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A nação pela pedra: coleções de paleontologia no Brasil, 1836-1844

Resumos

A formação e o estudo de coleções de história natural e de paleontologia participaram da instauração da ordem política do Império do Brasil, delineando também uma ordem científica. A simbiose entre ciência e nação encontrou em Peter W. Lund, iniciador dos estudos de paleontologia em nosso país, um agente ativo e constante. As coleções e escritos desse naturalista deram amparo à visualização do passado e à escrita da história em museus, instituições científicas e culturais brasileiras e europeias. As disputas pelo ordenamento político sob as Regências e a Maioridade foram acompanhadas de perto pelo estudo e a explicação das formas de vida e do globo no passado.

história ambiental; Império do Brasil; Peter Wilhelm Lund (1801-1880); museu; paleontologia


The formation and study of natural history and paleontology collections was part of the installation of political order under the Empire of Brazil, as well as the establishment of a scientific program. The symbiosis between science and the nation was actively promoted by Peter W. Lund, pioneer of paleontology studies in the country. The collections and writings produced by the naturalist lent support to the visualization of the past and the writing of history in Brazilian and European scientific and cultural institutions and museums. The disputes over the political order under the Regencies and the Majority were closely accompanied by the study and explanation of the forms of life and the planet found in the past.

environmental history; Brazilian Empire; Peter Wilhelm Lund (1801-1880); museums; paleontology


ANÁLISE

Professor do Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis/ Universidade Estadual Paulista. Av. Dom Antônio, 2100. 19806-900 - Assis - SP - Brasil. martinezph@uol.com.br

RESUMO

A formação e o estudo de coleções de história natural e de paleontologia participaram da instauração da ordem política do Império do Brasil, delineando também uma ordem científica. A simbiose entre ciência e nação encontrou em Peter W. Lund, iniciador dos estudos de paleontologia em nosso país, um agente ativo e constante. As coleções e escritos desse naturalista deram amparo à visualização do passado e à escrita da história em museus, instituições científicas e culturais brasileiras e europeias. As disputas pelo ordenamento político sob as Regências e a Maioridade foram acompanhadas de perto pelo estudo e a explicação das formas de vida e do globo no passado.

Palavras-chave: história ambiental; Império do Brasil; Peter Wilhelm Lund (1801-1880); museu; paleontologia.

O trabalho do naturalista Peter Wilhelm Lund (1801-1880), notadamente em suas investigações paleontológicas, desenvolvidas entre 1836 e 1844, permite estudar o duplo processo de musealização da natureza e de propagação de um ideário nacional no Império do Brasil. Sob a metáfora da petrificação da nação, podemos conhecer sentidos da visualização do passado nas pesquisas e nas coleções de paleontologia na primeira metade do século XIX (Meneses, 2003).

No mesmo período, os museus, de uma forma geral, adquirem relevância e assumem características peculiares (Guimarães, 2006, 2007). O recurso ao visual também foi buscado em outras instituições. A Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, por exemplo, promovia o debate de questões, como produção agrícola e mão de obra, não apenas pela publicação de relatórios, revistas, manuais, trabalhos técnicos, mas também por meio de exposições, demonstrações públicas de equipamentos, métodos de cultivo e de bene-ficiamento de produtos, com a finalidade de disseminar um "espírito modernizador na sociedade" (Carone, 1978, p.18, 25). O historiador Jules Michelet, por exemplo, fez da 'ressurreição' do passado a pedra de toque de sua obra (Barthes, 1991).

O exame dos objetos naturais pode auxiliar na compreensão das relações entre ser humano, sociedade e natureza. Para além das técnicas, do comércio, do hobby e da produção econômica, há também um vetor político e ideológico no ordenamento daquelas relações. Os procedimentos e a explicação científica no século XIX, sobretudo em sua primeira metade, estiveram dominados pelo "cunho naturalístico" (Leinz, 1955, p.247). Nesse sentido, contribuiram para alimentar e disseminar a "ideologia do fatal desenvolvimento do progresso científico no domínio e no controle das forças naturais" (Gramsci, 1968, p.132).1 1 Sobre o Brasil, ver Figueirôa, 1997. Gilberto Freyre (2000) recolheu inúmeros indícios da nova mística surgida em torno da técnica e da máquina nas primeiras décadas da vida nacional sob o Império.

Os rumos e as estratégias para a organização do Estado após a emancipação política, em 1822, catalisaram o empenho social pela instauração de uma 'ordem científica' em sintonia com a criação de uma tradição e de uma identidade daquela sociedade e daqueles grupos econômicos que conduziram a instauração do Império do Brasil. Os contornos de um novo ordenamento político, revendo as disposições jurídicas, as regras e as práticas institucionais, foram cristalizados sob o movimento, consagrado na historiografia, denominado Regresso. Entre as ações e projetos dos regressistas promovidos em nome da centralização política e administrativa estipulada na Constituição de 1824, figuraram a interpretação do Ato Adicional, a reforma do Código de Processo Criminal, a redução da autonomia das províncias, maior controle do Poder Judiciário e do Legislativo pelo Executivo, no exercício do Poder Moderador do imperador, e a reorganização do Exército. A manutenção do escravismo e da unidade territorial do Império foi exibida, já no século XIX, como sucesso decorrente dessa ação política.

