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O Laboratório de Biologia Infantil, 1935-1941: da medicina legal à assistência social

The Laboratório de Biologia Infantil, 1935-1941: from forensic medicine to social assistance

Resumos

Analisa a história do Laboratório de Biologia Infantil e discute os temas da infância e adolescência publicados nos Arquivos de Medicina Legal e Identificação do Rio de Janeiro. Destaca os contextos político-institucional e intelectual que induziram médicos, magistrados, educadores e políticos a debater a infância na década de 1930, enfatizando a figura do seu criador e primeiro diretor do periódico, Leonídio Ribeiro. O Laboratório foi capítulo importante na história da infância dita abandonada e delinquente, ao inaugurar uma rotina médico-científica de estudo, tratamento e assistência no âmbito de instituições criadas para reprimir, cuidar e curar.

Laboratório de Biologia Infantil; medicina legal; Leonídio Ribeiro (1893-1976); história; Brasil


This analysis of the history of the Laboratório de Biologia Infantil (Children's Biology Laboratory) discusses topics related to childhood and adolescence published in the Arquivos de Medicina Legal e Identificação do Rio de Janeiro. It underscores the political-institutional and intellectual contexts that prompted the 1930s debate about childhood among physicians, teachers, educators, and politicians, with a special focus on Leonídio Ribeiro, founder and first editor of the journal. The Laboratório inaugurated a medical and scientific routine for studying, treating, and providing assistance within institutions that had been created to repress, care for, and cure, and as such it represented an important chapter in the history of so-called abandoned and delinquent childhood.

Laboratório de Biologia Infantil; forensic medicine; Leonídio Ribeiro (1893- 1976); history; Brazil


ANÁLISE

Renato da Silva

Professor do Programa de Mestrado em Letras e Ciências Humanas/Escola de Educação, Ciências, Letras e Humanidades/Universidade do Grande Rio. Rua Professor José de Sousa Herdy, 1160 25071-202 - Duque de Caxias - RJ. redslv@hotmail.com

RESUMO

Analisa a história do Laboratório de Biologia Infantil e discute os temas da infância e adolescência publicados nos Arquivos de Medicina Legal e Identificação do Rio de Janeiro. Destaca os contextos político-institucional e intelectual que induziram médicos, magistrados, educadores e políticos a debater a infância na década de 1930, enfatizando a figura do seu criador e primeiro diretor do periódico, Leonídio Ribeiro. O Laboratório foi capítulo importante na história da infância dita abandonada e delinquente, ao inaugurar uma rotina médico-científica de estudo, tratamento e assistência no âmbito de instituições criadas para reprimir, cuidar e curar.

Palavras-chave: Laboratório de Biologia Infantil; medicina legal; Leonídio Ribeiro (1893-1976); história; Brasil.

ABSTRACT

This analysis of the history of the Laboratório de Biologia Infantil (Children's Biology Laboratory) discusses topics related to childhood and adolescence published in the Arquivos de Medicina Legal e Identificação do Rio de Janeiro. It underscores the political-institutional and intellectual contexts that prompted the 1930s debate about childhood among physicians, teachers, educators, and politicians, with a special focus on Leonídio Ribeiro, founder and first editor of the journal. The Laboratório inaugurated a medical and scientific routine for studying, treating, and providing assistance within institutions that had been created to repress, care for, and cure, and as such it represented an important chapter in the history of so-called abandoned and delinquent childhood.

Keywords: Laboratório de Biologia Infantil; forensic medicine; Leonídio Ribeiro (1893- 1976); history; Brazil.

A história do Laboratório de Biologia Infantil (LBI), criado em julho de 1935 no Brasil, representa um bom exemplo institucional de convivência das políticas ambíguas ou dualistas destinadas a cuidar das crianças classificadas como abandonadas e delinquentes. No intuito de promover o controle da delinquência infantil, podemos observar, no funcionamento do LBI, como as formas assistenciais se misturavam com ações repressoras. Sugiro, neste trabalho, que no breve período de existência do Laboratório houve paulatino enfraquecimento do caráter controlador e repressor, por conta de uma realidade que as práticas médicas institucionais foram revelando e que era mais grave do que a delinquência infantil: menores 'fichados' pelo abandono e pelo crime eram menores 'doentes'. A constatação das doenças que atingiam as crianças brasileiras exibiu uma realidade que 'ameaçava o futuro' da nação.

Acredito, neste caso, que os direitos das crianças começavam a ser debatidos menos pelos caminhos das políticas assistenciais do que das políticas repressoras. Em consonância com a mentalidade de controle e repressão adotada e desenvolvida pelo governo, surgiram formas coexistentes de tratar algumas questões que historicamente incomodavam médicos e juristas. Temas como raça, trabalho, mulher e criança assumiram novos contornos no primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945) e temas antigos receberam novas formas de tratamento. Nesse sentido, o LBI realizou uma pequena, mas valiosa radiografia das crianças brasileiras desamparadas ou daquelas denominadas delinquentes. Julgo que os exames realizados no Laboratório podem fornecer indícios das reais condições de vida dos menores que se encontravam sob a tutela do Estado na época. Eles propiciam, também, formar um panorama de como o Estado varguista idealizou e implementou suas políticas sociais dirigidas às crianças abandonadas e infratoras. O LBI surgiu, então, nos contextos político-institucional e das ideias da década de 1930. Foi um dos entrecruzamentos do Estado varguista e suas políticas sociais com o projeto de regeneração nacional defendido pela medicina naqueles anos.

Divido a história do LBI em três fases. Idealizado em 1935 pelo médico legista Leonídio Ribeiro (1893-1976), o Laboratório começou a operar de fato em julho de 1936. Seu primeiro período de ação foi marcado pela influência dos trabalhos do Instituto de Identificação do Rio de Janeiro (IIRJ). O LBI, sob essa primeira direção de Leonídio Ribeiro, priorizava práticas médicas legais que identificavam (ou fichavam) e classificavam crianças abandonadas e delinquentes. Nessa fase (1935-1938), que pode ser nomeada período da identificação, Leonídio Ribeiro e um grupo de médicos e magistrados fizeram mais do que identificar os menores delinquentes: eles descobriram menores 'doentes'.

Com relação à fase de 1938 a 1939, procuro mostrar que ocorreu uma sutil mudança na feição da própria instituição. Seu novo diretor, o médico pediatra Meton de Alencar Neto, abriu espaço para a adoção de novos procedimentos no Laboratório. Os exames de psicologia, pedagogia e clínica médica conquistaram territórios antes pertencentes às áreas de identificação e medicina legal, e o serviço de assistência social passou a ser reconhecido como aspecto central para o tratamento de crianças abandonadas e delinquentes.

A terceira fase, entre 1939 e 1941, representou a extinção do LBI como órgão autônomo, mas não o fim dos seus serviços, que continuaram a ser oferecidos no Instituto Sete de Setembro (ISS). Entre a criação do LBI (1935) e o fim do ISS (1941), a ideia de infância abandonada e delinquente como questão pública sofreu rápidas e importantes transformações. Tratada inicialmente como caso de polícia, descobriu-se que a delinquência infantil era também uma questão de saúde e de educação.

O Laboratório de Biologia Infantil e os contextos político e social da década de 1930

Os debates em torno do tema infância foram deflagrados por uma fase de reformas políticas, sociais e econômicas no primeiro governo de Vargas, quando se entendia que o desenvolvimento científico da medicina e do direito passava primeiramente pela montagem de um aparelho eficaz de identificação social (Stepan, 2004, p.351-352). Nesse sentido, as principais reformas no âmbito institucional daquele período estiveram relacionadas a setores cujos objetivos eram ordenar e controlar a sociedade - e a medicina legal ocupou um espaço de destaque. Entre pareceres e discursos morais, médicos legistas circulavam em laboratórios, gabinetes da polícia e corredores dos tribunais. Assim, os debates em torno do código penal e também sobre a burocracia de controle e repressão do Estado tiveram eco nos trabalhos apresentados no IIRJ.

Outro aspecto relevante no período é o da eugenia. Nancy Stepan (2004), ao analisar as origens do movimento eugênico no Brasil, argumenta que a década de 1920 foi marcada pelo otimismo no país. A autora compara a conjuntura política, econômica e social brasileira com a europeia, na qual dominavam questões acerca das consequências da guerra, da perda da hegemonia do continente no cenário mundial e da degeneração nacional. No Brasil ocorreu justamente o contrário; aquele momento histórico produziu um "novo otimismo", representado, entre outros elementos, pelo pensamento eugênico, com a crença na possibilidade da regeneração nacional por meio da regeneração racial: "A longo da década de 1920, a eugenia esteve associada ao patriotismo e à reivindicação de um papel mais importante para o Brasil nos assuntos internacionais" (p.336).

