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Homens da cana e hospitais do açúcar: uma arquitetura da saúde no Estado Novo

Men of the sugarcane fields and their hospitals: the architecture of health under the Estado Novo

Resumos

Aborda a constituição de um patrimônio arquitetônico da saúde para a assistência ao trabalhador da agroindústria açucareira no Brasil, a partir do Estatuto da Lavoura Canavieira (1941), sob a égide do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e no âmbito da política do Estado Novo (1937-1945). Esclarece as soluções propostas pelo Instituto, fundamentadas em inquéritos realizados nas usinas de cada estado canavieiro e no sistema médico-hospitalar, de raízes norte-americanas da década de 1940, adotado pela burocracia ilustrada do IAA. Destaca os hospitais centrais de Pernambuco e especialmente de Alagoas, contrários às orientações do Instituto.

arquitetura hospitalar; política de saúde; economia açucareira; Estado Novo (1937-1945); Brasil


The article explores the emergence of an architectural heritage in the realm of healthcare assistance for workers in the sugarcane agroindustry in Brazil following enactment of the law known as the Estatuto da Lavoura Canavieira (1941), under the auspices of the Instituto do Açúcar e do Álcool and as part of Estado Novo policies (1937-1945). The institute proposed solutions based on surveys conducted at sugarcane mills in cane-producing states and on the medical and hospital system adopted by the institute's enlightened bureaucracy in the 1940s, which took the U.S. system as its model. Special focus is given to the central hospitals in Pernambuco and especially in Alagoas, which opposed institute guidelines.

hospital architecture; health policy; sugarcane economy; Estado Novo (1937-1945); Brazil


ANÁLISE

Homens da cana e hospitais do açúcar: uma arquitetura da saúde no Estado Novo* * Este texto é fruto do capítulo 5 de minha tese de doutorado, Saúde & açúcar: história, economia e arquitetura do Hospital do Açúcar de Alagoas, 1950-2000 (Monteiro, 2001).

Men of the sugarcane fields and their hospitals: the architecture of health under the Estado Novo

Marcia Rocha Monteiro

Professora-associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/Universidade Federal de Alagoas. Rua Pintassilgo, 59/53-B, 04514-030 - São Paulo - SP - Brasil. mrmontei@hotmail.com

RESUMO

Aborda a constituição de um patrimônio arquitetônico da saúde para a assistência ao trabalhador da agroindústria açucareira no Brasil, a partir do Estatuto da Lavoura Canavieira (1941), sob a égide do Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) e no âmbito da política do Estado Novo (1937-1945). Esclarece as soluções propostas pelo Instituto, fundamentadas em inquéritos realizados nas usinas de cada estado canavieiro e no sistema médico-hospitalar, de raízes norte-americanas da década de 1940, adotado pela burocracia ilustrada do IAA. Destaca os hospitais centrais de Pernambuco e especialmente de Alagoas, contrários às orientações do Instituto.

Palavras-chave: arquitetura hospitalar; política de saúde; economia açucareira; Estado Novo (1937-1945); Brasil.

ABSTRACT

The article explores the emergence of an architectural heritage in the realm of healthcare assistance for workers in the sugarcane agroindustry in Brazil following enactment of the law known as the Estatuto da Lavoura Canavieira (1941), under the auspices of the Instituto do Açúcar e do Álcool and as part of Estado Novo policies (1937-1945). The institute proposed solutions based on surveys conducted at sugarcane mills in cane-producing states and on the medical and hospital system adopted by the institute's enlightened bureaucracy in the 1940s, which took the U.S. system as its model. Special focus is given to the central hospitals in Pernambuco and especially in Alagoas, which opposed institute guidelines.

Keywords: hospital architecture; health policy; sugarcane economy; Estado Novo (1937-1945); Brazil.

Você está estudando a grande repercussão social da lei para o trabalhador da lavoura e da indústria do açúcar no Brasil. O homem da fazenda sabia que tinha hospital, remédio e o enterro para ele, a mulher e o filho. Isto era um elo profundo para ele não perder e não abandonar o emprego. E desapareceu. Eu tinha 80 leitos de pediatria, chegava uma criança com um milhão de hemácias, que é incompatível com a vida - tenho cinco milhões e você deve ter outros tantos.

Toda criança que chegava lá, ganhava uma chinelinha, um macacão ou um vestidinho, quatro ou cinco alimentações por dia e jardins para passear. Todo domingo, enchia-se uma ambulância com dez ou vinte meninos e com duas ou três enfermeiras, para tomar banho de mar. Havia uma grande dificuldade para a alta da criança. O pai não queria levá-la de volta para casa, pois, trazia um defuntinho e encontrava um menino viçoso.

Ib Gatto Falcão, fundador do Hospital de Açúcar de Alagoas

Condições de vida no mundo açucareiro

As palavras do médico Ib Gatto Falcão, em julho de 1997, foram o ponto de partida de minha longa pesquisa de doutoramento. O que parecia ser uma iniciativa local e única, a construção do Hospital do Açúcar de Alagoas (1957), revelou-se mais abrangente e diversa, visto que havia outros hospitais ou instituições similares distribuídas pelo país no âmbito de uma mesma política de amparo social, particularmente de assistência à saúde do trabalhador da agroindústria canavieira.

A abordagem da assistência à saúde e da implementação da sua infraestrutura no Brasil, em meados do século XX, entrelaça alguns elementos fundamentais daquele contexto: a industrialização, as condições de vida e o aparelhamento médico-hospitalar existente, além da valorização do homem no processo produtivo de um capitalismo industrial que impulsionava o Estado a direcionar as políticas de saúde e a consolidar as instituições para a assistência médico-hospitalar ao trabalhador. Vários autores analisaram esses anos à luz de aspectos políticos, sociais e econômicos, esclarecendo o conjunto de transformações e a mobilização da sociedade, o ideário e as mãos que conduziram o país aos novos rumos, desde o período conhecido como Estado Novo (1937-1945). As obras de Cardoso Mello e Fernando Novais (1998), Ângela de Castro Gomes (1998), Thomas Skidmore (1988), André Campos (2006), Amélia Cohn e Paulo Elias (2005),Gilberto Hochman (1998), André Médici (1999), Cristina Fonseca (2007) e Stuart Schwartz (1995), entre outras sobre a sociedade, o governo e as políticas de saúde, ajudam a desvendar essas questões.

Do mesmo modo, diversos pesquisadores elucidam a trama socioeconômica da produção açucareira no Brasil, as relações entre trabalhadores, oligarquias e Estado desde o período escravagista e os meios de produção, ressaltando as mudanças advindas com a modernização, que culminaram com o aparecimento das usinas e dos usineiros. Estes últimos ampliaram seus domínios, controlaram a produção da cana e do açúcar e absorveram ou fecharam engenhos, expulsando antigos senhores de suas terras e transformando o ambiente social e do trabalho. Nesse sentido, Costa Filho (dez. 1941), Prazeres (dez. 1941), Melo (dez. 1941), Torres (1945), Lopes (1978), além de Robert Levine (1980), Peter Eisenberg (1989), Stuart Schwartz(1995) e Zoia Campos (1996) foram fundamentais para a compreensão do mundo canavieiro em suas distintas fases e aspectos.

A gradual transformação das relações e dos contratos de trabalho na lavoura no Brasil fez com que nela ingressassem trabalhadores livres e assalariados, juntamente com os agregados - denominação comum a grileiros, arrendatários e meeiros - e o operário do açúcar. Esse operário, oriundo do sistema de trabalho industrial das usinas, destacava-se dentre os trabalhadores da cana na luta por direitos e conquistas. Embora não se compare sua mobilização política com a dos camponeses, nas duas primeiras décadas do século XX a cidade de Escada, em Pernambuco, foi palco de inúmeras greves e repressões policiais em conflitos entre operários do açúcar e usineiros locais - dos quais resultaram, no início dos anos 1920, acordos coletivos de trabalho e aumento de salário.

