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As representações da malária na obra de João Guimarães Rosa

The portrayal of malaria in the works of João Guimarães Rosa

Resumos

O artigo aborda fatores históricos, científicos e literários da malária, com ênfase nas imagens da doença na obra do escritor João Guimarães Rosa. A principal referência para este estudo é o conto "Sarapalha", presente no livro Sagarana. A formação médica do autor somada a suas experiências no interior do país serve de subsídio para a obra, com histórias vivenciadas na rudeza do sertão. Um ponto de destaque no conto é a narrativa da malária na linguagem do sertão, mas com absoluta fidedignidade médico-científica.

literatura; cultura popular; malária; João Guimarães Rosa (1908-1967); Sarapalha


The article discusses the historical, scientific and literary aspects of malaria, with an emphasis on images of the disease in the work of the writer João Guimarães Rosa. The main reference for this study is the short story "Sarapalha," which is featured in the book entitled Sagarana. The author's medical training together with his experiences in the hinterlands of the country is the subject matter for the work, with stories of the harsh reality of life in the outback. A highlight of the story is the narrative of malaria in the language of the outback, though with absolute medical and scientific precision.

literature; popular culture; malaria; João Guimarães Rosa (1908-1967); Sarapalha


ANÁLISE

As representações da malária na obra de João Guimarães Rosa

The portrayal of malaria in the works of João Guimarães Rosa

Norinne Lacerda-QueirozI; Antônio Queiroz SobrinhoII; Antônio Lúcio TeixeiraIII

IPesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Ciências Biológicas/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Antônio Carlos, 6.627. 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil norinneq@yahoo.com.br

IIBacharel em Economia pela Faculdade de Administração e Finanças do Norte de Minas e bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros. Av. Mestra Fininha, 2673/202. 39403-000 - Montes Claros - MG - Brasil antonioqueiroz.ene@gmail.com

IIIMédico e pesquisador do Departamento de Clínica Médica/Faculdade de Medicina/UFMG. Av. Antônio Carlos, 6.627. 31270-901 - Belo Horizonte - MG - Brasil altexr@gmail.com

RESUMO

O artigo aborda fatores históricos, científicos e literários da malária, com ênfase nas imagens da doença na obra do escritor João Guimarães Rosa. A principal referência para este estudo é o conto "Sarapalha", presente no livro Sagarana. A formação médica do autor somada a suas experiências no interior do país serve de subsídio para a obra, com histórias vivenciadas na rudeza do sertão. Um ponto de destaque no conto é a narrativa da malária na linguagem do sertão, mas com absoluta fidedignidade médico-científica.

Palavras-chave: literatura; cultura popular; malária; João Guimarães Rosa (1908-1967); Sarapalha.

ABSTRACT

The article discusses the historical, scientific and literary aspects of malaria, with an emphasis on images of the disease in the work of the writer João Guimarães Rosa. The main reference for this study is the short story "Sarapalha," which is featured in the book entitled Sagarana. The author's medical training together with his experiences in the hinterlands of the country is the subject matter for the work, with stories of the harsh reality of life in the outback. A highlight of the story is the narrative of malaria in the language of the outback, though with absolute medical and scientific precision.

Keywords: literature; popular culture; malaria; João Guimarães Rosa (1908-1967); Sarapalha.

A malária é doença parasitária, considerada enfermidade negligenciada que permanece como grave problema de saúde pública, apesar dos esforços dispensados para seu controle. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS, 2011), aproximadamente 3,3 bilhões de pessoas vivem em áreas de transmissão da doença, com incidência de 216 milhões de casos em 2010, que resultam na morte de 0,5-1 milhão de pessoas, especialmente em decorrência da forma complicada da malária. Os países da África tropical respondem por 80% dos casos clínicos de malária no mundo e pela maioria dos casos letais, predominantemente em crianças que vivem em áreas rurais, com difícil acesso a serviços de saúde.

No Brasil, mapas de Domingos de Almeida Martins Costa, datados de 1885 (citados em Camargo, 2003), indicam que a Amazônia e todo o planalto central viviam imersos na malária ou maleita, conforme a terminologia da época (Camargo, 2003). Na década de 1940, a malária acometia cerca de seis milhões de brasileiros por ano, em todas as regiões do país. O Serviço Nacional de Malária, implantado em 1941, tornou-se o órgão responsável pela coordenação e centralização de todas as campanhas sanitárias de combate à malária no território nacional. Em 1955, o Brasil adotou a Campanha da Erradicação da Malária, instaurada pela OMS, que alcançou o objetivo de controlar, mas não de erradicar a doença. As mudanças sociais ocorridas e o intenso trabalho de combate à malária possibilitaram o seu relativo controle: a doença passou a apresentar ocorrência de menos de cem mil casos anuais e restringiu-se espacialmente a áreas de proximidade da floresta, na Amazônia Legal (Brasil, s.d.). A partir da década de 1960, no entanto, com o rápido e desordenado processo de assentamento agrícola na região Amazônica, houve aumento progressivo na transmissão da doença e consequente incremento do número de casos notificados no país (Marques, 1986; Oliveira-Ferreira et al., 2010). Atualmente, o maior número de casos (99,7%) é verificado na Amazônia Legal, com a incidência de 400-700 mil casos por ano (Brasil, 2005).