O recrutamento de artistas, cientistas e intelectuais não dissimulou suas finalidades práticas, como sugere a criação da Sociedade Auxiliadora de Indústria Nacional, em 1827; do Imperial Colégio de Pedro II, em 1837; do Arquivo Público do Império e do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838 (Carone, 1978; Guimarães, 1988). O parlamento, o ministério, os tribunais, o Conselho de Estado, a Corte, a imprensa, as academias, as faculdades, as Forças Armadas e a Igreja, entre outras instituições imperiais, foram abastecidos e recheados com indivíduos de perfis culturais variados. Até mesmo o imperador Pedro II procurou encarnar a simbiose entre ciência e nação.

A obra e a experiência de Peter Wilhelm Lund, naturalista dinamarquês, radicado e falecido em Minas Gerais, iniciador do estudo da paleontologia brasileira, revela alguns aspectos que permitem o exame das relações entre sociedade e natureza na estruturação de uma identidade nacional brasileira, no bojo do projeto político do Regresso. Um projeto centralizador que, nas décadas de 1830 e 1860, entre "o fim da Regência e o renascer liberal dos anos 1860, imprimiu o tom e definiu o conteúdo do Estado imperial", combinando ordem social e difusão do ideal de civilização que Ilmar Rohloff de Mattos (2009, p.32; 1987) denominou "o tempo saquarema".

A leitura das Memórias científicas, cartas e biografia de Lund (1935; 1950) possibilitou estudar o papel desempenhado pelos objetos naturais em um processo político mais amplo e dilatado no tempo e no espaço. Elas constituem um fecundo posto de observação para a questão da visualização do passado e da escrita da história nos museus, uma vez que a função ideológica contida na valorização e na musealização da história natural permite conhecer valores, posições e concepções sociais do mundo (Vasconcellos, 2007, p.18).

A permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro, a partir de 1808, colocou o Brasil ao alcance dos olhos das demais sociedades ocidentais. Entre a segunda metade do século XVIII e meados do XIX, a observação e a coleta de objetos, dados, amostras e informações lançaram inúmeros cientistas em viagens pelos distintos continentes, ampliando os conhecimentos e estimulando o surgimento e a organização de instituições, publicações, exposições e de comunidades nacionais e internacionais de diferentes tipos, animadas pelo espírito de descoberta e de classificação dos exploradores do globo (Fernández-Armesto, 2009, p.357-430; Raminelli, 2008). Segundo Eric J. Hobsbawm (1982, p.23), nessa época, o mundo ainda era conhecido aos pedaços, mesmo para alguém experiente como o naturalista Alexander von Humboldt.

A Europa vivenciou um movimento semelhante de descoberta do interior do continente, de áreas até então consideradas hostis, selvagens e perigosas, cercadas de mistério, como as montanhas elevadas. O mundo urbano europeu ignorou-as até o século XVIII e, no início do século XIX, as áreas montanhosas ainda eram pouco conhecidas. Somente em 1787 houve a escalada do Mont Blanc, na região fronteiriça entre a França e a Itália. Humboldt teria realizado algo inusitado aos espíritos da época, ao subir o monte Chimborazo, nos Andes (Pratt, 1999, p.222). Já na década de 1830, segundo Angyone Costa (2006, p.266), reinava "uma viva curiosidade científica impelindo jovens cientistas para a observação e o estudo das cavernas da Europa, especialmente as da França". Essas excursões investigativas resultariam em descobertas, como a do 'homem de Neanderthal', na atual Alemanha, em 1856, abrindo caminho para o questionamento e a contestação de que o Velho Mundo fora habitado, no passado, por uma população histórica e fisicamente homogênea. Os grandes animais e outros povos teriam ocupado os espaços europeus anteriormente. Foi a revelação de um mundo novo, que parecia surgir das entranhas do velho continente.

Lund e o Império do Brasil

A presença de naturalistas do norte da Europa no Brasil tomou impulso depois de 1810, com a vinda de Eschwege e Varnhagen a serviço da Coroa portuguesa, na expectativa da reforma e da reanimação da exploração mineral. Em 1841, o dinamarquês Peter Claussen, acompanhou Joseph Libon, naturalista belga, em sua primeira viagem ao Brasil (Stols, 2006, p.77). Claussen tornara-se proprietário de uma fazenda em Curvelo, Minas Gerais, e apresentou a região ao compatriota, Peter W. Lund.

Lund, que antes estudara medicina, tornou-se um dedicado naturalista. Em 1825, viajou ao Brasil buscando melhoras na saúde e realizou estudos botânicos e zoológicos. Retornou à Europa e manteve encontros com Humboldt e Cuvier. No Rio de Janeiro, em 1833, desembarcou com intenção de excursionar pelas províncias do interior e acabou por fixar residência em Lagoa Santa, Minas Gerais. Tornou-se sócio honorário do IHGB, no início das atividades da instituição, mantendo com ela correspondência, intercâmbio de publicações, desenhos e material que coletou em pesquisas. Lund não dispunha de coleções paleontológicas e, como principal recurso analítico dos objetos que encontrava - que lhe permitia estudar minuciosamente a fauna local, extinta e viva - , recorreu a obras sobre anatomia comparada de outros naturalistas. As Memórias científicas testemunham seu contínuo refazer das interpretações, pela incorporação de novos achados, estudos, peças, viagens, comparações, leituras e observações, em sua busca incessante de conhecimento.2 2 As condições intelectuais em que Lund realizou o trabalho científico em Lagoa Santa são corroboradas pelo naturalista dinamarquês Herluf Winge (1857-1923). Ver Couto, 1950, p.25. A correspondência o manteve em dia com instituições, autores e pesquisadores, acompa-nhando o debate sobre teorias, achados, notícias atualizadas, opiniões e informações (Lund, 1842, 1844, 1893). Segundo Marchesotti (2005), dessa forma assegurou presença no campo científico e intelectual do seu tempo. Pedro Ernesto Luna Filho (2007, p.26) aponta seis menções de Charles Darwin aos trabalhos de seu colega dinamarquês. Lund encontrava-se fisicamente "isolado, mas no interior da comunidade científica do seu tempo" (Santos, 1923; Marchesotti, 2005, p.131, 134, 138). Isso significa que, quando interrompeu suas pesquisas nas cavernas de Minas Gerais, não abandonou completamente as atividades científicas, que contavam ainda com as suas contribuições como espeleólogo, geólogo e botânico. Ele receberia a colaboração do naturalista Eugen Warming, que fez pesquisas em Lagoa Santa, entre 1863 e 1886 (Klein, 2002).