As precárias condições de moradia, alimentação, saúde, educação e trabalho nas regiões canaveiras foram discutidas em artigos da revista Brasil Açucareiro, editada pelo Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), que tratava a questão social como um problema de âmbito internacional, sendo o Brasil igual ou pior à maioria dos países produtores de açúcar. Entre as matérias constam o artigo de Barbosa Lima Sobrinho, sobre problemas econômicos e sociais da lavoura canavieira no Brasil, publicado em 1943, e as da Seção de Estudos Econômicos da Seção de Assistência à Produção (SAP), subordinada à Comissão Executiva do IAA, além de notícias sobre a política açucareira e a situação de trabalhadores canavieiros na Argentina (1943, 1948), em Cuba (1944, 1948), na Austrália (1948), nos EUA (1948), nas Filipinas (1948) e na República Dominicana (1949, 1950).

Algumas reportagens descreviam o Brasil entre os países que menos assistiam ao trabalhador e cujas condições de vida equivaliam aos mais miseráveis: aos kanaca (nativos) da Austrália ou aos guajiro - população que flutuava de uma central açucareira para outra, em Cuba, vivendo em casas de pau a pique ou palha, cobertas com palha de cana - ou ainda aos bóio, que acompanhavam os guajiro e "tinham a vida de uma safra" (Brasil Açucareiro, nov. 1948, p.52). A condição desses trabalhadores contrastava com a riqueza e o poderio das grandes centrais de açúcar da chamada Pérola das Antilhas, algumas das quais capazes de esmagar, em dias, as safras de grandes estados produtores do Brasil. Em qualquer lugar com tais condições os trabalhadores eram assistidos com o que estivesse ao alcance de curandeiros e curiosos; não havia médicos e hospitais nessas zonas rurais (Brasil Açucareiro, nov. 1948; Torres, 1945).

O homem do campo, no Brasil, valia-se das Santas Casas de Misericórdia, quando havia alguma em cidade próxima. Países como Cuba, Java, Trinidade, Haiti, São Domingos e Índia igualavam-se ou eram ainda piores, no descuidado com os trabalhadores e na assistência social à lavoura canavieira. A Austrália tinha uma situação peculiar em virtude de sua política racista, a White Australian Policy, que expulsou os kanaca do campo e, diferentemente dos demais países, substituiu-os por homens brancos, que ocuparam as funções na lavoura canavieira com salários altos e padronizados. Nos EUA, as zonas canavieiras de Everglades, na Flórida, ofereciam condições de vida e assistência satisfatórias, especialmente para as gestantes, assim como no Havaí. As grandes centrais açucareiras da República Dominicana tinham hospitais próprios, e as pequenas contratavam hospitais particulares; na Argentina, a legislação trabalhista vigorava desde 1925, e os usineiros despendiam recursos para assistência à saúde de seus trabalhadores; no México, o serviço médico foi implantado ainda em 1940 (Vasconcelos, jun. 1948; Torres,1945).

O interesse do Estado brasileiro pela assistência à saúde esteve além da questão social. Atingiu a política e a economia, pois com a população vivendo precariamente e contraindo doenças que dizimavam ou inutilizavam trabalhadores, havia muito mais enfermos do que médicos, enfermeiros, hospitais e ambulatórios. Tal situação era um terror para os brasileiros e um pesadelo para os governantes: prejudicava a economia, impedia a produtividade e atrasava o desenvolvimento do país. Essa realidade era conhecida desde as primeiras décadas do século XX, quando a proteção social voltada para os segmentos do complexo exportador estava organizada por empresas e categorias associadas, como imigrantes e associações de bairros, e precisava de mudanças (Médici, 1999; Monteiro, 2001, p.183-198).1 1 Médici (1999) analisou os vínculos econômicos das políticas de assistência à saúde na conjuntura brasileira entre 1860-1998, com ênfase nos dualismos assistência médica versus sanitarismo e assistência médica versus desenvolvimentismo, ajudando a compreender os períodos 1860-1923, 1923-1949 e 1950-1966.

O amparo social integrou os projetos do governo Vargas (1930-1945), que geriu as políticas de saúde em um contexto de regulação e proteção, por parte do poder público, dos segmentos do mercado formal de trabalho nas cidades, institucionalizando, normalizando e controlando a assistência ao trabalhador (Médici, 1999). Com amplos poderes para dirigir a economia do país, Vargas organizou um aparato burocrático para estabilizar a ordem político-social e promover o desenvolvimento econômico. Negociou a transferência de supervisão da produção do âmbito estadual para o federal, instituindo novos ministérios como o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC; 1930) e o Ministério de Educação e Saúde (MES; 1930-1953). Criou institutos federais com a finalidade de incentivar o consumo e regular o mercado. Com isso, efetivou o plano de intervenção governamental por ações indiretas, sistemáticas e dirigidas por instituições - primeiro a Comissão de Defesa da Produção do Açúcar (CDPA), em 1932, e depois o IAA (1933-1990), em defesa da produção e do comércio do açúcar - e estabeleceu uma política permanente de proteção à economia açucareira. Os Institutos do Pinho, do Mate e do Sal foram montados depois de 1937 (Castro Gomes, 1998; Costa Filho, dez. 1941).

Ao perceber que a ditadura não sobreviveria, nos dois últimos anos do Estado Novo Getúlio Vargas preparou os alicerces para seu retorno à Presidência, lançando mão ainda mais da doutrina do trabalhismo nos programas radiofônicos. O líder político aproveitou a atração exercida por esse sentimento nacionalista sobre ampla faixa da opinião pública, nos diversos segmentos sociais do país, para estabelecer o consenso popular. Enfatizou o valor do operário em seu governo e prometeu aos trabalhadores um papel proeminente entre a "gente nova, cheia de vigor e de esperança, capaz de crer e de levar avante as tarefas de nosso progresso" (Skidmore, 1988, p.55-143).

Legislação do Brasil canavieiro

A área social destacou-se, desde o início, nas políticas públicas desenvolvidas pelo governo Vargas, especialmente com os novos ministérios. Fundadas na organização dos interesses profissionais (Castro Gomes, 1998), tais políticas foram responsáveis pela implantação de pensões e aposentadorias, carteira de trabalho, estabilidade de emprego e consolidação das leis do trabalho (CLT), além de hospitais, escolas secundárias e profissionais. Entre 1933 e 1938, houve a reestruturação da previdência social com a legislação trabalhista, previdenciária e sindical e a criação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), o que instrumentou o Estado para assegurar sua intervenção no mercado de trabalho e controlar as organizações de empregados e empregadores.

Os IAPs congregaram trabalhadores por categorias profissionais - Institutos de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários (IAPC), dos Marítimos (IAPM), dos Empregados em Transportes e Cargas (IAPETC), dos Bancários (IAPB) e dos industriários (Iapi) -, absorvendo as antigas Caixas de Aposentadorias e Pensão (CAPs), primeira modalidade de seguro social para trabalhadores do setor privado. Além de aposentadorias e pensões, esses institutos disponibilizavam assistência à saúde para os respectivos trabalhadores e muitos deles construíram seus próprios hospitais (Castro Gomes, 1998, p.513-525).

As circunstâncias políticas e econômicas dos anos 1930-1940 propiciaram a regulamentação da 'assistência médico-social' - saúde, educação, moradia, alimentação, recreação e outros benefícios sociais - para os trabalhadores. Consolidou-se, então, sob a égide do IAA e por meio do Estatuto da Lavoura Canavieira (decreto-lei 3.855, de 21 de novembro de 1941), a organização das relações entre usineiros, fornecedores e trabalhadores da agroindústria canavieira (Melo, dez. 1941; Costa Filho, dez. 1941).2 2 O estatuto visou controlar a economia e equacionar conflitos entre os segmentos. Segundo Costa Filho (dez. 1941), além de regulamentar a economia, ampliou e completou a ação do IAA no campo social, protegendo as classes médias e pequenas de trabalhadores no contexto da política açucareira que se desenvolvia no país.

