Acessibilidade / Reportar erro

Apontamentos sobre a publicação de História da vida privada em Portugal: entrevista com José Mattoso

Notes on the publication of the History of private life in Portugal: an interview with José Mattoso

Resumos

Entrevista concedida a Leandro Alves Teodoro por José Mattoso, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, renomado medievalista autor de várias obras importantes na historiografia portuguesa. Recentemente, coordenou a publicação de História da vida privada em Portugal, obra que abrange da Idade Média aos nossos tempos, abordando o campo de estudos dos comportamentos e das mentalidades, que até então era apenas tateado pelos historiadores portugueses. Com o objetivo de delinear uma perspectiva historiográfica concernente aos usos da história das mentalidades em Portugal, foi elencada uma série de perguntas a Mattoso sobre os interesses que o levaram a organizar tal conjunto de ensaios inéditos.

história da vida privada; história nova; José Mattoso (1933-); Portugal; historiografia portuguesa


Interview given to Leandro Alves by José Teodoro Mattoso, professor at the New University of Lisbon, a renowned medievalist and author of several important works on Portuguese historiography. He recently coordinated the publication of the History of private life in Portugal, a work encompassing the Middle Ages through to the present day, addressing the field of study of behaviors and mentalities, which until then had barely been touched upon by Portuguese historians. Seeking to outline a historiographical perspective regarding the use of the history of mentalities in Portugal, a series of questions were prepared to put to Mattoso about the interests that led him to organize such a collection of unpublished essays.

history of private life; new history; José Mattoso (1933 -); Portugal; Portuguese historiography


DEPOIMENTO

Notes on the publication of the History of private life in Portugal: an interview with José Mattoso

Leandro Alves Teodoro

Doutorando do Programa de Pós-graduação em História/Universidade Estadual Paulista. Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900 14409-160 - Franca - SP - Brasil teodoro400@yahoo.com.br

RESUMO

Entrevista concedida a Leandro Alves Teodoro por José Mattoso, professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa, renomado medievalista autor de várias obras importantes na historiografia portuguesa. Recentemente, coordenou a publicação de História da vida privada em Portugal, obra que abrange da Idade Média aos nossos tempos, abordando o campo de estudos dos comportamentos e das mentalidades, que até então era apenas tateado pelos historiadores portugueses. Com o objetivo de delinear uma perspectiva historiográfica concernente aos usos da história das mentalidades em Portugal, foi elencada uma série de perguntas a Mattoso sobre os interesses que o levaram a organizar tal conjunto de ensaios inéditos.

Palavras-chave: história da vida privada; história nova; José Mattoso (1933-); Portugal; historiografia portuguesa.

ABSTRACT

Interview given to Leandro Alves by José Teodoro Mattoso, professor at the New University of Lisbon, a renowned medievalist and author of several important works on Portuguese historiography. He recently coordinated the publication of the History of private life in Portugal, a work encompassing the Middle Ages through to the present day, addressing the field of study of behaviors and mentalities, which until then had barely been touched upon by Portuguese historians. Seeking to outline a historiographical perspective regarding the use of the history of mentalities in Portugal, a series of questions were prepared to put to Mattoso about the interests that led him to organize such a collection of unpublished essays.

Keywords: history of private life; new history; José Mattoso (1933 -); Portugal; Portuguese historiography.

Em 1966, o historiador português José Mattoso defende pela Universidade belga de Louvain a tese Le monarchisme ibérique et Cluny. Les monastères du diocèse de Porto de l'an mille à 1200 e, em 1970, inicia sua carreira como professor na Universidade de Lisboa. Posteriormente, transfere-se para a Universidade Nova de Lisboa, na qual se torna professor catedrático. A partir daí, teve um papel decisivo nos rumos que tomaria o campo da história medieval não só pelo que produziu, mas por ter ajudado na formação de inúmeros pesquisadores, cujos estudos são atualmente pilares da história portuguesa. A produção dos últimos quarenta anos, a propósito, permite-nos perceber as trilhas abertas por Mattoso para penetrar a Idade Média, bem como as novas faces que a pesquisa recente conferiu a um período decisivo da história de Portugal. Uma área que antes dele era pouco explorada passou a ser, nas palavras de seu discípulo Bernardo Vasconcelos e Sousa - hoje membro diretor do Instituto de Estudos Medievais e professor dessa mesma universidade - , profundamente prestigiada e de grande importância no cenário acadêmico português.