Segundo Stepan (2004), as origens da eugenia no Brasil também podem ser compreendidas como uma resposta a questões sociais como a miséria e o estado enfermo em que se encontrava a população trabalhadora. No período pós-1930 essa sensação de otimismo foi reforçada. A ideia da "fundação de um novo Estado, verdadeiramente nacional e humano" foi a retórica que marcou os discursos e as propostas políticas da época (Gomes, 1994, p.175). O trabalho foi o principal tratamento para os indivíduos socialmente doentes. A valorização do trabalho passou pela desmemorização do passado colonial em relação aos homens que exerceram atividades, principalmente agrícolas. Esquecer o trabalho escravo e valorizar o trabalho regenerador do Estado republicano - esta era a ideia a ser internalizada pela sociedade. Luis Ferla (2009), nesse sentido, aponta a especialização médico-legal que considerou o trabalho objeto de reflexão bastante extensa. A medicina legal atuou no auxílio da racionalização científica da produção, procurando evitar acidentes e doenças do trabalho, mas foi na prescrição do tratamento da degeneração social que os médicos legistas defenderam o trabalho como o principal antídoto.

Tanto atuando dentro dos muros das prisões quanto no interior da fábrica, a medicina legal compartilhava e conferia cientificidade à valorização do trabalho que impregnava a ideologia e a política do Governo Vargas dos anos 30. A retórica varguista de valorização do trabalho pretendia fornecer suporte ideológico ao reordenamento do mercado do trabalho que se empreendia então sob a direção do Estado ... Por outro lado, o estigma que deveria desaparecer no trabalhador deveria ser reforçado no 'desocupado'. Se o trabalho era terapia e regeneração, inversa mas coerentemente o não trabalho era considerado causa paradigmática do ato antissocial. Por isso, juntamente com o 'menor', o chamado 'vadio' aparecia como pré-delinquente por excelência (p.243).

A descoberta de que o Brasil era um país doente e seus males tinham cura fortaleceram o discurso da regeneração. Num primeiro momento, ações sanitárias para melhorar as condições da saúde da população e ideias eugenistas de regeneração contribuíram para a construção de algumas políticas médicas efetivas. A nação seria absolvida da sua condenação racial (Lima, Hochman, 1996), isto é, não estaria condenada biologicamente; ela se poderia regenerar principalmente pelas mãos da ciência, do saneamento e, agora, do trabalho. As políticas trabalhistas na era Vargas - amplamente discutidas pela historiografia brasileira -, de alguma forma, serviram para caracterizar aquele período histórico (Gomes, 1994). As ações de um Estado intervencionista garantiriam, além da manutenção da ordem, a construção de seus próprios legitimadores: o povo brasileiro. A legitimação do governo de Vargas pelo povo produziu-se sobretudo no contexto das políticas sociais desenvolvidas pelo Estado (Gomes, 1994).

O que denomino política social são os princípios gerais de bem-estar social, identificados, por exemplo, na análise de Cristina Fonseca (1990). Resumidamente, podem-se considerar políticas sociais aquelas ações que tratam de alimentação, educação, saúde e trabalho da população. A autora discute a complexidade e as origens históricas dessas políticas para compreender como o governo de Vargas, orientado por princípios ideológicos, implantou suas próprias políticas sociais. Fonseca problematiza as políticas de saúde para a criança no primeiro governo Vargas, sobretudo por meio da análise do Departamento Nacional da Criança: "Procuramos assim perceber a influência, na implementação de medidas voltadas para a preservação da saúde da criança, de ideias como: a valorização do trabalho, o ideal de formação de um novo homem, a importância da educação, o papel da criança enquanto agente da futura nação que se desejava construir. Em outras palavras, como estes princípios contribuíram na conformação dada a certos serviços públicos criados neste período" (p.1).

Segundo Fonseca (1990), a partir de 1930 houve uma mudança considerável no 'caráter' da política social patrocinada pelo Estado; no entanto, só no Estado Novo essas políticas foram mais bem definidas. O Estado procurava promover o bem-estar nacional priorizando o tratamento das questões sociais. Esse seu novo papel legitimou os eventos políticos pós-1930 (p.32). Dessa forma, a criação do Ministério da Educação e Saúde (MES), do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a formulação de leis sociais representaram exemplos práticos da nova política determinada por um Estado centralizador.

Antes da década de 1930, houve algumas tentativas de criar estruturas de cuidados à infância. Para Silva Júnior e Andrade (2007), a história da proteção à infância no Brasil foi definida pela emergência do modelo de família nuclear, baseado nos moldes burgueses e ditada pelo saber especialista, que logo ganhou espaço no meio jurídico e justificou a intervenção do Estado junto àqueles considerados desviantes. Destacam-se, no período, como marcos da introdução do atendimento específico a crianças e da invenção de novas práticas médico-pedagógicas, a fundação do Instituto de Assistência e Proteção à Infância do Rio de Janeiro, em 1901 e do Pavilhão Bourneville, em 1903, primeiro pavilhão destinado a crianças ditas anormais no Hospício Nacional de Alienados (p.426).

Ribeiro (2006) assinala que nas primeiras décadas do século XX a preocupação com a criança deixou a Academia e foi efetivada em práticas precursoras, em instituições que se dedicaram especificamente aos cuidados com a infância. O exemplo mais significativo foi a atuação do médico Arthur Moncorvo Filho, que criou em 1899 o Instituto de Proteção e Assistência à Infância. A instituição, destinada aos cuidados materno-infantis, contava com o apoio de médicos de variadas especialidades e funcionava como uma organização de associados e voluntários - pessoas que trabalhavam sem remuneração, a exemplo das esposas dos associados, denominadas Damas de Assistência à Infância (p.35). Mas a Roda dos Expostos é considerada a primeira instituição oficial de assistência à criança abandonada no Brasil. Criada no período colonial, funcionou até metade do século XX (Cruz, Hillesheim, Guareschi, 2005, p.42-43).

Nos anos 1930, a assistência à infância tornou-se importante item da agenda social do governo varguista. Fonseca (1990) aborda, além do Departamento Nacional da Criança, outras experiências voltadas para a assistência à infância financiadas pelo Estado varguista. A Divisão de Higiene e Segurança do Trabalho, o Serviço de Escolas-Hospitais e o próprio LBI são amostras da diversidade de projetos destinados a cuidar das crianças, no período. A autora distingue essas instituições de acordo com sua vinculação a diferentes ministérios. Além do MES, o Ministério da Justiça e o Ministério do Trabalho coordenaram instituições dedicadas a tratar da questão da criança, que em alguns casos tinham um aspecto mais assistencial e, em outros, estavam mais próximas do caráter repressivo do Estado (p.6).

Para Fonseca (1990, p.109), o LBI utilizava princípios eugênicos no tratamento das crianças abandonadas e delinquentes ao identificar, classificar e internar filhos de tuberculosos, sifilíticos e epiléticos. Tais atividades coadunavam-se com o objetivo maior do Laboratório, a profilaxia criminal, mas representavam também uma prática de controle e repressão à infância abandonada. Concordo com a distinção apresentada pela autora quanto às relevantes pistas sobre as transformações que o LBI sofreu, mesmo em seu breve período de funcionamento, que permitiram a incorporação de ações mais assistenciais dirigidas a crianças abandonadas e infratoras.

No ano seguinte à inauguração do Laboratório de Biologia Infantil, o dr. Martagão Gesteira, diretor do Instituto Nacional de Puericultura, solicitou ao Ministro da Educação e Saúde autorização para firmar acordo com Leonídio Ribeiro, cuja autorização já havia sido concedida pelo Ministro da Justiça. Por este acordo, o Instituto Nacional de Puericultura, que era formado por quatro seções, entre elas a de Eugenética e Puericultura Pré-Natal, poderia realizar estudos de psicologia infantil e de higiene mental, contando para isso, com as instalações do Laboratório e seu pessoal técnico especializado. O Laboratório se comprometia assim a executar os exames, trabalhos, verificações e pesquisas necessárias aos estudos que o Instituto vinha realizando. Tal proposta indica um alargamento na área de abrangência do Laboratório, na medida em que com isso deixaria de atuar somente no setor coberto pelo Juizado de Menores (p.110).

