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O reverso do crime: norma hostil, sociedade cruel e saída subjetiva pela violência

Reversal of crime: hostile norms, a cruel society, and subjective escape through violence

LIVROS E REDES

Marília Etienne Arreguy

Professora adjunta da Faculdade de Educação/Universidade Federal Fluminense; associada ao Fórum do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. marilia.arreguy@pq.cnpq.br

Logo nas primeiras páginas de A história de Pierina, a autora revela que sua narrativa versa sobre um episódio da vida de uma imigrante italiana, Pierina, que no início do século XX matou sua filhinha de 17 meses afogando-a numa bacia. A tragédia é tão severa que tive a impressão de que o clímax do livro já estava na introdução, e o que se seguiria não provocaria o mesmo élan. Ademais, o fato narrado é deveras sinistro, a ponto de desestimular alguns a prosseguir na leitura. No entanto, Yonissa Wadi, historiadora experiente, mostra justamente o contrário. Ao trazer para primeiro plano o aspecto abjeto do crime cometido, faz-nos acompanhá-la em um rico percurso historiográfico, tanto em termos acadêmicos - com o recurso a fontes como prontuários, o processo criminal e documentos de época - quanto pela capacidade de recriar a história, usando um potencial ficcional que abre múltiplas vertentes imaginativas ao leitor. Além disso, recorre à atual literatura sociológica e antropológica dedicada à compreensão do terreno pantanoso das fronteiras entre crime e loucura. Nesse sentido, o livro traz um aporte aos estudos na área de saúde coletiva, pois não só oferece uma revisão bibliográfica como também promove novas leituras do fenômeno do enclausuramento de criminosos-loucos em hospitais, asilos psiquiátricos, manicômios judiciais ou penitenciárias comuns.

Wadi discute de maneira original o controverso tema dos limites entre responsabilidade penal e imputabilidade - algo que jamais pode ser reduzido a uma fórmula, haja vista a especificidade da história de vida do sujeito que vem a cometer um crime -, como também os efeitos da pena ou do tratamento nos meandros inconscientes (Freud, 1996; Samacher, 2004). De forma rigorosa, mas também com a parcimônia própria de quem conhece bem seu campo, traça uma problemática complexa em que tudo passa por minucioso estudo de caso, numa visada genealógica de seu objeto, bem no sentido foucaultiano da expressão.

Com tal foco, a autora reconstrói todo o universo simbólico que cercava Pierina, transformando a paciente e ré em personagem e detalhando o contexto cultural da época. Apresenta como se deu a imigração italiana no Rio Grande do Sul, na virada do século XIX para o XX. Aborda desde as dificuldades enfrentadas pelos colonos - desde percalços burocráticos para aqui chegarem e se instalarem na terra, mais ou menos boa para o cultivo, dependendo muito da sorte e dos contatos de quem chegava - até a pobreza extrema de muitas famílias, que vinham cheias de sonhos para o novo mundo e encontravam um cenário inóspito, de difícil manejo.

Yonissa conta como se configuravam as pequenas vilas e o interior das casas, como eram os utensílios domésticos, a forma de adquiri-los e até mesmo o valor das peças que compunham as simplórias residências dos imigrantes. Traz também falas típicas da época, uma mistura de italiano e português, quase como um dialeto que determinaria um modo de viver característico do início da povoação da Região Sul brasileira, cuja força era a agricultura familiar. Inicialmente as famílias italianas que vieram ao Brasil permaneciam unidas; trata-se da chamada família extensa, que precisava garantir a permanência dos filhos no trabalho agrícola e na fabricação de utensílios e objetos artesanais que pudessem complementar a renda do grupo. O que motivava essa união era justamente a pobreza e a dificuldade de transpor barreiras e consolidar uma vida melhor do que aquela abandonada além-mar. O ponto nodular apresentado nessa parte de contextualização histórica indica os conflitos - dos quais Pierina dá sinais de que se ressente - na passagem dos domínios da família extensa para os da família nuclear.

