma imitação, uma aproximação de delírios, da forma da paranoia que descreve Kraepelin e que aceito.

Logo, se me objetarem que a sintomatologia histeroide da demência precoce, da paralisia geral, é o resultado da associação da nevrose às afecções citadas, eu tenho direito de dizer que os delírios paranoides que surgem na demência precoce, na loucura maníaco-depressiva, na psicose tóxica alcoólica são associações da paranoia aos estados mencionados. Mas isto é tão absurdo que não vale a pena um comentário.

Poderão pensar que procuro banir as associações histéricas dos outros estados. Não!

Um indivíduo qualquer pode ser histérico e epiléptico; histérico somente; histérico e alcoolista, histérico e sifilítico; histérico e ter uma hemorragia cerebral. Nestes indivíduos a histeria pode ser verificada, isolada, curada ou não. É a histeria com seus caracteres próprios, definidos, perfei-tos, tanto quanto nos pode esclarecer a clínica. Mas ao lado destes histéricos perfeitos, natos ou adquiridos, quase sempre natos, há falsos histéricos, simples nervosos, instáveis, degenerados simples, sem rótulo, psicopatas, ciclotímicos, maníaco-depressivos elementares e que nada têm de histéria. Assim como, há verdadeiros e falsos neurastênicos, há verdadeiros e falsos histéricos. Assim como Pibram chama de reumatoides aos falsos reumatismos, Kraepelin, Moreira e Peixoto chamam de paranoides os ouropéis da paranoia, assim devemos admitir o verdadeiro histérico e o falsificado, a síndrome histeroide.

Como bem diz o Dr. Deny5 5 La Semaine Médicale, 1908. tratando da ciclotimia "não estamos mais nos tempos em que se classificava de histérica toda pessoa de temperamento mais ou menos estranho (bizarre), de humor constantemente oscilante, etc".

Ora positivamente não devemos estar mais neste tempo. E se seguirmos as ideias de Nissl, Babinski, Bernheim e outros autores modernos necessitamos de modificar ou desencravar do cérebro de muitos clínicos o hábito, pelo menor esforço, de diagnosticar, todo nervoso de histérico.

Desta comunicação podemos concluir:

Há na clínica uma histeria, caracterizada pela sintomatologia de origem autossugestiva e curável exclusivamente pela persuasão (pitiatismo).

Há uma síndrome, semelhando-se de alguma maneira ao tipo anterior, filiado a um estado orgânico ou funcional, incapaz de ser totalmente reproduzido pela sugestão e de ser curado pela persuasão. A esta síndrome proponho chamar de histeroide.

Agosto de 1908.

Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Medicina Legal, Rio de Janeiro, n.1-2, 1909, p.59-77

N.E. - Sobre este artigo, ver "Histeria e psiquiatria no Brasil da Primeira República", de Sílvia Alexim Nunes, neste número de História, Ciências, Saúde - Manguinhos.

  • 1
    Revue Neurologique, n. 8, ano XXI, abril 1908. Para maior desenvolvimento leia-se a Com. de Babinski à Sociedade de Neurologia, 7 de novembro , 1901 e o artigo Dutil e Laubry, Tr. de med. de Bouchard e Brissaud, v.1.
  • 2
    Revue Neurologique, 1908.
  • 3
    A. Austregesilo, Novas concepções sobre a histeria,
    Arq. Bras. de Psiq., 1908, vol. 12.
  • 4
    Cit. de Raymond e Serieux, pág.141, Trat. de Med. de Brouardel, VIII vol.
  • 5
    La Semaine Médicale, 1908.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010
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