Segundo Ferla (2009), o internamento de menores tornou-se, na década de 1930, uma das responsabilidades do Estado, o qual, além de criar e manter asilos infantis, exerceu o poder de internar crianças residentes em espaços propícios ao desenvolvimento da delinquência. A autoridade estatal estava acima da familiar, em relação ao destino dos menores na sociedade. Esperava-se, das instituições para menores, o resgate forçado daqueles considerados delinquentes, com vistas a proteger a sociedade; tratamento e regeneração do menor internado; estudo sistemático, com apoio da medicina legal, para definir seu tratamento; e, a partir desse estudo, melhor conhecimento das causas da criminalidade. Muitos menores foram internados sem cometer qualquer ato criminoso; apenas eram condenados pela herança biológica dos pais e pelo ambiente degradante em que estavam inseridos. Foram essas as bases que nortearam a criação do LBI, em 1935.

Daí a necessidade da sequestração do 'desviante' em casos de ambientes ou indivíduos demasiadamente degradados. Um meio social, disciplinarização e moralização, estruturado em torno da educação e do trabalho, poderia ser capaz de constranger as tendências e predisposição antissociais. Desta forma, estavam dadas as condições para estabelecimento de um amplo terreno de acordo e de discurso comum entre todos os intelectuais e técnicos envolvidos com o problema da delinquência infanto-juvenil. Pelas razões expostas, esse discurso comum foi capaz de abarcar a defesa da importância das instituições de internamento do delinquente (p.279).

Pode-se concluir, portanto, que o contexto político pós-1930 favoreceu a implantação de políticas reformistas, especialmente das instituições que deram suporte ao novo Estado. Nesse ambiente, criaram-se e reformularam-se órgãos, departamentos e institutos encarregados de assistir, controlar e reprimir a população. A assistência social e as ações repressivas de controle foram 'harmonizadas' no funcionamento de algumas instituições, como, por exemplo, o LBI.

A primeira fase do Laboratório de Biologia Infantil: a identificação dos menores (1935-1937)

O LBI foi criado pelo artigo 131 do Código dos Menores e pelo artigo 3º da lei 65, de 13 de junho de 1936 , que autorizou o juiz de menores a organizar os serviços auxiliares do Juizado (Ribeiro, 1937b).1 1 O médico Leonídio Ribeiro havia apresentado um projeto sobre a criação de um Laboratório de Biologia Infantil em 1935, fruto de uma pesquisa realizada em viagem que fizera à Europa, onde observara "centros médicos pedagógicos infantis". Declarou Ribeiro (1939, p.124) sobre a criação do Laboratório: "Depois de ter estudado na Europa, em 1935, as clínicas e dispensários, assim como os centros médico-pedagógicos infantis, sobretudo na França, Bélgica e Itália, pude instalar e fazer funcionar no Rio de Janeiro o Laboratório de Biologia Infantil, inaugurado em 1936, sob os auspícios de então Juiz de Menores, hoje desembargador Burle de Figueiredo". A partir de 19 de julho do mesmo ano, o Laboratório passou a funcionar de fato, subordinado ao Juizado de Menores do Rio de Janeiro, que pertencia ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Localizado nas dependências do ISS2 2 O LBI ficava no antigo edifício da Seção Feminina do ISS, que havia sido desativado. Na década de 1920, o Instituto abrigava um efetivo permanente de crianças de ambos os sexos; na época da criação do LBI, era um órgão de recolhimento e triagem de menores, em sua maioria meninos. , um dos abrigos de menores do Estado, teve como primeiro diretor Leonídio Ribeiro. Essa primeira fase de funcionamento do Laboratório correspondeu a uma das faces das políticas sociais do primeiro governo Vargas, isto é, o Laboratório nasceu num ambiente político e institucional em que predominavam as políticas repressivas.

A construção do LBI em 1936 - assim como a implantação de outros projetos destinados a cuidar da infância abandonada e delinquente3 3 Leonídio Ribeiro, o juiz Burle de Figueiredo e a deputada Carlota Queiroz participaram da elaboração do projeto de criação da Cidade de Menores e dos Tribunais de Menores. A cidade seria constituída por casas-lares dirigidas por casais, que cuidariam de crianças abandonadas e delinquentes. Localizadas em áreas rurais, buscariam a recuperação dos menores pelo trabalho no campo e pelo convívio num ambiente familiar 'artificial'. Cada casal cuidaria em média de trinta crianças e seria remunerado pelo Estado. O Tribunal de Menores seria um fórum específico para julgar os crimes praticados por menores. - recebeu apoio do juiz de menores José Burle de Figueiredo e da deputada federal Carlota Pereira de Queiroz. O juiz de menores acreditava que o funcionamento de um centro de estudos de crianças abandonadas e delinquentes poderia auxiliar o trabalho da Justiça. Aos médicos do Laboratório coube a elaboração de pareceres e a indicação do tratamento mais adequado a cada caso. Por sua vez, o Juizado de Menores condicionou suas sentenças aos resultados das pesquisas divulgadas pelo Laboratório (Ribeiro, 1937a, p.171 e ss.). Nesse contexto, houve uma intenção clara de dar à avaliação dos juízes um caráter mais objetivo, baseado em evidências científicas. A interação entre medicina legal e Justiça, portanto, visava ao aprimoramento técnico do Judiciário.

As crianças recolhidas pela polícia eram encaminhadas pelo Juizado de Menores ao LBI, responsável pela realização de exames e elaboração de pareceres para o Juizado. Os menores ficavam internados no ISS, que funcionou como local de triagem. Diariamente um contingente deles era para lá enviado, e passava pelos primeiros procedimentos: identificação e fichamento com base em exames médico-legais.4 4 Os exames médico-legais consistiam de exames antropométricos (medição de crânio, ossos específicos do tronco, arcaria dentária etc.) e identificação (fotografia, filmagem, datiloscopia). Esses primeiros exames serviam para completar o 'inquérito social', constando de uma ficha com o histórico de cada menor. As informações sobre o meio social desses menores eram colhidas por assistentes sociais preparadas em cursos técnicos no próprio Laboratório (Ribeiro, 1939, p.137). O serviço social era uma das principais seções do LBI.5 5 Além da Direção, as seções do LBI eram: Medicina (medicina geral, laboratório, radiologia, antropometria, psiquiatria, neurologia, ginecologia, olhos, nariz-garganta-ouvido, boca); Psicologia; Psicotécnica (psicopedologia, psicometria, pedagogia, orientação profissional, arquivo); Identificação (fotografia, filmagem, datiloscopia, arquivos); Assistente Social (secretaria, almoxarifado, enfermagem, arquivo geral, estatística, inquéritos, instituições, biblioteca, cursos, publicações).

Cumpre destacar a inserção do Laboratório no contexto mais amplo das políticas sociais do governo federal. Conforme mencionado, tratava-se de um serviço auxiliar do Juizado de Menores, integrante do Ministério da Justiça. Leonídio Ribeiro acumulava a função de diretor do LBI e do IIRJ. Os primeiros relatórios sobre o Laboratório e os profissionais que atuaram nessa primeira fase deixam claro que ele operava como uma certa extensão dos trabalhos então desenvolvidos no IIRJ. O LBI não tinha ainda uma revista própria de divulgação, sendo os Arquivos do IIRJ o espaço de difusão dos estudos e trabalhos ali realizados. Em termos de organização, o Laboratório foi estruturado como um instituto de pesquisa científica, apoiando-se sobretudo nos conhecimentos biológicos e psicológicos da época. No artigo 131 do Código de Menores, que regulamentava os serviços do LBI, Burle Figueiredo (1937, p.179) defendeu o funcionamento do 'Instituto':

Refiro-me à organização do Laboratório de estudos de biologia e psicologia infantil e adolescente, e, através dos quais atingir-se-á a formação de especialistas, capazes de assumir a responsabilidade pela execução de uma organização técnica de assistência, de um centro de observação de menores, de uma clínica psicológica, de um Laboratório de pesquisas e de orientação profissional, de serviços sociais condizentes à observação e ao diagnóstico médico dos menores, à investigação das causas e fontes de desvios de conduta, à apreciação de suas necessidades biológicas, psicológicas e sociais, o tratamento moral e social, através dessa grande tarefa da compreensão das necessidades da vida infantil e das maneiras de satisfazê-la e finalmente, de um serviço vivo de estatística, em que se manifestam os resultados de todos esses estudos, com o fim especial de sintetizar e orientar os rumos da pedagogia educacional da crença e da juventude brasileira, em benefício da formação, defesa e aperfeiçoamento da própria raça.

