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O corpo como objeto e fonte para produção de sentidos

The body as object and source in the production of the senses

LIVROS E REDES

Nádia Maria Weber Santos

Professora do Programa de Pós-graduação em Memória Social e Bens Culturais/Centro Universitário Unilasalle, Canoas (RS); pesquisadora associada da École des hautes études en sciences sociales. nmws@terra.com.br

Corpo pressente. Traduz. Reproduz. Intui. Presentifica. Imagina. Simboliza. Não mente. Veicula. Dói. Mostra. Os estudos e as análises sobre o corpo (como objeto e fonte) tornaram-se mais efetivos nas ciências sociais e humanas a partir do século XX, sob diferentes enfoques. Bem no início, mas com os dois pés ainda no século XIX, Freud nos apresentou o corpo que reprime. Sua concepção da repressão do instinto sexual - o mais avassalador de todos os instintos - provocando neuroses constitucionais da psique humana originou um corpus teoreticus que contaminou, ideologicamente, todo o pensamento do século que acabava de começar. Tornou-se a sexualidade reprimida a causa de tudo, e o conceito de sublimação veio aliviar a consciência dos pecados cometidos. O mérito desse neurologista - Freud não era psiquiatra - foi trazer à tona toda a podridão dos falsos valores, disfarçada na moralidade burguesa do século anterior, escondida por detrás das pesadas e grossas cortinas das cortes e salões: os corpos de homens e mulheres eram sexuais e tinham prazer com isso. A psicanálise, tal qual avatar de uma nova era, pretendendo tornar-se um dogma sobre o corpo e a mente, dominou o século XX. Ideologicamente chegaram-nos a certeza e a reflexão sobre o 'corpo reprimido'. Muito significativo em um século que via nascerem os regimes totalitários e cometerem-se as maiores atrocidades sobre milhões de corpos simultaneamente...

Corpo, porém, não é só instinto biológico; também é psique (a alma, dos 'antigos'). Talvez ambos se tenham rebelado contra tanto 'redutivismo', contra essa maneira patológica de perceber o que é nosso mais caro veículo, posto que sem ele não existimos. É sabido que a relação corpo/mente constitui problema de difícil solução, e a pergunta se o corpo ou a psique é o fator preponderante será sempre respondida, segundo Jung (1997, p.69), conforme diferenças de caráter e de temperamento: "Tudo o que se pode observar empiricamente é que processos do corpo e processos mentais desenrolam-se simultaneamente e de maneira totalmente misteriosa para nós. É por causa de nossa cabeça lamentável que não podemos conceber corpo e psique como sendo uma única coisa; provavelmente são uma só coisa, mas somos incapazes de conceber isto."

Outras reflexões e teorias também pensaram o corpo no século passado, conferindo-lhe pesadas correntes atreladas ao controle social, como a noção de corpos regulados pelos saberes e pelos poderes da ciência (da medicina, por exemplo), da política, da técnica etc. Michel Foucault, Walter Benjamin e Hannah Arendt são exemplos de grandes pensadores que influenciaram nossas análises a respeito desse veículo de nossa alma. Eles nos falam sobre regimes totalitários, práticas de exclusão de hospícios, hospitais e presídios, corpos violados nas guerras etc.

No entanto, talvez nada se compare ao que a tecnologia, nas várias áreas, tem feito, desde os últimos decênios do século XX até estes primórdios de novo milênio: as biotecnologias, as tecnologias brancas, as tecnologias cibernéticas e informatizantes, as neurociências - todas elas dão a ver um novo corpo, que vai além daquele controlado pelos poderes mencionados - quase como se os androides de Blade Runner ganhassem vida. Experiências genéticas, clonagem humana, próteses biológicas variadas, enfim, uma gama de novos fatores é a cada momento introduzida em nossas reflexões sobre o que será de nossos corpos. E o que dizer da profusão de medicamentos e produtos químicos nos alimentos que artificializam nossas células, detonando doenças graves e sem cura?

