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Enfermidade e morte: os escravos na cidade de Pelotas, 1870-1880

Illness and death: slaves in the city of Pelotas, 1870-1880

Resumos

Analisa as doenças apresentadas pelos escravos internados na Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. O foco recai sobre os trabalhadores das charqueadas que cumpriam rotina intensa e rígida, o que ocasionava sérias consequências para a saúde. Apesar de haver muitas descrições do processamento da carne nas charqueadas, são bem menores as preocupações com a forma como o trabalho escravo era exercido. Com a análise do período entre 1870 e 1880, a partir dos livros de internamento, de observações de viajantes e de jornais, pretende-se contribuir para maior conhecimento das condições de saúde dos cativos na região sul do estado gaúcho.

escravidão; Pelotas; saúde; higiene; charqueadas


The article analyzes diseases presented by slaves hospitalized at Santa Casa de Misericórdia in Pelotas. The focus is on the workers at 'charqueadas' (processing plants for dried meat), whose harsh and rigid work regimen had serious health consequences. Although we can find many descriptions of beef processing at 'charqueadas', we find less evidence of concerns about how slave labor was employed at these plants. By analyzing the period from 1870 to 1880, based on hospital records, travelers' observations, and newspaper reports, the article intends to contribute towards a better understanding of the health conditions of captives in the southern part of the state of Rio Grande do Sul.

slavery; Pelotas; health; hygiene; dried-meat processing plants


ANÁLISE

Enfermidade e morte: os escravos na cidade de Pelotas, 1870-1880

Illness and death: slaves in the city of Pelotas, 1870-1880

Beatriz Ana LonerI; Lorena Almeida GillII; Micaele Irene ScheerIII

IProfessora-associada/Universidade Federal de Santa Maria. Av. Roraima 1000, Cidade Universitária, prédio 74 A.97105-900 - Santa Maria - RS - Brasil. bialoner@yahoo.com.br

IIProfessora-associada/Universidade Federal de Pelotas Rua Bento Martins, 669, 96010-430 - Pelotas - RS - Brasil. lorenaalmeidagill@gmail.com

IIIMestranda/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Avenida Ipiranga, 6681. 90619-900 - Porto Alegre - RS - Brasil. scheermica@gmail.com

RESUMO

Analisa as doenças apresentadas pelos escravos internados na Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. O foco recai sobre os trabalhadores das charqueadas que cumpriam rotina intensa e rígida, o que ocasionava sérias consequências para a saúde. Apesar de haver muitas descrições do processamento da carne nas charqueadas, são bem menores as preocupações com a forma como o trabalho escravo era exercido. Com a análise do período entre 1870 e 1880, a partir dos livros de internamento, de observações de viajantes e de jornais, pretende-se contribuir para maior conhecimento das condições de saúde dos cativos na região sul do estado gaúcho.

Palavras-chave: escravidão; Pelotas; saúde; higiene; charqueadas.

ABSTRACT

The article analyzes diseases presented by slaves hospitalized at Santa Casa de Misericórdia in Pelotas. The focus is on the workers at 'charqueadas' (processing plants for dried meat), whose harsh and rigid work regimen had serious health consequences. Although we can find many descriptions of beef processing at 'charqueadas', we find less evidence of concerns about how slave labor was employed at these plants. By analyzing the period from 1870 to 1880, based on hospital records, travelers' observations, and newspaper reports, the article intends to contribute towards a better understanding of the health conditions of captives in the southern part of the state of Rio Grande do Sul.

Keywords: slavery; Pelotas; health; hygiene; dried-meat processing plants.

O jornal Onze de Junho, do dia 6 de novembro de 1883, noticiou em sua primeira página - com incisivas palavras desde o título: "Crime Abominável" - que Paulo, "um infeliz pardo", escravo do senhor Antonio Rodrigues Condeixa, sofria de enfermidade pulmonar que certamente o levaria à morte. Segundo a notícia, mesmo diante desse quadro de profundo padecimento humano, seu proprietário só concordaria em libertá-lo com a condição do pagamento de um conto de réis, o que, naquele momento, representava o valor de um escravo sadio.

O fato ocasionou uma intervenção do Clube Abolicionista, por meio da divulgação da história, visando à obtenção da liberdade de Paulo, para que pudesse procurar algum tratamento que prolongasse sua vida ou lhe proporcionasse condições mais amenas. O senhor Condeixa, no entanto, não se compadeceu com o pedido e, mesmo com o fornecimento de atestados de dois médicos pelotenses sobre as péssimas condições de saúde do escravo, puniu-o com quatro dúzias de palmatoadas, além de mantê-lo retido em uma delegacia de polícia.

O fato requer algumas considerações. Era comum que os jornais abordassem assuntos vinculados à saúde de um indivíduo, sem se referir à doença em específico, sobretudo se ela fosse contagiosa, mas, no caso de escravos, não havia preocupação com a questão do estigma e do preconceito. Assim, as notícias publicadas em dois dias consecutivos (6 e 7 de novembro de 1883) não deixaram dúvidas de que se tratava de tuberculose ou tísica, como era comumente chamada. Por outro lado, a tragédia pessoal de Paulo só provocou escândalo na sociedade pelotense por acontecer em plena campanha abolicionista; a publicação da notícia, aliás, estava submetida a essa consideração política, por parte do periódico e de seus editores.