Os exames psicotécnicos e clínicos, associados aos radiológicos e laboratoriais, integravam a segunda etapa dos procedimentos para tratar os menores internados no Laboratório.6 6 Os exames psicotécnicos combinavam métodos pedagógicos e testes psicológicos, tendo como objetivo maior a orientação profissional das crianças. Quanto aos exames clínicos, eram realizados por psiquiatras, neurologistas, ginecologistas, otorrinolaringologistas, oftalmologistas e dentistas. Com base nessa avaliação, os médicos acreditavam que poderiam encontrar as causas da delinquência infantil e prescrever o tratamento adequado. Depois de examinados e diagnosticados, os menores eram enviados ao ISS, onde aguardavam a decisão do Juizado de Menores. O juiz, com base nos pareceres fornecidos pelo Laboratório, ordenava a transferência das crianças para estabelecimentos específicos de recuperação. Nesse caso, quando sugeria o tratamento adequado para cada menor, o LBI tentava adaptá-lo à realidade dos institutos de recuperação da época.7 7 O tratamento mais sugerido era a internação de menores em institutos profissionalizantes (Alencar Neto, 1938b, p.79). Cabe assinalar a importância do trabalho da instituição nesse aspecto. O mapeamento de cada criança era enviado junto com as indicações individuais de tratamento, com a intenção de fornecer os cuidados que se julgavam adequados para cada criança, o que significou uma mudança significativa em relação aos padrões anteriores.

O procedimento prioritário do Laboratório, nessa fase, era a identificação. O sistema de identificação da Polícia do Distrito Federal representava uma das práticas da medicina legal mais aprimorada, do ponto de vista técnico.8 8 A identificação era considerada a área da medicina legal mais avançada tecnicamente, na década de 1930. Leonídio Ribeiro, em 1933, recebeu o Prêmio Lombroso pelo trabalho "Identificação no Rio de Janeiro" (Ribeiro, 1975). Ele serviu ao Estado e ajudou-o a concretizar as políticas de controle e repressão política e social. Médico criminalista, Leonídio Ribeiro era conhecido dentro e fora do país por seus trabalhos na área de identificação, e parte de seu conhecimento foi empregado no LBI. O problema da criança abandonada e delinquente transformava-se em questão de identificação e, ao fim, em questão médico-legal.

Dessa forma, o LBI começou a funcionar conforme os preceitos da medicina legal, que estava, na época, incondicionalmente associada à feição mais dura do governo Vargas. A criança abandonada e delinquente era um problema antigo e podia comprometer os projetos de modernização da nação. Médicos, magistrados, políticos e educadores defendiam a modernização da nação por intermédio da maior generalização possível do trabalho industrial, e o principal combustível desse projeto seria uma juventude forte e disciplinada.

Autoridades e intelectuais ligados ao Estado acreditavam que a delinquência infantil era uma ameaça à futura ordem social, econômica e política do país, embora, ao contrário dos criminosos adultos, os pequenos infratores pudessem ser regenerados pela ciência. Essa era a mentalidade que orientou em grande parte os primeiros anos de funcionamento do LBI. Foi um espaço destinado ao estudo dos comportamentos e à correção dos possíveis desvios 'infanto-juvenis', e seu principal objetivo era a 'profilaxia criminal'. Inspirado no Centro Médico-pedagógico de Observação de Roma - projeto desenvolvido pelo governo italiano para cuidar de crianças abandonadas e delinquentes por meio da medicalização do crime -, Leonídio Ribeiro (1939, p.127) asseverava que o LBI era o lugar de prevenção do crime.

Cabia ao LBI tratar de crianças com 'predisposição' a desenvolver, no futuro, uma conduta desviante. O crime passava a ser visto como uma doença biológica, tendo, portanto, como uma das causas a hereditariedade. Nas palavras de Leonídio Ribeiro (1937a, p.171): "Pretende-se descobrir e reconhecer o criminoso, antes da prática do crime". Para médicos e juízes da época identificados com tal concepção de delinquência infantil, as crianças colocadas sob a tutela do Laboratório estavam também moralmente doentes. Eles acreditavam que os pequenos infratores deviam ser tratados com rigoroso programa de identificação, controle e assistência. Leonídio Ribeiro citava, na época, as experiências de outros países que haviam desenvolvido laboratórios infantis, com destaque para a Escola Central de Moll, em Bruxelas: "Nesse magnífico centro de estudos, a criança criminosa é logo submetida a uma observação médica das mais completas, permanecendo ali, durante longas semanas e até meses, num regime de permanente fiscalização de todas as horas, quer seja na classe, no dormitório, no trabalho ou no recreio, apreciada sempre em todos os seus atos por médicos, psicólogos e educadores especializados" (p.173).

As primeiras crianças matriculadas e examinadas no LBI estavam de fato doentes. No entanto, as doenças diagnosticadas nos primeiros exames eram aquelas geralmente relacionadas ao abandono e à pobreza de grande parte da população brasileira. Até 31 de dezembro de 1936 foram matriculadas 270 crianças, sendo 231 do sexo masculino e 39 do sexo feminino. Nos cem primeiros exames, constatou-se que as crianças brasileiras sofriam de 'perturbações fisiológicas', tais como verminoses, doenças da boca e garganta, tuberculose, sífilis, desnutrição e doenças do coração (Quadros 1 e 2). Tais resultados, num certo sentido, parecem ter decepcionado Leonídio Ribeiro, uma vez que a maioria das causas dos males que acometiam as crianças não era de ordem moral e/ou biológica. A delinquência, na época analisada sobretudo por médicos, era vista como uma doença cujas maiores causas eram a hereditariedade e a decadência moral da sociedade. Os primeiros exames levaram o médico a enxergar sob outra perspectiva a grave questão dos menores abandonados e delinquentes. Para ele, algumas daquelas doenças fisiológicas influenciavam as ações delituosas das crianças, ao passo que outras impediam que elas pudessem ser recuperadas.


A identificação de doenças relacionadas às más condições sociais das camadas pobres da população redirecionou sutilmente os cuidados com as crianças internadas no LBI. O próprio Leonídio Ribeiro passou a defender tratamento adequado de todas as doenças diagnosticadas, antes de as crianças serem encaminhadas aos institutos de recuperação. Considero significativo esse momento no LBI, porque parte da missão da instituição foi colocada em questão diante da emergência de uma realidade que, se não era totalmente conhecida, era no mínimo desconsiderada pelas autoridades e pelos médicos ligados ao IIRJ. A primeira intenção dos idealizadores do Laboratório ainda era promover a profilaxia criminal por meio da identificação das crianças que apresentassem propensão à delinquência. Entretanto, após os resultados dos primeiros exames, médicos e magistrados tiveram que repensar a própria questão da delinquência infantil. Nesse novo contexto, cursos e seminários com o tema da assistência social foram realizados com mais frequência no LBI, e o ambiente familiar e o meio social em que se encontrava grande parte dos menores internados no ISS ganharam importância, nas pesquisas desenvolvidas no Laboratório.

A partir da constatação, entre as crianças em estudo, de doenças associadas à pobreza da maioria das famílias brasileiras, Leonídio Ribeiro e um grupo de médicos e magistrados propuseram novas diretrizes, que passaram a orientar as práticas do LBI. O objetivo principal - prevenção do crime por meio da adoção de práticas repressivas - começou a ser articulado a ações assistenciais e terapêuticas. A questão não era mais apenas identificar as crianças delinquentes, e sim promover a saúde dos menores. O tratamento de doenças como tuberculose, sífilis, cardiopatias, pneumonia e desnutrição era imprescindível para a recuperação dos menores delinquentes. Exames médico-legais como a antropometria não eram mais importantes do que outros exames como, por exemplo, os odontológicos, em que o diagnóstico das cáries mostrava o estado grave no qual se encontrava a maior parte das denominadas crianças abandonadas e delinquentes. Nas palavras de Leonídio Ribeiro (1938, p.56),

Antes de dar um destino aos menores delinquentes e abandonados, internando-os em institutos de reformas ou escolas profissionais, é imprescindível submetê-los previamente à observação demorada, sob o ponto de vista médico, por especialistas idôneos, para que possam ser convenientemente diagnosticados e tratados seus males físicos e mentais, de tal modo que a colaboração entre o juiz, o médico e o pedagogo possa ser cada vez mais íntima, no interesse da criança e para a defesa da sociedade.

