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Os trópicos na rota do Império britânico: a visão de Mungo Park sobre a África em fins do século XVIII

Resumos

O jovem médico escocês Mungo Park chegou à África em 1795, aos 23 anos, com uma missão tão específica quanto complexa naqueles tempos: percorrer o curso do rio Níger. Em 1799, o relato dessa jornada veio a público em uma publicação que vendeu 1.500 cópias em apenas um mês, estimulando o aparecimento de mais duas edições da obra no mesmo ano e sua tradução para o francês e o alemão no ano seguinte. Neste artigo, examina-se a narrativa de Mungo Park considerando-se as relações entre trópico, ciência e viagem nos primeiros tempos do expansionismo inglês sobre o interior da África.

trópicos; narrativa de viagem; Mungo Park (1771-1805?); African Association


The young Scottish physician Mungo Park, aged 23, arrived in Africa in 1795 with a mission as specific as it was complex in those bygone days, namely to travel the entire length of the River Niger. In 1799, the story of this journey was published in a book that sold 1500 copies in the first month alone, with two further editions published that same year, as well as the translation of the work into French and German the following year. In this article, the narrative of Mungo Park is examined by taking due consideration of the relationship between the tropics, science and travel in the early days of British expansionism into the heart of Africa.

tropics; travel narrative; Mungo Park (1771-1805?); African Association


ANÁLISE

Os trópicos na rota do Império britânico: a visão de Mungo Park sobre a África em fins do século XVIII

Larissa Viana

Professora adjunta do Departamento de História/Universidade Federal Fluminense. Rua Álvares de Azevedo, 121/1202, 24220-020 - Niterói - RJ - Brasil, lviana@urbi.com.br

RESUMO

O jovem médico escocês Mungo Park chegou à África em 1795, aos 23 anos, com uma missão tão específica quanto complexa naqueles tempos: percorrer o curso do rio Níger. Em 1799, o relato dessa jornada veio a público em uma publicação que vendeu 1.500 cópias em apenas um mês, estimulando o aparecimento de mais duas edições da obra no mesmo ano e sua tradução para o francês e o alemão no ano seguinte. Neste artigo, examina-se a narrativa de Mungo Park considerando-se as relações entre trópico, ciência e viagem nos primeiros tempos do expansionismo inglês sobre o interior da África.

Palavras-chave: trópicos; narrativa de viagem; Mungo Park (1771-1805?); African Association.

Planos e rotas de viagem

"[Durante dezoito meses] não vi um só rosto cristão, nem ouvi, por uma vez sequer, o maravilhoso som de meu idioma natal" (Park, 2002, p.330).1 1 No original: "I had not beheld the face of a Christian, nor once heard the delightful sound of my native language". Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre. Foi com estas palavras que o médico escocês Mungo Park buscou traduzir, para seus leitores, a sensação de ser um estrangeiro em viagem de exploração ao interior do continente africano. Park chegou à África em 1795, aos 23 anos, contratado pela African Association - uma sociedade dedicada a promover expedições de exploração das riquezas comerciais do interior daquele continente - para uma missão tão específica quanto complexa naqueles tempos: percorrer o curso do rio Níger.

Após chegar a Jillifree, no Reino da Barra, Park seguiu viagem para a cidade de Pisania, entreposto dominado pelos ingleses às margens do rio Gâmbia e local de residência do também inglês John Laidley, a quem havia sido recomendado. Entre julho e dezembro de 1795, o jovem explorador permaneceu em Pisania preparando-se para a viagem, com uma rotina que incluía a tarefa de aprender um pouco do idioma africano falado em partes de seu percurso - a língua dos povos Mandinga2 2 Mandinga foram os povos que deram origem ao império do Mali, e receberam influência islâmica desde o século XII (Costa e Silva, 2002, p.63). - e com o intuito de adaptar-se ao clima local no período mais temido das chuvas. Durante essa adaptação, Park sofreu ataques de febre em agosto e setembro, incidentes que o levaram a prolongar sua estadia junto ao doutor Laidley até o fim do ano e a consolidar a decisão de partir na estação mais seca, de modo a evitar o maior risco de doenças durante a jornada.

A rota percorrida por Park entre dezembro de 1795 e junho de 1797 teve como limites os paralelos 120 e 150 de latitude ao norte do Equador, na região do Sudão Ocidental, dominada por diferentes potentados locais. O rio Níger, destino da expedição, corre para o interior, em direção ao deserto, e na altura do golfo da atual Nigéria faz uma curva de 900 para o sul, rumo ao Atlântico, onde deságua em um delta monumental. Essa região, conhecida como África subsa-ariana ou África negra, havia testemunhado um processo de islamização marcado pela adoção, em maior ou menor grau, de traços religiosos e culturais vindos das sociedades árabes.

Os povos da zona dos rios Senegal e Níger incorporaram traços islâmicos a partir do século XI, quando estavam ligados ao norte da África por caravanas de camelos e comerciantes que atravessavam o Saara levando mercadorias e idéias muçulmanas. Já no século XVIII, época da expedição de Park, a área apresentava mudanças significativas, uma vez que o processo de islamização havia recuado e as religiões tradicionais voltaram a florescer ao lado do Islã (Mello e Souza, 2006; Lovejoy, 2002, cap.2). Reinos locais voltados para as atividades agrícolas e para o pastoreio e caracterizados por hibridismos em termos religiosos e culturais formaram, assim, o cenário da rota percorrida pelo médico e explorador escocês.

Mungo Park deixou a cidade de Pisania acompanhado apenas de um intérprete, chamado Johnson, e de um carregador, Demba. Ao chegar a Silla, ponto de onde retornou, estava sozinho e era dado como morto por seus conterrâneos. O que ocorrera durante a jornada ao interior da África? Por que Mungo Park retornara antes de chegar ao delta do Níger, seu destino inicial? Essas questões, pode-se admitir, inquietavam os contemporâneos de Park, que não tardariam a ter em mãos o livro que narrava a expedição. Em 1799, o relato da jornada pelo interior da África foi publicado e vendeu 1.500 cópias em apenas um mês, estimulando o aparecimento de mais duas edições no mesmo ano e a tradução do texto original para o francês e o alemão, no ano seguinte (Pratt, 1992, p.74).