A situação de Paulo é bastante representativa dos problemas de saúde enfrentados pelos escravos: além de sofrer com a moléstia que mais mortes causava na época, ele também foi vítima de maus-tratos, ou seja, sua doença, sabidamente grave, não lhe trouxe nenhum alívio em relação às exigências de trabalho nem provocou a compaixão que costumava acarretar no relacionamento com os indivíduos livres. Tratando-o como máquina, da qual se exige a máxima produção sem preocupação com seu desgaste, seu proprietário planejava obrigá-lo a cumprir suas tarefas, mesmo em seus últimos momentos, o que, de fato, deve ter acontecido, uma vez que a seu respeito nada mais foi dito.

Ao perseguir exemplos como os fragmentos da trajetória de Paulo, neste artigo, analisamos as enfermidades de escravos nos Livros de Registro dos Internamentos do Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas (RS), entre 1870 e 1880, período pouco anterior ao abordado pelo jornal Onze de Junho. O recorte cronológico explica-se pelo uso concomitante de fontes jornalísticas, que podem trazer mais informações à análise, e porque só a partir daquela década a imprensa diária se generalizou na cidade. Por outro lado, a observação da década seguinte torna-se difícil no que tange à escravidão, pois a campanha abolicionista iria fazer com que vários escravizados passassem à categoria de contratados, por meio da qual, apesar de ainda prestar serviços a seus senhores por algum tempo, como pretensa indenização por seu custo, já adquiriam status de indivíduos livres.

Os livros com a movimentação dos enfermos internados no Hospital da Santa Casa estão preservados e em bom estado, e a coleção está praticamente completa. Esses documentos fornecem mais informações do que os relatórios de enterramentos, uma vez que permitem a verificação da trajetória de pacientes que, até o óbito, retornam por várias vezes ao hospital. Além dos dados obtidos por meio da análise desses documentos, também utilizam-se notícias de jornais - especialmente do Correio Mercantil e do Onze de Junho, presentes no acervo da Biblioteca Pública Pelotense - e relatos de viajantes. Embora os jornais também estejam sujeitos a críticas sobre sua veracidade e condicionamentos (Luca, 2005), as narrativas de viajantes merecem particular cautela, tal como sugerido por Karasch (2000, p.22), ao dizer que: "Poucos eram capazes de evitar críticas etnocêntricas ou preconceitos de cor, ao mesmo tempo em que a maioria era incapaz de penetrar no verdadeiro significado do que descrevia ou pintava".

O núcleo charqueador

O povoamento da cidade se deu motivado pela busca de uma boa localização para a atividade charqueadora, visto que a região de Rio Grande, município do qual Pelotas se emancipou, era extremamente ventosa, o que trazia prejuízos para a qualidade do produto final. A cidade, distante cerca de 60km de Rio Grande, tinha muitos rios e arroios navegáveis, o que permitia o rápido escoamento do produto, pois cada charqueada possuía seu próprio porto e carregava o charque em embarcações rasas, depois transferidas para aquelas de alto-mar. A planura, proporcionando fácil acesso, e a vegetação do local permitiram aproveitar, como fontes de matéria-prima, o interior do estado, especialmente a serra dos Tapes e a região do pampa, de onde convergiam muitas manadas para abate. Com isso, Pelotas chegou a ocupar o posto de principal exportadora de charque na região, o que lhe valeu muita riqueza e prestígio político, funcionando como centro social que, no período do Império, foi mais importante que a capital, Porto Alegre.

A povoação desenvolveu-se em uma pequena elevação central, pouco distante do canal de São Gonçalo, em cujas margens, bem como nas dos arroios próximos, se localizariam as charqueadas. Nessa região plana, marcada por bom pasto e muita água, a cidade prosperou.

A salgação da carne era realizada de modo a permitir sua conservação por maior tempo. Iniciada anteriormente, foi a partir de 1780 que se tornou atividade sistemática e econo-micamente significativa. Em Pelotas e na região atual de Monte Bonito, existiram cerca de quarenta charqueadas, com emprego de trabalhadores escravizados que oscilava de no mínimo 21 a no máximo 127 pessoas por charqueada. Segundo Gutierrez (2004), eles cumpriam distintas tarefas, algumas muito especializadas, como as dos carneadores, sal-gadores, tanoeiros, graxeiros e sebeiros. Infelizmente, no que diz respeito aos escravos, essa distinção de funções só é percebida nos registros de internamento (Livros..., 1870-1880), entre 1870-1871, uma vez que, nos anos seguintes, haveria a generalização do uso do termo trabalhadores. Crianças e mulheres existiam em pequeno número nesses estabe-lecimentos, como auxiliares dos trabalhos.