O IAA visou ao controle da economia e ao equacionamento de conflitos entre os segmentos, completando a ação no campo social e protegendo as classes médias e baixas de trabalhadores, no contexto da política açucareira que se desenvolvia no país. Atuou como órgão regulador da economia açucareira, orientando, coordenando e regulamentando as relações entre usineiros, fornecedores e trabalhadores e a aplicação dos recursos no apoio à produção. Seu primeiro decênio foi decisivo para a agroindústria do açúcar e do álcool do Brasil. Costa Filho (dez. 1941) ressaltou suas ações culturais: a constituição de uma biblioteca especializada e o estímulo à pesquisa, com premiação de obras como Tecnologia da fábrica de álcool, de Baeta Neves, e com apoio à publicação de Anuário açucareiro, Defesa da produção açucareira, de Leonardo Truda, Problemas econômicos e sociais da lavoura canavieira, de Barbosa Lima Sobrinho, A política do álcool-motor, de Joaquim de Melo, A economia dirigida na indústria açucareira, de O. W. Willcox, e a edição da Brasil Açucareiro.

O IAA promoveu a política de governo na defesa e preservação das lavouras, fábricas, produtos, mercadorias e de um conjunto econômico de capital importância para alguns estados, entre eles Alagoas, cuja base econômica, até hoje, é a agroindústria canavieira. Para cumprir suas metas, o órgão federal dispunha da Seção de Assistência à Produção, com uma estrutura funcional abrangente e articulada.

Para assegurar o equilíbrio do mercado do açúcar, interna e externamente, o IAA incrementou também a produção do álcool-motor nacional, controlando a produção e o preço e regulando o mercado. Trata-se da fase conhecida no Brasil como a da economia dirigida. Segundo Melo (dez. 1941), defensor da estatização, esse conceito refere-se à ação ampliada do Estado em novas funções e responsabilidades, nunca antes alcançadas, com vistas a regular e dirigir o ciclo econômico em suas diversas fases. Isso ocorria tanto em países produtores de cana-de-açúcar como de açúcar de beterraba. Havia incentivos e controle estatal na produção de açúcar na Austrália, México, Peru, Porto Rico, Portugal, Índia, EUA e regiões beterrabeiras da Espanha, Áustria, Bélgica, Birmânia e Alemanha.

O Estatuto da Lavoura Canavieira, considerado a primeira grande lei social agrária do Brasil, não traduziu necessariamente interesses dos segmentos canavieiros, mas foi resultado conquistado sob a presidência de Barbosa Lima Sobrinho no IAA (1938-1946), após anos de discussões com as categorias de usineiros e fornecedores de cana. Sua criação gerou inúmeras queixas, principalmente dos fornecedores de cana da Bahia e Rio de Janeiro, além de debates e resistências de usineiros à sua elaboração e edição, que atendeu a nova política do governo Vargas, de nacionalização e justiça social. Foi publicado na íntegra na revista Brasil Açucareiro, acompanhado de artigos sobre sua gênese e problemas sociais na lavoura canavieira, de Barbosa Lima Sobrinho, as instâncias e os mecanismos de conciliação estabelecidos pelo estatuto para os litígios entre os segmentos, de Temístocles Cavalcanti (procurador da República), e de diversas matérias sobre a repercussão do decreto-lei na imprensa e nos segmentos canavieiros (Prazeres, dez. 1941).

O estatuto, com seus nove títulos, definia a quem se aplicava a lei, regulamentava o fornecimento da matéria-prima, a produção e os preços e estabelecia o fundo agrícola, as instâncias e as sanções jurídicas para litígios. A economia açucareira tornava-se tutelada pelo Estado.

Cabe destacar o artigo 144, "Da assistência à produção", que instituía taxa de Cr$1,00 (um cruzeiro) por tonelada de cana produzida e entregue pelos fornecedores às usinas e destilarias. O montante arrecadado era destinado, conforme artigo 151, à assistência à produção e ao melhoramento das condições de vida do trabalhador rural, especialmente das populações rurais dedicadas ao cultivo de cana (alínea e). A assistência à saúde do trabalhador da agroindústria açucareira foi regulamentada por resolução de maio de 1943, que estabeleceu a cobrança, arrecadação e aplicação da referida taxa e colocou em vigor os demais dispositivos sobre a assistência médico-social. No entanto, nem todos foram contemplados pela legislação.

Os fazendeiros e usineiros de São Paulo reclamaram da situação dos colonos, e o ministro do Trabalho, Marcondes Filho, por ordem do presidente da República, enviou técnicos do IAA para conhecer as zonas canavieiras de São Paulo e outros estados com situação semelhante. Após a viagem, apresentou-se um anteprojeto de decreto-lei considerando o regime de colonato, que foi aperfeiçoado, e o trabalhador rural passou a ser reconhecido como prestador de serviços industriais nas usinas açucareiras.

Em decorrência disso, a regulamentação da assistência médico-social deu-se também com decreto-lei de outubro de 1944, que dispôs sobre os fornecedores de cana que lavram terra alheia, e decreto-lei 9.827, de 10 de setembro de 1946, com dispositivos sobre a produção açucareira e outras providências. O artigo 6º regularizou a situação dos lavradores em regime de colonato, criando o contrato-tipo para essa categoria de trabalhadores, e o artigo 8º estabeleceu a taxa obrigatória de Cr$2,00 (dois cruzeiros) por saco de açúcar e o percentual a ser aplicado pelas indústrias açucareiras na assistência médico-social, até então não regulamentados.

Os decretos foram acrescidos ao Estatuto da Lavoura Canavieira, porém sua aplicação, especialmente a efetivação da assistência médico-hospitalar, foi lenta em virtude da inexistência de serviços e instalações na maior parte das áreas canavieiras. A Brasil Açucareiro acompanhou esse percurso com artigos sobre as ações sociais do IAA nas décadas de 1940 e 1950, mostrando que o instituto, com aprovação de sua Comissão Executiva, concedeu subvenções para instituições hospitalares, para-hospitalares e educativas, sediadas ou não nas zonas canavieiras, mediante pedidos de doações por parte das beneméritas e, também, das Santas Casas, sanatórios e outras instituições. A infraestrutura para os serviços de saúde nas regiões canavieiras foi implementada aos poucos e consolidou-se nos anos 1950 e 1960.

Inquéritos e saúde do trabalhador

A necessidade de conhecer a situação social do trabalhador da agroindústria canavieira, visando ao planejamento de ações que elevassem a produtividade industrial e rural, levou o IAA, por intermédio de sua Seção de Estudos Econômicos, a realizar inquéritos nas usinas brasileiras a partir de 1946. Os inquéritos iniciaram-se nos estados do Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo, Alagoas, Minas Gerais, Bahia e Sergipe, e posteriormente foram enviados para Espírito Santo, Paraíba e Rio Grande do Norte, Pará, Piauí, Maranhão, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina, possibilitando uma visão dos problemas a enfrentar no país. A operação gerou um banco de dados sobre as condições de vida e saúde, abrangendo as instalações hospitalares existentes nas usinas e municípios, que subsidiou o órgão na elaboração de projetos que dotassem os municípios canavieiros de unidades médico-sociais. Além disso, o levantamento abarcou as condições materiais das usinas e a aplicação dos recursos do Fundo de Assistência Social estabelecido pelo estatuto.

Em Pernambuco, o inquérito, coordenado pelo médico Antonio Figueira englobou quase a totalidade das 48 usinas do estado, numa iniciativa pioneira do gênero na zona industrial do açúcar. Concluído com êxito em 1947, serviu de modelo para outros órgãos e motivou a equipe da SAP, coordenada pelo médico José Oliveira Leite, a continuar seu programa junto aos demais estados.

Alguns fatos chamaram atenção, por sua peculiaridade. Duas usinas importantes dispunham de charlatões em vez de médicos. Das 48 usinas, em seis não havia médicos e nas demais os serviços eram prestados com frequência variada: as visitas médicas ocorriam em caráter eventual, variando entre quinzenais (em duas das usinas) a diárias (em 12); na metade dos casos, os pacientes se dirigiam ao consultório na cidade. Os partos eram realizados por curiosas em 32 usinas, e algumas contavam com parteira e curiosa - distinção bem sibilina. Havia aquelas em que se encontravam parteiras diplomadas, práticas ou enfermeiros-obstetras, além de um caso em que o farmacêutico acumulava tais funções.