A malária é causada pelo protozoário do gênero Plasmodium, parasito intracelular obrigatório que apresenta dois hospedeiros, um vertebrado e outro invertebrado. A transmissão natural dá-se pela picada das fêmeas infectadas dos mosquitos do gênero Anopheles (Garnham, 1966). Classicamente, quatro espécies de Plasmodium são descritas como agentes causadores da doença em humanos: Plasmodium vivax, Plasmodium malariae, Plasmodium ovale e Plasmodium falciparum, esta última causadora de uma forma particularmente grave da doença, muitas vezes mortal (Miller et al., 2002).

Em função do seu impacto, a malária é condição presente em relatos históricos desde a Antiguidade, o que desperta também o interesse de escritores de várias épocas. Neste artigo, discorre-se sobre fatores históricos, científicos e literários da doença, com ênfase nas imagens da malária na obra do escritor Guimarães Rosa (1908-1967).

Apontamentos históricos

Devido a sua enorme importância como causa de sofrimento, a malária suscitou interesse entre médicos e cientistas, humanistas, historiadores, escritores e religiosos. Relatos diversos permitem reconhecer sua presença em escritos chineses de 3000 a.C., nas tábuas cuneiformes mesopotâmicas e em escrituras vedas na Índia (Carter, Mendis, 2002). Na história médica ocidental, há referências à malária desde Hipócrates (460-377 a.C.), que descreveu sinais clínicos (esplenomegalia) e os diferentes padrões de febre associados à doença (Pappas, Kiriaze, Falagas, 2008).

Até o final do século XIX, havia diferentes hipóteses sobre as possíveis causas da malária. A doutrina 'telúrica ou miasmática', segundo a qual são responsáveis pela doença as emanações e os vapores venenosos - os miasmas -, liberados por pântanos e suas águas estagnadas, era bastante difundida e dominante. A etimologia do termo malária é o italiano, mal aria, ar ruim ou nocivo, e a do termo paludismo, outra denominação para a doença, é o latim, palus, pântano. Vale salientar que, além de paludismo há uma grande variedade de designações para a malária, tais como impaludismo, sezão, maleita, febre palustre, febre intermitente, febre terçã benigna e febre terçã maligna. A doutrina 'parasitária' considerava 'animálculos invisíveis' dos pântanos os causadores da malária. Essa doutrina ganhou força ao longo do século XIX a partir das descobertas de Pasteur, Hansen, Koch e Lister, que demonstraram o papel de microrganismos como agentes causadores de várias doenças (Camargo, 1995; Capanna, 2006).

Em 1880, Charles Louis Alphonse Laveran, médico do Exército colonial francês na Argélia, ao examinar sistematicamente o sangue de pacientes febris, verificou a presença de minúsculos organismos os quais denominou de Oscillaria. A descoberta foi descrita em 1881 em comunicação à Academia de Medicina Francesa e publicada no livro Nature parasitaire des accidentes de l'impaludisme: Description d'un nouveau parasite trouvé dans le sang des maladies atteints de fièvre palustre (Laveran, 1881). Coube ao médico patologista Ettore Marchiafava, em 1885, a mudança do nome do parasito para Plasmodium. A descoberta de Laveran foi reconhecida pela comunidade científica no fim dos anos 1880, sendo o médico francês agraciado com o prêmio Nobel da Fisiologia e Medicina em 1907 (Ledermann, 2008).

A estreita associação entre a doença, águas paradas e a presença de mosquitos favoreceu desde cedo a formulação de ideias que correlacionavam mosquitos e malária, mesmo antes da descoberta do agente causador da doença. Em 1717, Giovanni Maria Lancisi publicou o trabalho De noxiis paludum effluviis eorumque remediis (Os eflúvios nocivos dos pântanos e seus remédios), no qual relacionava a abundância de mosquitos à alta incidência da malária, mas essa suposição permaneceu à sombra da doutrina miasmática imperante até então. Algo similar ocorreu com John Crawford que, em 1807, publicou artigo atribuindo aos mosquitos a responsabilidade pela malária. Entretanto, Crawford foi retaliado pela comunidade científica e marginalizado pela população leiga da época (Doetsch, 1964). Somente em fins do século XIX, com a consolidação da teoria parasitária, a hipótese da transmissão da malária por mosquitos foi valorizada. A descoberta de Patrick Manson da transmissão da filariose por mosquito do gênero Culex impulsionou ainda mais essa hipótese, demonstrada em 1897 por Ronald Ross, o que lhe valeu o prêmio Nobel em 1902 (Capanna, 2006).