É por demais conhecida a comparação que Nicolau Dreys (citado em Magalhães, 2000, P. 94), comerciante que residiu na cidade na década de 1830, faz de uma charqueada 'bem administrada' com um estabelecimento penitenciário, referindo-se ao cuidado com a segurança e o tratamento ríspido dado aos escravos, o que se explicava pelo temor dos senhores de possíveis fugas ou revoltas, devido à grande concentração de trabalhadores escravizados na região.

No século XIX, as condições sanitárias da cidade eram muito precárias e não somente na zona das charqueadas. A umidade intensa, os terrenos alagadiços, o frio e o vento combinavam-se, provocando muitas doenças. Os terrenos, com muita água e pântanos, também estabeleciam condições propícias para a proliferação de insetos que invadiam as residências. Segundo Gutierrez (2004), metade de cada animal abatido terminava sendo descartado, poluindo a água e a terra locais. Cercas feitas de ossos eram comuns na região, enquanto os riachos sufocavam com o sangue e as vísceras dos bois.

A cidade, situada relativamente próximo à região da matança, vivenciava nos anos 1870 um paradoxo visível: "a área urbana crescia, modernizava-se, a população urbanizava-se. Ao mesmo tempo, era invadida pelos cheiros nauseabundos dos sangues putrefatos, dos excrementos apodrecidos, das vísceras deterioradas, dos ossos carbonizados, das nuvens de moscas e de fumaças das gorduras fervidas na zona fabril" (Gutierrez, 2004, p.144).

Todos os viajantes que ali chegaram reportaram essa mesma situação: a existência de forte odor e a presença de muitos insetos. Passando pela região em 1904, o missionário holandês Thomas Schoenaers (2003) se surpreenderia com a quantidade de moscas e as vicissitudes sofridas pelos viajantes. O missionário estava viajando em 24 de fevereiro de 1904, portanto, em pleno período de safra, quando o calor é mais intenso. Porém, é preciso lembrar que já se estava no período de decadência das charqueadas e, nessa ocasião, havia muito menos do que as 34 existentes em 1878.1 1 Em 1890, havia apenas 18 charqueadas, e seu número decresceu rapidamente com a República (Loner, 2001). Se os problemas de frei Thomas Schoenaers foram rapidamente solucionados com a navegação para outras paragens, essa questão permanecia insolúvel para muitos habitantes da cidade, sobretudo para os mais pobres.

Demografia

Em 1780, segundo o primeiro levantamento demográfico conhecido, dos 17.923 habitantes da província, eram 28% trabalhadores escravizados, 53% brancos e 19% índios aculturados, o que, em números absolutos, se traduzia em 5.102 negros, 9.433 brancos e 3.388 índios. Ressalta-se que, àquela altura, estava ainda sendo introduzida a atividade charqueadora, a qual iria ampliar exageradamente a quantidade de mão de obra escrava (Bakos, 1982).

Em 1814, considerando toda a província, foram encontrados 20.611 escravos, 8.655 indígenas, 5.399 livres e 32.300 brancos, além de 3.691 recém-nascidos, perfazendo o total de 70.656 habitantes. No início de seu desenvolvimento e ainda fazendo parte de Rio Grande, quase metade da população de Pelotas era escrava (1.126 escravos para 2.419 livres, dos quais, apenas 712 eram brancos, 105 indígenas e 232 livres). A expressão 'livre' só tem sentido se aplicada a negros ou índios, uma vez que os brancos eram livres por definição. Ademais, se somarmos esses grupos, encontraremos 64,11% de indivíduos afrodescendentes. Acrescentem-se a eles os indígenas, e veremos que os brancos estavam em minoria. Desse total, foram retirados os recém-nascidos, contados à parte. Desse modo, pode-se inferir que se distribuiriam de maneira semelhante entre os vários estratos e, portanto, não altera-riam a proporcionalidade (Fundação..., 1986, p.50).

De acordo com o censo de 1872, Pelotas possuía 21.756 habitantes em seu núcleo e mais 2.747 na paróquia de Santo Antonio da Boa Vista (Fundação..., 1986, p.82), não se computando dados de duas outras paróquias, o que somaria 24.503 habitantes. Só a partir de 1873 temos dados mais seguros sobre o total dos cativos, provindos dos resultados da matrícula de escravos, sistema de cadastramento obrigatório de todos os indivíduos escra-vizados do país, implantado pela Lei do Ventre Livre. Por meio desse instrumento, todos os senhores de escravos deveriam matriculá-los e pagar uma taxa anual, sob pena de perder sua propriedade, uma vez que seriam considerados livres, caso não fossem matriculados.

Os dados trazidos pelos jornais diários, referentes à implantação desse sistema, confirmam que Pelotas era a cidade do Rio Grande do Sul com o maior número de cativos, ou seja, às vésperas da campanha de emancipação de 1884 possuía 6.526 escravizados, enquanto a capital do estado, Porto Alegre, tinha 5.790. Já as cidades próximas, Rio Grande e Canguçu, que faziam parte do polo charqueador, contavam com 2.345 e 2.080, respectivamente, conforme o jornal Onze de Junho, de 27 de agosto de 1884.

