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Teoria, análise crítica e o desafio do pensamento interdisciplinar na confluência de saúde coletiva, ambiente e geografia

Theory, critical analysis, and the challenge of interdisciplinary thought at the crossroads of collective health, the environment, and geography

LIVROS E REDES

Lúcia Cony Faria Cidade

Professora associada da Universidade de Brasília, em atuação no Departamento de Geografia, Centro de Desenvolvimento Sustentável e Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais. cony@unb.br

No mundo contemporâneo, observa-se um crescente reconhecimento de que processos relativos à combinação sociedade/natureza são complexos e seu tratamento requer abordagens integradas. As análises que envolvem a saúde coletiva compartilham desse cuidado. Essa percepção, que já se fazia sentir nos estudos e práticas pioneiras do Instituto Oswaldo Cruz, frutificou e expandiu-se. O gosto pela interdisciplinaridade e pelo debate crítico também estava presente na década de 1970 no mestrado em Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia e particularmente no Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - e perdoem os leitores por eventual omissão de outras experiências, por meu desconhecimento.

Ao ser criado, o curso de mestrado do IMS, tendo à frente um grupo interdisciplinar de jovens professores - entre os quais, além de médicos como Hésio Cordeiro, José Carvalho de Noronha, Jurandir Freire Costa e Reinaldo Guimarães, estavam cientistas sociais como Madel Luz e José Luis Fiori -, recebeu notáveis conferencistas de outras áreas do conhecimento, como o filósofo Michel Foucault e o geógrafo David Harvey. Estabeleciam-se, então, naquele âmbito, as bases do que Cordeiro (2004, p.345) qualificou como "utopia de uma interdisciplinaridade".

É bastante conhecida a interface de estudos de saúde coletiva com o pensamento crítico da filosofia sobre o saber médico, explorada por Foucault. Também frutífera é a aproximação com a geografia contemporânea, que incorpora Harvey e outros teóricos da dinâmica do espaço. Embora vários autores venham buscando resgatar esse percurso, cuja origem histórica envolve concepções que relacionam saúde e ambiente, faltava uma obra teórica, crítica e integradora. Uma significativa contribuição nesse sentido é o livro Território, ambiente e saúde.

A obra, organizada por integrantes da Fundação Oswaldo Cruz, reúne autores de instituições brasileiras, latino-americanas e europeias, e tem caráter marcadamente interdisciplinar, a começar pela diversificada formação dos organizadores e dos colaboradores. Além de profissionais de ciências da vida, foram convidados a participar pesquisadores de áreas variadas como geografia, arquitetura, economia, engenharia, estatística e história, alguns dos quais com pós-graduação também na área de saúde. Comum parece ser a percepção de um contexto em que o mundo globalizado das trocas econômicas, da ciência e da tecnologia encontra-se em uma grave crise social e ambiental. Essa crise, que tende a atingir de maneira mais drástica países e populações pobres, reflete-se de forma particularmente dramática nas condições de saúde da população. Em uma fase de ampla revisão e questionamentos sobre o papel do Estado, a organização de sistemas de saúde também passa por análises críticas, em larga medida internas. Revela-se a necessidade de ultrapassar visões disciplinares para incorporar, na esfera conceitual como na aplicada, perspectivas integradoras.

O livro parte de uma confluência instigante que envolve ambiente e saúde com a mediação do território. Esses temas, cuja trajetória pode ser considerada disciplinar, têm sido chamados a emprestar sua inteligibilidade a processos multifacetados e complexos nas últimas décadas. A obra encontra-se, dessa forma, diante de um triplo desafio: formular uma interpretação teórica coerente das relações entre os temas selecionados; apresentar referências analíticas capazes de reconstruir, de forma crítica, os nexos históricos que condicionam e expressam os processos em questão; e mostrar possibilidades reais de aplicações das perspectivas adotadas.

Para levar à frente sua proposta, o livro divide-se em três partes. A Parte I - Território e Saúde: Dimensões Teóricas e Conceituais, compõe-se de cinco artigos, que buscam, em diferentes graus, relacionar o pensamento geográfico subjacente aos conceitos de espaço, território e ambiente para integrá-lo à temática da saúde. A Parte II - Territórios e Conflitos Ambientais: Dinâmicas Socioeconômicas e Implicações Sobre a Saúde, constitui-se de quatro artigos, cuja tônica básica é a reflexão sobre as condições de produção e reprodução social que condicionam a questão ambiental, a temática social e a situação de saúde. Finalmente a Parte III - Desafios Metodológicos, apresenta cinco artigos, que tratam de temas aplicados e estudos empíricos relativos a diferentes assuntos de interesse para as ligações entre território, ambiente e saúde. Conta, ainda, com prefácio de Ana Maria Testa Tambellini, que estrutura e sumariza de forma reflexiva e aguda as diferentes contribuições. A cargo dos organizadores, a apresentação destaca: "a organização social e política do espaço geográfico influi decisivamente no modo como os riscos à saúde são distribuídos entre diferentes grupos socioespaciais" (p.18). Essa é a premissa norteadora da obra.