A criação de serviços sociais comprometidos com a questão das crianças abandonadas e delinquentes fez parte da dinâmica de transformação do LBI. No início, o serviço social foi responsável pelo levantamento histórico do ambiente familiar das crianças. Numa segunda etapa, a prática do serviço social ganhou novos e amplos contornos. A instituição, como espaço de investigação das causas da delinquência infantil, seria, segundo seus três principais idealizadores (o médico Leonídio Ribeiro, o juiz José Burle de Figueiredo e a deputada Carlota de Queiroz), um local de estudo e pesquisa. Dessa forma, nos dois primeiros anos de funcionamento promoveram-se diversos cursos e palestras sobre a questão da criança abandonada e delinquente.

É interessante destacar o processo do desenvolvimento do serviço social em um instituto criado para identificar e reprimir os chamados atos antissociais da infância. O serviço social aí se desenvolveu associado às políticas de controle e repressão do Estado varguista. Essa é uma pequena parte do desenvolvimento dessa disciplina, também presente nas políticas de cunho assistencial do Estado. No Laboratório discutiu-se o perfil do profissional que deveria ocupar o cargo de assistente social. A mulher foi identificada como a mais capaz de desenvolver esse trabalho, em virtude das características consideradas, na época, próprias ao gênero feminino: instinto materno, maior sensibilidade, passividade e paciência no trato com "crianças desajustadas" (Ribeiro, 1938). Lembremo-nos de que não era a primeira vez que as mulheres eram convocadas para auxiliar nos serviços de cuidados com a infância. Em 1922 o médico Moncorvo Filho buscara promover a incorporação das mulheres da classe média e alta à ação pública, por meio do projeto anteriormente mencionado, Damas da Assistência à Infância (Wadsworth, 1999). Os motivos da convocação das mulheres na década de 1920 foram os mesmos observados na época da criação do LBI.

Percebe-se, assim, que os cursos de assistente social promovidos no LBI ajustaram duas intenções básicas dos profissionais comprometidos com as políticas de cuidados. A primeira era a formação de uma especialidade mais flexível, com trânsito livre entre as camadas mais pobres da população, podendo prestar auxílio ao mesmo tempo à medicina e ao direito. A segunda intenção diz respeito à redefinição do papel da mulher na sociedade brasileira, com uma pequena mas significativa emancipação feminina na década de 1930, repercutindo na criação de novas profissões em espaços ainda adaptados a uma velha concepção de 'natureza' da mulher.9 9 Não cabe, neste artigo, uma discussão mais aprofundada com relação à questão de gênero, não obstante o tema da infância abandonada e delinquente propiciar reflexões frutíferas a esse respeito.

O LBI seria um local de 'purificação' das crianças infratoras ou daquelas que se encontravam próximas ao crime. Espaço disciplinado e organizado, ali as crianças eram primeiramente submetidas aos exames antropométricos e identificadas pelos procedimentos médico-legais. Essa primeira fase pode ser interpretada como um período em que crianças e adultos delinquentes começavam a ser diferenciados quanto a tratamentos e penas. A implantação do Código de Menores, em 1927, não representou de imediato uma mudança no tratamento das crianças abandonadas e delinquentes (Lima, 1940, p.71-72). Os adultos e as crianças delinquentes eram muitas vezes tratados do mesmo modo, como criminosos que representavam um grande perigo para a sociedade. O Laboratório ajudou a promover essa diferenciação ao ocupar-se apenas com os pequenos infratores. O estudo científico da criança foi o fundamento dessa diferenciação, que também pode caracterizar uma nova fase na história da assistência à infância no Brasil.

O funcionamento inicial do Laboratório ainda estava contaminado por uma concepção determinista do crime, e os atos delituosos das crianças eram atribuídos a causas biológicas. Em parte, essa mentalidade integrava uma tradição médico-legal ali representada por Leonídio Ribeiro. Aluno da chamada escola Nina Rodrigues, ele reacendia, na década de 1930, algumas das teorias elaboradas pelo médico maranhense no final do século XIX (Corrêa, 1998).

A segunda fase do Laboratório de Biologia Infantil: a classificação dos menores (1938-1939)

A partir de 1938, passou a ocupar a direção do LBI Meton de Alencar Neto, que reorganizou a instituição.10 10 Não estão claras as razões da saída de Leonídio Ribeiro da direção do LBI, mas é significativa a sua substituição por um pediatra. Segundo ele, as reformas eram necessárias para que o Laboratório fosse reconhecido como instituição científica. Dois objetivos básicos deveriam pautar o funcionamento do LBI: a realização dos exames médico-legais; e a orientação e seleção profissional das crianças. No entanto, o primeiro objetivo foi aos poucos substituído pelos testes psicológicos. Reestruturam-se os serviços e as seções do Laboratório11 11 O LBI passou a ser composto de: Setor de Identificação e Fotografia de Menores Apresentados em Juízos; Setor de Análises Químicas, Hematológicas e Sorológicas, Microbiológicas e Parasitológicas; Setor de Diagnóstico de Clínica Geral, Radiológico e Ginecológico; Setor de Exames de Olhos, Nariz, Garganta e Ouvidos; Setor de Exame de Boca; Setor de Exames Antropológicos; Setor de Exames Psicológicos; Serviço de Investigação Social (Alencar Neto, 1938a). , que, para o novo diretor, deveria agora ser reconhecido pelo "exercício da ciência aplicada" (Alencar Neto, 1938b, p.20).

Alencar Neto assumiu a direção do LBI criticando severamente a administração anterior. No artigo "O menor desvalido em face ao Estado Novo" (Alencar Neto, 1938a), discutiu a situação das crianças brasileiras na conjuntura do Estado Novo. Lamentou que alguns projetos tivessem sido elaborados sem o verdadeiro conhecimento da realidade social dos menores, criticou o desperdício de recursos e - talvez o mais importante- a funcionalidade do LBI até aquele momento. O Instituto, segundo o pediatra, transformara-se num espaço de ciência 'pura', ao passo que seu objetivo básico, ao ser criado, era prestar auxílio ao Juizado de Menores. Apesar disso, nos dois primeiros anos de existência ele funcionara apenas como um centro de debates sobre a assistência a crianças abandonadas e delinquentes. Para o novo diretor, a aplicação científica estivera ausente na primeira fase do LBI, e se este não cumprira suas finalidades práticas auxiliando o Juizado de Menores, sua subordinação ao Ministério da Justiça era uma incoerência. A instituição deveria estar sob a tutela do Ministério da Educação e Saúde.

Alencar Neto não criticava apenas o LBI. Outros projetos, como o Tribunal de Menores e a Cidade de Menores, também foram alvos de suas análises. O primeiro, para ele, exigiria grandes despesas para sua manutenção, sendo um projeto impróprio para a realidade do país. Além disso, deveria contar com uma equipe especializada e treinada para atender a todas as necessidades das crianças. Teria ainda que se diferenciar do tribunal comum, articulando-se ao LBI e aos institutos de recuperação. Esse tipo de tribunal reforçaria o Código dos Menores de 1927, que, segundo Alvarez (1989), seria a edificação do modelo jurídico de assistência e proteção aos menores e também a implantação de um novo tipo de institucionalização da infância e da adolescência, regulada pelo Estado brasileiro. O objetivo do Código era definir o tratamento jurídico penal especial para certos grupos da população considerados potencialmente perigosos pelas autoridades políticas e intelectuais. O Tribunal de Menores poderia ser espaço do exercício do Código. Contudo, Alencar Neto afirmava que a maior parte das instituições de assistência às crianças sofria com falta de recursos e burocracia estagnada. Em suma, o Tribunal de Menores no Brasil não funcionaria, porque não haveria recursos materiais e humanos para tanto.