Entre o final dos anos 1980 e início da década de 1990, Mattoso inicia uma das fases mais frutíferas de sua produção, quando organiza a publicação do Livro de linhagens do conde dom Pedro e dos Livros velhos de linhagens, documentos que contêm uma breve história das principais linhagens portuguesas da Idade Média e que, portanto, estabelecem a trama inicial das famílias portuguesas. Depois dessas edições críticas, Mattoso dá o passo seguinte de sua pesquisa rumo ao reconhecimento do lugar da família na sociedade portuguesa, perscrutando as relações matrimoniais, os laços sanguíneos, bem como o papel social das referidas genealogias no medievo. Nessa etapa, suas principais obras historiográficas são: A nobreza medieval portuguesa (1981), A família e o poder (1980), Ricos-homens, infanções e cavaleiros: a nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII (1982) e Narrativas dos Livros de Linhagens, seleção, introdução e comentários (1983).

Do interesse pelas linhagens ou pelo lugar da família no âmbito da Corte régia, Mattoso invadiu um campo de estudos que, embora relativamente abalado em outras plagas europeias, foi explorado de forma vertical pelo historiador. Navegando pelas superfícies e profundezas da formação do Estado e do sistema administrativo instituído pelos monarcas portugueses do século XIII ao século XV em Portugal, o medievalista explorou o potencial de uma história política atenta aos grandes movimentos do poder, mas não negligente com as forças e os conflitos sociais tão ao gosto da linhagem marxista. Sua adesão a essa linhagem, incluindo vocabulário e interrogações, foi, vale destacar, diversas vezes demonstrada ao longo de sua obra e de sua vida. Exemplos desse foco político são: a História de Portugal (1997), em oito volumes; Identificação de um país (1985), Fragmentos de uma composição medieval (1987), entre outras.

Recentemente, mostrando o vigor do seu trabalho investigativo e o fôlego de quem fez da história a sua vida, Mattoso empreendeu novo deslocamento nas suas interrogações. Deixou hibernar os temas políticos e passou a estudar o lado mais comezinho e quotidiano da vida dos portugueses na Idade Média, ou melhor, iniciou um estudo a respeito da vida privada do homem na Idade Média portuguesa. Um ensaio nomeado A sexualidade na Idade Média portuguesa - o qual faz parte da obra Estudos portugueses: quotidiano medieval (2004) - versa exatamente sobre o comportamento sexual e a relação entre a norma proposta pela Igreja e os valores dessa época. Parece, assim, se deslocar do campo aparentemente mais seguro da vida pública dos grandes homens para o campo das incertezas dos valores e interditos de uma sociedade.

Dessa nova fase de preocupações com a história portuguesa resulta a publicação de História da vida privada em Portugal (2011), obra monumental, em quatro volumes. Apesar de tardiamente, a coleção vem tentar compensar o tempo perdido pelos pesquisadores portugueses antes de se imiscuírem em terrenos relativamente ocultos da história, como o das casas, da vida sexual, da vida afetiva, das festividades, das relações familiares etc. Reunindo historiadores experientes e também jovens pesquisadores, Mattoso tenta estabelecer caminhos para distinguir âmbitos públicos e privados da vida de homens e mulheres que nem sempre souberam distinguir os limites de um e outro.

A entrevista que se segue, com esse historiador que podemos definir como o maior medievalista português vivo, foi-me concedida em meados de 2011, quando realizava meu estágio sanduíche junto à Universidade Nova de Lisboa e quando foram lançados os últimos volumes da coleção História da vida privada.