Neste artigo, meu objetivo é examinar a narrativa de Mungo Park a partir de três questões que se conjugam para formar um painel das relações entre trópico, ciência e viagem nos primeiros tempos do avanço imperialista inglês sobre o interior da África. Nesse sentido, analiso inicialmente o caráter geral do relato de Park, buscando compreender sua vinculação ao gênero da survival literature e trato, em seguida, das especificidades da visão que o autor construiu sobre os trópicos e expressou em sua narrativa. Devo lembrar, previamente, que os argumentos ambientalistas estavam em grande voga na Europa nos tempos de Park, reforçando a ideia de que as sociedades eram moldadas, em grande medida, pelas restrições e possibilidades dos ambientes físicos. Cabe perguntar-nos, então, sobre os paradigmas e as visões então vigentes acerca da África tropical, como também sobre a originalidade de Park ao tratar dos aspectos tropicais das áreas por ele percorridas.

Para concluir, analiso o breve relato da segunda viagem de Park à África, cujo desfecho custou-lhe a vida. O objetivo, nesse ponto, é delinear o contexto de crise de legitimidade do Império inglês em fins do século XVIII, bem como as renovadas expectativas que esse mesmo Império acalentou em relação ao interior da África, cujo domínio dependia, largamente, do controle da barreira interposta pelas doenças.

Modos de ver: viagem, ciência e experiência em Mungo Park

Uma característica notável da literatura de viagem reside no fato de ela ser produzida em um espaço que Mary Louise Pratt denominou zona de contato, expressão usada para qualificar as regiões onde pessoas geográfica e historicamente distintas se encontram, estabelecendo relações que podem ser tanto superficiais quanto indicativas de uma perspectiva de interação. Pois se os relatos de viagem nos colocam, em geral, diante de experiências intensamente vividas ou superficialmente observadas, não é demais lembrar a inexistência de percepções objetivas (Pratt, 1992).

Desde fins do XVIII, a preocupação com a veracidade tornou-se um dado fundamental da narrativa de viagem e, consequentemente, da postura do narrador. Livro de notas e lápis à mão, o viajante ilustrado deveria treinar a 'escrita em trânsito', explorar detalhes, recolher provas. Ao estilo simples de quem registra o que vê no calor da hora, deveria somar-se uma infinidade de desenhos, mapas, cartas e materiais coletados que desse crédito à experiência relatada. Tal critério de observação, ao que parece, não se limitava aos cientistas ocupados em inventariar espécies e catalogar paisagens. Outros viajantes, fossem eles residentes temporários ou apenas visitantes, podiam não dispor do rigor dos cientistas, mas nem por isso deveriam ser simples espectadores. Havia, certamente, mais espaço para a reflexão estritamente pessoal nesse tipo de relato; mesmo dele, no entanto, as convenções do século e do gênero exigiam um olhar atento, ainda que de passagem.3 3 Sobre o tema da viagem nos séculos XVIII e XIX, ver Wolzettel, 1996; Sussekind, 1990; e Kury, 2001.

No caso da literatura de viagem dos séculos XVIII e XIX, uma das primeiras noções a serem observadas é o próprio critério de objetividade que a animava, traduzido pela pretensão de relatar fielmente aquilo que era visto. Uma primeira leitura, entretanto, é suficiente para notarmos a diversidade de referências da qual um relato de viagem é resultado. Nesse sentido, à memória do viajante somava-se uma infinidade de leituras anteriores sobre o país, imagens preconcebidas e referências estrangeiras acerca de experiências locais. Como interrogar, então, tal tipo de testemunho? A resposta é simples, pois na verdade se aplica a qualquer tipo de fonte analisada pelo historiador: é preciso interrogar o testemunho dos viajantes a partir de sua lógica social. Melhor dizendo, historicizar uma narrativa, seja qual for a sua natureza, pressupõe inseri-la no movimento da sociedade, investigar suas redes de interlocução e a forma como constitui ou representa a sua relação com a realidade social.

Ora, para historicizar a narrativa de Mungo Park seria importante ter em mente dois acontecimentos que antecederam o nascimento de nosso explorador, mas sem dúvida relevantes para a compreensão dos modos de narrar próprios aos viajantes do século XVIII. Ambos ocorreram em 1735, marcado no campo das ciências pela Expedição La Condamine e pela publicação do Systema naturae, obra do naturalista sueco Carlos Lineu.

O geógrafo Charles de La Condamine foi um dos principais líderes de uma expedição científica internacional destinada a responder uma questão polêmica entre cientistas ingleses e franceses daquela época: seria a Terra uma esfera, como supunham os franceses, ou esférica e achatada nos pólos, como defendiam os ingleses? Divididos em duas equipes sob liderança francesa, diversos cientistas partiram para o Ártico e a América do Sul, sendo esta última a região de destino de La Condamine. Embora tenha se tornado um pesadelo político, com suspeitas de espionagem entre franceses e seus anfitriões espanhóis (que então dominavam as Índias Ocidentais), a Expedição La Condamine obteve resultados consideráveis no campo político-científico. O primeiro deles, ressaltado na interpretação de Mary Louise Pratt (1992, cap.2), seria a construção de uma espécie de consciência planetária, marcada por uma nova orientação de exploração científica voltada para estabelecer parcerias erguidas acima das rivalidades internacionais. Outros aspectos, estes realmente bem-sucedidos no âmbito da Expedição La Condamine, foram a extensa produção de narrativas científicas resultantes da viagem e o eventual recurso a um novo gênero de escrita exploratória, a survival literature. Esse gênero, presente na escrita do próprio La Condamine, introduzia os temas do perigo, das dificuldades, das maravilhas e curiosidades da viagem ao lado dos dados científicos propriamente ditos, atraindo um ávido público leitor.

Enquanto a exploração científica se tornava um tema de interesse - e as narrativas de viagens desse tipo eram consumidas por leitores europeus -, um outro tipo de tradição de escrita científica começava a surgir na cena europeia. A inspiração, nesse caso, vinha do jovem naturalista Lineu, criador de um esquema de classificação da natureza que pretendia ordenar o caos do mundo natural ao fornecer modelos de nomenclatura botânica e sistematização de dados coletados para cientistas de diferentes nacionalidades. A partir da segunda metade do século XVIII, e sob influência de Lineu, muitos exploradores engajaram-se no projeto da história natural e da narrativa naturalista, animado sempre pela coleta de espécies, montagem de coleções e reconhecimento de variedades ainda desconhecidas.4 4 Sobre o naturalista sueco, ver Koerner,1996.

