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Comunidade sateré-mawé Y'Apyrehyt: ritual e saúde na periferia urbana de Manaus

Resumos

A comunidade Y'Apyrehyt, uma das três comunidades da etnia Sateré-mawé, na periferia de Manaus, está assentada no antigo Parque das Seringueiras. A comunidade é composta por 67 pessoas, entre adultos e crianças, que sobrevivem dos rendimentos advindos dos turistas que pagam para ver o Ritual da Tucandeira e da venda de artesanato. Mesmo com o puratin ou poratig, o Remo Mágico fincado na entrada da comunidade, somente o Ritual da Tucandeira mantém-se vivo. O processo de ressignificação desse ritual assumiu também caráter estético de coreografia artística e objeto para troca econômica.

índios sateré-mawés; Ritual da Tucandeira; Manaus (AM, Brasil); séculos XX/XXI


The Y'Apyrehyt community, one of three belonging to the Sateré-Mawé indigenous people found on the outskirts of Manaus, is located in a former nature reserve, the Parque das Seringueiras. The community comprises 67 people, adults and children, who live from the income obtained from tourists paying to see the Tucandeira Ant Ritual and from the sale of craftwork. Even with the Magic Oar - the puratin or poratig - displayed at the entrance to the community, only the Tucandeira Ant Ritual remains alive today. The process of attributing new meanings to this ritual has involved both an aesthetic dimension, evinced in its artistic choreography, and its commercialization.

Sateré-Mawé Indigenous People; Tucandeira Ant Ritual; Manaus (Amazonas State, Brazil); twentieth and twenty-first centuries


ANÁLISE

IDoutor Honoris Causa da Universidade Paul Sabatier Toulouse III; professor de História da Medicina da Universidade do Estado do Amazonas e da Universidade Nilton Lins; professor do Programa de Pós-graduação em Biotecnologia da Universidade Federal do Amazonas. Av. Eduardo Ribeiro, 520/705, 69010-010 - Manaus - AM - Brasil joaoboscobotelho@gmail.com

IIProfessora do Programa de Pós-graduação em Educação/Universidade Federal do Amazonas. Rua Rio Jutaí, 63, Quadra 3 - Conj. Jardim Olívia, 69053-020 - Manaus - AM - Brasil valeriaweigel@hotmail.com

RESUMO

A comunidade Y'Apyrehyt, uma das três comunidades da etnia Sateré-mawé, na periferia de Manaus, está assentada no antigo Parque das Seringueiras. A comunidade é composta por 67 pessoas, entre adultos e crianças, que sobrevivem dos rendimentos advindos dos turistas que pagam para ver o Ritual da Tucandeira e da venda de artesanato. Mesmo com o puratin ou poratig, o Remo Mágico fincado na entrada da comunidade, somente o Ritual da Tucandeira mantém-se vivo. O processo de ressignificação desse ritual assumiu também caráter estético de coreografia artística e objeto para troca econômica.

Palavras-chave: índios sateré-mawés; Ritual da Tucandeira; Manaus (AM, Brasil); séculos XX/XXI.

Os primeiros processos migratórios dos Sateré-mawé para Manaus ocorreram entre 1970 e 1980, sob acentuada liderança feminina. Ao chegarem na região, a inserção no mercado de trabalho foi mais fácil para as mulheres, como empregadas domésticas. Apesar das dúvidas quanto à completa veracidade do censo de 2000 - que também quantificou os índios migrantes -, 146 de 333 indivíduos sateré-mawé eram da mesma família ou parentes próximos (Bernal, 2009). Na periferia urbana de Manaus, existem as seguintes comunidades sateré-mawé: Y'Apryrehyt, Maué, I'nhã-bé e Waikiru.

Este artigo aborda alguns aspectos concernentes à territorialização e à cultura sateré-mawé, apreendidos em três trabalhos de campo - um realizado em 2008 e dois no ano seguinte - na comunidade Y'Apyrehyt (Silva et al., 2008; Colombo et al., 2009; Queiroz et al., 2009).

Se entendermos como 'cultura' sistemas de significações ordenados por determinada lógica que preside o modo de viver de um grupo humano (Geertz, 1989), é possível constatar a diversidade cultural presente na periferia urbana de Manaus. Ali convivem, em maior número, os migrantes amazônicos e de outras regiões do Brasil e, em escala bem menor, índios, negros e estrangeiros, compondo um mosaico de multiplicidade cultural com o qual interagem as pequenas comunidades sateré-mawé. Nesse processo intercultural de trocas simbólicas, o grupo Sateré-mawé apropria-se de certos elementos das culturas envolventes e utiliza-os na ressignificação de alguns componentes de sua cultura, como a busca de melhor saúde ou a elaboração de estratégias de afirmação étnica.

Os registros identificadores dos Sateré-mawé, desde o período colonial, indicam como marcadores mais significativos, com relação à construção étnica: o consumo ritual do guaraná (Paullinia sorbilis), vindo da terra cultivada como fonte da saúde; o culto ao puratin ou poratig, o Remo Mágico; e o Ritual da Tucandeira ou rito de iniciação masculina (Bernal, 2009).

Para os indivíduos sateré-mawé da comunidade Y'Apyrehyt, assentados no acanhado terreno inadequado à agricultura, na periferia urbana de Manaus, sem nenhuma possibilidade de manter a tradição do plantio do guaraná e na ausência de um pajé, restou o Ritual da Tucandeira, visando à manutenção dos símbolos da identidade étnica. Ao mesmo tempo, tal rito de iniciação absorveu ressignificações produzidas pelo confronto intercultural. O ritual e as implicações terapêuticas da ferroada da formiga, objetos das observações desses trabalhos de campo, aliados aos relatos do tuxaua Moisés - tanto na comunidade Y'Apyrehyt quanto nas salas de aulas -, geraram as reflexões apresentadas neste artigo.