A publicação de trabalhos científicos no Brasil foi atitude rara entre os naturalistas estrangeiros. As coleções que formavam e os escritos que redigiam eram destinados ao circuito cultural e científico europeu (Marchesotti, 2005, p.148). Lund enviou suas coleções para a Dinamarca. Essa atitude pode ser entendida como um gesto de retribuição pelo apoio e financiamento que recebera da Coroa dinamarquesa. É compreensível também pela necessidade de organização, preservação e disponibilidade das coleções para estudo, o que, naquele momento, não estava ao alcance de ser realizado no Brasil. Há que lembrar o receio de Lund quanto ao destino das coleções em uma conjuntura de instabilidade polí-tica como foram as décadas de 1830 e 1840. Revoltas e insurreições eclodiram em várias províncias, Minas Gerais entre elas, em 1842, criando uma cartografia de rebeliões e colo-cando em dúvida a continuidade da unidade territorial do Império do Brasil. Havia, portanto, um limite cultural, devido à ausência de instituições e de naturalistas, e um limite social, decorrente das tensões e dos conflitos em torno do futuro da monarquia brasileira. É o que Lund parece sugerir em carta dirigida ao rei da Dinamarca, no início de 1845:

não é conveniente conservar aqui por mais tempo esta minha coleção, mas só em consideração do pouco que se pode contar com a existência e pouca segurança nestas regiões, principalmente pela impossibilidade de poder aqui efetuar a organização final daqueles objetos. ... é muito conveniente que esta coleção, à vista da sua importância, valor e interesse científico, chegue o mais depressa e mais completa a ser aproveitada pela ciência, imploro a graça de permitir-me de entregar a coleção à disposição de Vossa Majestade, e determinar o que julgar mais conveniente para conseguir este desideratum (Lund, 1845, citado em Santos, 1923, p.54).

Na segunda metade do século XIX, os estudos de paleontologia no Brasil conheceram alguma expansão. Em 1855, Frederico Burlamaqui publicou uma monografia sobre mamíferos pleistocênicos, e, antes de 1863, não havia registro de fósseis na bacia amazônica, até que fossem encontrados no vale do Tapajós. A pesquisa paleontológica intensificou-se durante curto período, com as atividades da Comissão Geológica do Império do Brasil, entre abril de 1875 e dezembro de 1877, sob a direção de Charles Frederick Hartt, e teve seu acervo transferido para o Museu Nacional (Mendes, 1981, p.48-51; Freitas, 2002). A paleontologia comparecerá ainda nas três seções do Museu Nacional, Zoologia, Botânica e Geral, quando de sua reorganização, em 1876 (Schwarcz, 1989, p.31).

É provável que Lund sentisse atração pelas possibilidades de trabalho científico existentes no Brasil (Costa, 2006, p.265-266). Jovem, naturalista iniciante, dotado de alguma experiência como viajante e coletor em trabalhos de campo, partilhava a orientação de Humboldt quanto ao necessário contato direto com as regiões e a natureza estudadas (Marchesotti, 2005, p.38, 85). Em 1798, a viagem de Napoleão ao Egito promovera um reencontro do europeu com a história, com o passado e uma grande civilização desaparecida. Uma viagem ao Brasil poderia promover o encontro da história e da civilização europeia com a natureza. Há um traço recorrente, a ideia de fecundação, de renovação e reinício voltado para o futuro resultante dessas viagens longínquas. No ideário científico de Humboldt, as viagens eram depositárias de duas contribuições: a coleta de novas informações e as possibilidades de estudá-las comparativamente à luz do conhecimento existente até o momento, dilatando assim os domínios das ciências (Romariz, 1996, p.4). Lund seria pioneiro no estudo das cavernas e de fósseis no Brasil, particularmente sobre a mastofauna pleistocênica de Minas Gerais (Mendes, 1981, p.46).