A concepção da malária no Brasil (séculos XIX e XX)

No começo da década de 1880, higienistas encaravam com desconfiança a doutrina parasitária e a descoberta de Laveran (Benchimol, 1995). Em 1885, mesmo após a descoberta do agente causador da malária, Martins Costa, médico brasileiro, defendia a doutrina telúrica ou miasmática (Camargo, 1995). Nesse contexto, em 1892, Domingos José Freire, médico bacteriologista, publicou Sur l'origine bactérienne de la fièvre bilieuse des pays chauds, no qual relatava que a febre biliosa dos países quentes, que se parecia com a febre amarela, era, na verdade, "uma das manifestações da malária" (Benchimol, 2003, p.45), causada por um bacilo que nada teria a ver com o protozoário descrito por Laveran. Freire levantou a possibilidade de o bacilo que estudara ser aquele descrito, em 1878, por Theodor Albrecht Edwin Klebs e Corrado Tomassi Crudeli, principais adversários de Laveran. Ao defender o Bacillus malariae, Domingos Freire chocou-se com um jovem bacteriologista, Francisco de Paula Fajardo Júnior, que compartilhava com Adolpho Lutz a convicção de que o hematozoário de Laveran era o verdadeiro agente da malária (Benchimol, 1995). Na virada do século XIX para o XX, Adolpho Lutz, sanitarista, microbiologista, médico clínico e pesquisador brasileiro, esteve no centro da controvérsia entre o paradigma microbiano e as práticas inspiradas nas teorias miasmáticas, que clínicos e higienistas sustentavam ante os graves problemas sanitários que convulsionavam as aglomerações urbanas do Sudeste do Brasil (Benchimol, 2003).

A circulação de ideias médicas no sertão brasileiro (séculos XIX e XX)

A temporalidade do fluxo de informações esbarra na questão geográfica brasileira, a partir da contraposição de sertão e litoral. No século XIX, o sertão recebeu especial atenção da primeira geração de escritores românticos, baseada em aspectos nacionalistas e ufanistas (Coutinho, 1978). O ponto de ruptura ocorreu em 1902, com a publicação do livro Os sertões, de Euclides da Cunha, e a denúncia quanto ao isolamento e ao abandono que marcavam os sertões do país. Dessa forma, a obra é considerada referência crucial da campanha de saneamento e reforma da saúde pública durante a Primeira República (1889-1930) (Lima, Hochman, 1996). Esse período é marcado pela ação de sanitaristas que, ao lado de expedições científicas ao interior do país e da ação da Liga Pró-saneamento do Brasil, criada em 1918, colocou em evidência as precárias condições de saúde das populações rurais (Kropf, 2009). Com esse projeto nacional, os sanitaristas iniciaram uma verdadeira redescoberta do país, cujo mérito foi promover a superação do quadro sanitário vigente e a reconstrução da identidade nacional (Lima, Hochman, 1996).

Os relatórios e as respectivas imagens das expedições científicas ao interior do país, retratando o quadro nosológico das regiões interioranas, foram publicados nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, periódico voltado para a comunicação científica. Entretanto, a divulgação e a repercussão do movimento sanitarista alcançaram um público maior, pois atingiram de forma significativa a intelectualidade brasileira (Santos, 1985; Ponte, 2010). Monteiro Lobato, por exemplo, concretiza sua postura de intelectual engajado em ensaios publicados no jornal O Estado de S. Paulo e, posteriormente, enfeixados no livro Problema vital, editado em 1918. Provocativos, os títulos dos ensaios remetem às endemias da "trindade maldita": "dezessete milhões de opilados", "dez milhões de impaludados", "três milhões de idiotas e papudos" (Silveira, 2005).

No Nordeste brasileiro, a medicina popular alcança papel de destacada importância, sendo um misto de crendices, superstições e conhecimentos estruturados na oralidade (Campos, 1967). Expoentes da nossa literatura, como João Guimarãres Rosa, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Ariano Suassuna, além de historiadores, como Luís da Câmara Cascudo, debruçaram-se sobre a cultura nordestina; muitos deles conviveram de perto com a realidade do Nordeste. Câmara Cascudo, um pesquisador das manifestações da cultura popular nacional, deixou extensa obra, com destaque para o Dicionário do folclore brasileiro, publicado em 1954. Trata-se de trabalho singular, que consumiu anos de pesquisa e documentação, destacando o autor como folclorista e memorialista, com reconhecimento mundial (Costa e Silva, 2000). Conforme Lemos (2007, p.23), "Suassuna, quando cria em 1970 o Movimento Armorial ... quer destacar o que há ... de poético, literário e de 'relevância intelectual' na cultura popular nordestina"; busca "recortar em tom erudito, por intermédio do armorial, a arte popular-sertanejo-nordestina".:.

Em exame crítico acerca da cultura popular e da circulação de ideias, Carlo Ginzburg (2009), no prefácio de seu O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição, explora os desníveis culturais entre classes dominantes e subalternas, caracterizando a cultura popular como predominantemente oral. Adicionalmente, o processo de difusão dos aspectos da cultura popular é mediado por filtros e intermediários, o que Antonio Candido chamou de "oralidade transfigurada" (citado em Lemos, 2007, p.45), uma vez que as fontes escritas são, de certo modo, indiretas e de autoria de indivíduos ligados à cultura dominante, dita erudita. Dessa forma, as ideias se modificam, com perdas e deformações, e assim Ginzburg, inspirado pelos exemplos contidos na obra do crítico literário Mikhail Bakhtin, formula o conceito de circularidade cultural, para tratar da comunicabilidade entre a cultura das classes (Ginzburg, 2009).