Da história dos imigrantes, reportada em diversas teses e documentos regionais, a autora passa para a descrição da divisão do trabalho, logo chegando à opressão vivida pelas mulheres. A responsabilidade de cuidar da casa, dos filhos, do marido, das roupas, da lavoura e ainda incrementar os rendimentos familiares com atividades paralelas como costurar, trançar palha para chapéus e vender doces, tornava a vida das mulheres bastante árdua. É nesse ponto que a autora adiciona fatores culturais e subjetivos à análise da história de uma 'assassina' de sua própria filha - um 'anzinho', como dizia Pierina, em termos que pareciam evidenciar certo remorso. Sem ser benevolente com a criminosa 'condenada' ao manicômio, Wadi mostra que a atitude diruptiva de Pierina representou um sintoma condensado de uma situação que lhe era insuportável: a obrigação social de gerar e amar incondicionalmente os filhos, conforme o que conhecemos por 'mito do amor materno', acrescida do peso do trabalho na terra, das obrigações maritais e da subserviência ao pai, proprietário da terra e chefe da família ampliada. O excesso de trabalho e a simplicidade sem brilho de uma vida sem perspectivas constrastavam com os sonhos importados de uma modernidade europeia burguesa já consolidada.

Temática delicada, o infanticídio acaba por se confundir com loucura, pela impossibilidade sociocultural de aceitar a ideia de que uma mulher não quer ser mãe, algo que até nossos dias é um 'nó cego' na saúde pública, dados os exorbitantes índices de abortos clandestinos, escamoteados pela intolerância religiosa e pela rigidez das leis brasileiras. Ao conhecer esse caso de infanticídio pelas palavras de quem o cometeu, Pierina - internada no primeiro manicômio público do estado do Rio Grande do Sul, o Hospital São Pedro, e prestes a ser condenada -, constatamos uma série de motivações sociais e subjetivas que, se não justifica, ao menos, explica e arrazoa o crime. Assassina confessa, ela reclama da condição precária em que vivia com o marido: eram obrigados a dar a maior parte do produto de seu trabalho ao seu pai, em cuja terra o casal morava, já que não possuía condições de se emancipar. Para que sua filha Elvira não fosse chamada de 'a filha da louca', não passasse fome ou não tivesse o que vestir, Pierina preferiu matá-la - ponto de confluência do impacto da voz do outro (as crianças que a xingavam de louca) e a ferocidade de um supereu que sempre exige 'mais' e não aceita uma condição quiçá inaceitável de se viver. Sem se propor a tanto, a autora acaba por evidenciar o teor de alheamento do ato criminoso, pela incitação subjacente à crítica vinda do socius (as crianças que a ridicularizavam) somada à fragilidade da mulher que não sustenta o lugar de mãe nem de esposa nem de filha. Fato é que não havia espaço para sua singularidade, a não ser pela via de uma transgressão severa.

Numa situação deveras paradoxal, Pierina comete o crime premeditadamente: avisa a todos da família que o faria, pois não estava aguentando criar a filha sob os agouros da loucura. Anuncia que vai matar e pede que a afastem da menina. Uma loucura anunciada ou uma perversão justificada? De fato, é uma dialética interessante que a leitura não permite fechar, dissolvendo toda ordem de prejulgamentos. Pierina reconhece e explicita seu impulso, mas, diante da aberração de contrariar o tão louvado amor de mãe, seus parentes não conseguem agir preventivamente.

O texto possui o mérito de também trazer à tona discussões sobre a instauração dos cuidados médico-psiquiátricos no Brasil e a insolúvel questão do destino dos criminosos loucos. A princípio, Pierina não se arrependeu do crime; afirmava com lucidez impressionante não ser louca e, portanto, requeria ser presa. Antes de ir para o sanatório, logo após cometer o crime, em 1909, devido a dificuldades e incertezas da perícia judicial, foi internada na Santa Casa de Misericórdia, onde, de alguma forma, viveu uma espécie de resgate dos princípios da moral social, por meio da relação com freiras caridosas que promoveram um novo ambiente, diferente do ambiente doméstico que ela execrava, dada a pesada labuta que enfrentava cotidianamente.

O episódio de Pierina se passa num momento prévio à consolidação da medicina como prática prioritária de saúde no Brasil. Na Santa Casa, Pierina começou a construção de uma feminilidade própria. Sem a obrigação de ser dona de casa, passou a ter um lugar diferenciado, longe da família e do marido que a oprimiam. Se não pôde se 'curar', ao menos teve condições de fazer amizades que a levaram a elaborar sobre seu infortúnio. Assim, um princípio de normalização, pela religiosidade, veio consolidar certo arrependimento sob encomenda. Seu destino, entretanto, não foi ali. Dois meses após sua entrada na Santa Casa, o laudo pericial dos psiquiatras judiciais determinou sua internação psiquiátrica no Hospital São Pedro. Mais uma vez então, vemos uma virada na narrativa: a historiadora relata as vicissitudes do hospital psiquiátrico, bem como as nobres pretensões dos alienistas em contraposição à falta de infraestrutura para a recuperação dos internos. Sempre com base em fontes como documentos, relatórios, cartas aos políticos e tratados médicos, descreve a ignorância e a violência presentes no tratamento moral. Novamente, o estudo de caso lança luz sobre a história, sendo possível ampliar o foco do subjetivo para o social, numa miríade de possibilidades de desenlace para a vida de Pierina.