A compreensão dos trabalhos de Peter W. Lund implica conhecer o poder simbólico dos objetos naturais, enquanto portadores de significados capazes de "evocar e refazer épocas perdidas" (Santos, 2006, p.112). Isso equivale a estudar a obra e os afazeres de Lund no bojo de um "processo de produção das representações, das ações e dos objetos" (Arantes, 1984, p.164). O ponto de partida, aqui, são indagações que podem abrir caminho ao entendimento desses aspectos. Qual a linguagem utilizada para tornar visível o invisível? Como fazer emergir e dar visualidade ao extinto, ao passado, ao soterrado, ao residual, ao distinto, ao fossilizado, ao diferente, enfim, ao específico do passado natural do Brasil? Foi uma linguagem ordenadora e classificatória, a das ciências do século XIX. A terminologia técnica e não a imaginação ou a literatura, a pintura, o relato de viagem e a livre descrição. Uma "atitude de fria impassibilidade científica e fotográfica", expressa em coleções, textos, cartas e desenhos científicos (Gramsci, 1968, p.98).

Paleontologia e política

Lund realizou observações diretas, escavações, coletas e pesquisas em grutas, redigiu ensaios de classificação e descrição, além de fazer estampas do material reunido, amparado pelo confronto de vestígios e estudos sobre geologia e zoologia, precisamente em um momento de afirmação da mentalidade científica, em geral, e das ciências naturais, em particular. O naturalista recorreu exaustivamente às observações, aproximações, analogias e comparações, e logrou associar com sucesso o visível e o invisível. E como expõe as suas coleções? Qual representação e qual identidade social são legitimadas pelo seu processo investigativo? Trata-se de procurar alargar a abordagem na qual a experiência de Lund reduz-se apenas a capítulo na história das ciências no Brasil.

O enlace da paleontologia com a política deu-se pela atenção às rupturas e continuidades, na história e na natureza. As distintas eras geológicas que abrigaram homens e animais, assemelhados aos seus contemporâneos, permitiriam o estabelecimento de um canal de comunicação entre o passado e o futuro. Assim como Herder (1995), no século XVIII, Lund chegou ao homem pelo interesse na natureza. Sociedade e natureza passarão a caminhar juntas, enfeixadas em um mesmo processo de desenvolvimento, o de um mundo em mutação (Rossi, 1992, p.105, 149).

As condições mutáveis dos seres vivos e do mundo físico foram evidenciadas no século XIX. As novidades, as escalas e a expansão nas realizações pelo conhecimento dos astros, da Terra, dos seres vivos, da mente humana, basilares no crescimento industrial, impul-sionaram também a expansão da educação, da cultura e das instituições científicas, como revistas, livros, museus, academias, universidades, bibliotecas, planetários, jardins botânicos, a formação de coleções e sistemáticos registros de dados. Diferentes estudiosos, de distintas áreas do conhecimento, contribuíram na mudança das formas de ver a natureza, cujo estudo converteram em uma ciência de prestígio e popular (Huxley, 2007, p.212, 217). A cunhagem e disseminação do termo cientista, no início da década de 1840, é um indica-dor da proeminência e distinção que alcançaram os homens dedicados às ciências e seu papel na vida das nações (Trabulse, 2006, p.11). A atividade dos naturalistas também estimulava fortemente o individualismo, pois reunia ao espírito científico a liberdade pessoal e a autonomia financeira. No século XIX, as ciências fundamentaram uma narrativa do progresso movida pelas incessantes descobertas empíricas e especulações teóricas. A concep-ção linear do tempo está na raiz dessa narrativa, conferindo unidade e direção aos destinos humanos (Gould, 1991, p.17, 23).

O potencial da natureza como passaporte para a prosperidade mercantil, a civilização e o futuro parecia confirmar-se, dia após dia, com as inovações técnicas que dinamizavam a produtividade na agricultura e na indústria, as comunicações e o beneficiamento de produtos tropicais. As perspectivas de controle e de projeção dos destinos dos povos fez com que o século XIX vivesse inúmeras e grandes disputas políticas e conflitos sociais, responsáveis por uma profícua atividade do pensamento, expelida em obras de imaginação sobre as relações humanas, a sociedade, a economia e o Estado (Wilson, 1986, p.22).

No Brasil, a revista Nitheroy, lançada em 1836, veicularia essa concepção utilitária da cultura, das artes e das ciências em nome do progresso e da ruptura com o passado colonial. A França oferecia as principais referências intelectuais, a partir do Instituto Histórico de Paris, criado em 1834; na vida social, com a moda que tanta irritação causava ao padre Lopes Gama (1996), nas páginas do seu O carapuceiro (1996), e nas ciências naturais, com os estudos de Georges Cuvier (Faria, 1970, p.212, 217).

A abdicação do imperador Pedro I, em abril de 1831, acendeu possibilidades para um novo tempo. O Ato Adicional, em 1834, foi expressão desse momento que se abriu na história nacional, trazendo maior autonomia administrativa e financeira às províncias, expondo às autoridades governamentais o mosaico regional e a heterogeneidade social existente nas partes constitutivas do Império do Brasil. Aos poucos se tornava evidente a necessidade de convergirem a gestão dos territórios e a construção da nacionalidade. A afirmação do Estado nacional e do poder monárquico irá recorrer à construção de uma memória histórica e de uma identidade nacional capazes de assegurar a legitimidade dinástica, a coesão social e a adesão à ordem instituída (Basile, 2009). Em 1835, serão cons-tituídas duas grandes correntes de opinião política, a do Regresso e a do Progresso, bas-tante atuantes na Assembleia Geral do Império durante a legislatura de 1834-1837, embriões dos partidos Liberal e Conservador, que dominaram a vida parlamentar no século XIX.