Algumas considerações sobre o povo sateré-mawé

Os Sateré-mawé fazem parte da cultura Tapajós-Madeira, rios situados entre os estados do Amazonas e do Pará, e integram a família linguística tupi-guarani. O censo demográfico indígena realizado em 2005 registrou uma população de 8.373 índios, sendo 5.510 falantes da língua sateré-mawé, 2.992 que a liam e 2.980 que a liam e escreviam (Teixeira, 2005, citado em Esteves, 2007, p.9), num território demarcado que perfazia 778.528 km², em 1982 (Figura 1), entre os municípios de Maués e Barreirinha, no Amazonas, e Itaituba, no Pará, às margens dos rios Andirá, Marau, Miriti, Urupadi e Majuru (Lorenz, 1992). O censo citado por Esteves refletiu significativo crescimento populacional, se comparado com o indicado por Uggé (s.d., p.5), que em 1986 fixou a população em 4.500 indivíduos.


É possível que, no século XVII, os Sateré-mawé ocupassem vastos territórios do planalto e das margens do rio Tapajós (Figura 2). Com o avanço colonial, migraram na direção das cabeceiras dos rios Andirá, Araticum, Abacaxis e Urariá (Pereira, 2003). Receberam outras denominações do elemento colonizador: Maooz, Mabué, Mangués, Jaquezes, Maguases, Magués, Mauris, Maraguá e Magueses. Nos registros históricos, foram citados por Pedro Teixeira, em 1626; pelos jesuítas João Maria, em 1661, e Samuel Fritz, em 1691; e pelo beneditino João de São José, entre 1762 e 1763. Em 1669 os jesuítas instalaram a Missão Tupinambarana nos limites do território desse povo (Pereira, 2003).


Os registros coloniais e provinciais também qualificam de sedentários os Sateré-mawé, que se teriam aproveitado das terras pretas, solos férteis apropriados ao plantio, e, desde os primeiros anos do século XVIII, comercializado o guaraná com os portugueses (Menéndez, 1992). A afirmativa é reforçada pelo fato de que parte significativa da representação mítica mantém estreita ligação com a terra fértil, o Noçoquém, onde Onhiamuaçabé, o herói mítico, plantou a castanheira e o guaranazeiro, cujo fruto, o guaraná, serve como remédio para todos os males. Também destacam-se o paricá, pó obtido de vegetais e utilizado nos rituais de cura, e o Ritual da Tucandeira, a formiga cuja ferroada é utilizada como rito de passagem, marcando a iniciação masculina.

Os Sateré-mawé conseguiram sobreviver melhor ao processo colonial, conservando inclusive a sua língua, ao contrário dos outros vizinhos de predominâncias nômades e muito mais agressivos - entre eles os Mundurucu, os Pirahan ou Mura e os Cauahib ou Parintintin (Gondim, 1938), que estiveram próximos da extinção.

É interessante assinalar que Serafim Leite (1950), Nunes Pereira (2003) e tampouco as fontes dos séculos XVI a XIX (Menendez, 1992) que citaram os povos das margens dos rios Madeira e Tapajós - incluindo o relatório do presidente da província, João Wilkens de Matos, de 1855 (Amazonas, 1855) - não fazem menção aos Sateré-mawé. Diversamente, Henrique Uggé (s.d.) identificou esse povo, composto por dois grupos com uma identidade própria - Sateré-mawé -, como descendente dos habitantes das terras próximas aos rios Andirá e Maraguá.

A discordância quanto ao nome desse povo recebeu especial atenção de Esteves (2007), por meio da pesquisa realizada na aldeia sateré-mawé, em Terra Nova, na margem direita do rio Marau, no município de Maués:

Inicialmente consideramos pertinente levantar algumas questões a respeito da denominação Sateré-Mawé ou Maweria, termo antigo que tem grande significado para o grupo. Este termo antigo, que hoje é pouco usado pelos membros do grupo, é de ordem polissêmica. Esta denominação antiga retrata não apenas a denominação do grupo, mas, sobretudo o que foram no passado, no decorrer de sua formação social. O termo Maweria tem como significado a palavra Sateré-Mawé no plural. Porém o mais curioso da palavra é que ela representa um termo antigo usado pelo povo, quando não se chamavam Sateré-Mawé, apenas Mawé (p.14).

Os indivíduos desse povo reconhecem a denominação Sateré-mawé - e não Mawé -, como atesta o depoimento de Moi, professor da escola Weneru na aldeia Terra Nova, a Esteves (2007, p.17): "Este termo (referindo-se à palavra Mawé) é de certa forma desconhecido para nós, eu não tenho a mínima ideia do porquê deste nome. Eu penso que o nome Mawé não tem sentido ser papagaio falante, eu acho que esse nome pode ter sido dado para nós (pelo branco colonizador) e muitos de nós não sabem disso". Igualmente significativo da ausência de identidade com a palavra isolada mawé é o testemunho do tuxaua Donato, da comunidade Simão, no rio Andirá: "O nome mawé (Mau-é) é porque os brancos nos chamavam de maus, eles não gostavam da gente por isso nos chamavam de mau" (p.18).