Corpo: identidades, memórias e subjetividades é amostra mais do que contundente do quanto esse 'objeto-fonte' é cada vez mais vivenciado e estudado, agora por outra vertente, a da cultura. O corpo já não é matéria exclusiva da ciência médica ou biológica, o que enriquece e torna profícuas outras análises.

Obra derivada de colóquio homônimo, realizado em maio de 2008 na Fundação Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro, traz amostra significativa do que é produzido academicamente em diversas áreas do saber sobre essa matéria tão controversa e instigante. Sensibilidade e rica diversidade analítica são as marcas dos variados artigos desse livro, que congrega doutores em história, comunicação, teoria da literatura, filosofia, história da arte e da arquitetura.

Como aponta Nísia Trindade no prefácio, o corpo e suas interlocuções são temas cada vez mais presentes em discussões nas diversas áreas do saber e da intelectualidade brasileira. E acrescento: isso corresponde ao momento em que o corpo está cada vez mais exposto, cada vez mais manipulado pela informação, pela imagem midiática e pela biotecnologia. Ponto positivo: quanto mais exposto, mais estudado sem preconceitos.

É obra atual, original, porque revela novas formas da inscrição do 'corpo' nas discussões acadêmicas, atravessando temporalidades variadas e conduzindo o leitor por sendas analíticas inovadoras. Nelas, uma verdadeira 'dialética do corpo' é encontrada nos diversos olhares: os corpos analisados são individuais e sociais; são marcados e deixam marcas; são vividos e mortificados; são 'o mesmo' e 'o outro'. Possuem marcas de historicidade/sociabilidade e marcas de sensibilidade/subjetividade.

Mesmo não sendo obra direcionada à história cultural, vertente cuja metodologia trabalha com noções de representação, imaginário, sensibilidades e subjetividades, esses focos estão contemplados na maioria dos textos, senão em todos. Dividida em cinco partes - corpo e reflexão histórica; escritas de si e do tempo; é com o corpo que também lembramos; corpo alegórico; e corpos no cinema -, cujos artigos se entrecruzam nos múltiplos olhares, a obra traz à luz os significados simbólicos do que os corpos expressam e constelam nas reflexões dos autores, seja em seus movimentos (dança, espaço urbano e deslocamento), estranhamentos (mutilações e monstruosidades), sensações (olfato e outros sentidos) ou imagens (pictóricas, cinematográficas e diagnósticas): identidades, subjetividades e memórias.

O corpo é a um tempo representação e concretude. É exteriorização. Assim, afirmo que os pensamentos dos autores desses ensaios, todos eles pesquisadores em suas áreas, demonstram estar muito mais vinculados a maneiras inovadoras, criativas e 'culturais' de 'dar a ver o corpo'. Afinal, é também nesse mundo da cultura, do simbólico, que se inscreve o corpo historicamente. Mesmo em suas repressões e desconstruções.

Corpo seduz e subverte: no artigo de Eliane R. Moraes, "Uma prostituta no limiar do Modernismo", um olhar que cruza o texto literário (Madame Pommery, de Hilário Tácito, década de 1920) com a dimensão histórica do corpo que seduz e subverte a ordem existente deixa entrever uma sociedade paulistana burguesa em processo de transformação. Entre a ficção romanesca e a crônica de costumes, da ironia ao deboche, percorremos o texto a ver nos corpos das prostitutas 'limpas e finas', o refinamento de uma sociedade que se queria asséptica, aceitável em suas práticas.

Corpo é performance: em revisão de ideias sobre o corpo, Nísia Villaça, em "Imageiros do contemporâneo: representações e simulações", se propõe pensar o corpo em sua relação com a imagem - imaginários e performances - que o compõe no mundo. "Pensar o corpo hoje é pensar suas performances, numa visão que o contempla como um dos elementos constitutivos do amplo universo semiótico, em que se produzem as 'subjetividades'". Essa assertiva da autora está presente, em ideia, em todos os capítulos desse livro. Relevância dada à história do corpo, é importante notar a consciência semiológica da transformação do complexo biopsicossociológico. Assim, o corpo 'pensa'.