O leitor terá oportunidade de ver aqui sistematizadas algumas das ideias que nutriram, ao longo de décadas, a obra de um dos mais importantes e produtivos historiadores portugueses.

Em 1985, é editado o primeiro volume de História da vida privada, organizado por Philippe Ariès e Georges Duby. Tendo, pois, o senhor assumido que se sentiu influenciado por esses historiadores no planejamento dos eixos condutores de História da vida privada em Portugal, quais as motivações que o levaram a organizar, tanto tempo depois da publicação dessa coleção francesa, tal conjunto de ensaios?

A sua pergunta parece pressupor que passou demasiado tempo sobre a publicação da obra dirigida por Duby e a atualidade, e que, por isso, com a mudança da problemática historiográfica, os pontos de vista de Duby e dos seus colaboradores deixaram de ser pertinentes. Se é esse o sentido da questão, queria desde logo exprimir o meu desinteresse pela 'moda' como motivo inspirador da investigação em história. Queria também demarcar-me daquela posição intelectual que reduz a investigação científica às questões propostas pelo mainstream. A moda conduz ao diletantismo e à superficialidade. A redução do questionário histórico aos temas cultivados pelo mainstream subverte a hierarquia das questões próprias de cada disciplina científica. À semelhança do que acontece nas ciências exatas, é preciso dar a primazia à investigação fundamental. Isto não quer dizer que ignore as novas correntes historiográficas nem que tivesse pretendido defender determinada corrente, em nome de uma certa ortodoxia, contra eventuais desvios contemporâneos. Parece-me que, em história, é preciso rejeitar as ditaduras epistemológicas. Nos anos 1970, assisti a absurdas discussões entre colegas meus acerca da interpretação marxista ou 'burguesa' da Revolução de 1383-1385.1 1 A revolução de 1383-1385 termina quando dom João I, filho bastardo de dom Pedro, assume as rédeas administrativas do reino português e inicia o governo da casa de Avis. Ver Mattoso, 1997, p.414-419. Hoje rejeitam-se, com razão, os modelos mecanicistas em geral e as teorias marxistas em particular. Mas isso não é razão para deixar de reconhecer a utilidade de certos conceitos como "modo de produção" e "luta de classes". São indispensáveis para definir ou para comprender certos fenômenos (não todos) do passado medieval.

Em que medida os leitores de História da vida privada em Portugal, especificamente os historiadores de outras nacionalidades, podem entender a publicação de tal coleção nos dias de hoje como uma aceitação talvez tardia, em Portugal, das balizas historiográficas defendidas pela Nova História francesa?

Parece-me ver na sua pergunta duas questões diferentes: a pertinência da limitação da investigação a um espaço de âmbito nacional, nesse caso, o português; e a interpretação da nossa obra como adesão tardia da historiografia portuguesa à Nova História francesa. Quanto à primeira, nego em absoluto o presuposto que a fundamenta, isto é, que, para a questão em causa (a vida privada), o quadro nacional seja inadequado. Portugal pertence, de fato, ao mundo europeu. Não basta isso para daí concluir que as concepções mentais acerca do binômio público/privado fossem as mesmas do resto da Europa. Em história, é sempre interessante e significativo verificar as variantes e as recorrências de fenômenos idênticos em relação com as coordenadas do tempo e do espaço, assim como a expressão que elas revestem pelo fato de ser transmitidas num meio cultural com as suas características próprias.