Nesse mesmo ano, outra notícia mostra como evoluíram numericamente os escravizados na cidade passados 12 anos da implantação da obrigatoriedade da matrícula. Segundo dados do jornal Correio Mercantil de 1884, havia, em setembro de 1873, 8.142 escravos, sendo 5.125 homens e 3.017 mulheres no município, ou seja, 33,23% do total da população. A eles devem ser acrescentados mais 1.178 que foram levados para a cidade, ao longo desses 11 anos, enquanto no mesmo período de lá saíram 651 pessoas cativas, levadas para outros municípios.

Muitos haviam alcançado a liberdade pela emancipação, o que significa que ainda deveriam prestar serviços a seus antigos donos, a pretexto de indenização, por tempo variável entre dois e sete anos. No estado gaúcho, essa campanha atingiu seu clímax no final de 1884. Consequentemente, já estava em curso, influenciando os dados finais aqui apontados. Nesse período, 1.576 pessoas obtiveram sua liberdade, condicional ou definitiva. Os chamados contratados não podiam ser castigados nem tratados como escravos, mas seu trabalho estava sujeito aos mesmos deveres dos cativos, motivo pelo qual se tem notí-cia de vendas de tempo de serviço de contratados a outros senhores e anúncios muito frequentes de suas fugas (Loner, 2007). Embora não fossem permitidas, as sevícias também eram realizadas, como se pode perceber em denúncias de jornais.

Quanto aos falecimentos, morreram 838 homens e 337 cativas nesse intervalo de 11 anos, no total de 1.175 óbitos, perfazendo 14,4% do total inicial, o que se harmoniza com os dados sobre a mortalidade por gênero na sociedade. Contudo, deve-se também ter em mente que a interpretação dos dados é em parte dificultada pelas alforrias, pois muitos senhores terminavam por conceder a liberdade a escravos idosos para se isentar da respon-sabilidade por sua sobrevivência.

De fato, se consultadas as tabelas de idade, vê-se que os escravos com mais de 60 anos conseguiram, proporcionalmente, muito mais cartas de liberdade do que as demais faixas etárias. Assim, enquanto em 1883 havia 708 pessoas com mais de 60 anos escravizadas, no período citado faleceram 190 e foram alforriados 254, o que representa cerca de 62,7% do total inicial, embora se deva considerar a ausência de um quadro ano a ano que possibilitasse calcular quantos trabalhadores, inicialmente considerados 'plenamente produtivos' (de 21 a 60 anos), ingressaram nessa nova situação.

Ao analisar suas ocupações, deparamo-nos com dados ambíguos, que distribuem os escravos em três categorias: trabalho em lavoura; serviços estranhos à lavoura e sem profissão declarada. O problema dessa classificação é que ela inclui, no segundo item, o trabalho doméstico, todas as profissões urbanas e o trabalho na charqueada, pouco servindo para especificar a distribuição dos trabalhadores escravizados em suas ocupações. Para o primeiro ano da tabela, 1873, tem-se 431 homens e 39 mulheres trabalhando na lavoura. Já na categoria de serviços estranhos à lavoura, contam-se 3.985 homens, de todas as idades, e 2.354 mulheres. Por fim, "sem profissão declarada" são mencionados 709 homens, dos quais 630 crianças e 15 velhos; e 634 mulheres, na maioria (613) menores de 21 anos e 14 já idosas. Vê-se que o resíduo aqui é insignificante, provavelmente referindo-se a pessoas doentes ou inválidas e sem condições de trabalhar. Essa classificação era feita pelos próprios senhores e obviamente visava liberá-los do pagamento das taxas sobre cada escravizado. Sendo assim, ela pode estar um pouco inflada no sentido de que, mesmo sendo consideradas inválidas ou muito idosas, essas pessoas continuavam no trabalho escravo.

Do total de quase quatro mil homens em idade produtiva, sabe-se, por outras fontes, que mais da metade estavam empregados no serviço das charqueadas. Também foi essa faixa etária que menos condições teve para alcançar a alforria até junho de 1884. Além disso, naquele mês, ainda havia exatos 2.279 escravizados pertencentes a essa faixa, aos quais se somavam mais 286 que teriam, na ocasião, entre 13 e 21 anos (como se deduz, também já produtivos) e 180 homens com mais de 60 anos.

Trabalhadores cativos

Pelotas teve sua riqueza construída pelo braço escravo, o que exigiu a importação de milhares de cativos, atraindo igualmente muitos artesãos e imigrantes, em especial nas últimas décadas do século XIX. Os africanos já haviam chegado junto com os primeiros povoadores portugueses, sendo citados nos testamentos dos seus senhores. Por esse meio sabe-se que, desde sua fundação até 1850, a maioria dos escravizados era composta por africanos vindos das regiões da Costa - especialmente minas ou jejes - do Congo e de Angola (Moreira, Garcia, 2011). Devido ao encerramento do tráfico negreiro, na década em estudo, a maioria dos escravos já era originária do próprio estado, outros, do tráfico interno.