A passagem de Mawé para Sateré-mawé relaciona-se à construção de uma identidade própria no conjunto complexo de fatores históricos, ao longo de quatro séculos. Entre tais fatores, destacam-se a fusão cultural, com assimilação de valores de grupos que disputavam territórios; as lutas para sobreviver à crueza do processo colonial; e os casamentos interétnicos (Esteves, 2007). Neste artigo, diante dos argumentos apresentados e seguindo o tuxaua Moises, da comunidade Y'Apyrehyt, esse povo será identificado como Sateré-mawé.

Os múltiplos sentidos dos rituais

Vários aspectos culturais diferenciaram enormemente os Sateré-mawé de seus vizinhos nômades e mais guerreiros. Em relação ao trato com os mortos, eles os defumavam e enterravam em urnas funerárias, ao passo que os Mundurucu adornavam somente as cabeças (pariuá-a), tanto as dos amigos quanto as dos inimigos, e as mantinham cravadas na ponta de uma lança (pariuá-renãpe) (Pereira, 2003).

O início da puberdade também era tratado diversamente. Os Sateré-mawé promoviam cerimônias festivas, nas quais o Ritual da Tucandeira, com sua dança específica, era o ponto culminante. Nesse ritual, fala-se em clãs oriundos de diferentes grupos, o que reforça o pressuposto de que a consolidação da identidade sateré-mawé também se deu a partir de ligações interétnicas (Esteves, 2007). Já os Mundurucu estabeleciam a união da púbere com um guerreiro mais velho e a isolavam quando ocorria a menarca.

Entre os Sateré-mawé não há descrição específica de heróis ligados à glória guerreira. Diversamente, entre os Parintintim, a compreensão mítica dos bahira, anhanga-pian e tandav-ohú pode ser situada naquela dimensão.

A predominância sedentária dos Sateré-mawé e o consequente maior trato com a terra cultivada, especialmente o guaraná (Figura 3), bem como o Remo Mágico, puratin ou poratig são características importantes da organização social desse povo, senão as mais significativas, que o distinguiram dos demais, residentes em territórios próximos. O relato, citado por Nunes Pereira (2003, p.39), sem identificação do autor, é representativo:

Têm os Andirazes em seus matos uma frutinha que chamam de guaraná, a qual secam e depois pisam, fazendo delas umas bolas, que estimam como os brancos o seu ouro, e desfeitas com uma pedrinha, com que as vão roçando e em uma cuia de água bebida, dá tão grandes forças, que indo os índios à caça, um dia até outro, não têm fome, além do que faz urinar, tira febre e dores de cabeça e cãibras. Do préstimo que tem para provocar urina me consta; do mais não sei de certo senão pelo que comumente ouço dizer.


O uso do guaraná como fonte de saúde, compondo a ligação com a terra cultivada, está presente no discurso do tuxaua sateré-mawé Manuel, em 1933: "O guaraná é bom para fazer chover, para proteger a roça, para curar doenças e prevenir outras, para vencer a guerra, no amor, quando dois rivais pretendem a mesma mulher" (Pereira, 2003). Também se verifica, de modo ainda mais especial, no registro mítico da origem, no conflito entre três irmãos, dois deles homens, Ocumáató e Icuaman, e uma mulher, Onhiámuáçabe. O relato mítico da origem do guaraná explicita, fortemente, a relação com a terra cultivável como o melhor caminho para a cura das doenças:

Onhiámuáçabe era dona do Noçoquém, um lugar encantado, onde plantara uma castanheira, e os irmãos não queriam que ela casasse porque conhecia os remédios para todas as doenças. Quando apareceu grávida, os irmãos ficaram furiosos e como vingança a expulsaram e tomaram-lhe o Noçoquém. Para garantir o castigo, ordenaram que a cutia impedisse a entrada dela. Desobedecendo as ordens, Onhiámuáçabe levou o filho para comer castanha no Noçoquém. O menino gostou e voltou lá muitas vezes. Os irmãos enfurecidos ordenaram que matassem a criança. Onhiámuáçabe, ao perceber a falta do filho, correu em direção ao Noçoquém e o encontrou decapitado. Chorando e falando com o filho como se estivesse vivo disse: tu serás a maior força da natureza, tu farás bem aos homens, tu curarás as doenças (Pereira, 2003, p.131-132).

Não são raros os registros míticos de outros grupos sedentários, espalhados pelo planeta, que valorizam relação semelhante com a terra cultivável, como aquele da ilha do Ceran, na Nova Guiné. No relato do corpo retalhado da jovem divina Hainuwele nasce o alimento indispensável à vida (Botelho, 2004).

Além do guaraná, outro elemento importante da identidade sateré-mawé é o Ritual da Tucandeira. Vivenciado pelos meninos, esse rito assinala a passagem da criança ao adulto. Consiste na experiência de se colocar a mão na luva de palha trançada, onde estão aprisionadas as formigas tucandeiras com os ferrões voltados para a face interna do artefato (Figura 4), de modo que o iniciante sofra dolorosas ferroadas enquanto são realizados cânticos e danças.


Figueroa (1997), Kapfhammer (2004) e Bernal (2009) reforçam que o Ritual da Tucandeira continua sendo importante evento formador da identidade sateré-mawé. Contudo, Kapfhammer (2004) também entende que o ritual é objeto de reconstruções que ocorrem tanto no rito quanto no significado da mitopráxis. Tais mudanças, construídas no processo histórico do contato dos Sateré-mawé com grupos da sociedade envolvente, decorrem de discussões e críticas internas relativas aos diferentes segmentos sociais desse povo, clãs diferenciados, Sateré-mawé católicos e evangélicos, e estabelecem as estratégias sociopolíticas de sobrevivência nos espaços fora do território ancestral, nos centros urbanos. Tal processo gera disjunções entre os segmentos, operando-se uma transformação/criação/recriação da mitopráxis de cada grupo.