Quanto à segunda questão, não se pode ignorar os benefícios que a inspiração da Nova História francesa trouxe à historiografia portuguesa a partir dos anos de 1980. Deve-se-lhe uma profunda renovação das perspectivas - a fundamentação crítica e a consideração do passado como fator explicativo de estruturas de longo prazo para a compreensão da sociedade portuguesa no passado e na atualidade alteraram por completo o panorama historiográfico - e mesmo algumas contribuições importantes no contexto da historiografia internacional. Não é o fato de a Nova História ter recentemente perdido a sua capacidade renovadora em face das novas correntes de inspiração anglo-saxônica ou americana que lhe retira o valor. A complexidade do passado humano é tal que nenhum sistema interpretativo consegue, por si só, explicar tudo. Há fenômenos (e são fenômenos fundamentais) que encontram na reconstituição das estruturas socioeconômicas, tal como foi praticada pela Nova História no seu período inicial, a sua melhor definição e explicação. Estou menos seguro acerca da segunda e da terceira geração da Nova História, e sobretudo acerca do valor do medievalismo português atual no domínio da História das Mentalidades. Embora com alguns produtos verdadeiramente interessantes, não me parece ter sido esse o setor mais fecundo e mais sólido da investigação portuguesa.

O senhor concorda que, durante alguns anos, os medievalistas portugueses se preocuparam, sobretudo, com temas relacionados às linhagens, à nobreza e à formação do Estado português e que essa coleção de ensaios pode marcar provavelmente uma certa pretensão de se encontrar, em Portugal, novos enfoques para os estudos de Idade Média?

O interesse pelos temas das linhagens, da nobreza e pela formação do Estado dominou efetivamente o medievalismo português desde a década de 1980 até a atualidade, mas está longe de ser exclusivo. Inicialmente (isto é, desde a implantação da democracia, em 1974), essa orientação resulta, de fato, de um novo enfoque historiográfico. A queda do regime salazarista suscitou a necessidade urgente, em primeiro lugar, de responder às deturpações decorrentes da concepção nacionalista do Estado e, depois, de definir as estruturas sociais e econômicas que permitem compreender as peculiaridades da sociedade portuguesa até os dias de hoje. Por isso acrescentaria aos temas mencionados a tentativa de explicar e definir aquele fenônemo que há mais de século e meio obceca a nossa intelectualidade, isto é o "atraso econômico português". A reconstituição das estruturas socioeconômicas era indispensável para compreender as peculiaridades dos fenômenos de outro tipo (culturais, políticos, religiosos etc.) cuja interpretação só exige a consideração da sua relação recíproca. É verdade que a nossa história se circunscreveu quase sempre ao espaço nacional. Mesmo a que, até os anos 1980, se dedicou ao chamado ultramar, manteve até essa altura um pendor nacionalista, esquecendo o seu enquadramento internacional. Só então se desenvolveram os estudos que situam a realidade portuguesa no contexto mundial.

Parece-me evidente que esses novos enfoques privilegiaram o estudo do setor social, e que, nesse caso, exerceram alguma influência sobre toda a produção historiográfica, mesmo fora de Portugal (sobretudo em Espanha, onde até há pouco predominavam os estudos regionais suscitados pela problemática das identidades autonômicas). As questões sociais, matéria interdita durante a época salazarista, em virtude do pressuposto de que em Portugal não teria havido luta de classes, revelaram-se a via mais fecunda, em virtude da abundância de uma documentação linhagística excepcionalmente rica e abrangente, como ponto de partida para a definição e a explicação dos fenômenos políticos. Infelizmente, a investigação portuguesa recente foi menos produtiva em temas de história econômica. Apesar da publicação de algumas obras da maior importância nesse setor (na esteira de Magalhães Godinho2 2 Vitorino Magalhães Godinho foi professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e considerado, por muitos, um dos principais pesquisadores portugueses do século XX na área de expansão marítima. e de Oliveira Marques3 3 António Henrique de Oliveira Marques licenciou-se em história pela Universidade de Lisboa e se tornou professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa no ano de 1976. Dentre a sua produção historiográfica, destacam-se os livros Portugal na crise dos séculos XIV e XV, a Sociedade medieval portuguesa e a Expansão quatrocentista. ), elas não são ainda suficientes para compreender a natureza e as repercussões de alguns fenômenos importantes. Muitas vezes, falta a base econômica para interpretar devidamente os outros fenômenos próprios de certas épocas. Assim, por exemplo, há ainda muita coisa a estudar para compreender o processo histórico que permitiu a Portugal superar a crise iniciada em 1348 e que se prolongou ainda para além de 1450, para depois viver um dos períodos mais dinâmicos da sua história.