Inaugura a Parte I o artigo "O território na saúde: construindo referências para análises em saúde e ambiente", de um grupo de autores: Maurício Monken, Paulo Peiter, Christovam Barcellos, Luisa Iñiguez Rojas, Marli B.M. de Albuquerque Navarro, Grácia Maria de Miranda Gondim e Renata Gracie. A revisão bibliográfica aborda diferentes concepções de território, suas possíveis articulações com o ambiente e aplicações no campo da saúde. Para os autores, o aumento do interesse pelo território estaria relacionado com o projeto de implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e com a superação do tradicional viés político-administrativo.

Em "problemas emergentes da saúde coletiva e a revalorização do espaço geográfico", Christovam Barcellos aponta que essa revalorização se apoia em uma leitura renovada da epidemiologia, em estratégias territoriais e na regionalização de serviços e ações. A revisão histórica compreende a integração de ações alicerçadas no território e discute o papel dos indicadores sociais e ambientais. O trabalho de campo é apresentado como ferramenta de diagnóstico e ação.

No terceiro artigo, "Espaço e saúde: uma (inter)ação provável nos processos de adoecimento e morte em populações", de Grácia Maria de Miranda Gondim, um resgate histórico da saúde pública, evidencia o papel do espaço, em particular das intervenções técnicas sobre o ambiente físico para prevenção e controle de doenças. A análise de dados espaciais para ampliar o conhecimento e ações sobre mecanismos produtores de agravos à saúde e seus determinantes é considerada importante.

O texto de Luiz Jacintho da Silva intitula-se "Em defesa do território: quarentena e isolamento como medidas de proteção contra a introdução de doenças transmissíveis". O autor inclui uma revisão histórica sobre medidas para impedir a introdução de doenças infecciosas graves numa cidade, região ou país. Constata que o ressurgimento de medidas restritivas visando à defesa sanitária é uma reação à vulnerabilidade do território ocasionada pela globalização.

O artigo "Ambiente e complexidade como tema integrador", de Marli B.M. de Albuquerque Navarro, encerra a Parte I. Retoma as bases do grande projeto colonizador, que se apoiou na apropriação do território e dos espaços naturais. Uma revisão histórica abrange a degradação ambiental a partir das revoluções industriais e da urbanização. A autora julga que agravos às condições de saúde traduzem disparidades sociais e degradação ambiental, associadas ao desenvolvimento brasileiro.

A Parte II começa com o artigo "Sustentabilidade, território e justiça ambiental no Brasil", de Henri Acselrad. O texto propõe-se a discutir a dimensão ambiental, territorial e social da concepção de desenvolvimento adotada no país. Apresenta uma revisão histórica e um sumário dos períodos de desenvolvimento e integração territorial, bem como uma análise crítica com ênfase na experiência brasileira recente, além de propostas de estratégias. Identifica dois tipos de território: o território do mercado, de elevada agressividade ambiental, e os territórios definidos pelas lutas sociais.

O sétimo artigo, de Joan Martínez-Alier, tem como título "Perfis metabólicos dos países e conflitos de distribuição ecológica". Refere-se ao 'metabolismo social', que trata a economia como um organismo. Apresenta estudos sobre fluxos de material e energia, apropriação humana da produção primária líquida e indicadores físicos de insustentabilidade. Inclui figuras e gráficos e uma classificação de conflitos ecológicos em diferentes escalas. Diante de desigualdades existentes, propõe uma economia ecológica que possa cooperar com a ecologia política na análise dos conflitos de distribuição ecológica.

No artigo seguinte, "Entre a prevenção e a precaução: riscos complexos e incertos e as bases de uma nova ciência da sustentabilidade", o autor, Marcelo Firpo de Souza Porto, sintetiza as etapas do desenvolvimento tecnológico e os exemplos de riscos associados. Apura que, em contextos de ignorância, riscos complexos e incertos representam desafios a decisões e, em casos específicos, podem suscitar reações da sociedade organizada.

O nono texto é "Pilhagens, ecossistemas e saúde", de Jaime Breilh. Pretende "contribuir para a compreensão da encruzilhada atual, discutindo alguns problemas conceituais e lógicos, de cujo esclarecimento dependem, em boa parte, os juízos ... acerca do papel que devem desempenhar as ciências do ecossistema" (p.161). Aborda aspectos do novo modelo de acumulação e da biodiversidade e sintetiza componentes e impactos de uma geopolítica imperial. Propõe uma ecologia crítica capaz de integrar história, espaço e tempo.

