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Origens e marcas da institucionalização na psicanálise do Rio de Janeiro

Origins and landmarks of the institutionalization of psychoanalysis in Rio de Janeiro

LIVROS E REDES

Origens e marcas da institucionalização na psicanálise do Rio de Janeiro

Origins and landmarks of the institutionalization of psychoanalysis in Rio de Janeiro

Fernando Sobhie Diaz

Médico psiquiatra; doutor pelo Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. f.diaz@uol.com.br

O livro da psicanalista Maria Teresa Saraiva Melloni, Rio de Janeiro (1973-1959): uma psicanálise possível, originalmente uma dissertação de mestrado, contribui com surpreendentes revelações para aqueles que se ocupam da interseção entre psicanálise e história, tradição de pesquisa que se vem consolidando no campo do conhecimento transdisciplinar. Temas como o parentesco entre psicanálise e eugenia, psicanálise e higiene e os efeitos dessas aproximações na transmissão da psicanálise para as gerações seguintes são trazidos à tona por Melloni, comprometida que está com seu lugar de psicanalista. Buscando desvelar os recalques da história da psicanálise, utiliza os recursos da história a favor do seu desejo de saber, algo inerente ao percurso psicanalítico.

A autora nos descreve um mito originário da psicanálise no Rio de Janeiro: nossos primeiros psicanalistas didatas foram um alemão, com supostas ligações com o governo nazista, e um judeu polonês. Reencontramos a marca desses 'inimigos' até hoje? Outra boa provocação trazida no livro refere-se à concessão de bolsas pelo serviço público para formação de psicanalistas no exterior; esse foi um investimento a fundo perdido, pois poucos bolsistas retornaram ao serviço público o investimento feito. Esses indícios confirmam a prática patrimonialista do Estado brasileiro e o direcionamento da psicanálise carioca para o lócus privado.

Melloni constatou que o início e a difusão da psicanálise no Rio de Janeiro foram largamente omitidos dos registros oficiais das sociedades de psicanálise. Num esforço bem-sucedido de reconstruir a história da psicanálise no Rio de Janeiro, a autora procurou saber quais foram os seus trajetos e formas de inserção na cultura, quem foram os seus aliados, as suas resistências e quais as concessões lhe foram feitas.

Historicizar é trazer à tona a ação das diferentes forças incluídas em um processo. Tanto o psicanalista que lida com a realidade psíquica, quanto o historiador trabalhando com os fatos da realidade histórica estão comprometidos com a historicidade, ou seja, com o dizer da memória. Psicanálise e história têm em comum o potencial para focar nos esquecimentos e preencher as lacunas da memória, vislumbrando uma aliança frutífera entre os dois campos de conhecimento. Essa interlocução entre saberes é mais um ponto positivo do trabalho de Melloni.

Freud, em 1914, fez a sua História do movimento psicanalítico, rememorando fatos considerados por ele cruciais na história da jovem ciência. O pai da psicanálise não se intimida com o caráter subjetivo dessa contribuição, pois, segundo ele, "a psicanálise é uma criação minha" (Freud, 1980, p.16). Referindo-se a um filho protegido e valioso, descreve o esforço psíquico empreendido para sistematizar suas descobertas, o que implicou sacrifício material e dificuldade de popularizar-se como médico. A teoria do recalque, a sexualidade infantil, a transferência, a fantasia e a interpretação dos sonhos são construções de que o criador da psicanálise não abre mão. Nesse primeiro momento, em que Freud sozinho representava a psicanálise, logo percebeu os ataques e os embates que teria pela frente, mas isso não o acomodou intelectualmente.

Em um segundo momento, a partir de 1902, um grupo de jovens médicos se aproxima de Freud com a intenção de aprender, praticar e difundir o conhecimento em psicanálise. Em 1907, a situação muda subitamente, e o interesse e a simpatia pela psicanálise aumentam. Freud faz uma avaliação da inserção da psicanálise em diversos países, com maior ou menor facilidade. Cita Zurique na Suíça, Estados Unidos, França, Itália, Holanda, Suécia e Alemanha. A criação da International Psychoanalytical Association (IPA), em 1907, foi a maneira planejada por Freud para a difusão internacional da psicanálise. É nesse contexto que o livro de Melloni se insere: a difusão da psicanálise e a sua entrada e institucionalização no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro. Quais foram, então, as implicações locais e temporais específicas?

Pode-se dividir essa entrada e difusão em duas fases: na primeira, não houve nenhuma preocupação com a profissionalização autônoma de sua prática, era mais um recurso auxiliar da psiquiatria para compreender tanto os desvios do comportamento social como os conteúdos delirantes dos psicopatas. Em uma segunda fase, houve o anseio de profissionalizar a psicanálise como uma atividade terapêutica autônoma, com uma progressiva institucionalização das sociedades no modelo proposto pela IPA.