Dreys (citado em Magalhães, 2000) afirma que os cativos, em outras regiões do Brasil, que apresentassem mau comportamento seriam ameaçados com a venda para o Rio Grande do Sul, pois diante do clima e do tipo de trabalho ali realizado, essa seria uma ameaça passível de aquietar os mais recalcitrantes. Provenientes de regiões mais quentes da África ou do restante do Brasil, sua vinda para a província sulina era penosa, devido ao clima rigoroso e à pouca roupa recebida, ainda que seu destino final não fossem as charqueadas. Contudo, o próprio Dreys desfaz a ideia de que a condição dos escravos era péssima na região. Segundo o autor, eles eram bem nutridos, agasalhados, tratados em suas doenças, e o trabalho exigido seria moderado. Quanto aos castigos, constituiriam uma necessidade para o trato com os escravos, sendo aplicados sem exageros. Tal opinião, demasiado favorável aos charqueadores e estancieiros, não deve surpreender, vindo de um comerciante que, por força dos seus negócios, convivia intimamente com esses proprietários, tendo até mesmo residido em algumas charqueadas e estâncias.

Em relação aos agasalhos, os melhores exemplos do que seria a roupa de um escravo do campo são fornecidos pelos anúncios de fugas. Suas roupas eram coloridas, sendo utilizados barretes, calça de riscado, mescla ou linhagem, ou ainda de tecido grosso (ganga). Camisa ou camisolão de baeta (tecido grosso e felpudo) e poncho compunham o figurino da primeira metade do século XIX. Segundo Weimer (1991), após 1850, com o encarecimento da mão de obra escrava provocado pelo fim do tráfico, eles passaram a ser mais bem abrigados, porém seu estado geral continuava ruim, com muitos anúncios demonstrando sinais de desgaste físico e de maus-tratos, o que englobava desde cicatrizes até amputações de dedos ou falta de orelhas.

No concernente à alimentação, havia abundância de carne, pois os restos não utilizados ou menos nobres da carne da rês lhes eram destinados. Todavia, isso não significa que todos os cativos teriam boa alimentação, mas tão somente que, devido à situação singular de a principal produção da cidade estar alicerçada na carne de gado, talvez esse não fosse um dos principais problemas dos trabalhadores escravizados na região. Assim, provavelmente sua dieta era excessiva em termos de proteína animal. Os relatos de viajantes, por sua vez, ressaltam a falta de hortaliças ou de verduras para o consumo dos trabalhadores na área das charqueadas.

A situação do negro ou pobre livre era diferente, já que certamente poderia vir a apresentar doenças decorrentes de carência alimentar. A esse respeito, há notícias de que, logo após a abolição, em 1890, houve grande falta de alimentos na cidade.

Em que pese a condição dos cativos moradores do centro urbano, a maioria estava empregada em ocupações domésticas, e a riqueza da cidade contribuía para que alguns proprietários tivessem vários escravos a seu serviço. Outra parcela considerável, entretanto, dividia-se em ocupações urbanas, como os negros e as negras de ganho, que vendiam quitutes ou carregavam mercadorias pelas ruas, trabalhando como carroceiros, aguadeiros, remadores, marinheiros ou realizando outros serviços. A construção civil e trabalhos vinculados ao porto empregavam muitos desses trabalhadores. Especialmente na construção civil, o tempo de trabalho, no verão, era de sol a sol; suas condições de trabalho eram propícias ao desenvolvimento de doenças respiratórias, no inverno, e traumatismos ou ferimentos em qualquer época do ano. Como consequência, vários deles terminavam sendo levados para a Santa Casa, não só no período em análise, mas também em outras décadas, como revela um estudo exclusivo sobre esses operários (Gutierrez, 2004).

Segundo a autora, percebe-se uma diferença fundamental entre os trabalhadores de construção civil livres e aqueles escravizados: enquanto os livres davam entrada no hospital independente de idade, os escravizados atendidos não passavam dos 40 anos, demonstrando que, como acarretaria custo elevado a seus senhores, a hospitalização de escravos com idade mais avançada não era feita.

É preciso ponderar também que, muitas vezes, a busca da cura se dava por meio de rituais vinculados à tradição africana, os quais incluíam elementos da natureza e rezas específicas para cada moléstia, tema abordado por autores como Chalhoub (2003), Figueiredo (2002), Pimenta (2003) e Witter (2007).

No que diz respeito aos trabalhadores, alguns tinham um ofício, uma profissão especializada e ofereciam seus serviços por sua conta, reservando a maior parte do que recebiam para pagar suas dívidas com seu proprietário. Outros ainda eram alugados por seus patrões para trabalhar em ofícios diversos. Nas próprias charqueadas também era comum o emprego de mão de obra alugada na época da safra. Com isso, o charqueador diminuía o gasto com a compra de escravos, pois eles eram contratados apenas para a safra ou até mesmo por um ou dois meses. Para o proprietário, por sua vez, isso significava a oportunidade de um bom lucro extra, pois a escassez de trabalhadores poderia elevar o preço dos aluguéis. Breve análise dos jornais diários, no período da safra, evidencia, aliás, que os alugados eram os que mais fugiam, o que é compreensível, uma vez que sua curiosa situação de alugados a um senhor, sendo propriedade de outro, fazia com que seus locatários tivessem maior preocupação em não os castigar muito severamente, para não prejudicar o 'bem' de outrem. O trabalhador alugado, por sua vez, certamente conheceria outras possibilidades de trabalho, menos desgastantes, e poderia manifestar sua contrariedade ao senhor, como alguns anúncios de jornais deixam entrever.