Chartier (1995) reconhece que, muitas vezes, o historiador tem acesso às práticas sociais do passado por meio de textos. No entanto, o fundamental no trabalho do historiador vem a ser justamente procurar entender as relações entre o texto e as práticas a que se refere, decifrando significações de um discurso carregado de pensamentos encobertos (Vovelle, 2004). Nesse sentido, o texto deve ser pensado com prudência como mediador da compreensão de um processo, e impõe-se necessariamente recorrer à dimensão histórica dos fatos (Vovelle, 2004; Chartier, 1995). Nessa perspectiva, seria possível especular que as obras de escritores como Guimarãres Rosa, João Cabral de Melo Neto e outros já citados representam verdadeiros relatos do povo nordestino, de sua história, geografia, clima e população, talvez bem mais precisos do que os científicos.

De forma geral, a penetração de saberes médico-científicos no sertão brasileiro ocorria predominantemente por meio de relato oral ou pelos meios de comunicação não científicos (Campos, 1967). Os manuais de medicina popular foram um tipo de produção literária acerca de conhecimentos científicos atualizados, porém adaptados à linguagem leiga. Dessa forma, representaram forte elo entre a medicina acadêmica e a população em geral. Entre os mais conhecidos no Brasil, temos o Erário mineral, de Luiz Gomes Ferreira, impresso em Lisboa, em 1735, e o Dicionário de medicina popular (ou simplesmente 'Chernoviz'), do médico de origem polonesa Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, com primeira edição em 1842 (Figueiredo, 2001; Guimarães, 2005). Variação dos manuais de medicina popular, os 'almanaques de farmácia', foram espaços de encontro privilegiados entre cultura erudita e popular, trabalhando na fronteira entre a oralidade e a textualidade (Park, 1999). Editados por laboratórios farmacêuticos e distribuídos gratuitamente no Brasil, eram publicações de interesse geral e pouca erudição, que assumiam a tarefa de educação sanitária em associação com o caráter literário. O mais popular era o Almanaque Biotônico Fontoura, lançado em 1920 e idealizado, elaborado e ilustrado por Monteiro Lobato, com o folclórico personagem Jeca Tatuzinho (Park, 1999).

O Lunário perpétuo, livro muito consultado nos sertões do Nordeste (Cascudo, 2002), também explora teorias acerca do adoecer. O primeiro lunário, escrito por Jeronymo Cortez e publicado em Lisboa, em 1703, com o título de O non plus ultra do lunário e prognóstico perpétuo, geral e particular para todos os reinos e províncias (Cascudo, 2002), continha informações bastante ecléticas, desde prognósticos meteorológicos até remédios e tratamentos de algumas moléstias, astrologia, mitologia, rudimentos de física e química, calendários, conhecimentos agrícolas, generalidades, conselhos de veterinária, receitas médicas, entre outros assuntos. Ainda hoje continua sendo editado em Portugal.

Em edição da década de 1920, Antonio Coutinho relata na sessão "Advertência aos leitores" as diversas falhas ("erros e absurdos") das impressões anteriores do Lunário perpétuo e informa que "As faltas referidas foram emendadas ou expurgadas dessa edição" (Cortez, 1927), O comunicado, que revela o constante aperfeiçoamento do conhecimento, contrapõe-se à ideia de 'perpétuo' presente no livro. Também em constraste com o nível de informação científica já disponível na época, encontramos o seguinte comentário sobre a malária, baseado em ideias miasmáticas:

Febre intermitente ou maleitas ou sezões

Causas: a causa da maior parte das febres intermitentes são as exalações dos pântanos, águas encharcadas e pútridas de poças, ribeiros, etc. As exalações lodosas são mais nocivas e obram com mais energia de tarde e à noite do que no decurso do dia. O frio úmido e prolongado, e a habitação em lugares baixos e sombrios, predispõem para adquirir as febres intermitentes (Cortez, s.d., p.373-374).

A malária e Guimarães Rosa

Ao retratar a realidade brasileira, autores como Monteiro Lobato, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa trataram de doenças infectocontagiosas (Barros, 2006). Apesar da descoberta do agente causador da malária em 1880, a doutrina miasmática persiste no imaginário popular, e assim também é retratada na literatura. Em 1897, Euclides da Cunha, jornalista e engenheiro militar, cobre a Guerra de Canudos, como enviado do jornal O Estado de S. Paulo. No livro Os sertões, cita brevemente a doutrina miasmática: "cada banhado, cada lagoa efêmera, cada caldeirão encovado nas pedras, cada poça de água - é um laboratório infernal, destilando a febre que irradia latente nos germens do impaludismo, profusamente disseminados nos ares" (Cunha, 2000, p.490).

A malária também está constantemente presente na obra de Guimarães Rosa, escritor brasileiro que nasceu em Cordisburgo (MG), em 1908. Graduou-se em medicina em 1930 e, recém-formado, clinicou, durante cerca de um ano e meio, na pequena Itaguara, então distrito de Itaúna (MG). Exerceu o ofício até 1934, quando abandonou a medicina para abraçar a carreira diplomática. Paralelamente ao exercício da diplomacia, Guimarães Rosa dedicou-se, de corpo e alma, à literatura (Rocha, 2002). Estreou com o livro de contos Sagarana, escrito em 1937 e publicado em 1946. Sua consagração veio dez anos depois, com o romance Grande sertão: veredas. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1963, adiou a cerimônia de posse por quatro anos. Em 1967, assumiu a cadeira 2 da Academia, falecendo três dias depois (Fundação Guimarães Rosa, s.d.). Em sua obra, Guimarães Rosa procurou recriar a linguagem do sertão, adicionando intervenções linguísticas surpreendentes e elementos do universo da oralidade (Oliveira, 2008).