Como posicionar a narrativa de Mungo Park em meio a esses modos de escrita e observação emergentes no século XVIII? O relato do jovem médico escocês, originalmente intitulado Travels in the interior districts of Africa performed under direction and patronage of the African Association in the years 1795, 1796 and 1797, foi publicado em Londres, em 1799, com o estilo típico da survival literature. Conhecer um pouco dos anos de formação desse jovem, assim como as condições de sua partida para a África, é fundamental para compreender o gênero narrativo de seu relato e, por conseguinte, sua própria jornada.

No outono de 1788, aos 17 anos, Mungo Park iniciou seus estudos de medicina na Edinburgh University, onde desenvolveu uma inclinação especial para a botânica, então parte do currículo da formação médica. Seu cunhado, o botânico autodidata James Dickson, introduziu-o nos círculos científicos britânicos e apresentou-o a Joseph Banks, cofundador da Linnaean Society, criada em 1788 em homenagem ao naturalista sueco. Graças a uma indicação de Dickson, Mungo Park foi eleito membro associado daquela sociedade em 1792, apenas um ano antes de completar os estudos em medicina e partir para Sumatra como médico assistente no navio Worcester, no qual também foi encarregado de pesquisa botânica e zoológica.5 5 As informações biobibliográficas sobre Mungo Park aqui apresentadas baseiam-se na introdução de Bernard Waites para a edição de 2002 do livro de M. Park.

Em 1794, de volta a Grã-Bretanha e sem perspectivas profissionais imediatas, Park ofereceu seus serviços de explorador a African Association, na qual foi aceito por ter educação médica, conhecimentos de geografia e história natural e por apresentar a requerida capacidade no uso de instrumentos de precisão para observação das áreas a serem exploradas. African Association era o nome abreviado da Association for Promoting the Discovery of the Inland Parts of the Continent of Africa, também fundada em 1788 por Joseph Banks e um grupo de ricos patronos ingleses da ciência. O objetivo central dessa sociedade era promover expedições de exploração das riquezas comerciais do interior da África, região essencialmente desconhecida pelos europeus durante a era do tráfico atlântico de escravos (Curtin, 1998, p.130). Mungo Park era o quarto explorador recrutado pela African Association com a tarefa de determinar o curso completo do rio Níger e visitar a lendária Tombuctu, além de recolher informações detalhadas de todas as áreas percorridas. Diante do insucesso das três expedições anteriores, a viagem de Mungo Park pode ser considerada um êxito: ele percorreu o rio Níger até a cidade de Silla e de lá retornou ao rio Gâmbia - o início da jornada -, por acreditar que, se seguisse adiante, suas descobertas desapareceriam com ele: "Abatido pela doença, exaurido pela fome e a fadiga, quase nu e sem qualquer objeto de valor com o qual pudesse obter provisões ... eu estava convencido ... de que os obstáculos para o avanço da jornada eram intransponíveis" (Park, 2002, p.195).6 6 No original: "Worn down by sickness, exhausted with hunger and fatigue, half naked and without any article of value by which I might procure provisions ... I was convinced ... that the obstacles to my further progress were insurmountable".

A descrição detalhada das dificuldades e maravilhas experimentadas ao longo da viagem pelos rios Gâmbia e Níger é recheada de episódios que fizeram do relato de Park um texto vinculado à tradição da survival literature, como mencionei. Mesmo possuindo as qualificações apropriadas a um explorador naturalista - era treinado em botânica, lembremos -, Park optou por uma narrativa que explorava a aventura e fez sucesso entre os leitores oitocentistas. Em 1799, quando o livro chegou ao público, soube-se que a viagem de Park transcorreu em clima de forte tensão em inúmeros momentos: foi roubado várias vezes, atacado pelos povos Fula, mantido cativo no campo mourisco de Benowm, hostilizado como espião em terras dos Bambara, além de ter passado fome e privações em todo o percurso. Como observa Alberto da Costa da Silva (2002, p.158), a crença no europeu canibal e de que ele usaria o sangue dos negros para tingir roupas ou preparar vinho tinto persistiu em muitas partes da África, desde o século XVI até pelo menos fins do século XIX. O relato de Park, nos últimos anos do Setecentos, ressalta muitas vezes essa aparente desconfiança dos africanos em relação aos ingleses, mesmo se tratando de um viajante solitário.

Mas Park sobreviveu à jornada, retornou e relatou 'o que viu', supostamente como convinha às convenções de seu tempo. E ainda que seu relato se distancie da narrativa naturalista, em voga desde a maior difusão do Systema naturae, é interessante explorar a visão que ele constrói sobre os trópicos nas entrelinhas da descrição de suas aventuras. Essa visão é reveladora das ambiguidades experimentadas pelos exploradores da África, levados a lidar com visões concorrentes sobre o status dos trópicos na segunda metade do século XVIII. Que visões eram essas?

Mungo Park e a visão da África tropical

Para um viajante como Mungo Park, médico, letrado e membro de uma sociedade científica de prestígio, a visão dos trópicos dificilmente seria balizada apenas pela observação empírica. Como afirma Nancy Stepan (2001, p.11), a natureza tropical, tantas vezes descrita pelos europeus desde o século XVI, é uma construção imaginativa e empírica a um só tempo. No limiar do século XVIII, quando Park deixou a Inglaterra rumo ao interior da África, havia pelo menos dois grandes 'modelos' a partir dos quais a natureza tropical poderia ser representada.

O mais conhecido desses 'modelos' veio à luz em meados do século XVIII, com a tese de Georges-Louis Leclerc Buffon (conde de Buffon) sobre a debilidade ou imaturidade do continente americano. A Histoire naturelle, publicada a partir de 1749, lançava uma oposição entre o Velho e o Novo Mundo, na qual restava ao segundo uma posição largamente desfavorável. Para o naturalista francês, a natureza e o homem americanos eram diferentes e não raro inferiores a dos antigos continentes. A natureza hostil, os animais pequenos, o aspecto pantanoso e úmido concorriam para formar uma visão da pretensa degradação do ambiente americano. O homem nativo das Américas, ainda de acordo com o naturalista, seria igualmente débil em sua constituição e potencialidades; fracos, estéreis e imaturos, os nativos americanos dificilmente seriam tocados pelos ares da civilização.