As pesquisas de Peter W. Lund conferiram ao Brasil um lugar na história do planeta, contribuindo para uma espécie de independência biológica e geológica, de autonomia natural do novo Império no continente americano. Essa presença brasileira no mundo legitimava o desejo e a busca de ocupar posição entre as nações civilizadas, mediante a aproximação que realizou entre ciência e nação, e não mais entre as colônias e as inóspitas regiões do globo, rol de espaços que deixara de integrar em passado recente (Ricupero, 2004; Gramsci, 1968). O índice de civilização ganhava expressão justamente na prática e nas atividades científicas que ordenavam o mundo natural e inseriam o Brasil no conjunto daquelas nações, guiado agora pelas mãos da ciência (Heynemann, 1995). O trabalho, a composição de coleções e a fixação de residência de Lund no Brasil perpetuavam o enlace com a Europa, evidenciando a razoável adaptação do europeu aos trópicos.

A descoberta, organização e remessa das coleções fósseis para os museus da Dinamarca colocavam em evidência as peculiaridades da nação brasileira, antes do início da era de especializações nas ciências naturais. A crise de uma ciência com aspiração à universalidade encontra na publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, e na morte de Alexander von Humboldt, ambas em 1859, um marco na transição entre dois momentos na trajetória das ciências naturais no século XIX (Romariz, 1996, p.25).

A singularidade brasileira, sua autonomia política, era corroborada também na sua história natural, precisamente no momento de integração do Brasil ao mercado mundial regido pelo livre-cambismo, sem destaque para o exótico, mas para a descrição rotineira do trabalho do cientista meticuloso, a regularidade e a ordem, características do mundo burguês. Os fósseis coletados por Peter W. Lund convertiam-se em símbolos na construção da dese-jada unidade nacional da comunidade dos brasileiros (Ricupero, 2004, p.164-165). A paleontologia, com os resquícios de um passado, proporcionava elementos de identidade e de ancestralidade para a nação que estava sendo reorganizada e hierarquizada, sob meticulosa classificação científica. O Império do Brasil podia, mais uma vez, apresentar-se ao mundo como uma civilização, com origens naturais na América e culturais na Europa, em aberta apropriação americana dos símbolos europeus e que encontrava a inspiração mais cristalina no regime monárquico (Ricupero, 2004, p.261).

Os estudos geológicos conheceram o florescimento e a profissionalização nas primeiras décadas do século XIX, com valorização dos dados de campo, da pesquisa estratigráfica e empírica. No século XVIII, desenvolveram-se a pesquisa e a reflexão sobre a sedimentação e a estratigrafia desses mesmos sedimentos, na busca de uma cronologia pela presença de diferentes vestígios - fósseis - nesses estratos, evidenciando o "caráter irredutivelmente histórico dos fenômenos geológicos" (Gould, 1991, p.156; Rossi, 1992, p.23).

Esse exame minucioso e sistemático deu início a uma ciência dos fósseis, a paleontologia, a partir do "colecionismo de petrificações" variadas (Gould, 1991, p.73, 79; Barrau, 1984, p.89). O material coletado sugeria a interrogação da relação com os seres vivos, e, por meio deles, perdia sentido a contraposição entre história e natureza. Esta revelava possuir sua própria história, e a medida de seu ordenamento no tempo podia ser vislumbrada nos fósseis (Rossi, 1992, p.23; Gould, 1991, p.156). Ao longo do século XIX, esses objetos naturais seriam procurados e valorizados no mercado museológico europeu, compondo uma grande base de dados empíricos subsidiários ao conhecimento da anatomia comparada e de teorias biológicas (Marchesotti, 2005, p.10; Trabulse, 2006, p.45).

A paleontologia era uma disciplina nova e nascera "como ciência", irmanada à geologia, na primeira metade do século XIX (Mendes, 1981, p.45; Gorceix, 1950). O estudo dos fósseis impôs a interrogação sobre a história do planeta, o surgimento e o destino da vida, as transformações da natureza e do universo, sobre a origem do próprio ser humano. A história natural, ao contemplar esse estudo pela classificação e pela nomenclatura morfológica, baseada em Lineu, abriu caminho para a comparação entre as formas dos organismos vivos e mortos (Foucault, 2007). Georges Cuvier (1769-1832), figura destacada nos estudos de biologia no século XIX, tornou-se referência nessa linha de investigações e estudos. A paleontologia tem na anatomia comparada um dos principais instrumentos de estudo dos fósseis, operando como uma biologia do passado. O exame da morfologia animal permite que as estruturas sejam estudadas em organismos vivos, preservados e fósseis. Associando o fim de eras geológicas e a continuidade da vida, as criações extintas e as criaturas vivas, Cuvier seria o "primeiro a reconstruir a fauna de um mundo perdido" pela anatomia comparada e a paleontologia dos vertebrados (Taquet, 2007, p.202). Desde então, o material existente em museus tem sido utilizado para a descrição e o estudo de espécies. Ao longo do século XX, as atividades de pesquisa nos estudos zoológicos valorizariam de forma crescente os trabalhos de campo dos naturalistas, a exemplo do que haviam realizado Humboldt, Charles Lyell, o próprio Lund e Charles Darwin, já na primeira metade do século XIX.

Em suas Memórias científicas, Lund (1935, p.73) anotou que, pelo exame do material que coletara, a "última criação animal extinta do novo mundo representa o verdadeiro protótipo da criação presente". A observação estabelecia uma ponte entre passado e presente, apesar da separação e da diferença entre eles: "existe ainda uma semelhança notável, pois mais da metade dos gêneros é comum às duas faunas [fóssil e viva]" (p. 85). Uma ruptura mediada, relativa, que não excluía a extinção, tampouco a continuidade na história natural do Brasil.