Como se apresentava a psicanálise antes da institucionalização? Para compreender a primeira fase, retorna-se ao psiquiatra Juliano Moreira e sua influência, com a continuidade do seu pensamento e prática em muitos sucessores das próximas gerações. Juliano Moreira repudiava a ideia da miscigenação como causa de uma hereditariedade nefasta, pondo em primeiro plano a dificuldade de acesso à saúde e educação da população como os principais motivos de adoecimento mental. Sendo assim, as condições de vida da população eram decisivas para a saúde mental do brasileiro, permitindo até mesmo considerar padrões de anormalidade exclusivos para determinados segmentos culturais. A psiquiatria passa a ter um papel crucial na construção do modelo de nação e do povo brasileiro.

A Liga Brasileira de Higiene Mental, fundada em 1923, com Juliano Moreira como seu presidente de honra, apoiou-se na eugenia para invadir o domínio social por meio de práticas educativas, sem esquecer o compromisso com a investigação biológica da origem da doença. Com a ajuda da eugenia, a psiquiatria brasileira buscou as condições para atuar entre o campo biológico e o social, servindo de articulador entre o meio ambiente e o hereditário.

E a psicanálise, nesse contexto? Em 1928, Durval Marcondes, pioneiro e incansável defensor da psicanálise, parte de São Paulo para o Rio de Janeiro, para fundar a seção regional da Sociedade Brasileira de Psicanálise, no Hospital Nacional de Alienados, com Juliano Moreira como presidente e Porto-Carrero como secretário. Todos os discípulos de Juliano Moreira fizeram parte dessa sociedade, que teve vida curta, cerca de três anos, esgotando-se pela inatividade e pela falta de iniciativa de seus membros de seguirem com Durval Marcondes, que buscava estruturar a formação psicanalítica com o modelo proposto pela IPA. Desse momento inaugural, é importante demarcar a primeira estada da psicanálise no Hospital Nacional de Alienados e sua proximidade com o ideário da psiquiatria alemã, da higiene e da eugenia.

O que estava sendo privilegiado na leitura da psicanálise, bem como em seus modos de uso? Como os leitores psiquiatras se apropriaram de seus conceitos? Como veremos a seguir, ora foi tomada como prática terapêutica, ora exclusivamente como área de conhecimento, ora como conjunto de princípios morais ou posição filosófica.

Porto-Carrero, considerado um precursor da psicanálise, convivia com esse novo conhecimento e o ideário da eugenia e da higiene da Liga Brasileira de Saúde Mental. Verdrängung e sublimação, entre outros conceitos psicanalíticos, passam a ter um novo uso. A tradução de Verdrängung por repressão possibilitou sua utilização como um recurso terapêutico sob uma perspectiva coercitiva. Justificava-se a repressão partindo do mundo exterior e dirigindo-se aos impulsos naturais, em uma leitura de adaptação do indivíduo para a felicidade da coletividade. A sublimação, por sua vez, funcionava como distração para se desviar do complexo torturante. A aliança da eugenia com a psicanálise era direcionada ao projeto de governo que buscava produzir um cidadão saudável para um Brasil moderno. Henrique Roxo, catedrático da cadeira de psiquiatria da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, manifesta-se absolutamente contrário em relação a alguns pontos fundamentais da teoria psicanalítica, como a etiologia sexual da neurose, a sexualidade infantil e o complexo de Édipo. Antônio Austregésilo, catedrático de neurologia, colocava as ideias de Freud ao lado da 'sugestão', da 'persuasão', da 'crença religiosa', do 'hipnotismo' e da 'autos-sugestão'.

Concluindo: como eixo estruturante da psiquiatria carioca dessa época estava a influência recebida de Juliano Moreira, que carregava a tradição organicista da psiquiatria alemã de Emil Kraepelin e também defendia o controle moral influenciado pelo ideário da higiene e eugenia. Complementando esse painel, vemos a condenação da sexualidade livre, que contribuiria para o surgimento de degenerados.

Nessa primeira fase, não houve interesse em fazer um campo próprio para a psicanálise, ficando esta à mercê das influências da psiquiatria e do projeto de nação. A essência da contribuição freudiana, no sentido de inaugurar um novo campo que operasse com a dimensão inconsciente, foi provisoriamente abandonada.

Retornando ao artigo de Freud da história do movimento psicanalítico, depois dos já citados períodos de "isolamento esplêndido" e do período de difusão internacional, vemos que ele começa a pensar no estabelecimento do seu sucessor. Nesse momento, começam as cisões e divisões no interior da psicanálise, e Freud sempre argumenta contra desvios da teoria e da técnica. Carl Gustav Jung e Alfred Adler, ao não conseguir sustentar a prática da psicanálise segundo perspectiva de seu criador, são considerados desafetos e, consequentemente, afastados do movimento psicanalítico liderado por Freud. No Brasil dessa época, qual seria a reação de Freud diante das distorções e acomodações na teoria psicanalítica, tais como a leitura psicanalítica 'contaminada' por ideais higiênicos e eugênicos e a aproximação da psiquiatria biológica? Vale lembrar que Freud, na constituição de seu saber, fez uma ruptura epistemológica com a psiquiatria de sua época.