Para o historiador Antonello Gerbi (1996, cap.1), a obra de Buffon é um marco fundador do eurocentrismo na ciência da natureza que se desenvolveu a partir do Setecentos. Ao mesmo tempo que a idéia de Europa se tornava mais plena e completa, o Novo Mundo consolidava-se, sob o ponto de vista de diferentes intelectuais, como espaço de degeneração e suposta inferioridade. A respeito das hierarquias entre velhos e novos mundos, Gerbi observou outro dado notável: à medida que a Europa política e civil se definia em oposição à África, à Ásia e à América, a Europa física se solidarizava com os outros continentes do Velho Mundo. Ora, esse esquema nos permite supor que as visões do Éden tropical e da natureza paradisíaca - muitas vezes acalentadas pelos exploradores da América7 7 A esse respeito, ver Holanda, 1994. - perdiam terreno, sob o ponto de vista da representação estética e das narrativas sobre o Novo Mundo, a partir do século XVIII. Já o continente africano, de acordo com o esquema proposto por Gerbi, gozaria, no mesmo século XVIII, de um vínculo positivo com a Europa em termos de natureza, por serem ambos partes do Velho Mundo.

Ao lado das polêmicas entre o novo e o antigo, que conjugavam noções da história natural e da antropologia, uma visão dos trópicos em fins do século XVIII poderia ser moldada também pelo campo da medicina e das teses ambientalistas. Como afirmou Stepan (2001), nesse período a medicina testemunhou um revival da clássica abordagem geográfica da doença, em que se buscava explicar a morbidade em termos de diferentes localidades e condições climáticas favoráveis ao aparecimento de determinadas enfermidades. Até a emergência da teoria dos germes, na segunda metade do século XIX, a perspectiva miasmática e ambientalista sobre a doença era dominante. Entre o final do século XVIII e o início do século XIX, o termo geografia médica começou a ser usado por aqueles que produziam trabalhos e descrições das doenças associadas a diferentes localidades e condições ambientais (Meade, Earickson, 2005). Tratava-se, na verdade, de um revival do pensamento hipocrático, que trouxe renovada ênfase à interdependência entre clima, topografia e saúde. Sob a perspectiva hipocrática, tal como apreendida por médicos do século XVIII, havia paralelos entre as condições ambientais (como calor e umidade, por exemplo), as qualidades do corpo e o surgimento de doenças.

A própria cartografia médica originou-se nessa época, quando mapas de doenças começaram a ser desenhados com base em convenções visuais carregadas de mensagens médicas e políticas. Tais mapas traçavam geralmente o movimento de uma doença - febre amarela, por exemplo - em uma localidade específica, estabelecendo conexões entre certas doenças e determinadas condições geográficas (Stepan, 2001, p.159). Em 1787, sinalizando mudanças recentes no campo da medicina e da política, utilizou-se pela primeira vez o termo doença tropical em um tratado médico inglês, indicando uma associação especial entre as doenças e o clima quente de determinadas áreas.8 8 A expressão doença tropical parece ter sido usada pela primeira vez por Benjamin Mosely, em A treatise on tropical diseases: on military operations and on the climate of the West Indies, publicado em Londres em 1787. O uso da expressão só se generalizaria mais tarde, nas últimas décadas do século XIX.

No campo médico, tal associação começou a aprofundar-se a partir de meados do século XVIII em relação ao continente americano e ao Caribe, considerados tropicais por médicos europeus que começavam a articular suas idéias sobre o caráter e as especificidades das doenças encontradas na região. Mais tarde, por volta de 1830, Índia e África passaram a ser consideradas tropicais também em termos das características especiais das doenças que ali se desenvolviam (Harrison, 1999).

Ainda no campo das teses ambientalistas, em grande voga no século XVIII, devemos lembrar o impacto intelectual causado pela publicação de O espírito das leis, clássico do Iluminismo surgido em 1748. Nesse livro, Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu, teceu argumentos persuasivos para seus contemporâneos a respeito dos efeitos benignos e malignos dos climas sobre as formações sociais e culturais. Para Montesquieu, o "império do clima era o primeiro e mais poderoso de todos os Impérios" (citado em Arnold, 1996, p.21). Na visão proposta pelo barão francês, Ásia e Europa encontravam-se no centro do debate: a Ásia, dita extrema no clima e na topografia, teria produzido uma sociedade despótica, servil e pouco mutável, ao passo que a Europa, mais suave no clima, era representada também como região mais moderada nos sistemas de governo e na legislação. Ao extrair conclusões morais e políticas dos argumentos ambientalistas que circulavam na Europa setecentista, Montesquieu estabeleceu contrastes no interior do Velho Mundo (posição contrária a de Buffon, deve-se registrar), sem trazer a África, porém, para o centro do debate.

Assim, o limiar do século XVIII, época da primeira expedição de Mungo Park ao interior da África, parecia guardar uma certa ambiguidade em relação ao status tropical desse continente. Certamente, a África era tropical em termos da radical alteridade ali percebida pelos europeus, que entravam em contato não só com a natureza mas também com a população local - alteridade esta reivindicada, aliás, como uma das motivações para o tráfico de escravos. Por outro lado, a África era parte do Velho Mundo e até a primeira metade do século XIX não era tão frequentemente considerada um continente pestilento, sendo essa uma imagem tropical inicialmente mais identificada à América.

A narrativa de Park sobre os trópicos africanos traduz alguns aspectos dessa ambiguidade própria da virada do século XVIII ao XIX. É preciso lembrar que o relato foi publicado sob os auspícios da African Association, cujo objetivo central, entre outros, era convencer investidores europeus sobre as potencialidades econômicas e comerciais do continente africano. Em muitos episódios nosso explorador reconhece-se castigado pelos rigores da fome, do clima, das febres, mas quase sempre oferece ao leitor um desfecho no qual as qualidades positivas das terras visitadas compensam as dificuldades identificadas aos trópicos. Após ter escapado do cativeiro mourisco no território de Benowm - no limite ao sul do deserto de Saara -, Park seguiu viagem pela floresta sem qualquer provisão de comida ou água, na expectativa de alcançar alguma cidade no Reino dos Bambaras. Os castigos do clima quase o impediram de seguir adiante: "Pouco depois do meio-dia, quando o calor escaldante do sol refletia-se com violência redobrada a partir da areia quente, e o distante cume da colina, visto através do vapor ascendente parecia mover-se e flutuar ... eu desmaiei de sede ..." (Park, 2002, p.161-162).9 9 No original: "A little after noon, when the burning heat of the sun was reflected with double violence from the hot sand, and the distant ridges of the hill, seen through the ascending vapour, seemed to wave and fluctuate ... I became faint with thirst ...".