Entre os Sateré-mawé evangélicos, por exemplo, consolidaram-se duras críticas relativas a novos princípios sagrados e valores morais, assumidos do pensamento evangélico-cristão. Embora reconheçam as qualidades terapêuticas do Ritual da Tucandeira, os evangélicos abandonaram o entendimento sagrado do rito (Eliade, 1988) e adotaram-no como prática profana, explícita no depoimento de Mikilis, um ancião sateré-mawé evangélico:

Então hoje nós entendemos, a tucandeira é uma tradição, é um valor que nós temos, mas também, por outro lado, a tucandeira é daqui da terra, digamos assim, não é divina, não é aquilo que você pode adquirir, a paz. A tucandeira, você não vai adquirir a felicidade por outro lado. A tucandeira, ela é muito material, ela é muito terrena. Por que eu quero dizer isso? A tucandeira, lá, foi feito para preparar fisicamente o homem, meter a mão, ficar com saúde, sadio total. Mas só que no meio dessas ... eu não sei, se fizesse outro tipo de festa de tucandeira, talvez isso poderia sobreviver, mas só que, até hoje, a festa da tucandeira, ela é muito misturada. Como? Coisas terrenas (Kapfhammer, 2004, p.112).

Na perspectiva dos Sateré-mawé evangélicos, o caráter 'terreno-profano' do Ritual da Tucandeira resulta de seu aspecto fundamentalmente material, corpóreo - relativo ao preparo físico dos meninos -, acrescido do consumo de bebidas alcoólicas e cigarro durante o rito. Os Sateré-mawé evangélicos abandonaram esse ritual argumentando que: (a) sendo o corpo entendido como templo do Espírito Santo, ele não pode ser maculado com o veneno das formigas; (b) como a pajelança é associada à violência, desprezam o uso do veneno da formiga usado como remédio pelo pajé; (c) há um confronto entre o mito de origem do ritual, no qual as formigas e o veneno estão associados à sexualidade da cobra-mulher mítica, com a cobra sedutora do mito cosmogônico cristão (Kapfhammer, 2004).

Para os Sateré-mawé católicos da comunidade Y'Apyrehyt, numericamente predominantes, o Ritual da Tucandeira continua fazendo parte da identidade étnica (Silva et al., 2008; Queiroz et al., 2009; Colombo et al., 2009; Bernal, 2009). Nesse sentido, a maior aceitação, por parte do atual missionarismo católico, das tradições e línguas indígenas desempenha importante papel na reconstrução da mitopráxis sateré-mawé.

Nunca é demais reafirmar que anteriormente, nos espaços amazônicos, os missionários católicos, agentes das Coroas europeias, participaram do movimento de imposição da cultura ocidental-cristã. Utilizando-se de métodos de extrema violência física, forçaram os indígenas a abandonar seus sistemas culturais - língua, organização social e ritos sagrados -, considerados uma manifestação de 'primitivismo' e 'atraso' na evolução cultural, dentro do processo civilizatório (Weigel, 2000). A ruptura com o passado colonial catequético e a construção do atual entendimento católico ocorreu por ocasião do Concílio Vaticano II, quando o discurso e a prática dos missionários adotaram outros significantes:

Após a Assembleia das Regionais Norte I e II, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, realizada em 1997, em Manaus, entre outras providências, os bispos pediram perdão aos povos indígenas: "Pedimos perdão a Deus, aos povos indígenas e a todos os pobres do campo e da cidade, por não termos conseguido superar atitudes de omissão ou conivência em relação às violências e injustiças que os povos da Amazônia têm sofrido". Sob essa perspectiva catequética, os religiosos se comprometeram a ajudar os povos locais a expressar e celebrar a sua fé em Cristo, sob as seguintes condições: em sua própria linguagem, com seus símbolos, com sua visão de vida e do mundo, com seus valores positivos e com suas expressões religiosas (Botelho, 2005, p.306).

Padres e as freiras passaram a valorizar as culturas indígenas, assumindo-as como formas diferentes da criação divina (Figura 5). Em obediência às decisões conciliares, os missionários católicos reforçaram, junto aos indígenas, a vivência de seus sistemas culturais milenares, buscando fortalecer, tanto em suas escolas quanto em pregações nas igrejas, os ritos sagrados tradicionais, considerados genuínas manifestações das estruturas socioculturais étnicas e cuja continuidade contribuiria para consolidar a identidade étnica e a delimitação de lugares no espaço público amazônico ou mesmo brasileiro (Weigel, 2000).


Diferentemente dos Sateré-mawé evangélicos da comunidade Y'Apyrehyt, que compreendem o Ritual da Tucandeira como fundamentado em violência e incentivador do consumo de bebidas alcoólicas e cigarros - portanto contrário aos princípios neopentecostais -, os católicos mantêm o ritual, reafirmando o cerne de seu significado para a identidade étnica e o fortalecimento da saúde, uma vez que o veneno da formiga é percebido como atuante na prevenção de doenças. Portanto, os Sateré-mawé evangélicos reavaliaram conceitos autóctones e se afirmam contrários ao ritual, ao passo que os católicos o mantêm como principal evento formador de identidade étnica, visando formar homens saudáveis e fortes.