A obra roseana apresenta caráter profundamente humano, associado a nuanças poéticas, sendo considerada inovadora na literatura brasileira moderna (Reinaldo, 2008). Rosa demonstra obsessão pelos detalhes da língua e da geografia sertaneja, fruto das suas anotações e vivências, que garantem veracidade à narrativa. A pobreza, a miséria material e espiritual no grande sertão brasileiro são denunciadas ao longo da vasta obra desse escritor. Como médico, Guimarães Rosa conviveu com o sofrimento de pacientes portadores de doenças paradigmáticas de sua época (malária, hanseníase, tuberculose, varíola) (Goulart, 2011). Apesar de ter abandonado a medicina, Rosa vale-se do conhecimento privilegiado no assunto, e a sua experiência médica permanece entremeada em seus textos (Reinaldo, 2008; Goulart, 2011).

Um dos diferenciais da literatura roseana, frente aos textos regionalistas que a precedem, é a ausência da polaridade linguagem popular das personagens versus linguagem 'culta' do narrador (Rios, 2006), o que se contrapõe ao conceito de oralidade transfigurada. Ao articular elementos orais e escritos em sua obra, com descrições neutras e fiéis, o escritor, com habilidade única, alcança posição excepcionalmente privilegiada e transita entre dois mundos, como um "mediador cultural", nos termos de Vovelle (2004). Dessa forma, Rosa caminha por esse limiar popular versus erudito, conciliando contrários e trazendo o popular pelo viés erudito em cada passo de sua obra. No livro Grande sertão: veredas, ele enxerta na fala do narrador-personagem, o jagunço Riobaldo, a voz de outras línguas e a simbologia de outros povos. Adicionalmente, o interlocutor letrado (o próprio Rosa [?]) não tem fala própria e só revela seus atos verbais via o próprio narrador. Um deslocamento ímpar na literatura: o intelectual silencia e deixa falar seu personagem-narrador, em irônica encenação, com papéis invertidos (Lobo, 2006).

A malária segundo os personagens de Guimarães Rosa

Grande sertão: veredas é um romance escrito que faz da oralidade o meio pelo qual a narração se constitui. Outrossim, o desenvolvimento da narrativa apresenta temporalidade própria, em uma organização que não obedece a uma disposição cronológica absolutamente linear (em ordem de passado, presente e futuro). Tal fato ocorre pela sobreposição temporal durante a narrativa, composta pelo tempo do discurso (ou da enunciação) e o tempo da história (enunciado) (Silva, 2008-2009). De forma interessante, o narrador não fornece datação exata das ocorrências e, quando eventualmente o faz, é de maneira imprecisa (Monteiro, 2006; Silva, 2008-2009). É sabido que o enredo se desenrola no norte de Minas Gerais e estima-se que os eventos da juventude do narrador tenham ocorrido no início do século XX (Monteiro, 2006), época em que a malária era endêmica em toda a região. Relatos sobre a malária estão presentes na obra, mediante a associação dos focos da doença e a disponibilidade de água nas proximidades do São Francisco e outros rios (característica também observada em trechos das demais obras do autor):

Com vinte dias de remanchear, e sem as trapalhadas maiores, foi que me encostei para o Rio das Velhas, à vista da barra do Córrego Batistério. Dormi com uma mulher, que muito me agradou - o marido dela estava fora, na redondeza. Ali não dava maleita. ... Deu jeito de aconselhar que eu fosse embora. Que ali miasmava braba maleita (Rosa, 2006, p.136-137).

Na sequência do texto, o narrador-personagem, Riobaldo, relata toda sorte de sofrimentos de populações das regiões interioranas, sem assistência e expostas a enfermidades, como a "bexiga-brava" (varíola) e a "maleita".

Zé Bebelo pegou a principiar medo! Por quê? Chega um dia, se tem. Medo dele era da bexiga, do risco de doença e morte: achando que o povo do Sucruiú podiam ter trazido o mau-ar, e que mesmo o Sucruiú ainda demeava vizinho justo demais. ...

Daí, despropositou o frio, vezmente. E quase que todos os companheiros já estavam adoecidos.

Refiro ao senhor que, da bexiga-brava, não. Mas de outras enfermidades. Febres. Em algum trecho, por falta de sinal, a gente devia de ter arranchado no sezonático. Agora, a maior parte dos companheiros tremiam em prazos, com a intermitente. Remédio que valesse, de todo faltava. Aquilo afracava, no diário; os homens perdiam a natureza. E um andaço de defluxo, que também me baqueou. Pior não estive; mas eu, de mim, sei. Todos, de em antes, me davam por normal, conforme eu era, e agora, instantantemente, de dia em dia eu ia ficando demudado. Com uma raiva, espalhada em tudo, frouxa nervosia. - 'É do fígado...' - me diziam. ...

Aí, quem não pegara a maleita padecia por outros modos - mal-de-inchar, carregação-do-peito, meias-dores; teve até agravado de estupor (p.400, 402, 405).

O abatimento era generalizado entre todos, diminuídos, impotentes, frouxos, incapazes de reverter o desânimo que os tomava. Mais adiante, um novo trecho que relata a malária: "- 'Tu treme friúra, pegou da maleita?' - algum me perguntou. - 'Que os carregue!' - eu arrespondi. E mesmo com o sol saindo bom, cacei um cobertor e uma rede" (Rosa, 2006, p.424).