Acreditando estar próxima a hora da morte e vendo-se diante de uma tempestade de areia, Park encontrou conforto em uma pequena cabana de uma aldeia dos Fula, onde uma mulher de "olhar maternal" estava sentada fiando algodão. Afastando Park dos rigores da wilderness10 10 O conceito de wilderness perpassa todo o relato de Park, remetendo sempre aos rigores e às dificuldades próprias de um território tropical e selvagem aos olhos de um europeu. Para o autor, porém, a wilderness é muitas vezes compensada pela ação redentora de mulheres africanas, que o socorrem em situações ameaçadoras ou perigosas. , essa criatura 'maternal' convidou-o a entrar, em língua árabe, e ofereceu um prato de kouskous ao viajante e algum milho para o cavalo, tornando o percurso menos penoso. Seguindo a jornada, outro exemplo da diligência de Park em convencer seus leitores sobre o caráter 'civilizado' da África pode ser encontrada na primeira descrição que ele faz do rio Níger, observado a partir da cidade de Sego: "A visão dessa grande cidade, as numerosas embarcações no rio, a multidão e o bom estado dos campos que a circundavam, uniam-se para formar um indício de civilização que eu pouco esperava encontrar no coração da África" (Park, 2002, p.180).11 11 No original: "The view of this extensive city, the numerous canoes upon the river, the crowded population and the cultivated state of the surrounding country, formed altogether a prospect of civilization and magnificence which I little expected to find in the bosom of Africa".

Ao considerar detidamente o clima, a saúde e as doenças das regiões percorridas, Park manteve-se fiel à perspectiva mencionada, destacando preferencialmente os aspectos positivos. Embora reconhecesse que a estação das chuvas, de junho a novembro, era particularmente perigosa e pouco salutar para os europeus, o jovem médico preferiu ressaltar os efeitos saudáveis do harmattan, vento que corre no sentido norte-leste e "provoca uma extraordinária mudança na feição do território dos Mandinga" (Park, 2002, p.239-240).12 12 No original: "When the wind sets in from the north-east it produces a wonderful change in the face of the country...". Esse vento seco, segundo Park, tinha a reputação de ser muito benéfico, sobretudo para os europeus, que recuperavam a saúde durante essa estação. Ele próprio diz ter experimentado pronto alívio das febres que o afligiram (em Pisania e Kamalia) durante o harmattan. Nas palavras de Park, a estação seca era a possibilidade de vida saudável após o desconforto das chuvas: "De fato, o ar durante a estação chuvosa é muito carregado pela umidade ... mas este vento seco estimula os corpos antes relaxados, traz uma disposição animada, e até torna a respiração agradável ..." (p.240).13 13 No original: "Indeed, the air during the rainy season is so loaded with moisture ... but this dry wind braces up the solids which were before relaxed, gives a cheerful flow of spirits, and is even pleasant to respiration ...".

A única parte do relato especificamente dedicada às doenças ocupa apenas três páginas e é reveladoramente intitulada "Health and disease", pois a visão de Park busca acentuar sempre as potencialidades locais dos africanos, inclusive no que diz respeito à saúde. Mesmo notando que os africanos mandinga raramente viviam até idades elevadas, o explorador escocês afirmou que poucas doenças os atingiam. Febres, disenteria, framboesia, elefantíase e lepra seriam as afecções prevalentes entre os Mandinga. A explicação do autor para número supostamente pequeno de doenças entre os africanos repousava na dieta simples e no modo de vida ativo, que os preservariam das desordens na saúde causadas pelos excessos do luxo e da preguiça. Assim, a narrativa de Park de algum modo antecipou, em fins do século XVIII, uma noção presente em intérpretes do continente em épocas posteriores, segundo a qual o impacto do colonialismo do século XIX foi dramático e modificou o ecossistema africano a ponto de criar um ambiente de pestilência crescente. A historiadora Maryinez Lyons (1992, p.54) afirma que esse período testemunhado por Park já foi chamado de Éden Africano, por ser visto como um momento de maior equilíbrio nos diferentes ecossitemas da região e, consequentemente, de menor morbidade.

Além de supor baixa a incidência de doenças entre os africanos, Park observou as terapias locais empregadas no tratamento das febres e qualificou-as de "supersticiosas" ou "sistemáticas". A aplicação de emplastros seguida de cerimônias diversas pareceu-lhe apenas capaz de inspirar no paciente a esperança de recuperação, além de distrair a mente para longe dos sofrimentos e perigos da doença. Mais sistemática e eficiente seria a vaporização (com uso da planta Nauclea orientalis) utilizada para o alívio das febres; o uso de pós obtidos de cascas de árvores trituradas era igualmente visto como uma prática metódica, ainda que geralmente ineficiente (Park, 2002, p.255-257).

Outro dado que chamou a atenção do explorador foi a habilidade dos africanos nos tratos cirúrgicos. Para Park, eles eram melhores cirurgiões do que médicos. A destreza no tratamento de fraturas e deslocamentos e na cauterização de abscessos inflamatórios foi observada pelo médico escocês, que também se impressionou com os métodos de sangria por meio de ventosas, usuais nas regiões costeiras do Sudão ocidental. A abordagem de Mungo Park é reveladora de uma postura presente nos relatos dos primeiros contatos entre a medicina ocidental e a medicina indígena, numa época em que a visão predominante sobre as práticas médicas locais era mais aberta e igualitária, de acordo com David Arnold (1997, p.1408). Com o avanço do colonialismo na África, marcadamente a partir da segunda metade do século XIX, as atitudes hostis em relação à terapêutica nativa tornaram-se dominantes à medida que os médicos ocidentais convenciam-se da suposta superioridade científica de suas práticas.

Assim, a visão dos trópicos africanos, construída nas entrelinhas do relato de Mungo Park, guardava algumas características próprias a um momento de lenta mudança nos paradigmas sobre a natureza tropical. O Éden Tropical, presente nas visões dos primeiros exploradores das terras não europeias, gradualmente convertia-se, em diferentes fontes intelectuais desde meados do século XVIII, em uma espécie de purgatório para os homens brancos. Park, entretanto, assumiria em seu relato uma posição mais branda e conciliadora: reconhecia os rigores e as dificuldades do clima e das febres, ao mesmo tempo que reafirmava os aspectos positivos do interior da África, tropical em sua alteridade mas certamente adequado à acomodação e à aclimatação.