Chegando à segunda fase, a formação psicanalítica se institucionaliza no Rio de Janeiro em suas sociedades, seguindo o modelo da IPA, calcado em seus três pilares: análise didática, instrumentação teórica e supervisão de casos.

Quanto à formação de psicanalistas, São Paulo já tinha sua analista didata, Adelheid Koch. No Rio de Janeiro, houve inicialmente um êxodo de postulantes a psicanalista para a Argentina e, posteriormente, a chegada de Mark Burke, seguido logo depois por Werner Kemper, ambos em 1948, como analistas didatas. Burke era judeu e fugiu da Polônia bombardeada; e Kemper, alemão e dava sinais de concordância e participação nas teses nacional-socialistas, provável participante do governo nazista. Os problemas de convivência dos dois logo apareceram. Essa foi a origem das tensões na legitimação da psicanálise, repetindo um sombrio momento histórico que envolveu a perseguição aos judeus, incluindo impactos conhecidos na vida de Freud. Nessa crise, ora alegava-se a insanidade de Burke, ora a arianização de Kemper. Burke desiste e volta para a Inglaterra, mas muitos dos psicanalistas e postulantes se voltam contra Kemper e sua esposa, com denúncias sobre exercício ilegal da medicina, não encerrando os conflitos do início da institucionalização da psicanálise no Rio de Janeiro. Esse fato exigiu o posicionamento oficial do então ministro da Saúde, Maurício de Medeiros, para regulamentar a psicanálise leiga sob determinadas condições.

Nesse ponto, a pesquisa documental do trabalho de Melloni traz as revelações mais surpreendentes e impactantes: a autora comprova que a formação dos psicanalistas e a consequente institucionalização da psicanálise no Rio de Janeiro, desde seu início, estiveram sob as graças de grande investimento de recursos do Estado, via Ministério da Educação e Saúde. Esse incentivo acontece com a concessão de bolsas aos futuros psicanalistas, sendo o Sistema Nacional de Doenças Mentais (SNDM) o financiador em larga escala dos primeiros psicanalistas.

O SNDM foi criado durante a ditadura getulista e foi montado e organizado por Adauto Botelho, que permaneceu como seu administrador no período de 1941 a 1954. O interesse pela psicanálise foi especial nesse contexto, sem ficar totalmente esclarecido no livro o motivo para tanto investimento. Dos diversos postulantes a psicanalista que obtiveram a bolsa para formação, nem todos se preocuparam em reverter esse investimento na assistência pública, outros sequer atuaram no movimento psicanalítico.

O resultado desse incentivo do governo federal na psicanálise, visando à eficácia da psiquiatria, comprometeu mais uma vez o movimento psicanalítico com a política de Estado. Por outro lado, também confirmou o padrão de funcionamento patrimonialista do Estado brasileiro, cujos interesses privados se misturam aos públicos, quase sempre com o predomínio dos privados. Jurandyr Manfredini, substituto temporário de Adauto Botelho na direção do SNDM, em 1954, reconhece publicamente a pouca utilidade da formação de psicanalistas à custa do dinheiro público para o sistema nacional de saúde.

Nesse ponto, toca-se em uma fragilidade do discurso da psicanálise, que desde sua origem freudiana não conseguiu desvencilhar-se da lógica econômica liberal. Construiu-se um argumento de que uma análise só seria efetiva quando fosse paga, quando se realizasse sob o esforço do "pagamento pela cura", muitas vezes bastante sacrificante ao analisando. Esses primeiros psicanalistas, contudo, fizeram seu percurso analítico auxiliados pelo Estado mediante uma bolsa. A autora abre uma brecha para questionar a autenticidade do argumento de que a psicanálise não pode ser efetiva como política pública e consequente direito à saúde, pois não ocorreu, segundo nos conta, com investimento financeiro individual em seus primórdios.

Rever os recortes significativos trazidos por Melloni - a proximidade entre psicanálise e psiquiatria, o parentesco daquela com a higiene e a eugenia, os ecos dessa proximidade nas outras gerações, a reprodução histórica do conflito entre judeus e simpatizantes do nazismo e o 'uso' de dinheiro público na formação de psicanalistas para atender a elite - nos faz mais uma vez retornar a Freud. O criador da psicanálise, fiel aos seus princípios, afirma, no final da sua história do movimento psicanalítico, que as cisões e distorções na psicanálise são passíveis de ocorrer, mas que os homens são fortes quando sustentam eticamente suas ideias, porém, nem todos conseguem viver e conviver no submundo do inconsciente e da psicanálise, procurando subterfúgios na cultura e na civilização. Melloni, por sua vez, demonstrou que a psicanálise do Rio de Janeiro afastou-se dos seus princípios e compromissos no processo de institucionalização. Essa é a contribuição do livro. Com o auxílio da história, vemos como o efetivo desvelamento da origem da psicanálise no Rio de Janeiro pode trazer desdobramentos e questionamentos: como evitar o retorno e a repetição dos mitos originários da psicanálise carioca?

  • FREUD, Sigmund. A história do movimento psicanalítico (1914). (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v.14). 1980.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Out 2012
  • Data do Fascículo
    Set 2012
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