A fim de penetrar no âmbito subjetivo, Wadi recorre à repetição de trechos de cartas que, em vez de ser cansativa, adquire a função de elaboração da história, quase como se colocasse às claras o inconsciente da criminosa por meio de seu processo de ruminação de culpa e tentativa de estabelecer um lugar na cena social. Não surpreende o fato de que Pierina queria ser útil, trabalhar, ser reconhecida; em momento algum, porém, ela pede para voltar ao lar no pequeno vilarejo de Garibaldi, onde vivera todo o sofrimento que a levou ao ato criminoso.

Trata-se de uma vida que aparentemente não teve sentido algum, seja pela determinação cultural do lugar da mulher, antes do crime, ou pela determinação do espaço da loucura e da criminalidade, após ter afogado propositalmente a filha. Contudo, o livro reserva mais surpresas, ao propiciar também novos questionamentos sobre temas debatidos por autores como Michel Foucault (1994a, 1994b, 1994c, 1996, 2000, 2002a, 2002b), Maria Fernanda Tourinho Peres (1999), Sérgio Carrara (1998), Ruth Harris (1993), Pierre Darmon (1991), Mariza Corrêa (1983) e Fabiola Rohden (2001). Wadi coloca em xeque qualquer posicionamento definitivo e rechaça toda ordem de reducionismos. Nesse sentido, é possível concluir que a 'solução' judicial da época, ou seja, enquadrar Pierina no controverso artigo 27, parágrafo 4º do Código Penal Brasileiro de 1890, talvez não tenha sido tão equivocada, conforme acontecia na maioria dos casos relatados pela literatura. A decisão de enviar Pierina ao manicômio comum (pois ainda não havia manicômio judiciário no Rio Grande do Sul, à época) em vez de prendê-la, como queria ela própria - tal como Custódio Serrão, em caso analisado por Carrara (1998) - também parece ter conduzido a um desfecho inusitado.

Em A história de Pierina, a multiplicidade de eixos de análise resulta em uma interessante narrativa não só histórica mas também literária. Vale apreender esse percurso sustentado sobre temas ainda atuais e pertinentes ao âmbito da pesquisa e da intervenção social, no cuidado com pessoas e famílias que enveredam pelo engodo do entrelaçamento de crime e loucura.

  • CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século. Rio de Janeiro: EdUerj. 1998.
  • CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de Janeiro: Graal. 1983.
  • DARMON, Pierre. Médicos e assassinos na Belle Époque: a medicalização do crime. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1991.
  • FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes. 1. ed., 1974-1975. 2002a.
  • FOUCAULT, Michel. Ditos e Escritos I: Foucault - Problematização do sujeito: psiquiatria, psicologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2002b.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. 2000.
  • FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro: Nau. 1996.
  • FOUCAULT, Michel. Pourquoi le crime de Pièrre Rivière. In: Foucault, Michel. Dits et écrits v.3. Paris: Gallimard. 1.ed., 1976. 1994a.
  • FOUCAULT, Michel. Le savoir comme crime. In: Foucault, Michel. Dits et Écrits v.3. Paris: Gallimard. 1.ed., 1976. 1994b.
  • FOUCAULT, Michel. L'angoisse de juger: entretien avec J. Laplanche et R. Badinter. In: Foucault, Michel. Dits et Écrits v.3. Paris: Gallimard. 1.ed., 1977. 1994c.
  • FREUD, Sigmund. A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos Rio de Janeiro: Imago. 1996.
  • HARRIS, Ruth. Assassinato e loucura: medicina, leis e sociedade no fin de siècle. Rio de Janeiro: Rocco. 1993.
  • PERES, Maria Fernanda Tourinho. Erasmo: o estranho da loucura criminal. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v.2, n.2, p.121-143. 1999.
  • ROHDEN, Fabiola. Uma ciência da diferença: sexo, contracepção e natalidade na medicina da mulher. Tese (Doutorado) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2001.
  • SAMACHER, Robert. Violence dans la psychose: responsabilité ou irresponsabilité? Violences dans la Modernité, Paris, 8-13 sept. 2003. Actes d'une université européenne d'été Paris: Université Paris 7 - Denis Diderot. 2004.
  • O reverso do crime: norma hostil, sociedade cruel e saída subjetiva pela violência

    Reversal of crime: hostile norms, a cruel society, and subjective escape through violence
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012
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