Havia três ambulatórios em uma usina - um na sede e dois nos engenhos -, e em outras 13 nada existia. A Usina Catende tinha um hospital com 14 leitos, distribuídos em enfermarias para homens, mulheres e sala de recuperação; nove usinas subvencionavam hospitais regionais; e em 17 casos as cidades contavam com hospitais, sendo que em duas delas os hospitais não funcionavam. Nenhuma informação havia sido registrada sobre a prioridade dos gastos na área social, como prescreviam os inquéritos (Leite, jan. 1950).

Em 1947 foram enviados questionários para 18 usinas da Bahia, porém somente 11 responderam. Apesar de ser um dos estados mais ricos da federação e contar com parque industrial açucareiro desenvolvido e eficiente na produção das cotas estabelecidas pelo IAA, a situação de seus trabalhadores era mais precária do que em Alagoas, Pernambuco e Rio de Janeiro. Na Bahia, uma usina pagava pró-labore a uma curiosa que fazia partos; duas enviavam os casos obstétricos para a maternidade da cidade próxima; quatro possuíam ambulatórios com sala de curativo, consultas, pequena cirurgia e laboratório. Na Usina D. João, havia um pequeno posto médico; em outras duas, as hospitalizações eram encaminhadas à Santa Casa de Santo Amaro; e numa quarta havia três leitos para as emergências em hospital de Salvador, a 100km. Os gastos com medicamentos estiveram em primeiro lugar, com ambulatório em segundo, hospitalização em quarto lugar, funeral em sétimo e auxílio-alimentação em décimo lugar, na ordem de importância das aplicações das usinas para a assistência social ao trabalhador canavieiro (Leite, set.-out. 1948, nov.-dez. 1950).

Em Minas Gerais, apenas duas ou três usinas tinham boas instalações e rendimento compatível. Seu parque industrial era precário e nunca atingira a cota de fabricação de açúcar como a Bahia. Das 26 usinas que receberam questionários em 1946, apenas 13 responderam, e a escassez de dados dificultou as comparações.

Embora, em 1944, o estado tivesse 253 instituições hospitalares ou para-hospitalares e fosse o terceiro em número de leitos no país (15.887 leitos), nas populosas áreas industriais açucareiras a situação hospitalar era deficitária. O IAA contribuiu para a construção de um pavilhão anexo ao Hospital Nossa Senhora das Dores, em Ponte Nova, destinando 26 leitos aos doentes das zonas industriais do açúcar. A cidade dispunha de vinte médicos, mas nenhuma usina tinha ambulatório adequado, justificando-se pela proximidade (apesar da distância de 40km) e pela realização de atendimento nos consultórios particulares. Das 13 usinas que responderam aos inquéritos, apenas quatro contavam com médicos; em três delas, o profissional era remunerado por visita feita e, na quarta, os dois médicos recebiam salários mensais. Três usinas tinham enfermeiros; em uma delas o salário do profissional era pago, em parte, por uma companhia de seguros e, em outra, o gerente da fábrica desempenhava todas as funções. Três tinham serviços de curiosas com pagamento de pró-labore; e apenas duas usinas mantinham contratos de internação com as Santas Casas de cidades próximas.

Ao contrário das respostas aos inquéritos, as prestações de contas eram obrigatórias, porém deficientes. Em 1950 o IAA recebeu as prestações de contas de apenas 25 das 33 usinas existentes, por distintas razões. Em vinte dessas, na rubrica Ambulatório foram registradas despesas com construções e reformas de ambulatórios, médicos, enfermeiras, parteiras, serventes e, às vezes, dentistas. Nenhuma usina tinha hospital; elas utilizavam serviços médicos de cidades vizinhas, embora apenas 13 tenham registrado gastos com serviços hospitalares (Leite, set.-out. 1948, mar. 1950, maio 1950).

Em Sergipe, a assistência à saúde dos trabalhadores era tão precária quanto sua situação econômica. O estado esboçara discreta reação no crescimento de sua produção açucareira, que foi de 744.866 sacos de açúcar no período 1947-1948; a safra anterior fora de 623.722 sacos. Apesar de não ter tradição açucareira e não ser grande produtor, possuía 77 pequenas usinas, das quais 51 ainda estavam em funcionamento em 1948-1949. Sua produção de 797.034 sacos de açúcar em 1946 estava longe de alcançar a cota estabelecida de 1.196.567 sacos. De 1946 a 1949, o máximo que produziu foi pouco mais de 65% de sua cota.

A baixa produção e verbas exíguas inviabilizavam a assistência médica ao trabalhador canavieiro nas diversas localidades. Mesmo sendo pequenas as distâncias entre os municípios e a capital, pouco ou quase nada poderia ser feito, uma vez que a medicina curativa, utilizando-se cada vez mais de tecnologias sofisticadas, tornou-se de alto custo e inacessível para aquela realidade. No estado havia 66 estabelecimentos hospitalares ou para-hospitalares, seis sustentados pela União, 29 com subvenções estaduais, dez auxiliados pelo município e 21 com ônus cobertos por particulares. Sergipe possuía 778 leitos hospitalares, dos quais 441 ficavam na capital ou em municípios limítrofes; 435 eram leitos gratuitos (indigentes) e pagos (contribuintes) distribuídos em hospitais gerais nos municípios e sedes de usinas.

Treze municípios (Capela, Japaratuba, Laranjeiras, Maroim, Riachuelo, Rosário, Inajaroba, Campo do Brito, Divina Pastora, Santo Amaro, Indiaroba, Irapiranga e Siriri) dispunham de 108 leitos para atender aproximadamente 119.716 indigentes, o que corresponde a 1.107 pessoas/leito em regiões em que os indivíduos eram mais vulneráveis em virtude de suas precárias condições de vida. Sergipe era um dos estados mais pobres e deficitários em hospitais, figurando em 18º lugar, à frente apeanas de Rio Grande do Norte, Maranhão, Piauí e território do Acre. Não havia facilidades para hospitalização, e o auxílio-funeral - mais concentrado na mortalidade infantil - prevalecia sobre outros itens importantes para a saúde, como os gastos com hospitalização, o quinto na ordem de prioridade (Leite, set.-out. 1948, mar. 1950, out. 1950).

Em Alagoas os dados do inquérito sobre a situação da assistência à saúde dos canavieiros, antes e depois da lei 9.827 de 10 de setembro de 1946, corroboraram a notícia comentada por Vasconcelos Torres (1945, dez. 1944), de que algumas usinas não descuidavam da assistência à saúde dos trabalhadores. Das 26 usinas em funcionamento, apenas a Porto Rico não respondeu ao inquérito. Nove tinham instalações médico-hospitalares; seis possuíam unidades ambulatoriais; e numa constava um posto médico com salas de fisioterapia e eletroterapia, lâmpadas germicidas e salas para pequenas cirurgias. Havia uma usina com seis postos médicos, um central e cinco nos engenhos; e outra (não especificada) com um pequeno hospital com 17 leitos, sala de operações, raio X, eletro e fisioterapia e laboratório de análise. Possivelmente esse hospital era o da Usina Leão S.A., no município de Rio Largo, que foi construído na década de 1940, com capacidade para 28 leitos, serviços de ambulatório e enfermarias, cuja concepção contou com a participação dos médicos Deraldo Campos e Ib Gatto Falcão (Leite, fev. 1950).

Conforme Falcão (jul. 1997), havia hospitais pequenos em alguns municípios alagoanos que prestavam assistência benemérita aos trabalhadores da lavoura, mas os doentes das usinas eram, em geral, encaminhados para o hospital da Santa Casa de Misericórdia de Maceió (inaugurado em 1951). Essa instituição, voltada sobretudo para os pobres, não recusava pacientes e atendia casos mais graves somente com as contribuições espontâneas ou solicitadas e doações para as obras da misericórdia, centralizadas no hospital. Os conselheiros das Santas Casas pertenciam às famílias mais abastadas e influentes da sociedade, como sempre foram desde as origens portuguesas: homens de bem e bens aliados à Igreja e ao Estado. Muitos eram ligados à agroindústria canavieira, setor econômico até hoje hegemônico no estado (Monteiro, 2001).