Em 1918, foi criado o "Quinina Oficial", um serviço oficial de distribuição de quinina para as populações rurais afligidas pela malária (Santos, 1985; Benchimol, Silva, 2008). Durante a narrativa, o rémedio é constantemente citado:

- 'Urgentemente é se mandar portador, a lugar de farmácia, comprar adquirido remédio forte, que há, para se terminar com a maleita, em definitividade!' ...

E o seô Habão tinha trazido também boa quantidade de remédio para se tomar pela maleita, das pastilhas mais amargosas. Todo o mundo recebia. ...

Mas o que eu falo é por causa da maleita, da pior: febre, ali no oco, é coisa, é grossa, mesma. Terçã maligna, pega o senhor; a terçã brava, que pode matar perfeito o senhor, antes do prazo de uma semana. ...

Daí, mais para adiante, dei para tremer com uma febre. Terçã (Rosa, 2006, p.426, 432, 504, 601).

O padrão do acesso malárico é decorrente da sincronia com o ciclo eritrocitário, que é dependente da espécie do Plasmodium. A denominação terçã advém da periodicidade do acesso febril, com ciclo de 48 horas, sendo a terçã maligna a forma mais grave da doença, provocada pela infecção pelo Plasmodium falciparum, e muitas vezes mortal. Já a infecção por P. vivax causa a doença mais branda, denominada terçã benigna (Miller et al., 2002). Nhinhinha, personagem principal do conto "A menina de lá", no livro Primeiras estórias, adoece e morre: "Diz-se que da má água desses ares" (Rosa, 1988b, p.25).

No conto "Buriti", da obra Noites do sertão, o personagem nhô Gualberto exprime um desejo a Miguel: "... não fosse a maleita, era de estabelecer um retiro na beirada do rio, onde tem pastos melhores..." (Rosa, 1988a, p.110). Mais adiante, nhô Gualberto explica: "Pântano. Dava cheiro. Dava febres. - Diz que é no fim do calor. Diz-se que é no fim dos frios... Ninguém não dorme lá, nas beiradas. Uma vez, morreu um homem. Tem uns doentes..." (Rosa, 1988a, p.145).

O conto "A hora e vez de Augusto Matraga", no livro Sagarana, também traz breve diálogo, no qual a malária é relatada. "- ... Nosso caminho era outro. Mas de uma banda do rio tinha a maleita, e da outra está reinando bexiga da brava..." (Rosa, 2001, p.392). No livro Magma, escrito em 1933 e só publicado em 1997, o poema "Maleita" descreve um diálogo entre dois compadres acometidos pelo sezão. O conto "Sarapalha", destacado aqui, é considerado uma recriação em prosa desse poema.

Sarapalha

A malária é o foco principal do conto "Sarapalha", da obra Sagarana. Essa narrativa se apresenta em terceira pessoa, com predominância de narrador onisciente, observador e cúmplice da trágica e triste história. Um ponto interessante nesse conto é a cuidadosa e atenta narrativa da malária, fidedigna à literatura científica, mas expressa na linguagem do sertanejo.

O cenário da narrativa é a fazenda "denegrida e demantelada" do primo Ribeiro, decrépito pela maleita e sucumbido pelo abandono da mulher infiel. A seguir, um relato do ambiente de desolação e morte em que se transformou a fazenda situada no vau da Sarapalha:

Tapera de arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado inteiro: ... E o lugar já esteve nos mapas, muito antes da malária chegar.

Ela veio de longe, do São Francisco. Um dia, tomou caminho, entrou na boca aberta do Pará, e pegou a subir. Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava - da 'tremedeira que não desamontava' - matando muita gente.

- Talvez que até aqui ela não chegue... Deus há-de...

Mas chegou; nem dilatou para vir. E foi um ano de tristezas. ... Então, houve gente tremendo, com os primeiros acessos da sezão.

- Talvez que para o ano ela não volte, vá s'embora...

Ficou. Quem foi s'embora foram os moradores: os primeiros para o cemitério, os outros por aí a fora, por este mundo de Deus (Rosa, 2001, p.151, 152).

Restaram nesse ambiente devastado três pessoas: a preta velha Ceição, que cozinhava o feijão de todos os dias, primo Ribeiro e primo Argemiro. Estes dois últimos, impossibilitados de trabalhar, observavam a doença avançar em si mesmos, sobrevivendo à irredutibilidade e agressividade da malária.

Naturalmente, a doença é transmitida através da picada da fêmea do mosquito Anopheles infectado, considerado o único vetor nos casos humanos. O principal vetor no Brasil, Anopheles darlingi, apresenta hábitos antropofílicos com atividade cíclica contínua durante toda a noite, com pico nos crepúsculos matutino e noturno (Tadei, Thatcher, 2000). Essa característica, assim como a descrição de caracteres da morfologia externa do vetor, é bem abordada na narrativa:

O mosquito fêmea não ferroa de-dia; está dormindo, com a tromba repleta de maldades ... Primo Ribeiro dormiu mal e o outro não dorme quase nunca. Mas ambos escutaram o mosquito a noite inteira. E o anofelino é o passarinho que canta mais bonito, na terra bonita onde mora a maleita.