Expansão, doenças e império no início do século XIX

O fim do século XVIII testemunhou o princípio de uma mudança nos modos de legitimação do imperialismo europeu. Sob o impulso das novas ideologias que se seguiram à Revolução Francesa e ao humanitarismo inglês, a defesa da liberdade como um direito natural e fundamental tornou-se um apelo internacionalmente defendido, desencadeando amplo debate em torno dos argumentos antiescravistas. A onda humanitarista deve ser compreendida como parte de uma mudança nas atitudes relativas ao trabalho e à propriedade, sem se distanciar, porém, dos interesses do capitalismo emergente, após a Revolução Industrial. Nesse sentido, a crescente perda de legitimidade da escravidão e do tráfico atlântico guardava uma conexão com as necessidades do capitalismo europeu em busca de novos mercados e de modos de produção concorrentes com a lógica da plantation escravista (Bender, 1992).

Nesse cenário de transformações, as ideologias do colonialismo e do expansionismo europeu também sofreram adequações: a 'missão civilizatória', o 'racismo científico' e os paradigmas de progresso e desenvolvimento ocuparam gradualmente o espaço antes reservado à lógica do rentável tráfico atlântico. Na Inglaterra, berço do movimento humanitarista e antiescravista, a legitimação do novo discurso colonizador passou a assentar-se sobre a exploração de recursos naturais e comerciais e, não menos, pela noção de que certos povos imploravam por dominação e autoridade.14 14 De acordo com Edward Said (1995, p.40), a idéia e a prática imperialistas ganharam caráter denso e sistemático a partir da segunda metade do século XIX. Nesse contexto, o imperialismo definia-se como um ato de acumulação e aquisição, impelido por "potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação". Expedições como aquela pioneiramente percorrida por Mungo Park nos anos 1790 ganhariam fôlego renovado nesse cenário de transformações, especialmente a partir da década seguinte.

Voltando ao plano das mudanças mais restritas, no início do século XIX encontramos Park casado e vivendo como médico de província na pequena Peebles, em sua Escócia natal. No outono de 1803, entretanto, as promessas dessa vida pacata foram abaladas por novo convite, dessa vez expedido por Lord Hobart - então Secretary of State for War and the Colonies - que ofereceu a Park a missão de liderar uma nova expedição ao interior da África, sob os auspícios do governo britânico. As habilidades e a experiência anterior do jovem escocês certamente o qualificavam para a tarefa. De todo modo, a escolha de Park como líder da expedição nos faz refletir sobre os múltiplos papéis assumidos pelos médicos na expansão das fronteiras coloniais: atuavam como exploradores, utilizavam seus conhecimentos médicos na preservação da própria sobrevivência e, muitas vezes, os empregavam como observadores científicos, propriamente. Como atesta David Arnold (1997, p.1396), desempenhavam também o papel de diplomatas, obtendo muitas vezes privilégios e reputação em virtude de suas habilidades, que os levavam a obter concessões econômicas e políticas para os europeus.

A segunda expedição de Park ao Níger teve início em janeiro de 1805 e atingiu, no início de março, o Porto de Cabo Verde, onde 44 mulas e provisões foram compradas e embarcadas antes de a viagem seguir a caminho de Gorée15 15 A ilha de Gorée, no Senegal, foi um entreposto do tráfico de escravos entre a África e as Américas, particularmente ativo a partir do século XVII. , na costa da África Ocidental. Nesse porto, Park consultou Major Lloyd, britânico residente, a respeito das melhores alternativas de recompensa às tropas que seguiriam com ele rumo ao interior. Concordaram, ambos, que o maior estímulo aos soldados seria o pagamento dobrado, durante a missão, e a liberação dos serviços militares em postos africanos, após o retorno. A oferta deve ter sido atraente, pois apesar dos perigos que aguardavam a tropa 35 soldados de origem britânica engajaram-se na expedição. De acordo com Philip Curtin (1998, p.12-13), a provável razão para que militares arriscassem voluntariamente suas vidas na África Ocidental era uma combinação de ignorância, coerção e condições de vida intoleráveis na própria Europa. Não havia estatísticas sobre a mortalidade dos europeus na África, e as investigações sobre topografia médica estavam apenas começando, de modo que a maioria dos europeus, até os anos 1820 e 1830, raramente conhecia de forma adequada os riscos à saúde representados pela África. A esse quadro deve somar-se o fato de que o interior do continente, destino da expedição de Park, era então visto como uma fonte de ouro e riquezas e também como uma promessa de vida mais saudável para os europeus, em comparação às áreas mais úmidas da costa africana.

Acalentando tais expectativas, provavelmente, a caravana formada por Park e seus soldados, além de três ajudantes pessoais, ganhou mais um membro, incorporado em Kayee, às margens do Gâmbia. O quadragésimo membro da expedição era Isaaco, de nação Mandinga, pronto a servir como guia por ser um mercador acostumado às longas jornadas pelo interior. Em agosto de 1805, quando a caravana finalmente chegou ao Níger, três quartos dos soldados haviam morrido em decorrência das doenças.

O breve diário mantido por Park (2002) nessa segunda jornada nos permite perceber o clima funesto em que transcorreu a viagem: "24 de setembro - Seed e Barber (soldados) morreram durante a noite, um de febre, outro de disenteria. Pagou-se vinte pedras de âmbar pelo enterramento deles" (p.373).16 16 No original: "September 24 th.- Seed and Barber (soldiers) died during the night, one of fever, the other of dysentery. Paid the Somonies twenty stones of amber for buring them". Alguns dias depois, a notícia de um soldado raso vitimado pela disenteria e comido pelos lobos durante a noite demonstra a precariedade e dramaticidade experimentadas por Park e seus homens: "2 de outubro - Marshall e W. Garland (soldados rasos) morreram; um de febre, outro de disenteria. Durante a noite, quando a porta da cabana onde Garland dormia foi deixada aberta, os lobos o levaram. Marshall foi enterrado na manhã seguinte, em um campo de milho próximo à igreja" (p.375).17 17 No original: "October 2d.- Marshall and W. Garland (privates) died; one of fever, the other of dysentery. During the night the wolves carried away Garland , the door of the hut where he died being left open. Buried Marshall on the morning following, in a corn field near the church".

Em dezembro do mesmo ano de 1805 foi a vez de Park perder a vida no interior da África. Nesse momento, sua caravana era formada por quatro europeus, além dele próprio, três escravos nativos e pelo árabe Amadi Fatoumi, que guiou a expedição Níger abaixo, desde a cidade de Sansading até Boussa, onde todos morreram, exceto Amadi.