Por sua vez, a Cidade de Menores foi considerada pelo segundo diretor do LBI um projeto fantasioso. A própria localidade em que seria instalada seria um empecilho, porque a longa distância da cidade ocasionaria o afastamento de profissionais para ensinar as crianças, que ademais ficariam isoladas, sem qualquer tipo de convívio social. O número de crianças que a Cidade de Menores poderia abrigar seria pequeno, sobretudo porque cada casal seria responsável por cerca de trinta crianças. Além da impossibilidade de esses casais cuidarem de um número grande de crianças, a remuneração deles seria baixa, o que atrairia poucos candidatos. Enfim, segundo Alencar Neto, tratava-se igualmente de um projeto fora da nossa realidade social.

Para Mariza Corrêa (1997), a Cidade de Menores foi uma utopia do governo que edificou outros projetos, como o Palácio da Cultura Gustavo Capananema e a Cidade Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro - construções marcadas pelo controle, pela organização e por uma visão totalizante da vida de seus frequentadores. Para os idealizadores da Cidade de Menores, ela poderia funcionar como extensão diferenciada do Laboratório, um espaço de socialização, reeducação e tratamento social para as crianças 'infratoras'.

Mas é o lar a "base do sistema reformatório da Cidade de Menores". "É o instrumento com que se procura despertar na consciência da criança a ideia de um mundo melhor. Boa cama, roupa limpa, alimentação farta mostram-lhe claramente o caminho da escola, da oficina, do trabalho, da sua transformação". O lar é um edifício de dois pavimentos que deve abrigar 36 crianças sob a direção de um casal ... Um simulacro do lar (até com armários embutidos), da família (expressa também na privacidade reservada ao "casal"), da vizinhança, do qual destoam, no entanto, os laboratórios e o "quarto de observação" (sem maiores explicações) que evoca imagens tristes, expulsas do projeto, mas que teimam em voltar até na advertência de Nelson Hungria a respeito do modo como seriam tratados os que fossem enviados à penitenciária, que era também modelo. Nas falas de especialista médico, e na curta frase do ministro, a expectativa parece ser de continuidade: os criminosos de amanhã sendo socializados, na Cidade dos Menores, para a longa carreira que os aguardava na penitenciária: a cada um de acordo com sua tendência, ou predisposição (p.94-95).

Cumpre lembrar que tanto o Tribunal como a Cidade de Menores foram idealizados na gestão anterior do LBI. Com base nas fontes analisadas (ALBI, 1938; AISS, 1940; Relatório..., 1938-1939, 1940-1941), acredito que as críticas do novo diretor à administração de Leonídio Ribeiro poderiam até ter uma feição política, mas ainda assim, o que estaria em jogo seria uma disputa entre duas especialidades médicas: a medicina pediátrica, próxima da psicologia, e a medicina legal, identificada como um saber próximo à pedagogia. Alencar Neto, dessa forma, tentava apagar a marca que o LBI tinha até então: o caráter identificador da medicina legal de Leonídio Ribeiro.

Na nova estrutura do LBI, a Seção de Investigação Social teve papel expressivo. Nela realizava-se o histórico da vida social das crianças, e, para isso, as assistentes sociais circulavam no ambiente em que vivia a maior parte dos menores abandonados e delinquentes. Elas utilizavam um questionário para coletar informações que serviriam para a montagem das fichas dos menores.12 12 Na terceira fase do LBI, esse sistema de coleta de informações foi aperfeiçoado, sobretudo com o estabelecimento de regras para entrevistas, que as assistentes sociais deveriam cumprir. A influência do meio social como causa das falhas dos menores passava cada vez mais a ser entendida como fator determinante dos atos delinquentes. Nesse contexto, pode-se considerar que, embora a influência das causas biológicas não fosse de todo afastada, sua prevalência começava a ser revista.

Seria a avaliação das condições sociais dos menores um indicador importante das mudanças das políticas sociais destinadas às crianças no final da década de 1930? Os cuidados com as crianças começariam a corresponder na prática à legislação prevista no Código dos Menores de 1927? As leis de assistência e proteção aos menores ganhariam mais espaço diante dos rigores do Código Penal? Essas questões com certeza não podem ser respondidas apenas pela análise do funcionamento de um órgão responsável por diagnosticar e encaminhar menores aos estabelecimentos de recuperação; entretanto, vale destacar a mudança no diagnóstico e tratamento das crianças encaminhadas ao Laboratório a partir de 1938. Por sua vez, o ISS, marcado pela sua associação inicial com o Gabinete de Identificação - órgão de controle e repressão do Estado varguista -, abriu mão dessa filiação para tentar atender, nos limites da conjuntura política, aos preceitos básicos do Código dos Menores vigente desde 1927.

Para uma análise mais empírica desse debate, é preciso avaliar os exemplos apresentados nos Anais do Laboratório de Biologia Infantil. A revista do Laboratório foi criada em 1938 como meio de divulgação dos estudos e serviços do "instituto de pesquisa da infância e adolescência". Destaca-se aqui o volume 3, número especial de 1939, em que se discutem os casos de menores recolhidos e encaminhados ao Laboratório para diagnóstico e tratamento. Ao verificar alguns dos pareceres emitidos pelo LBI ao Juizado de Menores, apontando as causas dos atos delituosos e o procedimento para recuperar os infratores, podemos considerar que, na maioria dos casos, os crimes foram atenuados principalmente porque foram cometidos por menores. Na verdade, sem intenção ou com o desconhecimento de seus atos, os menores teriam sido vítimas das circunstâncias.

Além dos estudos dos casos enviados ao LBI pelo juiz de menores, o que mais impressiona, nessa segunda fase de funcionamento, são os exames realizados em mil menores. A observação e o mapeamento social e biológico das crianças estava em conformidade com o propósito ao qual o Laboratório se destinava: a prática da ciência aplicada. O preenchimento das fichas individuais compunha-se do inquérito social e do exame psicossomático ao qual eram submetidos os menores. Nas fichas constavam dados como informante, habitação, família etc., e com base neles montaram-se quadros com os elementos condicionadores das internações dos mil menores.13 13 Os quadros receberam as seguintes denominações dos médicos do Laboratório: Causas Determinantes da Internação dos Menores; Procedência dos Menores; Faixa Etária da Internação dos Menores; Estado de Saúde Física e Psíquica dos Menores; Grau de Escolaridade dos Menores; Influências Étnicas da Internação dos Menores; Nacionalidade dos Pais.

Identificar as causas que determinavam a delinquência infantil e promover a profilaxia criminal eram os preceitos básicos do Laboratório. Inicialmente relacionadas a fatores exclusivamente biológicos, as causas da criminalidade infantil foram gradualmente associadas às condições de natureza social (Ribeiro, 1937a, p.171; Alencar Neto, 1940, p.15). O meio social em que se inseria a maioria dos menores abandonados e delinquentes foi alvo de intensa investigação, por parte dos médicos e assistentes sociais do Laboratório. Médicos e magistrados, ao constatarem que as causas da criminalidade infantil - e, consequentemente, das internações de menores - não eram somente de caráter biológico, passaram a debater e a promover estudos mais amplos sobre a questão.

A análise feita pelos profissionais da instituição sobre as causas determinantes das internações dos menores nos apresenta, em parte, a linha de pensamento que guiava esses pesquisadores da infância. O abandono de crianças acontecia com maior frequência em famílias que tinham uniões ilegítimas. Esse ponto, observado nos estudos do Laboratório, levou médicos e magistrados a reforçar o discurso em favor da união oficial por meio do casamento, que passou a ser identificado como uma solução relevante para os problemas referentes às crianças abandonadas e delinquentes (Ferreira, 1938, 207). A família brasileira deveria ser estruturada segundo os moldes prevalecentes na medicina e no direito da época, dois campos da ciência que estiveram no centro de divulgação da ideologia do Estado. Desse modo, de acordo com as ideias que orientavam o Laboratório na segunda fase, o meio social 'degenerado' era o grande motivador da delinquência infantil. As crianças abandonadas pela família encontrariam nas ruas o mundo do crime. Médicos, magistrados e professores compartilhavam também da mesma opinião quanto ao remédio mais eficaz para esse mal: a educação profissionalizante. A associação entre escola e trabalho poderia recuperar o menor abandonado e delinquente.