Corpo é dor e virtude: ideia criativa e original, formulada sem preconceitos, perpassa o excelente artigo de Márcia Abreu, "Lascívia e contrição: leituras ocasionadas por um elogio fúnebre", remetendo-nos ao "sentido das práticas corporais a partir da leitura de um elogio fúnebre". Engana-se o leitor se pensar que se trata de ode ao corpo dilacerado pela religião ou àquele 'elogiado' pelas práticas sexuais pervertidas analisadas depois do advento da psicanálise. As mui dolorosas mortificações que uma jovem nobre de 19 anos se impingia e que foram relatadas em obra de 1758 (revista em 1799), dada à 'censura' por seu autor (padre Teodoro Almeida), foram matéria de análise para Abreu. Vários olhares, várias interpretações, várias leituras, e o que para o padre poderia ser publicado (contrição e virtude), para o censor era 'impublicável' (luxúria e libertinagem). Em curto espaço de tempo, as leituras mudam e se podem opor.

Corpo decifra o sujeito: em "Escritas de si e do tempo: o corpo como metáfora", a partir de assertiva que atribui ao corpo local de centralidade na decifração do sujeito, a historiadora Mônica Pimenta Velloso aborda o corpo, a dança e suas relações de ruptura com o 'ordinário cotidiano', através das obras de arte modernas, seja o corpo pintado, fotografado, 'simplesmente dançado' (Isadora Duncan) ou mesmo 'narrado', nas crônicas de João do Rio. E afirma que, no espírito moderno, a dança conduz o corpo a nova percepção (subjetividade) de si - "a dança pode fazer-se escritura". Vale muito a pena o leitor se deixar conduzir por esse caminho que desemboca em terras brasileiras, mais especificamente no Rio de Janeiro da Belle Époque, em que João do Rio e o maxixe são interlocutores que 'inventam' um 'corpo brasileiro', utilizando-se das transformações do paradigma clássico ao modernista.

Corpo vê: com base no diário de Gonzaga Duque (escrito entre 1900 e 1904), Vera Lins, em "Quando a visão se faz gesto", problematiza e discute a urbanidade e a transformação do espaço urbano moderno carioca através do 'sentido da visão' desse cronista e crítico de arte. As ruas, as praias, os costumes, as mulheres, a falsa moral são elementos de suas crônicas, nas quais o crítico, argumenta a autora, faz tomar forma seu desejo de fazer da cidade uma obra de arte. Assim, o corpo é um "entrelaçado de visão e movimento", e nessa imaginação Gonzaga Duque estetiza sua visão do Rio de sua época.

Corpo é cor, memória; é efêmero: a arte contemporânea brasileira e sua relação com o corpo é o tema do significativo artigo de Viviane Matesco, "Corpo e subjetividade na arte contemporânea brasileira". Analisando a arte de Hélio Oiticica, Lygia Clark e Barrio, a autora mostra como o corpo torna-se centro das atenções e espaço de autoconhecimento, trazendo à tona o caráter efêmero da arte e dos sentidos do corpo enquanto receptáculos e objetos dessa mesma arte.

Corpo é 'arquivo vivo': Maria Antonieta Antonacci, em "Corpos negros em zonas de contato interculturais", passeia pelo país de nossos poetas, intelectuais e teatrólogos, para recompor com sensibilidade as evidências da cultura negra marcada nos corpos saudáveis ou maltratados. As tradições orais sobre corpos negros de escravos e africanos são examinadas pela autora a partir de várias fontes: confrontos interculturais.

Corpo é memória olfativa: Joëlle Rouchou presenteia o leitor com lindas pinceladas da memória subjetiva e sensorial de imigrantes judeus egípcios vindos ao Rio de Janeiro em 1956-1957. Seu artigo, "Memória do olfato: o cheiro de jasmim", partindo de expressão muito significativa, "dimensões traumáticas da felicidade", expõe com delicadeza as "marcas de sensibilidades" que ficaram na memória dos sentidos e surgem nas práticas diárias e familiares dessas pessoas 'exiladas do Mediterrâneo'.

