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Delírio alucinatório crônico em um preto brasileiro, filho de africanos

FONTES

Delírio alucinatório crônico em um preto brasileiro, filho de africanos

Dr. Murillo de Campos

Encarregado da Seção Militar no Hospital Nacional de Alienados

Nos indivíduos pertencentes às raças primitivas, foi assinalada não só aqui como no estrangeiro a raridade de psicoses em que predominam os quadros delirantes, os distúrbios intelectuais, ao contrário das psicoses ricas em distúrbios da afetividade e da vontade, como a psicose maníaco-depressiva e a epilepsia, que constituem a grande maioria de seus casos.

A incultura secular das faculdades intelectuais, ocasionando o pseudoatraso mental das raças primitivas, que as impede de delirar, explica mais simplesmente o fato do que o conceito da diversidade étnica.

Ainda não há muito, a paralisia geral era tida como rara entre os pretos; hoje, não só no Egito como nos Estados Unidos e no Brasil, está provado que a sua frequência nos pretos se não é maior do que nos brancos, é todavia muito acusada, desde que haja identidade dos fatores etiológicos relativos ao indivíduo e ao ambiente social.

Da mesma forma é de supor que com a memória das condições de observação de tais indivíduos, sobretudo quando deslocados do habitat de origem, o mesmo suceda às outras psicoses, atualmente mais ou menos privativas da raça branca.

A observação que apresento oferece, neste particular, algumas circunstancias dignas de registro. Em suas linhas principais resume-se no seguinte:

V.A.J. preto, solteiro, de 64 anos, natural de São Salvador, sargento do Exército asilado, foi admitido no Hospital Central do Exército em 15 de abril de 1916.

Antecedentes hereditários - O avô paterno e o pai, africanos gegês, naturais de Angola, viveram na Bahia até idade muito avançada; a mãe, crioula, filha de africanos da mesma procedência, faleceu de "feitiço", aos 35 anos de idade. Apenas teve um irmão, falecido em tenra idade.

Antecedentes mórbidos pessoais - A varíola na infância. Cancros venéreos, ainda muito jovem, e, mais tarde, blenorragia acompanhada de conjuntivite e outras complicações oculares, do que resultou ficar cego do O.E. em 1896 e do O.D. em 1912. Consequentemente a estes fatos foi reformado e asilado em 1912.

Sempre muito moderado quanto ao uso de bebidas alcoólicas e há muitos anos deixou o hábito do fumo.

Estado somático - Indivíduo de constituição robusta, um tanto gordo, ótimos dentes, cabelos grisalhos, tendo as seguintes características antropométricas: - Altura - 1 metro e 67cm. - Perímetro torácico - 0,94cm - Peso - 77 kilos - Diâmetro anteroposterior máximo do crâ-nio - 0,205 - Diâmetro craniano transverso máximo - 0,129 - Circunferência da base do crânio - 0,58 - Índice cefálico (ultradolicocéfalo) - 62,9 - Diâmetro bizigomático - 0,14 - Diâmetro bimalaz - 0,13 - Diâmetro bigoniano - 0,105 - Altura da testa - 0,095 - Nariz altura 0,055, e largura - 0,051 - Índice nasal (platirrínio) 92,7.

Ausência de estigmas clínicos de lues. Reação de Wassermann, negativa no soro sanguíneo. Uretrite e Prostatite crônica. Cegueira de ambos os olhos.

História pregressa e moléstia atual - Em 1891, nesta Capital, depois de alguns acessos febris, cuja natureza não pode precisar, teve a primeira manifestação alucinatória: vira nitidamente: - "Deus rodeado pelos santos".

Tratado convenientemente, nada mais experimentou até o ano de 1900, quando ainda nesta Capital, ao acordar um dia, sentiu-se "magnetizado" e impelido para a rua, a despeito das poucas vestes em que ainda se encontrava. Por esse motivo foi preso e recolhido à enfermaria por espaço de alguns dias.

Em 1912, já cego de todo, certa noite, foi despertado por "Nosso Senhor", que lhe disse algumas palavras em latim e desapareceu.

Finalmente baixando ao Hospital Central para tratar-se do incômodo das urinas, passava regularmente, quando num dos últimos dias de Maio de 1916, sentiu-se "transportado a um local belíssimo, onde se achava reunido um congresso de santos".

Desde então passou a apresentar humor satisfeito, eufórico, deixando escapar repetidas exclamações: - "Não foi pelo que vi!" - "Servi-me da fé!" - "O pensamento do mistério é um grande pecado!".

As alucinações visuais tornaram-se frequentes, coincidindo com rebelde insônia: - "Nada vejo deste mundo, vejo para cima, vejo as belezas divinas".

Raramente estes distúrbios deixavam o motivo religioso, e quando isso acontecia referiam-se à visão de palácios, cidades de mármores, florestas espessas.

De qualquer forma, as alucinações exigiam-lhe muita atenção e fixidez do olhar, além de silêncio.

Num dos episódios alucinatórios últimos, ao ver o "Senhor", este incubiu-o da missão regeneradora da humanidade, sua preocupação, daí por diante, de todos os dias. Neste propósito, tencionava aperfeiçoar os seus conhecimentos sobre espiritismo - "nossa verdadeira religião" - e, destarte, chegar também a encontrar a sua progenitora, falecida em 15 de setembro de 1891 e nessa época em segunda encarnação.

Ao denunciar estes objetivos, mostrava-se inquieto, cheio de angústia, pronto a dar-lhes início, pois, não se cansava de repetir, não era "nenhum ambicioso vulgar".

Quando as alucinações tornavam-se escassas ou muito espaçadas, agravava-se o seu estado de ansiedade, ao mesmo tempo que se sentia preso de ideias desagradáveis que muito o contrariavam. Assim o de agredir "Nosso Senhor", embora convencido de que isto não passava do "pensamento", o levava a constantes penitências, de joelhos horas e horas, junto do oratório.

Outras eram ideias de atear fogo à enfermaria e mais raras as de natureza erótica.

Aliás, estava, há muito, convencido de que estes "maus pensamentos" provinham da alimentação "envenenada" que lhe era fornecida. Certos dias, por isso, recusava os alimentos, e, em outros, provocava o vômito, após a sua ingestão.

Mostrava-se bem orientado e não acusava enfraquecimento da memória.

Nível intelectual, acima do dos indivíduos de sua condição social.

Ao ter alta do Hospital Central em novembro de 1916, como ao voltar, pouco depois, e até a época de seu falecimento em agosto de 1921, em consequência de crônicos distúrbios urinários, persistiram as alucinações visuais, embora sem despertar as mesmas reações emotivas. Também não discorria com o mesmo calor sobre a sua missão regeneradora. Verdade é que já não percebia "vultos animados" - os santos - mas apenas "vastos salões de amplas janelas", suntuosos edifícios ou extensos bananais.

Arquivos Brasileiros de Neuriatria e Psiquiatria, Rio de Janeiro, 1.-2. sem. 1924, p.49-53

N.E - Sobre este artigo, ver "O degenerado", de Octavio Domont de Serpa Jr., neste número de História, Ciências, Saúde - Manguinhos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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