O cotidiano nas charqueadas

Para que se possa entender o trabalho nas charqueadas, é preciso explicar a singularidade de sua safra. Normalmente, a produção compreendia os meses de novembro a maio. Iniciados os trabalhos no meio da primavera, quando o gado ainda se recuperava do emagrecimento do inverno, o abate terminaria no final do outono, e o charque, produzido ao longo de um ano, só seria comercializado no seguinte. Tal situação era motivada, obviamente, pelo clima e pelo ciclo natural das pastagens e da engorda do boi no pasto. Claro está que os meses de maior trabalho eram os do verão, de dezembro a março. Contudo, algumas tropas ainda continuavam a ser comercializadas até maio. Sendo assim, nos últimos dois meses de outono, os escravizados estariam trabalhando sob baixas temperaturas, à beira d'água e sujeitos a intempéries próprias da estação. No caso dos carneadores, a situação era agravada pelo corpo molhado pelo sangue dos animais, coagulado sobre a pele, enquanto suas tarefas eram inteiramente realizadas de joelhos, posição que forçava seus corpos.

O trabalho iniciava com a compra da manada em Tablada, local de chegada das tropas de gado. Em seguida, ela rumava para as mangueiras das charqueadas próximas, ou seja, os animais não pertenciam à própria charqueada, pois essa dificilmente teria pastos suficientes para abrigá-los. A compra de bois feita em um dia seria processada até o dia seguinte, para dar espaço à nova aquisição que normalmente chegaria à tardinha ao local de abate. Conceitos como dia e noite eram muito elásticos na região, especialmente no verão, quando o sol costuma nascer por volta das 6:30h e se pôr por volta das 19:30h, proporcionando, por conseguinte, jornada de trabalho de 13 horas de sol a sol.

Na verdade, a realidade sobre o tempo de serviço era outra. A respeito do cotidiano das charqueadas apenas uma testemunha nos deixou seu depoimento, envolvido em contexto literário, por meio do conto intitulado 'Pai Felipe ou um episódio de charqueada'. Trata-se do filho de um charqueador pelotense que, em sua juventude, escreveu um pequeno drama contando a vida dos trabalhadores de charqueada com os quais convivera. Seu conto termina com a morte de dois deles, o que é considerado pelo autor uma verdadeira redenção, pois não acreditava em saída diferente para aquele inferno, tal como descreveu.2 2 Trata-se de Alberto Coelho da Cunha, filho do charqueador Felisberto Inácio da Cunha que, com menos de vinte anos, escreveu esse conto publicado na revista do Partenon Literário, em 1874, números dois e três, sob o pseudônimo de Vitor Valpírio. Seu perfeito conhecimento do tema revela-se no uso da terminologia própria da charqueada e nos detalhes do trabalho cotidiano. Segundo o conto, a jornada de trabalho começava à meia-noite - com o trabalho do abate sendo feito à luz de lampiões - e se prolongava até o meio da manhã, quando o lote já estivesse retalhado. Depois da matança, outras tarefas esperavam os trabalhadores, como a salgação e o contínuo empilhar, desempilhar e estender as mantas de charque, tarefas cotidianas e, às vezes, também o auxílio no descarregamento do sal. No auge da safra, o dia de trabalho poderia ter 16 horas, pelo menos. Após o serviço, os trabalhadores estiravam-se sobre a tarimba para acordar novamente com a sineta à meia-noite e iniciar nova jornada, em tudo igual à anterior.

Dreys (citado em Magalhães, 2000) também descreve o início do trabalho à meia-noite, mas afirma que tudo estaria terminado até o meio-dia e que a tarefa seria tão pouco cansativa que não seria raro vê-los folgar no batuque após terminá-la. Independente da notável propensão desse cronista a apresentar o trabalho das charqueadas como saudável e a exaltar o bom tratamento dado aos negros, deve-se lembrar que batuques e demais folguedos, de forma geral, não eram permitidos na maioria desses estabelecimentos. Quando o eram, só deveriam ser realizados esporadicamente, muito provavelmente após a safra. Afinal, na cidade, até mesmo a comemoração do dia 13 de maio de 1888 fora adiada - em acordo com as entidades representativas dos negros e dos abolicionistas - para o início de junho, de modo a não prejudicar os trabalhos nas charqueadas (Loner, 2001).

Trabalhar à noite durante o verão era menos penoso devido à diminuição do calor. Já a partir de março, o trabalho iniciava, na maioria dos dias, com cinco graus de temperatura, ou menos, à beira do canal, em um galpão com inúmeras frestas, por onde passava o vento minuano. Nos dias mais frios, conta o autor, lhes eram fornecidos um ou mais copinhos de cachaça, origem de hábitos alcoólicos nocivos que mais tarde lhes seriam imputados, pela sociedade, como defeitos inatos.