Corpo é urbs: Paola Berenstein Jacques, no capítulo "Corpografias urbanas: a memória da cidade no corpo", demonstra, ao dialogar com vários teóricos do urbano, que corpo e cidade se condicionam, configuram-se mutuamente, inscrevendo-se um no outro, sendo a temporalidade e a intensidade das experiências determinantes para essas 'cartografias corporais'.

Corpo 'pulsa': artigo de Cláudia de Oliveira, "A carioca de Pedro Américo: o corpo pulsante" problematiza através da metáfora dessa obra pictórica um espectro de representações conflitantes do corpo, naquele momento do Brasil imperial; seja a própria ideia de um nu feminino, seja a forma pela qual a nação se está estruturando racialmente. Através da temática do erotismo, fala do estereótipo da mestiçagem, 'corpo pulsante' de mulher ou da terra brasilis.

Corpo é forma e cor; é operante: através de gravuras de Fayga Ostrower e seguindo Merleau-Ponty em sua assertiva "o mundo não é o que eu penso, é o que eu vivo", Maria Luiza Luz Távora discute, em "Das formas e cores - Fayga Ostrower - do corpo operante", as relações do corpo como constituinte do mundo através da experiência artística, como um corpo operante de significados e transformações.

Corpo é contradição: em "Corpos estranhos: Frankstein e o objeto eclético", Marize Malta traça correspondências simbólicas entre o romance de Shelley e o ecletismo decorativo. Através da intertextualidade (literatura e arte decorativa) a autora revela nova compreensão/dimensão do corpo e do belo no século XX.

Corpo é aventura transgressiva: num dos três artigos do livro sobre corpos no cinema, "O que pode um corpo? Cinema, biopoder e corpos-imagens que resistem", Ivana Bentes relaciona o corpo com um "dispositivo coprodutor de subjetividades", porém inova ao interpretar, brilhantemente, os corpos nos filmes de David Cronenberg, em sua experiência-limite, entre o biológico e o tecnológico.

Corpo é transparência: fazendo dialogarem imagem fotográfica, imagem fílmica e imagem diagnóstica, Ieda Tucherman apresenta, em "O corpo transparente: o imaginário biotecnológico na ficção cinematográfica", instigante via de reflexão: aproxima os corpos detectados e tornados 'transparentes' pela medicina diagnóstica (raios X) e medicina legal/policial (autópsias) do 'corpo cinematográfico' tornado explícito pelo advento dessas técnicas.

Corpo é sensibilidade partilhada: no último artigo do livro, "Corpo, identidades, memórias e sensibilidades em Lição de amor (Eduardo Escorel, 1976)", Alcides Freire Ramos parte de reflexões sobre a noção de sensibilidade na história cultural inserida na obra da historiadora Sandra Pesavento e as cruza com o imaginário do filme (que focaliza uma família burguesa), o romance que o inspirou (Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade) e aspectos históricos da sociedade brasileira, como a modernização conservadora e a censura do autoritarismo da ditadura militar dos anos 1970. Encontra contradições, ambiguidades e cumplicidades nessas sensibilidades compartilhadas que o cinema pode revelar.

Há no livro fios condutores que se coadunam em torno de uma diversidade de objetos, fontes, 'campos teóricos' e áreas do saber. Sendo o corpo a matéria-prima das reflexões, os textos se articulam em torno de suas representações, sensibilidades, materialidades e simbolismos. Dialogam. E nos levam a ter a certeza de que "o corpo é lugar de produção de sentido"; não é mais produto de repressão. Pensar o corpo não passa mais por pensá-lo como consequência de repressão instintiva; é antes pensá-lo junto com a psique e, portanto, junto com a cultura. Afinal, já estamos no século XXI.

  • JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica Petrópolis: Vozes. 1997.
  • O corpo como objeto e fonte para produção de sentidos

    The body as object and source in the production of the senses
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Set 2011
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