Devo ainda dizer que a história das linhagens pode ter suscitado o recrudescimento da genealogia tradicional cultivada por alguns setores de uma fidalguia saudosa de glórias passadas. Não me parece que esse fenômeno se possa considerar representativo da historiografia científica portuguesa na atualidade. Considero-o antes um subproduto do sucesso editorial que os temas históricos em geral alcançaram em Portugal nas últimas três décadas.

Na introdução do volume a respeito da Idade Média, o senhor e o doutor Bernardo Vasconcelos e Sousa comentam o papel da Igreja no controle da consciência individual por meio do sacramento da penitência. Por quais técnicas ou, se preferir dizer, modos de abordagens, era possível então haver essa forma de controle social?

A disciplina da penitência, predominante até a instituição da confissão auricular, pelo menos uma vez por ano, imposta pelo Concílio de Latrão de 1215, tinha repercussões muito diferentes da que então se estabeleceu. A disciplina anterior baseava-se fundamentalmente na pressão social da comunidade sobre os indivíduos; o importante era a coesão social. A disciplina penitencial que a partir daí se vai generalizando baseia-se no controle da consciência individual do penitente por outro indivíduo (o confessor), que age por delegação de um poder quase estatal, como era o da Igreja hierarquicamente organizada e com instâncias de controle estritamente codificadas. Ao confiar ao confessor a faculdade de absolver o penitente, de lhe impor uma penitência reparadora da falta cometida, ou de lhe negar a absolvição, a Igreja adquire um instrumento de orientação em todos os domínios da ação humana, inclusive de orientação política, se o penitente é detentor de autoridade civil. Por isso os soberanos têm todos os seus confessores. Por isso aparecem os "espelhos dos príncipes" e os "manuais dos confessores". A esses instrumentos, a Igreja hierárquica acrescenta outros, como são a excomunhão (que adquire novos contornos no século XIII), o interdito, o foro eclesiástico, os impedimentos canônicos (do matrimônio e da ordenação sacerdotal) e as dispensas. A "domesticação" do clero executante das orientações hierárquicas, e, por seu intermédio, a "domesticação" da sociedade e dos seus chefes, é garantida pela pena de "suspensão" em que incorrem os clérigos recalcitrantes. A tudo isso junta-se, ainda no mesmo século, a instituição da Inquisição que controla a expressão doutrinal da crença, em conformidade com a formulação que a hierarquia considera legítima.

Nessa mesma introdução há um comentário a respeito de uma divisão entre o que seria o modelo projetado pela Igreja e a realidade vivida no cotidiano. Isso nos instiga a perguntar até que ponto se pode dizer que o modelo pretendido pela Igreja e a realidade são concebidos de maneiras diferentes um do outro, na Idade Média?