A Parte III começa com o décimo artigo, "Abordagens integradas para vigilância em saúde ambiental: a experiência da Chapada do Araripe", de Lia Giraldo da Silva Augusto, Maria da Graça Farias Brasil e Guilherme Franco Netto. O texto revê a matriz FPEEEA (Força motriz, Pressão, Estado, Exposição, Efeito e Ação), utilizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Exemplifica a aplicação da metodologia, que inclui listagem de problemas e indicadores, com o caso da produção do gesso. Observa que o processo ensejou a proposição de ações e que, devido a conflitos, a construção dos indicadores exigiu muitas negociações.

O artigo seguinte é "Geoprocessamento e participação social: ferramentas para vigilância ambiental em saúde", de autoria de Roberta Argento Goldstein e Christovam Barcellos. Inclui uma revisão de abordagens participativas e a democratização das técnicas de geoprocessamento. Destaca como principal dificuldade a obtenção de dados num formato relevante para a comunidade.

O décimo segundo texto é "A vizinhança como contexto: resgate do nível ecológico na determinação de saúde e bem-estar", de Simone M. Santos e Christovam Barcellos. A revisão bibliográfica inclui discussões sobre vizinhança e recortes territoriais, sistemas complexos e saúde pública, efeitos contextuais e medidas aplicadas. Propõe metodologias capazes de captar diferentes condições nos territórios.

O artigo seguinte é "O território da saúde: a organização do sistema de saúde e a territorialização", de Grácia Maria de Miranda Gondim, Maurício Monken, Luisa Iñiguez Rojas, Christovam Barcellos, Paulo Peiter, Marli B.M. de Albuquerque Navarro e Renata Gracie. Apresenta o distrito sanitário como unidade operacional mínima do sistema de saúde; os vários territórios do SUS; os territórios dos agentes de endemias; e desafios operacionais. Considera o setor saúde mais um ator na construção de ambientes saudáveis, com a participação dos atores locais, respeitadas as suas territorialidades.

O último artigo é "Doenças transmissíveis na faixa de fronteira amazônica: o caso da malária", por Paulo Peiter, Lia Osório Machado e Luisa Iñiguez Rojas. O propósito "é analisar os efeitos do limite internacional na incidência da malária na faixa de fronteira internacional do Brasil no período 1999-2001" (p.257). A criteriosa análise inclui mapas elucidativos, gráficos e tabelas. Os autores observam que a distribuição espacial da malária relaciona-se com aspectos ambientais, sociais e econômicos.

Diante do desafio exposto no início destes comentários, conclui-se que a obra foi bem-sucedida. Mostrou-se capaz de apresentar e discutir interpretações teóricas com vistas a uma interdisciplinaridade consistente; de incluir referências analíticas que incorporam, de forma crítica, o papel de processos hegemônicos e propõem bases de superação; e de reunir exemplos de aplicações que envolvem, de diferentes formas, a temática em questão - território, ambiente e saúde. Mais do que isso, evidencia-se uma preocupação com a relevância do conhecimento científico, que é considerado, como toda produção social, sujeito a conflitos, ambiguidades e incertezas; com o papel da dinâmica histórica e espacial na configuração de processos contemporâneos; e com o significado social de análises acadêmicas e políticas públicas de saúde.

Apesar dos numerosos aspectos positivos da obra, a própria natureza de uma resenha requer apontar lacunas. Assim, embora a apresentação tenha incluído uma articulação dos temas discutidos nos trabalhos, ao final ficou uma sensação de que um capítulo conclusivo poderia resgatar as contribuições, situar seus progressos e propor desdobramentos. Outro olhar sugere que, diante de uma realidade complexa e da urgência de políticas públicas condizentes com essa realidade, a oportuna valorização da cultura e dos laços sociais demanda o complemento de uma visão sistêmica. A necessidade concreta de trabalhar com limites administrativos e políticos em diferentes escalas pressupõe uma perspectiva integrada e complexa. Cabe acrescentar que a formação diversificada dos autores representa uma das forças da coletânea. Motivadora, informativa e crítica, a obra representa uma contribuição relevante para os estudiosos da temática da saúde ambiental e suas relações com o espaço geográfico.

  • CORDEIRO, Hésio. O Instituto de Medicina Social e a luta pela reforma sanitária: contribuição à história do SUS. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v.14, n.2, p,343-362. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-73312004000200009&script=sci_abstract&tlng=pt Acesso em: 7 fev. 2010. 2004.
  • Teoria, análise crítica e o desafio do pensamento interdisciplinar na confluência de saúde coletiva, ambiente e geografia

    Theory, critical analysis, and the challenge of interdisciplinary thought at the crossroads of collective health, the environment, and geography
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Mar 2012
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