O tratamento do menor dirigido para o binômio escola/trabalho respondia a duas necessidades do Estado varguista: acabar com a criminalidade infantil e criar um bom contingente de trabalhadores para o futuro. Asilos agrícolas e institutos profissionalizantes foram os principais espaços de recuperação dos menores.14 14 A título de exemplos: Asilo Agrícola Santa Isabel, Escola Profissionalizante 15 de Novembro, Escola João Luiz Alves, Escolas Profissionais Salesianas e Instituto Profissional Getúlio Vargas (Relatório..., 1940). No entanto, o próprio sistema educacional dos anos 1930 parecia viver uma crise. A proposta de reforma desse sistema deveria, então, atender à necessidade de criar uma organização escolar mais voltada para a disciplina. Somente a garantia do ensino gratuito não bastava, segundo os profissionais que trabalhavam com a questão da delinquência infantil; o aprendizado deveria ser obrigatório (Alencar Neto, 1938b, p.79; Pernambucano Filho, 1938, p.368).

A segunda fase de funcionamento do LBI foi um período de transição de um projeto inicialmente orientado para identificar e controlar as crianças abandonadas e delinquentes para a adoção de ações de cunho assistencial. O serviço de identificação das crianças e os exames médico-legais foram perdendo espaço para outras práticas, como os testes psicológicos e os trabalhos das assistentes sociais. Ainda assim, mesmo com a mudança de perfil, a instituição parecia estar condenada à extinção. Ao assumir a direção do LBI, Alencar Neto, alertava sobre os altos custos do Laboratório em relação a sua pouca eficiência. A reforma realizada por ele culminou com a anexação do LBI ao ISS, e o primeiro, que já funcionava em uma das dependências do segundo, perdeu sua autonomia legal a partir de novembro de 1939 - o que acontecia de fato desde 1938, visto que os dois organismos tinham o mesmo diretor. O LBI foi extinto como órgão auxiliar do Juizado de Menores, e seus serviços passaram funcionar como uma seção do ISS.

A terceira fase do Laboratório de Biologia Infantil: a assistência social aos menores no Instituto Sete de Setembro (1939-1941)

O decreto-lei 1.797 de 23 de novembro 1939 determinou que os serviços do LBI fossem anexados ao ISS. Há poucos registros sobre os motivos da anexação. O juiz de menores, Sabóia Lima, por exemplo, reprovava a organização do LBI e defendia que ele devia ser um órgão auxiliar do Juizado de Menores (Relatório..., 1939). Seu sucessor, o juiz Saul Gusmão, também criticava o Laboratório. Ambos discordavam da maneira como era feita a prestação de serviço do órgão ao Juizado e defendiam a descentralização dos serviços. É que o sistema, centralizado, obrigava a Justiça a utilizar os serviços da instituição, o que tolhia a liberdade dos juízes na escolha de clínicas e profissionais para avaliar os menores.

O doutor Gusmão ampliava sua crítica aos pareceres emitidos pelo Laboratório, que indicavam onde os menores deveriam ser internados depois de examinados. Na visão do magistrado, não se poderia atender a todas as orientações dos médicos, por causa da precariedade do sistema de recuperação dos menores. Apesar dessas restrições, vale ressaltar a importância do trabalho do LBI ao indicar o estabelecimento de internação do menor. O mapeamento de cada criança seguia com indicações individuais de tratamento, o que representava uma significativa mudança na intenção de fornecer os cuidados adequados às crianças.

Na Primeira Conferência de Defesa contra a Sífilis, em 1939, o desembargador Sabóia Lima apresentou um seminário sobre a assistência a menores desvalidos e fez um balanço do funcionamento do LBI. Como outros magistrados da época, dirigiu duras críticas à primeira fase da instituição, período, segundo os juízes, de "grande aparato técnico e custosa inutilidade" (Lima, 1940, p.75). Entretanto, para o desembargador, a partir de 1938 algo havia mudado no funcionamento do Laboratório sob a direção do médico Meton de Alencar Neto, porque a instituição passara a cumprir sua real finalidade: "conhecer a criança, seu estado de saúde e o grau de inteligência". Para o magistrado, ao funcionar em consonância com tais objetivos, o LBI promovia, em conjunto com o Juizado de Menores, um recenseamento científico das crianças abandonadas e delinquentes. Em referência aos primeiros exames realizados no Laboratório, nos quais se constatara a precariedade do estado de saúde das crianças examinadas, corroborava a afirmação do professor Oscar Clark sobre o "selo da brasilidade": opilação, impaludismo, sífilis, alcoolismo, fome crônica e analfabetismo (p.76).

Assim, foi fundamental a constatação do estado de saúde lastimável da maioria das crianças brasileiras por parte desses médicos e magistrados, na segunda metade da década de 1930. Pode-se dizer que houve, a partir de então, uma mudança sutil, mas significativa, no cuidado das chamadas crianças abandonadas e delinquentes. Afinal, pela crença da época, o que estava em jogo era o futuro do próprio país. Sem abandonar as causas hereditárias da criminalidade, o pensamento sobre essas crianças foi enriquecido com a concepção de que crianças são delinquentes porque estão abandonadas e doentes (Lima, 1940).

Sabóia Lima (1940) também criticava severamente o Código dos Menores, que distinguia entre menores abandonados e delinquentes. Para ele, a questão da infância abandonada e delinquente era uma só. Nesse sentido, defendia a reestruturação dos estabelecimentos de reforma das denominadas crianças desvalidas. O ISS seria, nessa nova organização, um abrigo-hospital, e a incorporação dos serviços do LBI ao Instituto lhe forneceria essa dupla funcionalidade. As principais atribuições do ISS, na concepção do magistrado, eram abrigar os menores delinquentes, realizar exames e fornecer pareceres para o Juizado de Menores. A partir do cumprimento dessas funções, o Juizado poderia seguramente encaminhar as crianças que estavam de passagem no Instituto para outras instituições de recuperação.

O funcionamento do LBI na segunda metade da década de 1930 no Brasil permite identificar mais uma das políticas sociais do Estado varguista. Naquele contexto, o Laboratório representou a síntese prática da ideologia do Estado (Gomes, 1994): assistência e controle. Criado junto ao IIRJ, o LBI tinha a responsabilidade de apontar as causas da criminalidade que atingiam as crianças brasileiras. O tratamento sugerido foi reforçado pelo reconhecimento dos estudos científicos desenvolvidos no Laboratório. Se a intenção era somente identificar os agentes da delinquência infantil, o Laboratório, com seus exames, evidenciou a amplitude das questões que cercavam as crianças delinquentes e abandonadas. Os estudos iniciados na prática médico-legal para estabelecer as determinações biológicas da criminalidade dos menores foram aperfeiçoados pelo inquérito social. A consideração de causas sociais da delinquência de menores representava um quadro novo nas políticas sociais do Estado. O significado atribuído aos 'elevados motivos sociais' como fatores dos desvios comportamentais das crianças demonstrou uma realidade mais ajustada à problemática infantil.

Os serviços do LBI foram transferidos para o ISS, o que ocasionou também uma mudança no perfil do Instituto a partir de 1939. Considero esse momento a terceira fase do Laboratório, pois mesmo que ele não existisse como instituição autônoma, o funcionamento de serviços como os de identificação, assistência social e psicologia representava a continuidade da prática científica na instituição. Acredito também que a incorporação dos serviços do Laboratório pelo ISS foi responsável pela reestruturação das organizações destinadas a cuidar de crianças abandonadas e delinquentes naquela época. Nesse sentido, o período que se iniciou em 1935, com a criação do LBI, até a extinção do ISS, em 1941, representou uma fase importante da história da assistência à infância abandonada e delinquente.15 15 Considero 1935 o ano de criação do LBI por Leonídio Ribeiro, ainda que seu funcionamento tenha sido registrado a partir de julho de 1936. Em 1941 o ISS foi transformado em Serviço de Assistência a Menores (SAM), pelo decreto-lei 3.799, de 5 de novembro daquele ano.

Considerações finais

Observou-se que o LBI funcionou inicialmente como uma espécie de instituto de identificação para crianças abandonadas e delinquentes. Em sua breve existência, sofreu transformações na organização de seus serviços, nos métodos utilizados para pesquisa e no tratamento dos menores, mas principalmente na sua própria natureza institucional. As duas principais razões para tais mudanças teriam sido, em primeiro lugar, os resultados dos exames iniciais das crianças, que indicavam que a questão referente à infância abandonada e delinquente era mais de saúde pública do que de polícia; e, em segundo lugar, a mudança na direção do Laboratório a partir de 1938, que marcou o início de uma nova fase da instituição, na qual o diretor Meton de Alencar Neto tentou romper com as marcas da gestão anterior, de Leonídio Ribeiro.