O resultado do que absorviam das duras condições de trabalho, da alienação moral e do entorpecimento dos sentidos se traduzia em seu comportamento indiferente em relação aos animais - devido à pressa com que deveriam trabalhar para cumprir as exigências da produção - , igual descaso sendo demonstrado com os seres humanos, fossem companheiros de infortúnio, fossem seus superiores. Ao que parece, a fraternidade não tinha muito espaço nos matadouros de bois. Os jornais relatavam casos de escravos que haviam injuriado ou matado alguns colegas, embora em geral sua ira fosse dirigida contra os feitores. Em um caso específico noticiado pelo Jornal do Comércio (16 jan. 1880), o escravo responsável pela morte do capataz numa charqueada disse que matou o primeiro que lhe apareceu pela frente, pois queria ser preso, para ir embora daquele lugar. Coerentemente, ele mesmo se entregou e confessou seu crime.

Quando se acidentavam, ficavam doentes ou eram castigados no tronco, o que se mostrava comum devido ao excesso de trabalho, os escravos eram então levados ao que se chamava de hospital, na própria charqueada, mas que não passava de uma enfermaria com poucos recursos. Mesmo nesse local, ainda estavam sujeitos ao braço do feitor, como demonstra Vitor Valpírio (citado em Magalhães, 2002, p.88), já no início do conto:

Vai a safra a todo o rigor e a negrada, estrompada pelo cruel serviço da charqueada, geme e resmunga sobre o boi que a perita faca acaba de sangrar. Já por três vezes o hospital encheu-se de carneadores semimortos de cansaço; e por três vezes foi despejado a força de cotia pelo severo Manoel Gomes. E a negrada, renegando-se da sorte, passa as noites na cancha e os dias nas pilhas e na salga ...

Os castigos também merecem menção especial, pois a característica de concentrar uma população escrava numerosa, armada com facões e instrumentos cortantes, acrescida do alto grau de tensão provocado pelo trabalho, requeria vigilância armada e disciplina forte para que não houvesse revoltas. Mesmo Dreys, com sua inclinação a relevar os piores aspectos dos estabelecimentos saladeiris, afirma que uma charqueada funcionaria como uma espécie de prisão. Por conseguinte, faltas pequenas poderiam dar origem a castigos severos, os quais, tal como em outros locais de grande concentração de escravos, eram aplicados na frente de todos, para dar exemplo aos demais. Sob a fiscalização do feitor, o trabalhador a ser punido era amarrado ao tronco e chicoteado por outros cativos. Ainda assim, os jornais costumavam apresentar um grande número de fugas do território das charqueadas justamente nos meses do verão, o que demonstra que, na cabeça dos cativos, nem o medo do castigo poderia ser pior do que continuar trabalhando naquelas condições.

As doenças

As doenças que afetavam a vida dos escravos eram aquelas comuns à maioria da população, ampliadas pelas condições precárias de exercício dos diversos trabalhos manuais com os quais se ocupavam. Dessa forma, foram muitos os casos de tuberculose que oca-sionaram a morte de imenso número de pessoas; de varíola, especialmente quando rela-cionada a uma espécie de pico de contágio; de disenteria e de febre tifoide, vinculadas às péssimas condições de saneamento da sociedade; de boubas, também conhecidas como úlceras bubáticas e febre bubeira, que se trata de "doença não venérea causada por um espiroqueta que é facilmente contraído por contato direto da pele ou indiretamente, mediante material contaminado" (Karasch, 2000, p.236).

Para Langgaard (1873), ratificando o pensamento existente na época, coube aos negros a introdução de graves doenças contagiosas no território brasileiro, como a sífilis, a febre amarela, o escorbuto e as boubas. Carvalho (2006) sugere que os historiadores do tema sejam críticos aos 'consensos biológicos', que eventualmente remetem a pensamentos como o de Langgaard. Porto (2007, p.1023) concorda com Carvalho e acrescenta, ainda, que "estudos recentes de paleopatologia têm esclarecido um pouco mais essa questão, mostrando ... a presença de algumas dessas doenças antes da chegada do homem branco à América".

Verificavam-se igualmente muitos casos de bronquite e de pneumonia, doenças que se agravam em meses de muito frio, quando as pessoas estão com o sistema imunológico fra-gilizado e habitando lugares com condições precárias de salubridade. Embora as internações acontecessem por causas diversas, um dos maiores índices de morte estava relacionado às doenças de pulmão, principalmente à tuberculose3 3 Mary Karasch (2000) demonstra também a alta incidência de doenças pulmonares, como a tuberculose, em escravos internados na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Paulo Moreira (2010) cita a tuberculose entre as principais causas das mortes dos escravos na capital gaúcha. , que, por ser contagiosa, afetava todos (Gill, 2007), mas se propagava mais facilmente em situações de pobreza - situações essas nas quais se encontravam os cativos, como Theophile, africano, 50 anos, preto, propriedade de Francisco Nunes de Souza, internado do dia 4 ao dia 19 de fevereiro de 1878 com pneumonia crônica. Em abril do mesmo ano, entre os dias 24 e 30, ele seria novamente hospitalizado em decorrência de uma tísica, que o vitimou. Por outro lado, era bastante comum que, enquanto não houvesse sinais mais expressivos da tuberculose, o diagnóstico fosse impreciso, relacionado a moléstias do aparelho respiratório como um todo, como no caso de Theophile.