Havia 28 médicos prestando assistência aos trabalhadores, em usinas no estado; desses, quatro eram contratados por uma única usina, dois por outra, e os 22 restantes atendiam um em cada indústria. Somente uma usina não tinha médico. Além desses serviços, 19 tinham enfermeiros práticos, sendo que duas contavam com seis profissionais; em outras duas havia dois enfermeiros práticos para cada; e, nas demais, somente um em cada. Em uma delas, além dos serviços de enfermagem, o profissional era também apontador e auxiliar de escritório. Os serviços dentários eram realizados em 13 usinas; duas contavam com parteiras, uma profissional e outra prática; apenas uma usina tinha farmacêutico prático.

Entre os dados levantados, constam informações sobre a assistência médico-social em 27 usinas alagoanas. Na prestação de contas de 14 delas, os industriais alagoanos tinham gastado bem mais do que eram obrigados, pagando por despesas com laboratório, radiografia, médicos especialistas, obras de ambulatórios e aumentos com despesas com pessoal, serviços odontológicos, hospitalização e transporte de doentes.

Não obstante as informações limitadas e as dificuldades para comparar os períodos anterior e posterior ao decreto-lei de 1946, pode-se afirmar que houve aumento de serviços médico-hospitalares, profissionais e recursos para a assistência à saúde do trabalhador canavieiro. Entre 1946 e 1948, foram gastos, em ordem de prioridade: medicamentos (40% do total das verbas em todas as usinas); diversões e desportos (gastos de 15 usinas); hospitalização. O auxílio-alimentação consta em nono lugar (somente em seis usinas), e mereceu o seguinte comentário de José Oliveira Leite (fev. 1950): "remédios e cultura física para uma população sabidamente subnutrida".

Em São Paulo, a situação da assistência à saúde do trabalhador do açúcar apresentou-se superior aos demais estados. Em 1946 ocupava o primeiro lugar no país, com 666 hospitais ou instituições para-hospitalares, dos quais 248 hospitais gerais, totalizando 42.742 leitos. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na época o estado contava com 4.881 médicos, ou seja, 5,9 médicos por dez mil habitantes, relação só inferior à do Distrito Federal, com 17,7 médicos por dez mil habitantes. Tal supremacia, no entanto, de acordo com Leite (nov.-dez. 1950), desaparecia quando confrontada a outros dados referentes às duas capitais, como distribuição de profissionais e serviços, em que os percentuais se igualavam.

Para o IAA, São Paulo estava em sintonia com a sua orientação geral quanto à assistência social. No período 1948-1949, com setenta usinas em atividade, priorizou a assistência ambulatorial, empregando 42,10% das verbas, um percentual menor para hospitalização e o restante para outros itens da legislação social. Outros estados também tiveram as despesas e a manutenção de ambulatórios como principais em relação à hospitalização: Alagoas empregou 49,3%; Pernambuco, 42,10%; Sergipe, 53,03%; Bahia, 54,08%; e Minas, 57,08%.

O inquérito da SAP mostrou a distribuição de leitos pagos e gratuitos nos diversos municípios canavieiros de São Paulo, identificando maior déficit de hospitais em Brotas, Igarapava, Limeira, Pirassununga, Porto Feliz, Pontal, São Manuel, São Simão e Ubirama, cujos índices de internamento gratuito eram mais elevados. Em grau menor encontravam-se Dois Córregos, Guariba e Penápolis. Mais favorável era a situação de Campinas, Itapira, Marília e Santa Adélia, onde havia mais leitos pagos. Leite (nov-dez. 1950) chamava atenção para a maior redução da capacidade de sobrevivência de um hospital quando sua margem de indigência era muito alargada, que comprometendo suas condições materiais e seu rendimento científico.

A disponibilidade de leitos hospitalares dos municípios paulistas com mais de três usinas era relativamente boa, se comparada à do país. Entre 1945 e 1949, Birigui, Itapira, Campinas e Ribeirão Preto exibiram índices ótimos, graças à construção de novos hospitais e casas de saúde particulares. Marília e Santa Adélia também apresentaram situação favorável. Trinta e três, dos quarenta municípios açucareiros do estado, contavam com hospitais, quase sempre regionais. A infraestrutura disponível em São Paulo foi oportuna para o modelo de assistência à saúde com ambulatório e hospital regional, reduzindo a necessidade de novas construções. No entanto, usineiros iniciaram uma série de obras, entre elas ambulatórios e farmácia, em 21 usinas; enfermarias em sete outras; e 28 empresas também construíram ambulatórios e pequenos hospitais junto às usinas de açúcar.

Não foi possível demonstrar uma ordem de prioridade dos investimentos sociais nas zonas canavieiras paulistas, devido às imprecisões dos títulos de auxílios, mas o auxílio-funeral, diferentemente de outros estados, correspondeu a um pequeno percentual do montante das verbas (Leite, set.-out. 1948, mar. 1950, nov.-dez. 1950).

No estado do Rio de Janeiro, José de Oliveira Leite, coordenador da SAP, visitou as regiões canavieiras fluminenses, especialmente o município de Campos, para conhecer os problemas, a geografia, as usinas, os recursos e as organizações hospitalares e manter contatos com associações de classe, em busca de uma solução unitária, econômica e de maior eficiência para a assistência à saúde do trabalhador. O estado possuía 31 usinas, das quais 16 encontravam-se em Campos e muitas outras nas proximidades. Naquele município as usinas eram concentradas, e os fornecedores confluíam para elas, ocorrendo o inverso com os municípios de Quissamã, Carapebus e Conceição de Macabu, cujos núcleos de fornecedores eram distantes e com baixa arrecadação da taxa dos 40% sobre a tonelada de cana. Do total de usinas fluminenses, apenas três não tinham condições de manter serviços médicos autônomos. As usinas Novo Horizonte e Santa Rosa foram excluídas do levantamento por estar sob intervenção (Leite, set.-out. 1948, jan. 1949, mar. 1950, jul. 1950).

Em todos os estados canavieiros, as usinas enfileiraram cifras de despesas com medicamentos para os trabalhadores. O problema foi observado pela SAP, assim como o da falta de alimentação, que, junto com as condições ambientais e de higiene estariam por trás da má condição de saúde. Em Minas Gerais, Bahia, Pernambuco e Alagoas, o percentual de gastos com medicamentos era dos mais elevados, em relação ao total de verbas aplicadas aos outros itens da saúde.

Leite (maio 1950) reconhecia que a falta de dados ou a imprecisão de alguns títulos gerava equívocos no lançamento das despesas, e dificultava o confronto entre as verbas escoadas e os gastos em cada estado. Para ele, algumas despesas vinham discriminadas em títulos distintos; eram elas medidas supletivas e denotavam a inexistência de um estatuto social que cobrisse as exigências elementares da vida do trabalhador. A imprecisão e a falta de esclarecimento sobre o próprio conceito de assistência médico-hospitalar e social originavam incompreensões no preenchimento das informações. O médico ressentia-se da falta de uma fundação que centralizasse a orientação do uso adequado, criterioso e objetivo dos Fundos Para a Assistência Social e evitasse os desvios de suas finalidades que eram observados nas prestações de contas. Apesar de suas ponderações sobre as imprecisões e a falta de uma coordenação das operações, considerava o inquérito importante, pelo fato de constituir um repositório de informações úteis à orientação quanto aos problemas e ao planejamento da infraestrutura médico-hospitalar em áreas açucareiras (Monteiro, 2001).