O LBI foi criado para investigar e identificar as causas da criminalidade infantil. Desde o início os médicos do Laboratório dirigido por Leonídio Ribeiro depararam-se com uma grave situação: os chamados menores abandonados e delinquentes encontravam-se doentes exatamente por estarem desassistidos. Os pesquisadores do LBI perceberam, em 1936, que as crianças delinquentes, antes de serem criminosas ou 'moralmente doentes', sofriam de males fisiológicos. No entanto, os procedimentos 'terapêuticos' priorizados no LBI ainda eram os exames médico-legais, em sintonia com as políticas mais repressivas do Estado varguista. A partir de 1938, o Laboratório passou a combinar práticas repressivas com ações assistenciais. Na direção de Alencar Neto ganharam destaque os serviços de psicologia e assistência social, embora não fossem excluídos os exames antropométricos e de identificação, métodos que haviam marcado a administração anterior.

Pode-se dizer, assim, que o médico legista Leonídio Ribeiro foi, em sua época, o elemento de ligação entre o contexto político-institucional do governo pós-1930 e o contexto das ideias reformistas e da medicina legal. Como editor dos Arquivos de Medicina Legal e Identificação do Rio de Janeiro, coordenou trabalhos e debates, promovendo a união de médicos, magistrados e políticos em torno do tema da delinquência infantil. Foi o principal idealizador do LBI e também responsável pelas mudanças que só seriam implantadas por seu sucessor, Meton de Alencar Neto. Ribeiro admitiu, a partir da análise dos resultados dos primeiros exames realizados nas crianças, que, para cuidar dos menores abandonados e delinquentes, primeiro era preciso curá-los. Essa constatação influenciou e transformou os serviços do Laboratório, que com a gestão de Alencar Neto conheceu seu período de maior produtividade.

Em suma, o LBI foi uma experiência importante na história da assistência à infância no Brasil, porque inaugurou rotinas médico-científicas de estudo, tratamento e assistência no âmbito de instituições criadas para tratar, cuidar e reprimir. O ISS, e depois o Serviço de Assistência a Menores (SAM), seguiram os procedimentos de identificação, classificação, investigação e tratamento inaugurado pelo Laboratório. Nesse sentido, o caráter dualista do LBI transmitiu-se a essas duas instituições, que conciliaram cuidados assistenciais e medidas de controle e repressão da criminalidade infantil. A análise do LBI possibilitou compreender melhor essas políticas sociais orientadas para cuidar da infância abandonada e delinquente na década de 1930, seus dilemas e (im)possibilidades. As marcas dessas instituições e políticas ainda podem ser encontradas no Brasil do século XXI.

NOTAS

Recebido para publicação em maio de 2010.

Aprovado para publicação em abril de 2011.

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  • STEPAN, Nancy Leys. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: Hochman, Gilberto; Armus, Diego (Org.). Curar, controlar, cuidar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. p.331-391. 2004.
  • WADSWORTH, James E. Moncorvo Filho e o problema da infância: modelos institucionais e ideológicos da assistência à infância no Brasil. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.19, n.37. 1999.
  • O Laboratório de Biologia Infantil, 1935-1941: da medicina legal à assistência social

    The Laboratório de Biologia Infantil, 1935-1941: from forensic medicine to social assistance
  • 1
    O médico Leonídio Ribeiro havia apresentado um projeto sobre a criação de um Laboratório de Biologia Infantil em 1935, fruto de uma pesquisa realizada em viagem que fizera à Europa, onde observara "centros médicos pedagógicos infantis". Declarou Ribeiro (1939, p.124) sobre a criação do Laboratório: "Depois de ter estudado na Europa, em 1935, as clínicas e dispensários, assim como os centros médico-pedagógicos infantis, sobretudo na França, Bélgica e Itália, pude instalar e fazer funcionar no Rio de Janeiro o Laboratório de Biologia Infantil, inaugurado em 1936, sob os auspícios de então Juiz de Menores, hoje desembargador Burle de Figueiredo".
  • 2
    O LBI ficava no antigo edifício da Seção Feminina do ISS, que havia sido desativado. Na década de 1920, o Instituto abrigava um efetivo permanente de crianças de ambos os sexos; na época da criação do LBI, era um órgão de recolhimento e triagem de menores, em sua maioria meninos.
  • 3
    Leonídio Ribeiro, o juiz Burle de Figueiredo e a deputada Carlota Queiroz participaram da elaboração do projeto de criação da Cidade de Menores e dos Tribunais de Menores. A cidade seria constituída por casas-lares dirigidas por casais, que cuidariam de crianças abandonadas e delinquentes. Localizadas em áreas rurais, buscariam a recuperação dos menores pelo trabalho no campo e pelo convívio num ambiente familiar 'artificial'. Cada casal cuidaria em média de trinta crianças e seria remunerado pelo Estado. O Tribunal de Menores seria um fórum específico para julgar os crimes praticados por menores.
  • 4
    Os exames médico-legais consistiam de exames antropométricos (medição de crânio, ossos específicos do tronco, arcaria dentária etc.) e identificação (fotografia, filmagem, datiloscopia).
  • 5
    Além da Direção, as seções do LBI eram: Medicina (medicina geral, laboratório, radiologia, antropometria, psiquiatria, neurologia, ginecologia, olhos, nariz-garganta-ouvido, boca); Psicologia; Psicotécnica (psicopedologia, psicometria, pedagogia, orientação profissional, arquivo); Identificação (fotografia, filmagem, datiloscopia, arquivos); Assistente Social (secretaria, almoxarifado, enfermagem, arquivo geral, estatística, inquéritos, instituições, biblioteca, cursos, publicações).
  • 6
    Os exames psicotécnicos combinavam métodos pedagógicos e testes psicológicos, tendo como objetivo maior a orientação profissional das crianças. Quanto aos exames clínicos, eram realizados por psiquiatras, neurologistas, ginecologistas, otorrinolaringologistas, oftalmologistas e dentistas.
  • 7
    O tratamento mais sugerido era a internação de menores em institutos profissionalizantes (Alencar Neto, 1938b, p.79).
  • 8
    A identificação era considerada a área da medicina legal mais avançada tecnicamente, na década de 1930. Leonídio Ribeiro, em 1933, recebeu o Prêmio Lombroso pelo trabalho "Identificação no Rio de Janeiro" (Ribeiro, 1975).
  • 9
    Não cabe, neste artigo, uma discussão mais aprofundada com relação à questão de gênero, não obstante o tema da infância abandonada e delinquente propiciar reflexões frutíferas a esse respeito.
  • 10
    Não estão claras as razões da saída de Leonídio Ribeiro da direção do LBI, mas é significativa a sua substituição por um pediatra.
  • 11
    O LBI passou a ser composto de: Setor de Identificação e Fotografia de Menores Apresentados em Juízos; Setor de Análises Químicas, Hematológicas e Sorológicas, Microbiológicas e Parasitológicas; Setor de Diagnóstico de Clínica Geral, Radiológico e Ginecológico; Setor de Exames de Olhos, Nariz, Garganta e Ouvidos; Setor de Exame de Boca; Setor de Exames Antropológicos; Setor de Exames Psicológicos; Serviço de Investigação Social (Alencar Neto, 1938a).
  • 12
    Na terceira fase do LBI, esse sistema de coleta de informações foi aperfeiçoado, sobretudo com o estabelecimento de regras para entrevistas, que as assistentes sociais deveriam cumprir.
  • 13
    Os quadros receberam as seguintes denominações dos médicos do Laboratório: Causas Determinantes da Internação dos Menores; Procedência dos Menores; Faixa Etária da Internação dos Menores; Estado de Saúde Física e Psíquica dos Menores; Grau de Escolaridade dos Menores; Influências Étnicas da Internação dos Menores; Nacionalidade dos Pais.
  • 14
    A título de exemplos: Asilo Agrícola Santa Isabel, Escola Profissionalizante 15 de Novembro, Escola João Luiz Alves, Escolas Profissionais Salesianas e Instituto Profissional Getúlio Vargas (Relatório..., 1940).
  • 15
    Considero 1935 o ano de criação do LBI por Leonídio Ribeiro, ainda que seu funcionamento tenha sido registrado a partir de julho de 1936. Em 1941 o ISS foi transformado em Serviço de Assistência a Menores (SAM), pelo decreto-lei 3.799, de 5 de novembro daquele ano.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Fev 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Recebido
      Maio 2010
    • Aceito
      Abr 2011
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