Os fósseis são ilustrativos de um discurso sobre o desenvolvimento humano e social, e sua singularidade permite a remissão, o confronto com realidades distintas e com universos diferentes do nosso (Santos, 2006, p.110). Os fósseis acenderam tanto a chama da razão, quanto despertaram a imaginação e a fantasia. No século XIX, eles possibilitariam a identificação do Brasil com o mundo, a Europa, e a sua distinção, o Império, no conjunto da América. Na França, no mesmo período, as analogias entre a zoologia e as sociedades alimentaram a criatividade literária de Balzac, na redação de A comédia humana (Taquet, 2007, p.206). Monteiro Lobato (1964), entre nós, no conto que escreveu, em 1906, e deu nome ao livro - Cidades mortas - , faz analogia com esqueletos da fauna desaparecida, observando "casarões que lembram ossaturas de megatérios donde as carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiram" (p.3). A vitalidade e a grandeza são associadas ao passado das cidades do vale do Paraíba paulista, então, desaparecidas. O paradoxo entre ruptura e continuidade na vida social ressurge na imagem do passado distante e extinto, como algo que nos é próprio, porém, morto: "Ali tudo foi, nada é" (p.4).

Edmund Wilson (1986, p.49) observou que o século XIX viveu o entusiasmo pelas ciências, mais do que pela política. Um tempo aberto para o futuro, o dos saquaremas, não dispensou a criação de uma tradição que atendesse aos anseios de um grupo social particular e traduzisse a identidade da nação como um todo. Urgia a petrificação da nacionalidade e do Império, tal como os fósseis solidificaram a vida do passado, com substância e robustez. Eternizar aquela sociedade, brasileira, como semióforo, uma representação simbólica, portadora de sentidos socialmente atribuídos e que adquiriria forma, força e perenidade no tempo, a exemplo dos fósseis, e que despertaria interesse e atenção na Europa. É sintomático que o vocabulário e o pensamento jurídico tenham consagrado a expressão 'cláusulas pétreas', por exemplo, em referência à ordenação de texto constitucional. O novo ordenamento político corria paralelo às novas modalidades no estudo e na explicação do passado da vida e do globo.

Os fósseis coletados e estudados por Lund eram ossos mineralizados pela ação do tempo e pela sedimentação ocorrida no interior de grutas e cavernas em que foram encontrados. Eles diferiam, portanto, daqueles amalgamados em pedra, encontrados pelo naturalista George Gardner no Ceará. Gardner percorreu o Brasil entre 1836 e 1841, mesmo período em que Lund realizou coletas e redigiu algumas de suas Memórias, e anotou:

Informado da existência de um grande depósito de peixes fósseis em um lugar chamado Novo Mundo, três léguas a oeste da Barra do Jardim, resolvi fazer uma excursão até lá, antes de partir da cidade. ... Também aqui, como em outros lugares, quase toda a pedra contém os restos de um peixe em condição mais ou menos perfeita. Os menores deles, que tinham quatro ou cinco polegadas de comprimento, estavam em sua maioria perfeitamente inteiros; porém, os maiores, alguns dos quais mediam até seis pés, eram sempre fragmentados (Gardner, 1975, p.106).

As práticas científicas na musealização da natureza testemunhavam um mundo desa-parecido. A consolidação da nação, uma coletividade viva, petrificada no transcorrer dos anos e no acúmulo de sedimentos que lhe conferiam solidez, apontava para a sociedade que se extinguira, sua condição colonial, o passado português e a subordinação política ao estrangeiro (Barrau, 1984, p.94). A grandeza do Império, de suas instituições e produções naturais, surgia também em ossos e esqueletos de animais extintos, como répteis, tatus, preguiças, roedores, ao lado da exuberância das matas, da extensão dos rios, das terras e da costa marítima, da diversidade da fauna e da flora vivas. A unidade argumentativa entre a lógica do texto e suas ilustrações é indissociável. Segundo Stephen Jay Gould (1991, p.29), "o resumo pictórico assume papel especialmente vital", quando considera a metáfora e a visão em "um mundo de observação".

Ao associar o território brasileiro ao conjunto biofísico do globo, suturava-se a fenda histórica entre as nações. Elas poderiam ser postas, agora, em condições de igualdade e de unidade na história do mundo e da humanidade. Os fósseis parecem guardar aqui uma virtude curativa nos aspectos social e político, e não apenas medicinal, como ocorrera na China (Barrau, 1984, p.92). Ao integrar a diversidade das formas de vida e da história do mundo, a legitimidade do peculiar aos vários ambientes terrestres, como a escravidão dos africanos, poderia figurar como simples traço distintivo local que não comprometia o sentido geral de uma história universal da qual o Império do Brasil acreditava comungar no início do século XIX.

A ocorrência de fósseis em solos brasileiros indicava não apenas a passagem de uma condição a outra, mas sublinhava a naturalidade dessa transmutação, combinando harmoniosamente perpetuação e extinção. Ora, não era esse o desafio dos construtores do Império, a partir de 1835, sob o espírito político que comandava o Regresso? A desaparição de um mundo, indígena e português, e a cristalização de outro, nascente, porém, igualmente escravista, conferia naturalidade às feições da sociedade brasileira e às hierarquias sociais nela existentes, que o momento político tornava premente consolidar, como a singularidade brasileira entre as nações: a escravidão (Mattos, 2009, p.38).