Na construção mítica, o Ritual da Tucandeira é oferecido pelo Tatu-Grande, Sahu-Wato, o que valoriza as relações com a terra e com a sexualidade. As formigas tucandeiras ou tocandiras (Dinoponera grandis), medindo entre 2,2cm a 2,5cm, provocam ferroadas dolorosas (Figura 6). O cantor (wepyhat) é também o dirigente do ritual. Na noite da véspera, as formigas são colocadas em recipiente com folhas do cajueiro, o que as faz adormecerem. No dia seguinte, são retiradas do recipiente e colocadas, com o abdome e o ferrão na parte interna e a cabeça de fora, na luva de fibras com elementos que simbolizam animais. Ao acordarem esses insetos se tornam agressivos, mexendo continuamente os ferrões. De acordo com o mito, as formigas estão relacionadas aos pelos pubianos da sedutora mulher-cobra existente no reino subterrâneo, e foram trazidas ao mundo sateré-mawé pelo Tatu-Grande. Na construção mítica, a luva adornada de penas representa a vagina e os pelos pubianos da mulher-cobra.


A iniciação masculina se completa quando o jovem, em meio a danças e cantos e com os braços pintados com tinta preta do jenipapo, enfia a mão na luva e assim permanece por alguns minutos (Figura 7). Calçar a luva simboliza o contato sexual com a mulher-cobra, o que previne o rapaz contra doenças e o qualifica para os importantes papéis sociais masculinos (Kapfhammer, 2004). Como prova de força e resistência, os homens se submetem ao Ritual da Tucandeira ao menos vinte vezes durante a vida adulta (Uggé, s.d.). O relato do professor Honorato Sahu, do rio Andirá, colhido por Esteves (2007, p.48), explica o ritual:

O meu avô contava para nós que a luva da tucandeira tinha que ser respeitada. Era sagrada porque era do povo, e que o Tatu-Grande deu para Henegk (tatu-bola), e ele dizia que: "A pena de arara simboliza o espírito do primeiro mundo, a tucandeira (simboliza) o pelo da mulher, e a pena do peito do gavião na entrada da luva, a vagina da mulher; e as formigas deveriam ser enfiadas de acordo com a cabeça do tatu". Foi assim que o meu avô me contou e por isso eu sei um pouco dessa história.


O canto desse ritual é rico em refrões que, cantados repetidamente, tratam da relação com a terra cultivada (Pereira, 2003, p.72-73):

Mê pémun té andém sari

Mê pémun cori té andém

Mecoó arroó-ui

Aitó unambi optiá capé

Aiépit mambac ramaoap

Oipó-été, sari quién

Em qué-épó été-té én

Oitóqué uatzi été

Eçó renemgué rupi-i

Icahó urré sari

Upain apossaou rocát

Mangou aporrin ipai

Comaró tan êpêetat

Queôssou queôssou, êpêpatêa

Uenô pê tritan êpeateât

Maquétan na oitó

Uatócóssab acoitó

[Tatu-Grande fez sair tocandira

Tatu pequeno fez sair tocandira viva

Para cá, para os moços se ferrarem

Para ficarem espertos

Em minha mão, tocandira ronca

Tatu-Grande: você se ferra só na mão?

E eu, que é em toda parte?

Assim fala o Tatuzinho

É bonito o lugar da minha tocandira

Enfeitado de vermelho

E de pena de gavião-real

E do toco do cumaru

E do toco do ingazeiro

E do toco do cipó-chato

Assim eu era antes

Mas nós havemos de passar]

Há indícios significativos de que o sangue, símbolo mítico, usual nas sociedades nômades de caçadores-coletores, foi substituído por outros símbolos ligados à terra cultivável, à sexualidade e à reprodução, ao longo do processo de sedentarismo (Eliade, 1983), e que ainda hoje estão presentes em mitos e ritos de curas de sociedades sedentárias e agrícolas (Botelho, 2005). Isso também se manifesta entre os Sateré-mawé, no ritual Watyamag:

O tatu tirou a formiga do fundo da terra

O tatu tirou a formiga de verdade para a saúde (repete várias vezes)

O peixe pintou seus filhinhos

O peixe pintou o filho (repete várias vezes)

Por isso o aracu é pintado

O peixe pintou o filho

Por isso o peixe piranha é pintado

O peixe pintou o filho (repete várias vezes)

Com a primeira água, teve o início da tucandeira

O peixe pintou o filho (repete várias vezes)

Por isso o peixe puraqué pintou-se

O peixe pintou o filho (repete várias vezes) ...

Haté jogou o jacaré (repete várias vezes)

Para vingar os peixes, Hate jogou jacaré (repete várias vezes) ...

(Esteves, 2007, p.43).

Comunidade sateré-mawé Y'Apyrehyt

De modo geral, os índios que chegam a Manaus egressos das reservas ou de cidades do interior do Amazonas, com pouca ou nenhuma escolaridade, despreparados para o mercado de trabalho numa Zona Franca em crescimento e, especialmente, apartados por preconceitos, acabam expulsos das periferias urbanas e são empurrados para os limites da cidade, em localidades ainda menos valorizadas (Bernal, 2009).