Projetos singulares no Brasil canavieiro

A avaliação dos resultados da assistência médico-social nas usinas, três anos após a assinatura do decreto-lei de 1946, reconheceu que a lei ratificou o que muitas fábricas já praticavam, nos cuidados com a saúde do trabalhador, em regime de colonato ou não, destacando auxílios sob as rubricas de diversos, cozinhas econômicas, medicamentos e hospitalização. Esses, entretanto, não representavam muito em relação às necessidades do Brasil canavieiro, entre elas a infraestrutura médico-hospitalar. Dos 18 estados açucareiros, 11 realizaram ou iniciaram obras após setembro de 1946, sendo que, do total a ser gasto com assistência social nas safras de 1946/1947, 1947/1948 e 1948/1949, apenas 7,58% foram empregados em novos ambulatórios, escolas, creches, campos de desporto, cinema, gabinetes dentários, ambulâncias, maternidades e clubes recreativos. A Tabela 1 apresenta a quantidade de obras nos estados, realizadas entre 1946 e 1950, com destaque para São Paulo na aplicação dos recursos em assistência à saúde do trabalhador, especialmente ambulatórios, seguido de Alagoas e Rio de Janeiro. Os quatro primeiros estados eram os principais produtores de açúcar do país.

A SAP orientava os segmentos canavieiros a implantar serviços médicos coordenados e hierarquizados, distribuídos estrategicamente nas áreas produtoras de cana e açúcar e articulados a um hospital de clínicas ou geral, de modo a ampliar o atendimento e facilitar o acesso dos trabalhadores. O objetivo era disseminar unidades médicas em locais de maior risco, devido às endemias e carência assistencial, e levar aos trabalhadores o progresso científico nunca ao alcance do bolso do povo (Leite, set.-out. 1948, jan. 1949, maio 1950). Disponibilizaram-se estudos visando reduzir custos de obra e manutenção e superar a escassez de mão de obra qualificada, com opções de ambulatórios-padrão tipos I, II e III; o primeiro com programa mais completo, os demais de menor porte. Segundo Leite (set.-out. 1948), esses projetos seguiam o critério funcional corbusiano, com estilo rural brasileiro. Não foram localizadas suas plantas arquitetônicas, mas apenas suas descrições (Leite, set.-out. 1948, p.334-347).

No artigo "Contribuição ao planejamento da assistência médico-social", publicado em Brasil Açucareiro, Hamilton Fernandes (set. 1951), do Serviço Técnico Industrial do IAA, apresentou modelos e a perspectiva externa de um ambulatório para o município de Campos no Rio de Janeiro (Figura 2). Comentou haver projetos de hospitais, escolas e residências desenvolvidos pelo setor com a colaboração de Aníbal Costa, chefe da Seção de Controle de Planejamento, e dos médicos Nelson Coutinho, diretor da SAP, e José Oliveira Leite, chefe do serviço médico do IAA, para a assistência aos canavieiros.


A padronização dos ambulatórios variava conforme a finalidade e abrangência da assistência, adaptando-se às localizações diversas. Seus programas de necessidades fundamentavam-se em Isadore Rosenfield (1969), referência em planejamento e administração hospitalar, e em Le Corbusier, cuja obra La Maison Domino, de 1919, e seu estudo posterior "Le modulor" inspiraram a busca de um sistema padrão progressivo-flexível que permitisse ampliações harmônicas sem prejudicar o funcionamento (Fernandes, set. 1951).

Os modelos constituíam unidades médicas de qualquer tipo, desde a mais simples até hospitais com um ou dois pavimentos. Eram lineares, com uma ou mais circulações, da menor extensão possível. O ambulatório de Campos foi projetado excepcionalmente como unidade mínima para iniciar a assistência aos trabalhadores, partindo dos elementos constitutivos das unidades médico-hospitalares. Foram apresentadas três opções e escolhida uma de cobertura em água única, cujo forro teria a mesma inclinação da coberta, para aumentar a área de renovação de ar quente e propiciar iluminação por reflexo. Em outra opção de construção em concreto armado, foi proposto um vigamento invertido e, sobre ele, terças e telhas de fibrocimento, para impermeabilização da laje exposta e criação de uma câmara isotérmica entre forro, plano e telhas (Fernandes, set. 1951).

O médico Leite e o arquiteto Fernandes integravam a equipe multidisciplinar do IAA, em sintonia com as orientações da SAP, e ambos apresentaram conceitos semelhantes para os ambulatórios projetados em seus setores. As diferenças residiam nos estilos arquitetônicos: a primeira de características rurais e a segunda mais urbana, de traços funcionalistas, talvez inspirada na região de maior concentração industrial e de aglomerados urbanos.

Na década de 1950 constituiu-se, no Brasil, um patrimônio arquitetônico da saúde, com a construção de inúmeros postos de saúde, ambulatórios e hospitais a integrar um sistema médico-hospitalar exclusivo para segmentos da economia açucareira. O Quadro 1 revela parte da infraestrutura construída nesse período, com hospitais e ambulatórios por estado, suas entidades mantenedoras e datas de inauguração, quando identificadas (Monteiro, 2001). Na lista, que abrangeu 13 estados, observa-se a predominância de ambulatórios, porta de entrada da assistência à saúde, graças a investimentos e especificidades de Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro. Faltaram dados sobre todos os estados canavieiros e houve defasagem entre registros oficiais e informações de matérias pesquisadas.


O maior número de ambulatórios concentrou-se em Pernambuco, um total de 25, onde constam também três hospitais. Um deles, o Hospital Barão de Lucena, pertencente aos usineiros, foi inaugurado em 1958. Com 470 leitos, era o maior dos hospitais do açúcar do país. Outro que chamou a atenção foi o Hospital Gomes Maranhão (1957), pertencente aos trabalhadores da agroindústria açucareira, adaptado em prédio no bairro Casa Amarela (Figura 3). Ambos se localizavam em Recife.


São Paulo foi o segundo em número de ambulatórios, com 16 unidades. Leite (set.-out. 1948) mencionou 17. Em número de hospitais igualou-se a Pernambuco, com quatro. Em São Paulo, o Hospital dos Fornecedores de Cana de Piracicaba (1959-1960), com 80 leitos, era o terceiro maior do país (Figura 4), atrás do Hospital do Açúcar de Alagoas. A solução para a assistência à saúde do trabalhador em São Paulo alinhava-se com o IAA, dispunha de infraestrutura maior, era mais bem distribuída que os demais e ainda somou investimentos dos usineiros e fornecedores de cana, priorizando a construção de ambulatórios integrados a hospitais existentes.


Embora Alagoas apareça com apenas dois ambulatórios, Leite (set.-out. 1948) enumerou 12, o que tornaria o estado o terceiro nessa modalidade de assistência. Constam também um pronto-socorro e dois hospitais: o Hospital da Usina Utinga Leão (década de 1940), com 28 leitos, em Rio Largo, e o Hospital do Açúcar de Alagoas (1957), em Maceió, com cerca de 200 leitos, o segundo em capacidade.

O estado do Rio de Janeiro ocuparia o quarto lugar, com nove ambulatórios, tendo também quatro hospitais, entre eles o Hospital da Associação de Plantadores de Cana (1959), em Campos, com 70 leitos, o quarto maior. O município de Campos contava com sete instituições hospitalares e nenhuma preenchia as condições de um hospital de clínica geral, considerado fundamental para completar o plano de assistência médico-hospitalar. Nesse estado, optou-se pela localização estratégica de postos médicos, acessíveis aos trabalhadores das fazendas e articulados a um ambulatório central na cidade, com características de pequeno hospital de emergência. Recomendou-se a associação entre os serviços médicos de usinas com baixa arrecadação e os de outras ou de fornecedores, e a incorporação de hospitais do município ao sistema, através de acordos, a fim de minimizar as dificuldades de assistência caritativa (indigentes) e não caritativa (contribuintes) nessas instituições. Para acelerar os trabalhos em Campos, o presidente do IAA solicitou do Ministério da Educação e Saúde estudos de localização e projetos de cinco unidades médicas no município. O engenheiro-arquiteto Germano Galer, do quadro da Educação, projetou os ambulatórios dos distritos de Tocos, Massurepe, São Sebastião, Outeiro e Vila Nova, onde havia maior concentração de trabalhadores canavieiros.