O alcance das coleções paleontológicas como vetores de articulação e superação das desigualdades desdobrara-se no assistencialismo que Lund praticou ao longo dos anos em Lagoa Santa. Atuar como médico, ensinar música e desenho, alfabetizar os habitantes locais, acolher cientistas e curiosos, além de incutir na população a educação, a caridade e a religião, as virtudes propaladas do liberalismo no século XIX, completavam a rotina do trabalho iniciado com as pesquisas paleontológicas (Wilson, 1986, p.34).

O crescimento da economia cafeeira colocava o Brasil no mercado mundial em que transitavam tanto as nações consideradas portadoras dos emblemas da civilização quanto as nações e regiões escravistas, como a ilha de Cuba e o sul dos EUA. A paleontologia, mais do que mera atualidade científica, atendia também a uma necessidade do Império do Brasil. A jovem ciência assegurava legitimidade internacional, pela inversão do contraponto entre natureza e civilização, desfeito pela subjugação da primeira pela segunda. E também legitimidade social, pela conversão da escravidão em um tipo de 'fóssil social', herança e presença do passado, condenada à inescapável extinção no transcurso do tempo. Ambiguidades aparentes facilmente compreensíveis pelas palavras do naturalista dina-marquês, em 7 de abril de 1839: "Assim, os fatos conhecidos não excluem também a possibilidade de ser a fauna atual de todo independente da antiga, só tendo as duas de comum a correspondência das suas formas fundamentais" (Lund, 1935, p.186).

Essa atenção ao tempo presente possui um fundo político que singulariza o IHGB e a dinamarquesa Sociedade de Antiquários do Norte, instituições às quais Lund esteve vinculado, sendo promotor da aproximação entre elas. Ambas buscaram o enaltecimento do "passado de suas nações através da busca de passados enobrecedores" (Marchesotti, 2005, p.138). A história cumpriria um papel abertamente legitimador das opiniões políticas (Guimarães, 1988, p.16; 2001).

As coleções e os estudos que Lund enviou aos museus, revistas e cientistas da Europa contribuíam para a participação do Brasil no desenvolvimento da ciência e da cultuada civilização do século XIX. A incorporação simbólica do passado, da natureza e das populações nativas, pela conversão em peças de museu, correspondia não apenas ao seu engessamento, mas também ao início de uma era, nova e diferente, que se abria no segundo quartel dos anos 1800. O Império do Brasil despontava para um novo padrão de conduta e de comportamento social, integrado pelo mercado, pela ciência e pelo regime monárquico. A história natural mostrava que não havia incompatibilidade ou incoerência entre a eliminação do passado português e a reivindicação de sua herança (Mattos, 2005). Daí a valorização da história dos homens, da vida e da terra pelos construtores, indivíduos e instituições, da ordem imperial.

A presença de Minas Gerais na vida nacional, após a revolta de 1842, foi também um fator para a busca de amortecimento de rivalidades do governo imperial com os liberais que empalmaram o movimento de contestação. O crânio de Lagoa Santa, ofertado ao IHGB, permitia ordenar, hierarquizar e subordinar o mundo social e natural - o homem morto e fora da história - , conferindo lugar aos elementos constitutivos desses mundos, fundamentando o exercício do poder.3 3 Lund anunciou a remessa do crânio em 1844. Em 16 de abril de 1846, o primeiro secretário do IHGB confirmou sua recepção. Unia Minas Gerais ao Rio de Janeiro, após a derrota da revolta liberal em Santa Luzia, na circunvizinhança de Lagoa Santa. Colaborava para a dissolução dos regionalismos, aglutinando as províncias do Império em torno do Poder Executivo forte e centralizado. Lund lidava com elementos que contribuíam para uma operação intelectual que apontava para a naturalização da realidade política do Brasil no período regencial.

Considerações finais

As coleções paleontológicas de Lund detinham carga simbólica para um "nexo da nacionalidade espontânea" entre aquelas províncias, após 1842. Fazia-o não pela definição dos particularismos de Lagoa Santa ou da província mineira, mas pelo alcance e significado na confecção do imaginário da identidade nacional, e mesmo do lugar do Império do Brasil no cenário internacional. Uma reivindicação corrente, que podia ser encontrada nas páginas do jornal Minerva Brasiliense, do Rio de Janeiro, em novembro de 1843: "Estranhas umas às outras, falta às nossas províncias a força do laço moral, o 'nexo da nacionalidade espontânea' que poderia prender estreitamente os habitantes desta imensa peça que a natureza abarcou com os dois maiores rios do universo" (Minerva Brasiliense citado em Guimarães, 1988, p.14; grifos do original).