Antes da demarcação e da homologação da reserva sateré-mawé no município de Maués, no Amazonas, ocorrida em 1986, e diante da expansão das fronteiras agrícolas, da construção da estrada Maués-Itaituba e da presença da companhia petrolífera Elf-Equitane, alguns indivíduos que estavam assentados nas margens dos rios Andirá e Marau migraram em direção a Manaus, pelo rio Amazonas, orientados pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Os estorvos para garantir a nova territorialização repetiram-se para esses indivíduos que chegaram a Manaus nessa leva migratória, há cerca de duas décadas. Após superarem inúmeros obstáculos, serem expulsos de bairros ocupados por outros emigrantes e vencerem duros preconceitos, ergueram a comunidade Y'Apyrehyt (Figura 8) num espaço minguado e entre a população majoritariamente não indígena, situado no antigo Parque das Seringueiras, atualmente conjunto habitacional Santos Dumont, no bairro da Redenção, próximo a um dos muitos igarapés que formam a bacia do rio Tarumã (Colombo et al., 2009; Queiroz et al., 2009; Silva et al., 2008). A organização coletiva em prol dessa territorialização permitiu aos indivíduos sateré-mawé estabelecerem significativas trocas simbólicas com pessoas por eles denominadas 'pessoal', no sentido de 'não índio', algo claramente expresso, em março de 2008, no depoimento do tuxaua Moisés Ferreira de Souza:

A nossa comunidade já vem de muito tempo, desde 1990. Minhas tias foram as primeiras que lutaram por essa área onde estamos. Enfrentamos muitas dificuldades para ficar nessa área, quando foi envolvido o Ministério Público, a Sedema, a Urbam, a Funai. Diante disso, o pessoal do conjunto habitacional Santos Dumont não queria que nós ficássemos na área, achavam que íamos fazer favela, roubar. Através do diálogo com esses órgãos, ouvindo que nós queríamos um local para trabalhar e fazer nosso artesanato e manter nossa cultura dentro de Manaus, concordaram e deixaram os sateré-mawé nesse local, pediram para não desmatar e não degradar a área. Fizemos, até hoje preservamos. Hoje, a comunidade cresceu muito (Almeida, Santos, 2008, p.122).


A expansão urbana alcançou o antigo Parque das Seringueiras e a maior parte da bacia do rio Tarumã, valorizando-os enormemente. Na reorganização urbana, as beira-rios receberam mansões com ancoradouros próprios. Na mesma época, a construção do conjunto residencial Santos Dumont avançou no terreno dos Sateré-mawé, forçando substancial redução do espaço inicialmente ocupado.

A comunidade sateré-mawé Y'Apyrehyt está restrita a um terreno arenoso de 58m2 x 78m2, sem título de propriedade, longe da margem do igarapé e impróprio ao cultivo. É formada por 67 pessoas; seis famílias, sendo 16 homens, 25 mulheres e 26 crianças, que moram em nove pequenas casas de madeira sem luz elétrica regular, água potável corrente ou saneamento (Figura 9). Uma única fossa negra, o banheiro comunitário, atende a todos. A água para todas as necessidades é retirada de duas cacimbas. De modo geral, índios migrantes, de todas as etnias, têm muita dificuldade de inserção no mercado de trabalho, e os poucos que conseguem emprego trabalham como carregadores braçais, vendedores ambulantes de artesanato e doces regionais, ou como pedreiros na construção civil (Bernal, 2009).


Alguns homens da comunidade Y'Apyrehyt trabalham na prestação ocasional de serviços na cidade, sobretudo na montagem de coberturas de galpões com palha da palmeira de inajá. A maior parte da renda financeira advém dos turistas que visitam a comunidade - incluída nos anúncios das empresas de turismo -, interessados em conhecer o Ritual da Tucandeira e venda de artesanato (Figuras 10 e 11). Desse modo, o Ritual da Tucandeira passou por um processo de ressignificação e assumiu características estéticas de coreografia artística e objeto para troca econômica.



Nessa comunidade há vários anos não há rito de pajelança, e poucos falam sobre o poratin, apesar de ele estar presente em sua entrada, conforme se vê na Figura 8. O único pajé que lhes assistia retornou às terras ancestrais, na reserva localizada no município de Maués.

Uma ou duas vezes por mês, os agentes públicos de saúde aparecem e ocasionalmente encaminham algum doente ao ambulatório médico do SUS, nas imediações da comunidade. Os partos são realizados por uma índia parteira. Na eventualidade de maior demora do início do trabalho de parto, a grávida é levada ao ambulatório, de onde é transferida para o hospital mais próximo.

A alimentação desses indígenas baseia-se em alimentos comprados nos quiosques localizados nas imediações, no conjunto residencial Santos Dumont. Os elementos principais da dieta são farinha de mandioca, peixe, banana-pacová verde, feijão e arroz. Da banana verde fazem um mingau que é a base alimentar das crianças.

A proximidade da igreja neopentecostal, frequentada por alguns adultos da comunidade Y'Apyrehyt, pode ter contribuído para a redução da importância do pajé, atualmente, e para a releitura do Anhang ou Ahiag Kag, antes demonizado pelo elemento colonizador católico e agora interpretado pelos protestantes como anúncio do mal e da manifestação demoníaca, que só pode ser combatido com orações e cantos de louvor. Por sugestão de um pastor, uma placa de madeira marcando a presença de Jesus Cristo foi fixada na viga de sustentação da cobertura de palha do galpão onde ocorre o Rito da Tucandeira (Figura 12). Assinale-se, porém, que a mesma é retirada durante o referido ritual.