Os demais estados apresentaram quantidade menor de ambulatórios: em Minas Gerais, constam três ambulatórios, uma casa de saúde e um hospital; na Bahia, apenas dois (um ambulatório a menos que o registrado na Tabela 1) e postos médicos em usinas; na Paraíba e no Espírito Santo, dois ambulatórios cada; e no Rio Grande do Sul, apenas um. No Rio Grande do Norte, registra-se o Hospital Maternidade de Ceará-Mirim (1958), com 54 leitos, devendo, conforme Leite (set.-out. 1948), existir um ambulatório. Em Santa Catarina havia o Hospital de São João Batista. Em Sergipe, consta não haver unidades próprias das associações canavieiras e que a assistência era realizada por meio de convênios, mas os dados apresentados na Tabela 1 registram cinco ambulatórios. No Paraná, o trabalhador contava somente com atendimento em consultório de usina.

Diferentemente do Rio de Janeiro e excluindo São Paulo, que tinha serviços médicos mais bem distribuídos em seu território, nos demais estados não houve planejamento estratégico dos serviços. Os segmentos canavieiros se agruparam e escolheram soluções específicas em cada município. Merece destaque a semelhança entre alguns ambulatórios, que, com maior ou menor fidelidade, mantinham as características da proposta de Hamilton Fernandes, como os de Moreno (1956) e Santa Rita (1958), ambos em Pernambuco, Jacuípe (1958), na Bahia, e Visconde de Rio Branco (1959), em Minas Gerais (Figuras 5 a 8). Seus projetos foram orientados pela SAP, e as tipologias caracterizavam-se pela linguagem moderna, modulação estrutural, algumas destacadas na fachada, grandes vãos de esquadrias ou faixa contínua de aberturas alinhadas, acentuando a horizontalidade do volume e, geralmente, com um plano de coberta único e inclinado - a maioria para trás - valorizando o vão frontal.


As orientações indicavam construções mais simples e duradouras em vez do "luxo de duração efêmera", como falava Leite (jan. 1949, p.76). Com base no padrão referido por Fernandes (set. 1951), o sistema pré-fabricado agilizaria o aparelhamento da assistência à saúde do trabalhador no âmbito das políticas de governo, que participaria com um terço dos recursos, através do IAA. Os protótipos de hospitais-padrão permitiam obras com 25 leitos, mas a construção racional e progressiva poderia ampliá-los até as centenas sem perder a sinergia funcional entre os serviços médicos e administrativos. Conforme Zevi (1992), o padrão-progressivo-flexível era uma solução funcionalista de princípios corbusianos que respondia a exigências da sociedade industrial de construção padronizada e anônima, com ênfase na utilidade do edifício e na técnica (Monteiro, 2001).

Os projetos do IAA seguiam os pressupostos de sistematização setorial, layout e expansão em alas e andares do "Elements of the general hospital" (U.S., 1952), que influenciou a arquitetura hospitalar nos países aliados - a exemplo do Hospital do Açúcar de Alagoas, cujo projeto foi inspirado no Distrital Hospital American -, detalhada na tese de Monteiro (2001). Os acordos bilaterais entre Brasil e EUA, na primeira metade do século XX, permitiram que profissionais da área de saúde, especialmente de órgãos federais, interagissem com o Public Health Service e tivessem contato com novas tecnologias e novos modelos de planejamento de hospitais desenvolvidos naquele país. Esses modelos foram posteriormente desenvolvidos nos projetos da Divisão de Organização Hospitalar, descritos por Almeida (1954), e do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), ambos do Ministério de Educação e Saúde (MES), ao qual se subordinavam as ações de saúde do IAA. Vários autores abordam a contribuição desses serviços para a saúde pública e a formação profissional na era Vargas, entre eles Sarah Escorel e Luiz A. Teixeira (2008), André L. Campos (2006), Mario Franca e Corinha Fischer (1955), Fonseca (2008, 2007), Gisele Sanglard e Renato Costa (2008), Ferreira (2007).

Projetos singulares de Pernambuco e Alagoas

Caiu do céu como uma bênção dos Deuses ... Não houve participação nem luta dos trabalhadores e, sim, uma ideia de cúpula de dois homens; um usineiro e o outro um antigo senhor de engenho, o Antonio Cansanção e o velho Messias de Gusmão e, depois, uma compreensão de torná-la viável.

Ib Gatto Falcão

Os hospitais do açúcar não resultaram da mobilização direta de trabalhadores, como inicialmente se pensou. Ainda assim, constata-se a luta de segmentos mais organizados como industriais, plantadores e fornecedores de cana associados - muitos ex-banguezeiros ou ex-senhores de engenho, pequenos proprietários de terra - nos debates organizados por Barbosa Lima Sobrinho, almejando melhorias e recursos prometidos no Estado Novo, uma luta precedida pelas queixas em estados mais politizados como Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro. A solução veio pelas mãos dos senhores dos canaviais, o usineiro e o senhor de engenho sob a tutela do Estado, porém em cenário de novas relações econômicas e trabalhistas, acordadas no estatuto.

Os industriais de Pernambuco e Alagoas e os fornecedores de cana congregaram-se a partir da safra de 1948/1949. Formaram, em 19 de agosto de 1948, a Sociedade Beneficente e Hospitalar das Usinas de Açúcar de Pernambuco, sociedade civil, e a Fundação Hospital da Agroindústria do Açúcar de Alagoas, em 26 de janeiro de 1949. A finalidade era prestar assistência médico-preventiva, hospitalar, farmacêutica, odontológica e social aos trabalhadores agrícolas e industriais dos respectivos estados. As congregações optaram pela construção de ambulatórios nas usinas e um hospital central de grande porte, com atendimentos concentrados nas capitais. A decisão foi desaprovada pelos técnicos da SAP por não se privilegiar o sistema de unidades básicas articuladas hierarquicamente, por ser o custo por leito mais oneroso e por não atender à necessária e urgente ampliação da assistência médica nas regiões usineiras daqueles estados. Leite (jan. 1949, p.76) criticou os "industriais sonhadores e médicos ainda mais sonhadores", em referência ao projeto do Hospital do Açúcar de Alagoas e ao médico Ib Gatto Falcão, e foi contundente na defesa de projetos com viabilidade financeira e voltados para a assistência curativa, preventiva, educacional e social, priorizando-se o ambulatório integrado a hospital menor, local e ou regional, próximo às áreas produtoras.

Apesar da opinião contrária do IAA, os 'sonhadores' de Pernambuco e Alagoas levaram adiante seus planos. Entendendo que a precariedade da infraestrutura médico-hospitalar ou de estradas nesses estados desfavoreciam um sistema hierárquico mais distribuído, almejaram uma solução mais completa e grandiosa, concentrada na sede administrativa, onde estavam os poucos - porém melhores - profissionais e recursos materiais.

O Hospital Barão de Lucena, pertencente aos usineiros, foi construído com 470 leitos e cerca de 19.000m2, em terreno de 100.651,50m2 na avenida Caxangá, em Recife. O projeto era composto de um monobloco com nove pavimentos e subsolo, em forma de pente, interligado a outro com seis pavimentos e subsolo, retangular, à esquerda. O edifício, de estilo internacional, apresentava os atributos da arquitetura hospitalar mais avançada, como também a magnitude e o luxo condenados por Leite. Previa-se até mesmo a construção de uma pista para pouso de helicópteros e aviões de pequeno porte, para o transporte de enfermos de áreas canavieiras até Recife (Figuras 9 e 10).


Em Alagoas, o presidente do Sindicato e da Cooperativa dos Usineiros de Alagoas, Alfredo de Maya, apresentou em 1940 uma proposta ao IAA, mas dela não obteve apoio. Desejava uma obra singular para os trabalhadores, e não apenas os usineiros como também fornecedores de cana - antigos senhores de engenho e banguezeiros. No final da mesma década, Id Gatto Falcão defendeu essa ideia na Cooperativa dos Usineiros, sendo autorizado a fazer um projeto de assistência para os trabalhadores de Alagoas juntamente com os médicos Mariano Teixeira e Rodrigo Ramalho. Inicialmente participou da elaboração do Estatuto da Fundação-Hospital da Agroindústria do Açúcar de Alagoas, aprovado pelo IAA em 23 de fevereiro de 1949, que legitimava o hospital central na capital alagoana. Em seguida foi nomeado seu primeiro diretor-médico, assumindo de imediato o comando para implementar a instituição hospitalar.