As informações que hoje temos sobre a segunda expedição de Park nos foram legadas pela correspondência que ele manteve com a esposa e pelos breves registros que o próprio Park fez da viagem até novembro de 1805. Os relatos posteriores a essa data foram redigidos por Amadi Fatoumi e encaminhados ao governo britânico, após terem sido traduzidos no Senegal pelo oficial inglês Colonel Maxwell. De acordo com Fatoumi, a expedição atravessava o Reino Haussa quando foi acusada de deixar uma cidade sem pagar tributos ao rei antes de partir. Na manhã seguinte, o rei teria enviado um grupo de homens para atacar a caravana; dois escravos que se achavam na parte traseira da canoa foram mortos primeiro, e outros seis tripulantes, Mungo Park entre eles, lançaram-se à água e morreram afogados. Apenas Fatoumi permaneceu na canoa e sobreviveu ao ataque, tornando-se prisioneiro em Yaour por três meses. Anos após ter sido libertado, em 1811, Fatoumi foi localizado no Senegal por Isaaco - o primeiro guia da caravana - e o destino de Park tornou-se finalmente conhecido.

Pelas cinco décadas que se seguiram à viagem de Park, as expedições europeias ao Níger redundaram em fracassos ocasionados largamente pela devastação das febres e da disenteria. Como propõe Curtin (1998, p.27), a principal questão discutida pelos promotores da expansão entre as décadas de 1820 e 1830 poderia ser traduzida pela seguinte pergunta: as doenças permitirão a construção de um império? A partir de 1840/1850, entretanto, a discussão dos administradores coloniais ganhou novo conteúdo, revelador das mudanças operadas na relação entre doença e império: como poderemos nos proteger das doenças para realizar as atividades imperiais que julgamos de interesse nacional? A resposta a esta última questão começou a ser formulada pela introdução sistemática do uso profilático do quinino contra as febres tropicais, capaz de reduzir à metade a mortalidade das tropas europeias estacionadas na África. A partir daí, pode-se afirmar que a prática médica nas áreas de expansão da fronteira colonial, se não criou, certamente ajudou a sustentar hegemonias políticas, uma vez que o controle das enfermidades tornou-se parte do discurso da pretensa superioridade do colonialismo europeu (MacLeod, Lewis, 1988). Em áreas como a África, onde a população europeia era mínima se comparada à nativa, a medicina foi crucial na justificativa ideológica do império: ainda que se dirigisse prioritariamente aos próprios europeus, a prática médica colonial reforçava simbolicamente o papel 'pacificador' e 'civilizatório' da expansão imperialista. O controle das doenças criava então as condições favoráveis ao estabelecimento de formas de governo de caráter imperialista, uma vez que disseminava localmente o discurso da superioridade intelectual e moral requerida pelos colonizadores.

De acordo com Michael Worboys (1997, 2003), nas fronteiras do império europeu na África e na Ásia prevaleceu, até 1890, a prática de uma terapêutica ordinária em condições tropicais extraordinárias. Até então, portanto, o argumento dominante entre médicos e agentes sanitários atribuiria diferenças de grau, e não de tipo, às enfermidades sofridas nos trópicos: eram as 'doenças nos trópicos' ou doenças dos climas quentes. De acordo com tal postura, as sérias doenças experimentadas pelos europeus nos trópicos eram análogas àquelas conhecidas nas zonas temperadas, e poderiam ser combatidas com algumas variações nas terapias praticadas pelos europeus em outras latitudes.

Posição diferente é assumida por David Arnold (2003, p.13), para quem os médicos atuantes nos trópicos eram frequentemente mais do que mensageiros da medicina metropolitana, de modo que uma proporção significativa de terapias medicinais em uso na Europa, entre os séculos XVI e XIX, era baseada em práticas médicas importadas do continente americano.18 18 Atribui-se aos indígenas sul-americanos a descoberta do poder tônico e antifebril da quina, mais tarde utilizada no tratamento da malária. De acordo com Royston Roberts (cf. Marques, 1999, p.83), há relatos de uma lenda segundo a qual os índios da América andina conheciam a quina, mas consideravam-na venenosa. Numa ocasião, porém, um nativo ardendo em febre bebeu a água de uma poça que continha cascas de quina e recuperou-se. A partir daí, os nativos da região teriam passado a usar a essência da casca da quina para combater os estados febris. O conhecimento sobre o poder curativo da ipeca (também conhecida como ipecacuanha ou poaia) também é atribuído aos ameríndios, que utilizavam a raiz moída e misturada à água, como bebida purgativa. Para Arnold, a medicina colonial era uma prática resultante de uma relação sinergética entre centro e periferia, em vez de uma simples transferência de ideias e técnicas europeias.

Na virada ao século XX, quando a 'medicina tropical' constituiu-se em disciplina específica, assentada nos imperativos do laboratório, da teoria dos germes e da parasitologia, a medicina praticada pelos europeus nas áreas coloniais também se revestiu de novos conteúdos. Tornou-se, então, uma nova arma civilizatória, cujas promessas de sucesso dependiam de habilidades microscópicas, de campanhas de prevenção e controle e, evidentemente, de níveis jamais testemunhados de intervenção junto à população nativa.19 19 Para uma visão geral das mudanças que marcaram o deslocamento da 'medicina nos trópicos' em direção à 'medicina tropical', ver Worboys (2003). A fundação da London School of Tropical Medicine em 1899, sob direção de Patrick Manson, é o marco dessas mudanças, pois a 'medicina tropical' ali ensinada tornou-se uma especialidade médica prestigiada e politicamente influente na condução dos avanços imperialistas. Com a emergente noção da existência de 'doenças tropicais', a partir da década de 1890, entrou em cena a associação entre tais enfermidades e a presença de parasitos e vetores especialmente identificados às regiões tropicais.

Já iam longe, então, os tempos de Mungo Park, um médico na fronteira capaz de saudar sem grande receio as práticas curativas sistemáticas e as habilidades dos cirurgiões africanos. Nos novos cenários do colonialismo, erigidos a partir de 1850, o discurso da superioridade europeia se impunha e era a própria condição de legitimidade do projeto expansionista.

AGRADECIMENTO

Uma versão preliminar deste artigo beneficiou-se da criteriosa leitura de Magali Romero Sá e Simone P. Kropf. A elas, meu agradecimento e admiração.

NOTAS

Recebido para publicação em julho de 2009.

Aprovado para publicação em janeiro de 2010.