Lund operava um jogo de espelhos, no qual a província de Minas Gerais era refletida no Brasil que, por sua vez, também o era, em outra escala, na Europa. Em 1847, o IHGB criou a sua Comissão Etnológica e de Arqueologia Indígena, o que apontava para a pragmática tese visando, traçar a especificidade e a identidade da nação brasileira, proposta por Martius e publicada em 1844 pela revista daquele Instituto. A acolhida que Lund teve no IHGB explicita, ainda, a opção dos dirigentes do Império pelo simbólico na construção e na propagação da identidade e dos valores nacionais e não pela instrução pública como recurso na integração de diversidades regionais e culturais tão difusas. A cidadania restrita prescindia da educação pública, e as imagens perpetuavam seu papel na distinção de condição e privilégios sociais. Segundo Arno Wehling, a construção simbólica do Estado nacional e de uma identidade própria ao Brasil requeria a ideia de um novo começo e a reordenação do passado. Exigências estampadas tanto na premiação da tese de Martius (1982), "Como se deve escrever a história do Brasil", em 1843, quanto na percepção dos grupos indígenas que habitavam territórios do Império. Os nativos sul-americanos foram concebidos como o último elo de um processo civilizador que se esgotara e entrara em decadência. A "sedimentação histórica" (Wehling, 1999, p.38) existente em outros países não existia no Império. A sua narrativa textual seria elaborada somente com a obra de Varnhagem (p.112).

É preciso notar que as coleções que Lund arduamente constituíra com os materiais paleontológicos recolhidos na região de Lagoa Santa despontavam na interseção dos três temas que comparecem em 73% das publicações na revista do IHGB: indígenas, história regional, viagens e explorações científicas (Guimarães, 1988, p.20). As pesquisas sobre a fauna e os habitantes nativos do continente, a prática de uma ciência recém-constituída, a paleontologia, e a presença de Minas Gerais na vida nacional definiam um lugar para as populações indígenas e para o Império do Brasil, incorporando-as ao processo de civilização dos trópicos, lançando as primeiras no passado e projetando, no presente, a sorte do segundo. Convém lembrar que a porção oriental da província, vales do rio Doce e Mucuri, era palco de disputas pela apropriação da terra, ocupada por grupos indígenas denominados botocudos (Espindola, 2005; Otoni, 2002).

Lagoa Santa convertia-se em uma encruzilhada do mundo natural e civil. Nela desaguavam a natureza e a história. Ali seria o ponto de encontro dos cientistas, e em larga medida o foi realmente. A realidade paleontológica suavizava as teorias catastrofistas, diluvianas, da extinção das espécies, e dava testemunhos de convivência entre fauna e sociedade humana, passada e presente, uma alegoria da Europa e do Novo Mundo. Haveria que lembrar ainda que, anteriormente, o continente americano já fora central no des-locamento da interpretação científica da natureza, distanciada da ortodoxia bíblica (Rossi, 1992, p.53).

O lastro explicativo do significado das coleções paleontológicas de Lund no Brasil pode ser amparado em considerações recentes do pesquisador Átila Augusto Stock da Rosa (2006, p.27). Embora longa, a citação, por elucidativa, faz-se oportuna:

Basta lembrar que os países desenvolvidos encontram-se todos na porção setentrional do planeta, para imaginar o significado de grandes predadores ao norte, como resultado da evolução de raquíticos predadores ao sul. A inversão dos fatos, com a descoberta de grandes dinossauros na Argentina e África, por exemplo, tem auxiliado a modificar a autoestima da sua população, mostrando que os fósseis têm grande potencial educativo e transformador da realidade. Dessa forma, mais que um valor comercial, um fóssil tem um valor psicológico único, de senso de pertencer a um local ou comunidade. Este é o significado principal do que se convencionou chamar de Patrimônio Paleontológico.

No século XIX, os objetos ainda são portadores de um sentido de autenticidade do passado que impregnava a cultura histórica oitocentista de procedimentos intelectuais característicos do ofício dos antiquários (Poulot, 2001; Guimarães, 2007). Essa mesma autenticidade, por um lado, cederá progressiva e crescentemente lugar para o discurso sobre a história, lançado no centro de interesse das análises do conhecimento histórico e, por outro, acabará por restringir o espaço e o poder explicativo dos testemunhos materiais do passado, dados os vínculos e valores sociais, econômicos, étnicos, nacionais e ideológicos que os preservaram e de que poderiam ser emblemáticos (Santos, 2006, p.63, 78). A valorização do trabalho de Lund, com o desenvolvimento da paleontologia em fins do século XIX, reforçou a crença do acerto político do projeto dos construtores do Império, dos saquaremas e do Regresso ao promover a incorporação pragmática das ciências naturais na vida nacional brasileira, confiando-o lhes um lugar na construção do Estado nacional e na escrita da história no Brasil.

Na década de 1920, a história começou a rivalizar claramente com a natureza, cobiçando e desfrutando exclusividade no espaço das novas instituições museológicas, como o Museu Histórico Nacional, criado em 1922, ou das já existentes, como o Museu Paulista (Santos, 2006; Brefe, 2005). A natureza, porém, continuaria a alimentar discursos identitários da nação brasileira, agora em campo aberto, nos parques, paisagens e monumentos naturais (Franco, Drummond, 2009; Drummond, 1997).

NOTAS

Recebido para publicação em janeiro de 2011.

Aprovado para publicação em julho de 2011.

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    Paulo Henrique Martinez
  • 1
    Sobre o Brasil, ver Figueirôa, 1997.
  • 2
    As condições intelectuais em que Lund realizou o trabalho científico em Lagoa Santa são corroboradas pelo naturalista dinamarquês Herluf Winge (1857-1923). Ver Couto, 1950, p.25.
  • 3
    Lund anunciou a remessa do crânio em 1844. Em 16 de abril de 1846, o primeiro secretário do IHGB confirmou sua recepção.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      01 Jan 2011
    • Aceito
      01 Jul 2011
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