Ressignificação dos elementos sagrados e produção da saúde

O Ritual da Tucandeira é a manifestação cultural ancestral que permaneceu viva na comunidade sateré-mawé Y'Apyrehyt, envolvendo adultos e crianças. Essa sobrevivência cultural está inserida na malha de significações socioculturais e comporta uma dupla resposta, em termos de benefícios. A primeira diz respeito à saúde, uma vez que proporciona melhoria na defesa do organismo, conforme veremos a seguir; a segunda é de natureza econômica, pois as sessões especialmente preparadas para os turistas geram dinheiro para a compra de alimentos.

No que concerne aos benefícios à saúde do Ritual da Tucandeira, cabe ressaltar as possíveis resultantes biológicas das ferroadas das formigas. Ao injetar ácido fórmico no organismo, essas ferroadas contribuiriam para a defesa endógena do indivíduo, aumentando a imunidade contra doenças. A questão foi abordada por Nunes Pereira (2003, p.68): "As ferroadas das tocandiras não são aplicadas apenas nessas provas de iniciação; os Maués acreditam na ação curadora do ácido fórmico, que lhes é peculiar, pois, quer nos acessos de paludismo, quer nas gripes, quer noutra enfermidade qualquer, cuidam de aplicá-las sobre a parte do corpo onde presumem estar localizada a moléstia". De fato, na comunidade sateré-mawé Y'Apyrehyt, sem qualquer vínculo com o rito de iniciação, a ferroada de uma ou duas formigas tucandeiras é usada para a cura de dores articulares e cólicas menstruais. E por ser impossível precisar onde e quando esse ritual teve origem, seria inadequado separar o componente social da utilidade médica, ambos unidos pelo conhecimento historicamente acumulado desse povo.

Há um importante registro fotográfico - realizado por Harld Schultz, do Museu Paulista - de uma mulher craô esfregando folhas de urtiga, rica em ácido fórmico, na filha que fora ferroada por um escorpião (Figura 13). O autor registrou: "A estranha terapêutica fez com que a menina dormisse. Ao despertar, estava completamente curada" (Schultz, s.d.). No mesmo trabalho, o autor assinala a prática da sangria (Figura 14), com o seguinte comentário: "Para os índios, a sangria é um estimulante dos sentidos e fator de resistência à dor. As feridas produzidas com dentes de tubarão são ungidas com sumo de bagos de folhas de pimenteira, processo que parece ajudar o fechamento das feridas, por contração".



Esses, entre outros saberes historicamente acumulados como tratamento de doenças, estão plenos de utilidade (Botelho, 2005). A saliva das formigas tucandeiras, quando inoculada no indivíduo pela ferroada, e o contato por fricção da folha da urtiga, planta da família das urticáceas, produzem dor local devido à ação do ácido fórmico. Essa substância, também conhecida como ácido metanoico (CH2O2), é o mais simples dos ácidos orgânicos. Desde o século XV alquimistas sabiam que certas formigas desprendiam essa substância. O termo fórmico tem origem no latim formica, que significa formiga, pelo fato de ter sido isolado pela primeira vez por meio da destilação do corpo de uma formiga. Na medicina, em alguns casos, esse ácido é usado no tratamento das dores articulares. O contato com ele também provoca forte reação irritativa, uma hipersenbilidade de contato caracterizada por eczema da pele no local, induzindo respostas endógenas que afetam a imunidade do corpo por meio de fatores específicos, controlados, em última análise, por alguns genes. As ações curativas nos dois casos documentados por Schultz, na mordida da tucandeira e em muitas outras usadas pelos demais povos indígenas, nos quatro cantos do mundo, foram consolidadas ao longo dos séculos (Botelho, 2004).

Também significativo é o símbolo memorial puratin ou poratig, o Remo Mágico. O objeto mede cerca de 140cm e apresenta incisões de cor branca formando desenhos geométricos que narram os bons eventos do grupo. O termo puratin ou poratig, com forte simbolismo sedentário-agrícola, é formado pela união de duas palavras: pu'ra, a pá usada para torrar farinha de mandioca e guaraná, e tig, que significa pintado, escrito (Bernal, 2009). O relato da índia Maria Lopes Trindade, de Ponta Alegre, colhido por Uggé (s.d., p.92), expressa a simbologia do Remo Mágico:

No começo do mundo, o Mal, veado vermelho, perseguia o Bem (Deus) Anamarehit, levando o puratin para matá-lo. O veado vermelho por várias vezes tentou com ciladas matar o deus, mas nunca conseguiu. No fim, o Deus conseguiu tomar o puratin das mãos do veado vermelho (o diabo) e matou o irmão dele mais novo. Durante esta luta, os homens ficaram escondidos de vários modos e lugares. E quando o Deus saiu da luta vencedor, as pessoas juntaram-se de novo, e o Deus separou as pessoas e deu para elas nomes novos conforme o lugar e o tipo de esconderijo. Por isso, ainda hoje os mesmos Sateré-mawé são formados por vários grupos: Cutias, Inambu, Guaraná, Gavião... depois disso o Deus Anumarehit entregou o puratin aos Sateré-Mawé .

Na compreensão do mal, também como pressuposto da doença que antecede a morte temida, destacou-se a concepção mítica do anhang (Uggé, s.d.), uma entre as muitas entidades míticas indígenas defendidas pelo pajé e rudemente demonizadas pelo colonizador. Por sua vez, Esteves (2007, p.4) amplia a compreensão do significado simbólico desse personagem mítico, por ele grafado ahiag kag: "Etimologicamente significa cabeça de visagem e serve para identificar instrumentos como: computador, filmadora, gravador, TV e rádio. Este termo é aplicado geralmente para instrumentos que provocam algum tipo de som ou que são estranhos para o lugar".