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  • ARNOLD, David. Medicine and colonialism. In: Porter, Roy et al. (Ed.) Companion Encyclopedia of the History of Medicine London: Routledge. v.2, p.1393-1416. 1997.
  • ARNOLD, David. The problem of nature: environment, culture, and European expansion. Oxford: Blackwell. 1996.
  • BENDER, Thomas (Ed.). The anti-slavery debate: capitalism and abolitionism as a problem in historical interpretation. Berkeley: University of California Press. 1992.
  • COSTA E SILVA, Alberto da. A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2002.
  • CURTIN, Philip. Disease and Empire: the health of European troops in the conquest of Africa. New York: Cambridge University Press. 1998.
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  • HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense. 1994.
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  • KURY, Lorelai B. Viajantes naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v.8, supl., p.863-880. 2001.
  • LOVEJOY, Paul. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2002.
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  • MELLO E SOUZA, Marina de. África e Brasil africano São Paulo: Ática. 2006
  • PARK, Mungo. Travels in the interior districts of Africa Introd. and notes, Bernard Waites. London: Wordsworth. 2002.
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  • SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe daqui São Paulo: Companhia das Letras. 1990.
  • WOLZETTEL, Friedrich. Le discours du voyageur: le récit de voyage en France, du Moyen Age au XVIIIème siècle. Paris: PUF. 1996.
  • WORBOYS, Michael. Germs, malaria and the invention of Mansonian tropical medicine: from 'diseases in the tropics' to 'tropical diseases'. In: Arnold, David (Ed.). Warm climates and Western medicine: the emergence of tropical medicine, 1500-1900. Amsterdan: Rodopi. p.181-207. 2003.
  • WORBOYS, Michael. Tropical diseases. In: Bynum, W.F.; Porter, Roy (Ed.). Companion Encyclopedia of the History of Medicine v.1. London: Routledge. p.512-536. 1997.
  • 1
    No original: "I had not beheld the face of a Christian, nor once heard the delightful sound of my native language". Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
  • 2
    Mandinga foram os povos que deram origem ao império do Mali, e receberam influência islâmica desde o século XII (Costa e Silva, 2002, p.63).
  • 3
    Sobre o tema da viagem nos séculos XVIII e XIX, ver Wolzettel, 1996; Sussekind, 1990; e Kury, 2001.
  • 4
    Sobre o naturalista sueco, ver Koerner,1996.
  • 5
    As informações biobibliográficas sobre Mungo Park aqui apresentadas baseiam-se na introdução de Bernard Waites para a edição de 2002 do livro de M. Park.
  • 6
    No original: "Worn down by sickness, exhausted with hunger and fatigue, half naked and without any article of value by which I might procure provisions ... I was convinced ... that the obstacles to my further progress were insurmountable".
  • 7
    A esse respeito, ver Holanda, 1994.
  • 8
    A expressão doença tropical parece ter sido usada pela primeira vez por Benjamin Mosely, em
    A treatise on tropical diseases: on military operations and on the climate of the West Indies, publicado em Londres em 1787. O uso da expressão só se generalizaria mais tarde, nas últimas décadas do século XIX.
  • 9
    No original: "A little after noon, when the burning heat of the sun was reflected with double violence from the hot sand, and the distant ridges of the hill, seen through the ascending vapour, seemed to wave and fluctuate ... I became faint with thirst ...".
  • 10
    O conceito de
    wilderness perpassa todo o relato de Park, remetendo sempre aos rigores e às dificuldades próprias de um território tropical e selvagem aos olhos de um europeu. Para o autor, porém, a
    wilderness é muitas vezes compensada pela ação redentora de mulheres africanas, que o socorrem em situações ameaçadoras ou perigosas.
  • 11
    No original: "The view of this extensive city, the numerous canoes upon the river, the crowded population and the cultivated state of the surrounding country, formed altogether a prospect of civilization and magnificence which I little expected to find in the bosom of Africa".
  • 12
    No original: "When the wind sets in from the north-east it produces a wonderful change in the face of the country...".
  • 13
    No original: "Indeed, the air during the rainy season is so loaded with moisture ... but this dry wind braces up the solids which were before relaxed, gives a cheerful flow of spirits, and is even pleasant to respiration ...".
  • 14
    De acordo com Edward Said (1995, p.40), a idéia e a prática imperialistas ganharam caráter denso e sistemático a partir da segunda metade do século XIX. Nesse contexto, o imperialismo definia-se como um ato de acumulação e aquisição, impelido por "potentes formações ideológicas que incluem a noção de que certos territórios e povos precisam e imploram pela dominação".
  • 15
    A ilha de Gorée, no Senegal, foi um entreposto do tráfico de escravos entre a África e as Américas, particularmente ativo a partir do século XVII.
  • 16
    No original: "September 24 th.- Seed and Barber (soldiers) died during the night, one of fever, the other of dysentery. Paid the Somonies twenty stones of amber for buring them".
  • 17
    No original: "October 2d.- Marshall and W. Garland (privates) died; one of fever, the other of dysentery. During the night the wolves carried away Garland , the door of the hut where he died being left open. Buried Marshall on the morning following, in a corn field near the church".
  • 18
    Atribui-se aos indígenas sul-americanos a descoberta do poder tônico e antifebril da quina, mais tarde utilizada no tratamento da malária. De acordo com Royston Roberts (cf. Marques, 1999, p.83), há relatos de uma lenda segundo a qual os índios da América andina conheciam a quina, mas consideravam-na venenosa. Numa ocasião, porém, um nativo ardendo em febre bebeu a água de uma poça que continha cascas de quina e recuperou-se. A partir daí, os nativos da região teriam passado a usar a essência da casca da quina para combater os estados febris. O conhecimento sobre o poder curativo da ipeca (também conhecida como ipecacuanha ou poaia) também é atribuído aos ameríndios, que utilizavam a raiz moída e misturada à água, como bebida purgativa.
  • 19
    Para uma visão geral das mudanças que marcaram o deslocamento da 'medicina nos trópicos' em direção à 'medicina tropical', ver Worboys (2003). A fundação da London School of Tropical Medicine em 1899, sob direção de Patrick Manson, é o marco dessas mudanças, pois a 'medicina tropical' ali ensinada tornou-se uma especialidade médica prestigiada e politicamente influente na condução dos avanços imperialistas. Com a emergente noção da existência de 'doenças tropicais', a partir da década de 1890, entrou em cena a associação entre tais enfermidades e a presença de parasitos e vetores especialmente identificados às regiões tropicais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011

    Histórico

    • Recebido
      29 Jul 2009
    • Aceito
      15 Jan 2010
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