Uma das características que me parecem mais importantes na mentalidade medieval é a "dialogia", no sentido em que a definiu Julia Kristeva.4 4 Julia Kristeva é linguista e filósofa de nacionalidade búlgara. Podemos destacar como uma de suas produções de maior circulação a obra História da linguagem (1969). Essa faceta da mentalidade dominante aparece de uma maneira muito clara nos provérbios populares. Por exemplo "Antes com os bons a fartar que com os maus a orar". O seu sentido é duplamente ambíguo. Os qualificativos "bons" e "maus" tanto podem designar os ricos e os pobres, como os que merecem os mesmos qualificativos por convenção social (as autoridades civil e eclesiástica). Seja como for, quem emite a sentença aconselha realisticamente a cuidar primeiro do corpo e só depois da alma e a não se deixar levar por compromissos de ordem moral. Não me parece fácil encontrar um pregador medieval aprovado pela Igreja a fazer a apologia desse princípio. Todavia, os provérbios desse gênero são, de longe, os mais frequentes. Pelo contrário, os sermões e obras de moral medieval têm geralmente um tom rígido e absoluto. Esse contraste mostra que o auditório fazia o seu desconto e procurava satisfazer as suas necessidades. Os exempla coligidos nos séculos XII a XV pressupõem a mesma atitude. Sabem distinguir a norma da prática. Interpreto essa divergência também como manifestação de um pensamento dialógico: a norma apresenta-se como absoluta, mas a prática relativiza o rigor da sua aplicação. É também por isso que existem impedimentos canônicos aparentemente absolutos (como a legitimidade de nascimento para a ordenação sacerdotal) e, ao mesmo tempo, uma frequência tal de dispensas, que a obrigatoriedade de regra fica esvaziada. O caráter monológico da norma, em que o sujeito assume o papel de Deus, e em que o discurso é dominado por um verdadeiro interdito, instala-se no Ocidente europeu no século XVI, sobretudo depois do concílio de Trento. Tem os seus antecedentes medievais em alguns setores da Igreja e no nível do simples discurso, mas só mais tarde se generaliza.

O senhor poderia comentar um pouco o seguinte trecho da apresentação geral: "Como é óbvio, o que os autores e editores procuram não é só o progresso científico, nem apenas a frieza analítica dos comportamentos de outrora, mas também o êxito editorial." Poderia comentar do que se trata esse "progresso científico" pretendido juntamente com os outros objetivos em questão?

Parto do princípio de que a história, tal como é produzida nas universidades, é uma disciplina científica, isto, é com regras de estabelecimento das fontes, da sua crítica e da sua interpetação, e com a necessidade do recurso a métodos quantitativos para definição e análise dos fenômenos históricos observados. Todavia, como Michel Foucault mostrou, a cientificidade da história, como das outras disciplinas das ciências sociais, não tem o mesmo sentido do que nas ciências exatas. Todavia, não é pelo fato de as "leis históricas" não serem absolutas que o discurso histórico pode ser arbitrário. Há, portanto, um progresso científico à medida que a interpretação, a compreensão e a explicação dos fenômenos históricos sejam ou não justificadas com maior ou menor êxito. As explicações nacionalistas acerca da origem da nacionalidade, por exemplo, baseiam-se em pressupostos inadmissíveis. A demonstração desse fato é, na minha opinião, um progressso científico.

Ao referir o "êxito editorial", parto do princípio de que a história, como disciplina das humanidades, não existe em função apenas dos profissionais, mas se destina à sociedade no seu conjunto. Responde à necessidade espontânea que a sociedade tem de compreender a si própria, o que realiza em grande parte por meio da narrativa do seu próprio passado. Essa narrativa não pode ser arbitrária. Tem de ser credível. Exige regras que garantam a sua veracidade.

Para encerrarmos esta nossa entrevista, poderia explicar-nos um pouco por que, como o senhor mesmo afirma, não se deve tornar "a história uma disciplina árida, seca e afinal contraditória, confusa e desmotivadora, como se arriscam a fazer certas teorias desconstrutivistas nascidas da viragem linguística aplicada à história"?

Talvez, se fosse hoje, evitasse escrever essa frase. Não porque me pareça que ela não possa ou deva ser aplicada a certos ensaios que, na minha opinião, merecem tais qualificativos, mas porque o conjunto aí referido é demasiado diversificado para se poder emitir sobre ele uma sentença única. Hoje teria mais cuidado em evitar generalizações. Há casos muito diferentes uns dos outros. Podem, sem dúvida, apontar-se exemplos de equívocos ou desvios na investigação histórica dos anos 1960 a 1980 produzida por influência francesa. Pode, mesmo, discutir-se a maneira como foram usados modelos e conceitos de outras disciplinas humanas, como a antropologia, para explicar ou descrever determinados fenômenos da época medieval. Pode, até, dissertar-se sobre a consistência epistemológica de vários conceitos usados pelos historiadores, com têm feito certos autores anglo-saxônicos e americanos. Sem estar muito seguro do que tento exprimir, parece-me que as invectivas da viragem linguística contra a Nova História se poderiam comparar com as críticas nominalistas do século XIV contra a escolástica aristotélica do século XIII. Não se devem ignorar; mas é esta e não aquelas que permite formular uma visão coerente do universo.