Como os pajés, em muitas circunstâncias - especialmente quando defendiam ritos e mitos - representaram um dos maiores obstáculos ao avanço colonial, a estratégia das Coroas espanhola e portuguesa esteve também centrada em sua desmoralização e mesmo extermínio (Botelho, 2004; Botelho, Costa, 2006). Não é de estranhar o destaque dado por Nunes Pereira (2003, p.86) à imagem de um pajé sateré-mawé e seu ajudante, bebendo cachaça e fumando cigarro (Figura 15): "Antigamente, os pajés da tribo eram poderosos... O paricá foi abolido e o guaraná também, sendo substituídos pela cachaça...".


A reconstrução do poder do pajé, para além da dimensão política, também tem um sentido simbólico, relacionado à apropriação, por parte dos grupos indígenas, de novas estratégias de curas, fundamentadas numa lógica racional-instrumental própria aos conhecimentos científicos da cultura hegemônica. Em outras palavras, a menor crença no pajé ocorreu num contexto de transformações em que certas culturas indígenas reconstruíram mitos e ritos, ao mesmo tempo que os indígenas que se reinseriam na sociedade envolvente acabaram na condição de consumidores de medicamentos industrializados.

De acordo com análise de Kapfhammer (2004), nas últimas cinco décadas as mudanças relativas ao poder dos pajés sateré-mawé não se deveram somente à ideologia dos colonizadores ou ao proselitismo evangélico-cristão. Para o autor, a assunção de princípios bíblicos e de certos valores morais do cristianismo provocou, entre os Sateré-mawé evangélicos, uma crítica acirrada ao xamanismo, que redundou na negação e na desqualificação do pajé. O foco principal dessa crítica consiste no fato de o pajé identificar a enfermidade como resultado de um 'ato mágico danoso'. Nesse sentido, no ritual de cura, o diagnóstico da doença envolve a identificação de 'quem a causou', seja por meio de feitiços ou de outras formas de encantamento. Para os Sateré-mawé evangélicos, essa posição da pajelança tem repercussões fortes no grupo, uma vez que sempre enseja vingança, ódio e conflitos entre os parentes. Por essa razão, o pajé não é bem-vindo entre os Sateré-mawé evangélicos.

Considerações finais

O estudo aqui apresentado entrelaçou a comunidade Y'Apryrehyt e a sala de aula universitária (Figura 16) e propiciou reflexões em torno das razões pelas quais os Sateré-mawé conseguiram sobreviver ao processo colonial, manter seu idioma, as âncoras étnicas e buscar novas territorializações. Os três trabalhos de campo realizados constituíram um encontro intercultural, pelo modo como, por um lado, possibilitaram ao tuxaua Moisés conhecer o modo como a ciência interpreta as ferroadas das formigas tucandeiras e, por outro permitiram que alunos de medicina presenciassem e entendessem as experiências historicamente acumuladas desses indígenas.


Para os alunos foi importante observar que eventos culturais como o Ritual da Tucandeira são constantemente reinventados, o que evidencia o caráter dinâmico da cultura. Tais transformações na cultura sateré-mawé não foram operadas apenas por imposições culturais exógenas, mas ocorreram igualmente por força de dinamismos endógenos que, num processo dialético, estabeleceram novas representações do ritual.

Assim, constatou-se que, na luta pela sobrevivência e pela afirmação étnica do grupo Sateré-mawé em meio urbano, instaurou-se um constante movimento de construção/desconstrução/reconstrução cultural que produziu novos significados e usos dos elementos culturais em foco nos trabalhos de campo: o Ritual da Tucandeira e outros usos da ferroada da formiga. Se, anteriormente, esse ritual significava a passagem da infância à idade adulta e atribuía ao menino a condição de homem, hoje agrega outros significados, vinculados ao caráter de espetáculo aos turistas visando à obtenção de renda. De modo análogo, se, em momento anterior, as ferroadas das formigas tucandeiras tinham a função precípua de marcar os limites entre dois estágios da vida - o menino transformado em homem por suportar a dor, mostrando-se assim preparado para exercer o papel masculino na comunidade -, nos dias atuais, na comunidade sateré-mawé Y'Apryrehyt, as ferroadas das formigas são também utilizadas como método de tratamento para certos tipos de dor.

Recebido para publicação em agosto de 2009.

Aprovado para publicação em janeiro de 2011.

Errata

No artigo “Comunidade sateré-mawé Y’Apyrehyt: ritual e saúde na periferia urbana de Manaus, publicado em História Ciências Saúde Manguinhos, v.18, n.3, jul-set. 2011, p.723-744, os autores João Bosco Botelho e Valéria Augusta C. M. Weigel, à página 732, na figura 6, identificaram como “Formiga tucandeira (Dinoponera grandis)” o que na verdade é uma cortadeira do gênero Atta. Em anexo apresentam a imagem real da tucandeira, nome popular da espécie Paraponera clavata, gênero Paraponera, coletada em 27 fev. 2012, no período matutino, às margens do rio Tarumã-Açú, zona rural de Manaus, por Nilson Sateré, da Comunidade Sateré-Mawé Y’apyrehyt. Os autores lastimam a falha e colocam-se à disposição dos leitores para quaisquer outros esclarecimentos.

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    João Bosco BotelhoI; Valéria Augusta C.M. WeigelII
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2011

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2009
    • Aceito
      Jan 2011
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