O projeto de Alagoas, inicialmente indeferido por José Oliveira Leite, da SAP, obteve aval após intervenção do amigo pessoal e conterrâneo Edgar de Góes Monteiro, presidente do IAA entre 1946 e 1950 e irmão do general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, então chefe do Estado-Maior do Exército. O hospital, previsto para ter trezentos leitos, foi inaugurado em 1957 com duzentos leitos. Sua concepção baseava-se em esquemas de hospitais americanos, particularmente o Distrital Hospital America, o que promoveu o Hospital do Açúcar de Alagoas a modelo inovador de assistência à saúde, com tecnologia avançada, e restaurou de modo singular a arquitetura hospitalar no estado. De construção simples, flexível, ampliável e econômica, o modelo permitia ampliações além de trezentos leitos, com três pavimentos ou mais, de acordo com as necessidades locais e os recursos disponíveis (Monteiro, 2001, p.85, 125).

A obra demorou cerca de oito anos. Foi executada tanto com recursos oriundos de contribuições dos usineiros, fornecedores e IAA - estabelecidos por lei e depositados desde sua criação -, quanto com doações do Instituto para a construção.

Apesar dos avanços, a vida da população era difícil. A permanência dos doentes nos hospitais era longa porque suas condições de vida não ajudavam no tratamento. Tinham anemia e subnutrição e se fossem mandados para casa após a assistência básica morreriam de fome. Além de não terem o que comer em casa nem dinheiro para o transporte, era preciso assistência social e extensiva, como afirmou Ib Gatto Falcão. As mulheres das fazendas de difícil acesso internavam-se no início da gravidez, e muitas só retornavam quando davam à luz; houve crianças que chegaram ao hospital com dois anos e saíram com 12. Os casos de enfermidades mais comuns eram a tuberculose e as verminoses, entre elas a esquistossomose. Chegavam os doentes, barrigudos, eram tratados, tinham o baço operado e ficavam internados por dois, três e até seis meses.

A equipe do IAA almejava resultados sociais concretos e desde o início ressaltou a importância do ambulatório como uma unidade médico-social, por ser viável sua localização nas áreas rurais, ter finalidade profilática e ser compatível com o panorama nosológico e socioeconômico do país. A opção por grandes hospitais implicava localizá-los nas grandes cidades. Em vez de proporcionar assistência ao trabalhador nas imediações para logo devolvê-lo à economia, gerava-se um afluxo desnecessário para a cidade, perda de um dia de trabalho, sobrecarga do nosocômio central. A situação facilitava a evasão do campo, uma vez que o trabalhador tendia a se fixar nas áreas urbanas, ainda que em favelas; daí a importância do serviço de drenagem, com a colaboração do médico no ambulatório da própria usina (Leite, set.-out. 1948, jan. 1949, mar. 1950, jul. 1950).

Leite (jan. 1949, set.-out. 1948) reconhecia que visões contrárias à sua, desejosas de outras tipologias sofisticadas e de grandiosas instalações, eram tecnicamente corretas e tinham fins nobres, entretanto, a realidade mostrava que a maior parte dos hospitais no Brasil não passava de depósitos de doentes.

Considerações finais

Jamais será possível alcançar e desenvolver uma medicina pública nos termos modernos de seu conceito, sem elevar o padrão de vida da população.

José Oliveira Leite (out. 1950, p.87)

Anseios por assistência à saúde deveriam estar presentes nos trabalhadores da agroindústria canavieira do Brasil mesmo nas primeiras décadas do século XX, quando ainda viviam um regime paternalista de senhores de engenho, do qual até meados daquele século não se haviam libertado totalmente. Com a legalização sindical e a organização das relações socioeconômicas entre usineiros, fornecedores e lavradores de cana sob a égide do IAA, acelerou-se a regulamentação do setor, cujos segmentos menos favorecidos reivindicavam também melhores condições de vida, remuneração, alimentação, moradia, escola, amparo social e assistência à saúde.

Essas aspirações foram traduzidas no Estatuto da Lavoura Canavieira de 1941 e atendidas pelo IAA - se não no todo ao menos em parte, se não na prática ao menos no papel -, com base nos inquéritos que realizou sobre a situação das áreas açucareiras. De fato, parte das necessidades foi suprida, sobretudo em estados com baixa produção e verbas exíguas, em que a falta de recursos anulava o que parecia vantajoso para viabilizar a assistência médica ao trabalhador canavieiro, ou seja, a proximidade entre as cidades. Mesmo sendo pequenas essas distâncias entre os municípios e a capital, pouco ou quase nada poderia ser feito sem ajuda.

Desse instrumento legal constituiu-se um patrimônio arquitetônico da saúde: muitos estabelecimentos de saúde de pequeno e médio porte para assistência básica foram construídos na maior parte dos estados canavieiros, uma solução do compromisso entre usineiro, fornecedor de cana e trabalhador que levou assistência para perto da morada destes nas áreas canavieiras e facilitou os acessos, como doutrinava a burocracia esclarecida do IAA. Não se formou, nas regiões canavieiras nem em outras, uma rede assistencial hierarquizada, integrada e regionalizada, com hospitais, centros de saúde, ambulatórios e postos a eles vinculados, mas sim multiplicou-se o número de unidades construídas e mantidas pelas usinas e associações de plantadores e fornecedores de cana, e firmaram-se convênios com hospitais de cidades próximas para assistir seus trabalhadores.

Surgiram também hospitais centrais grandiosos em Pernambuco e Alagoas. Nesses casos, uma decisão das congregações de usineiros e fornecedores de cana, que priorizaram instalar a assistência nos centros médico e cultural dos estados, Maceió e Recife, ali erigindo hospitais modernos, cujos edifícios materializaram uma visão de assistência à saúde 'hospitalocêntrica', que não assegurava acesso geográfico, mas proporcionava acesso científico-tecnológico - solução plutocrática e não burocrática.

A dinâmica social impediu os hospitais de ficar circunscritos aos cânones de uma assistência hospitalar eficiente, e a permanência dos pacientes prolongava-se não só até a alta, mas até a convalescença. Toda a gama assistencial prevista no estatuto - medicina preventiva, hospitalar, odontológica, farmacêutica e social - foi assumida pelo hospital. Essa dinâmica impediu, igualmente, os hospitais de restringir-se ao grupo a que se destinavam, e eles foram abertos a uma população diversa.

Os hospitais constituem um exemplo de como a medicina reparadora e curativa, utilizando cada vez mais tecnologias sofisticadas, tornou-se de alto custo e como a arquitetura está presente na solução de novas demandas, sejam sociais, políticas ou técnico-científicas.

NOTAS

Recebido para publicação em junho de 2010.

Aprovado para publicação em setembro de 2011.

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  • *
    Este texto é fruto do capítulo 5 de minha tese de doutorado,
    Saúde & açúcar: história, economia e arquitetura do Hospital do Açúcar de Alagoas, 1950-2000 (Monteiro, 2001).
  • 1
    Médici (1999) analisou os vínculos econômicos das políticas de assistência à saúde na conjuntura brasileira entre 1860-1998, com ênfase nos dualismos assistência médica
    versus sanitarismo e assistência médica
    versus desenvolvimentismo, ajudando a compreender os períodos 1860-1923, 1923-1949 e 1950-1966.
  • 2
    O estatuto visou controlar a economia e equacionar conflitos entre os segmentos. Segundo Costa Filho (dez. 1941), além de regulamentar a economia, ampliou e completou a ação do IAA no campo social, protegendo as classes médias e pequenas de trabalhadores no contexto da política açucareira que se desenvolvia no país.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Jan 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2011

    Histórico

    • Aceito
      Set 2011
    • Recebido
      Jun 2010
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