AGRADECIMENTOS

Agradeço as sugestões da professora doutora Susani Silveira Lemos França (Unesp) para o aperfeiçoamento deste texto.

José Mattoso. Professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa. jjmtts@hotmail.com.

  • KRISTEVA, Julia. História da linguagem. v.1. Lisboa: Edições 70. 1969.
  • LIVRO DE LINHAGENS DO CONDE DOM PEDRO. In: Mattoso, José (Ed.). Portugaliae Monumenta Histórica Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa. [1340] 1980.
  • LIVROS VELHOS DE LINHAGENS. In: Mattoso, José; Piel, Joseph (Ed.). Portugaliae Monumenta Histórica Lisboa: Academia de Ciências de Lisboa. 1980.
  • MARQUES, António Henrique de Oliveira. Portugal na crise dos séculos XIV e XV. Lisboa: Presença. 1987.
  • MARQUES, António Henrique de Oliveira. Ensaios de história medieval portuguesa Lisboa: Veja. 1980.
  • MARQUES, António Henrique de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa Lisboa: Livraria Sá da Costa. 1971.
  • MATTOSO, José. História da vida privada em Portugal Lisboa: Círculo de Leitores. 2011.
  • MATTOSO, José. A sexualidade na Idade Média. In: Andrade, Amélia Aguiar; Vieira da Silva, Custódio. Estudos portugueses: quotidiano medieval. Viseu: Livros Horizontes. 2004.
  • MATTOSO, José. História de Portugal: a monarquia feudal. Lisboa: Estampa. 1997.
  • MATTOSO, José. Fragmentos de uma composição medieval Lisboa: Estampa. 1987.
  • MATTOSO, José. A identificação de um país: ensaios sobre as origens de Portugal 1096-1325. Lisboa: Estampa. 1985.
  • MATTOSO, José. Identificação de um país Lisboa: Estampa. 1985.
  • MATTOSO, José. Ricos-homens, infanções e cavaleiros: a nobreza medieval portuguesa nos séculos XI e XII. Lisboa: Guimarães. 1985.
  • MATTOSO, José. Narrativas dos Livros de linhagens Seleção, introdução e comentários por José Mattoso. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda. 1983.
  • MATTOSO, José. A nobreza medieval portuguesa: a família e o poder. Lisboa: Estampa. 1981.
  • MATTOSO, José. A família e o poder Lisboa: Estampa. 1980.
  • 1
    A revolução de 1383-1385 termina quando dom João I, filho bastardo de dom Pedro, assume as rédeas administrativas do reino português e inicia o governo da casa de Avis. Ver Mattoso, 1997, p.414-419.
  • 2
    Vitorino Magalhães Godinho foi professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa e considerado, por muitos, um dos principais pesquisadores portugueses do século XX na área de expansão marítima.
  • 3
    António Henrique de Oliveira Marques licenciou-se em história pela Universidade de Lisboa e se tornou professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa no ano de 1976. Dentre a sua produção historiográfica, destacam-se os livros
    Portugal na crise dos séculos XIV e XV, a
    Sociedade medieval portuguesa e a
    Expansão quatrocentista.
  • 4
    Julia Kristeva é linguista e filósofa de nacionalidade búlgara. Podemos destacar como uma de suas produções de maior circulação a obra
    História da linguagem (1969).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Out 2012
    • Data do Fascículo
      Set 2012
    Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz Av. Brasil, 4365, 21040-900 , Tel: +55 (21) 3865-2208/2195/2196 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: hscience@fiocruz.br