É de-tardinha, quando as mutucas convidam as muriçocas de volta para casa, e quando o carapanã rajado mais o moçorongo cinzento se recolhem, que ele aparece, o pernilongo pampa, de pés de prata e asas de xadrez. Entra pelas janelas, vindo dos cacos, das frinchas, das taiobeiras, das bananeiras, de todas as águas, de qualquer lugar (Rosa, 2001, p.153, 154).

Por intermédio do programa "Quinina Oficial", a população rural afligida pela malária tinha acesso ao fármaco quinino. Entretanto, o uso excessivo do medicamento produzia sinais de toxicidade, com efeitos colaterais indesejados, relatados no conto:

Olha o mosquito-borrachudo nos meus ouvidos, Primo!...

É a zoeira do quinino... Você está tomando demais..." (Rosa, 2001, p.154).

A zoeira no ouvido, denominada chinchonismo ou tinnitus, pode associar-se à sensação de ansiedade, uma característica que pode ser observada na sequência da narrativa.

A semiologia da malária é geralmente pouco específica e decorre inicialmente da fase eritrocítica da infecção. A tríade clássica (febre, cefaleia e calafrio) confunde-se com sintomas apresentados em outras doenças infecciosas. Apesar da baixa especificidade, o ataque agudo de malária caracteriza-se por um conjunto de paroxismos febris que apresentam períodos sucessivos de calafrio, calor e sudorese, que constituem o acesso malárico. Os calafrios distinguem-se pela sensação de frio intenso, tremor generalizado e ranger dos dentes. Esses episódios são, em geral, acompanhados de profundo mal-estar, dores musculares e articulares, manifestações digestivas (náuseas, vômitos e dor abdominal intensa), forte cefaleia e, eventualmente, delírio ou confusão mental. Após essa fase, instala-se um quadro de febre alta e adinamia intensa. Ao final da fase febril, os sintomas cessam, e o doente tem a sensação de alívio e de tranquilidade. Esse acesso pode repetir-se todos os dias ou a intervalos de um ou dois dias, por tempo variável.

Mas eles ainda não tremem: frio mesmo frio vai ser d'aqui a pouco. ...

- Ei, Primo, aí vem ela...

- Danada!...

- Olh'ele aí... o friozinho nas costas...

E a maleita é a 'danada' ...

- Está custando, Primo Argemiro...

- É do remédio... Um dia ele ainda há-de dar conta da danada!... ...

Mas eles estão esperando é a febre, mais o tremor (Rosa, 2001, p.154-155).

A doença também se faz acompanhar de aumento perceptível do baço (esplenomegalia), como relatado no diálogo entre os primos Argemiro e Ribeiro. Na linguagem do sertanejo, uma das variantes para o termo baço é 'passarinha' (Cascudo, 2002):

- O seu inchou mais, Primo Argemiro?

- Olha aqui como é que está... E o seu, Primo?

- Hoje está mais alto.

- Inda dói muito?

- Melhorou.

É da passarinha. No vão esquerdo, abaixo das costelas, os baços jamais cessam de aumentar (Rosa, 2001, p.156).

Por meio do relato seguinte, da visita do doutor "apessoado" ao vilarejo, o universo científico confronta-se com o popular, salientando-se uma relação de desconfiança deste em relação àquele:

- ... O doutor deu prazo de um ano... Você lembra?

- Lembro! Doutor apessoado, engraçado... Vivia atrás dos mosquitos, conhecia as raças lá deles, de olhos fechados, só pela toada da cantiga... Disse que não era das frutas e nem da água... Que era o mosquito que punha um bichinho amaldiçoado no sangue da gente... Ninguém não acreditou... Nem no arraial. Eu estive lá, com ele... ...

- ...E então ele ficou bravo, pois não foi? Comeu goiaba, comeu melancia da beira do rio, bebeu água do Pará, e não teve nada... ...

- Depois dormiu sem cortinado, com janela aberta... Apanhou a intermitente; mas o povo ficou acreditando... (Rosa, 2001, p.158-159).

Rosa, narrador em terceira pessoa e médico em sintonia com os estudos sobre a etiologia da malária e seu modo de transmissão, destaca o controle da doença, com ênfase na proteção contra as picadas de mosquitos e no uso da quinina. Por fim, o doutor da narrativa desiste de lutar contra a malária e abandona o povoado, alertando a população para fazer o mesmo:

- Escuta, Primo Ribeiro: se alembra de quando o doutor deu a despedida p'ra o povo do povoado? ... Ele ajuntou a gente... Estava muito triste... Falou: - 'Não adianta tomar remédio, porque o mosquito torna a picar... Todos têm de se mudar daqui... Mas andem depressa, pelo amor de Deus!'... (Rosa, 2001, p.159-160).

Por motivos distintos, os dois personagens persistiram na fazenda, entregues à malária e aos acessos febris, por vezes diários. A 'terçã benigna', causada pelo P. vivax, apresenta caráter recidivante que tende a ressurgir depois de variáveis períodos de cura aparente. Isso ocorre porque nas células do fígado da pessoa infectada podem permanecer algumas formas em hibernação, os hipnozoítos, responsáveis por novos ataques clínicos, conhecidos como recaídas tardias. Além disso, o indivíduo pode receber inóculos infectantes em dias sucessivos, e os parasitos podem estar em etapas evolutivas diferentes, interferindo na periodicidade dos episódios febris (White, 1996). Essas nuanças fisiopatológicas da infecção podem também ser evidenciadas na narrativa de Guimarães Rosa, quando refere (equivocadamente [?]) a distintas populações de parasitos no baço de um dos protagonistas: "Primo Ribeiro levantou os ombros; começa a tremer. Com muito atraso. Mas ele tem no baço duas colmeias de bichinhos maldosos, que não se misturam, soltando enxames no sangue em dias alternados. E assim nunca precisa de passar um dia sem tremer" (Rosa, 2001, p.162, adição dos autores).

A malária, contudo, era o mal menor que afligia o primo Ribeiro: Luísa, sua mulher, fugira com o boiadeiro, deixando-o só. Assim, os acessos da doença coincidem com as tristes lembranças.

- Olha o frio aí, Primo Argemiro... Me ajuda....

Enrola-se mais no cobertor. Os dentes se golpeiam. Desencontrados, dançam-lhe todos os músculos do corpo.

- Quer o remédio, Primo?

- Não vou tomar mais ... Não adianta. Está custando muito a chegar a morte... E eu quero é morrer. ...

Primo Argemiro se agarrou com as mãos nos joelhos. Os maxilares estrondam; só param de bater quando ele faz vômitos (Rosa, 2001, p.162-163).

Na fase febril, os pacientes com malária podem apresentar confusão mental ou delírio, o que parece ocorrer com os protagonistas.

Passado o frio, passada a tremura, vem a hora de Primo Ribeiro variar. Primo Argemiro não gosta. Não se habitua àquilo. Ele, nos seus acessos, não varia nunca: não tem licença: se delirar, pode revelar o seu segredo. ...

- Ô calorão, Primo!... E que dor de cabeça excomungada! ...

- Ai, Primo Argemiro, está passando... Já estou meio melhor... Será que eu variei?... Falei muita bobagem?...

- Falou não, Primo... D'aqui a pouco é a minha vez... Não dilata p'ra chegar...

Sim, d'aqui a pouco vai ser a sua hora. Aqui a febre serve de relógio. Ele já está ficando mais amolecido. Também deve ser de ter pensado muito (Rosa, 2001, p.166, 168).

Primo Argemiro se sente mal e resolve confessar seu grande segredo, seu amor a Luísa, a esposa infiel de primo Ribeiro. Este, apesar da febre e da fraqueza, enxota-o da sua presença; Argemiro reúne suas forças e sai perambulando, com os primeiros sintomas da tremedeira por entre as belezas do lugar.

- O primeiro calafrio... A maleita já chegou... ...

Outro grande arrepio. Que frio! ...

O começo do acesso é bom, é gostoso: é a única coisa boa que a vida ainda tem. Para, para tremer. E para pensar. Também. ...

- Mas, meu Deus, como isto é bonito! Que lugar bonito p'r'a gente deitar no chão e se acabar!...

É o mato, todo enfeitado, tremendo também com a sezão (Rosa, 2001, p.172-173).

Considerações finais

O objetivo deste trabalho foi recuperar as imagens da malária na medicina popular e na literatura, por meio da obra do escritor Guimarães Rosa, tendo como pano de fundo conhecimentos aceitos no campo médico e algumas noções que, possivelmente, ainda persistem no senso comum popular. Rosa procurou dar voz ao homem do sertão, utilizando elementos de sua formação científica e de sua vivência pessoal para compor suas 'estórias'. A experiência médica do autor teve importância decisiva na construção literária, com relatos, ora poéticos, de algumas enfermidades em sua literatura.

Com admirável maestria, articula elementos orais e escritos em sua obra, transitando entre dois mundos e atuando na condição de "mediador cultural", como proposto por Vovelle (2004). Assim, narrador-personagem e pesquisador da cultura sertaneja, Guimarães Rosa perpetua o universo dos miasmas na voz do sertanejo. Quando narrador em terceira pessoa, utiliza-se da formação em medicina e do conhecimento de teorias científicas para explicar a malária a partir do paradigma pasteuriano.

No conto "Sarapalha", Rosa interpõe as duas teorias acerca da transmissão da malária, verbalizadas e separadas em dois tipos de personagens: o sertanejo (primo Ribeiro e primo Argemiro) e o doutor "apessoado", este em sintonia com os estudos sobre a etiologia da malária e seu modo de transmissão. No romance Grande sertão: veredas, publicado posteriormente, a teoria miasmática prevalece na narrativa do personagem Riobaldo (voz do sertanejo). Dessa forma, não se pode falar em "amadurecimento científico" do autor em relação à transmissão da doença ao longo dessas obras. Também é válido destacar a ausência de correlação cronológica exata entre os textos e as experiências pessoais que podem estar envolvidas em cada obra. Pode-se dizer, no entanto, da facilidade com que Rosa transita entre o conhecimento científico e a medicina popular, além da fidelidade às informações e à realidade do período relatado.

Recebido para publicação em fevereiro de 2011.

Aprovado para publicação em fevereiro de 2012.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2012
  • Data do Fascículo
    Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    Fev 2011
  • Aceito
    Fev 2012
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