Um estudo comparativo entre morbidade de escravos de Porto Alegre e Pelotas, nas décadas de 1830 e 1850 (Moreira, Garcia, 2011) apurou que Pelotas teve cerca de 156 cativos mortos por doenças do sistema respiratório, entre 1.675 falecidos, enquanto Porto Alegre teve 216 entre 4.702. Em termos relativos, isso significa 9,31% para a primeira cidade e 4,6% para a segunda. Uma rápida análise demonstra a fragilidade desses dados, já que, em Pelotas, mais da metade dos óbitos, cerca de 966 (57,67%), não apresentou causa definida, enquanto em Porto Alegre, os óbitos sem causa relatada somavam cerca de 1.231, ou seja, apenas 26,18% do total.

Os autores também advertem que esse total se refere exclusivamente àqueles enterrados em cemitérios vinculados à Igreja católica, e que o número de cemitérios não oficiais, bem como a ocorrência de enterramentos em propriedades privadas, era muito comum, especial-mente em relação aos corpos de cativos que não entravam em nenhuma estatística. É de se presumir que em Pelotas se verificasse um grande número de enterramentos desse tipo nas charqueadas e estâncias, especialmente no primeiro caso, onde, nos meses de verão, todo o movimento era subordinado à safra. Assim, a vinda dos companheiros de trabalho para um enterro na cidade ocasionaria muitos problemas de ordem econômica e de segurança para os charqueadores, o que praticamente impelia ao enterro próximo ao local de trabalho.

Eram também comuns as moléstias do sistema digestivo, principalmente embaraços gástricos, prisão de ventre e diarreia que, naquela época, poderiam levar à morte. Para o Rio de Janeiro, Karasch (2000) concluiu que a segunda maior causa de mortes entre os cativos era o grupo de moléstias vinculadas ao sistema digestivo. "Conforme as concepções do século XIX, a quantidade de escravos que morria de diarreia era incomum. Com muita frequência, os médicos não davam outra explicação além de 'diarreia' para a morte do cativo" (p.238).

Nos dados compilados, de 1820 a 1884, junto à paróquia matriz de Porto Alegre, Moreira (2010) aponta que, entre as primeiras causas de morte, constavam a hidropisia e a diarreia; já no acervo da Santa Casa de Misericórdia dessa mesma cidade, 16,81% das mortes tinham como causa problemas digestivos.

Era comum que as causas das mortes ou dos internamentos fossem anotadas de maneira simplista, se resumindo ao sintoma inicial. As moléstias do trato digestivo podiam estar relacionadas a vermes e parasitas, como o bicho-de-pé e a lombriga, acrescidas das complicações provenientes de alimentação precária, pobre na diversidade de nutrientes.

Os dados revelam números elevados das chamadas doenças venéreas, como a sífilis, a gonorreia, o bubão e as moléstias combinadas. As doenças venéreas possuíam, e ainda possuem, forte conotação moral. Juntamente com outras moléstias contagiosas e também com a embriaguez, propiciavam rápido julgamento das escolhas individuais, expresso tanto na imprensa da época como em teses médicas. Thomé, escravo de Felisberto Inácio da Cunha, pardo, natural de Pernambuco, foi internado em duas oportunidades devido a úlceras sifilíticas. Em 1875, com 32 anos, o sapateiro ficou 105 dias tratando da moléstia, que voltou a perturbá-lo em 1879, fazendo com que permanecesse no hospital por mais 97 dias. Já o escravo de Francisco Alves Ribas, chamado Cambolim, pardo de 19 anos, natural de Jaguarão, foi internado duas vezes: a primeira delas em outubro de 1876, quando passou 13 dias tratando um cancros veneris. Passadas duas semanas de sua alta, pois fora considerado curado, teve de voltar à enfermaria, já que, além do cancros veneris, o diagnóstico era de blenorragia, outra denominação de gonorreia, devido a seu mal-estar generalizado. Após tratamento de 22 dias, no qual foram utilizadas sanguessugas, o enfermo saiu do hospital.

Joana, escrava de Antonio Souza, parda de 26 anos, natural de Pelotas, esteve internada 30 dias durante os meses de agosto e setembro de 1870. O motivo de sua internação foi a combinação de supressão de transpiração e blenorragia, a primeira sendo entendida como uma desarmonia das secreções. A diminuição da transpiração, motivada pelo frio, supostamente causaria moléstias como a "bronquite, a pneumonia, o pleuris, o reumatismo, as impigens, as dores nervosas" (Chernoviz, 1870, p.1036).

Karasch (2000) discute a presença das doenças venéreas entre a população escrava do Rio de Janeiro, referindo-se, em especial, à sífilis, à gonorreia e ao cancro. Segundo a autora, no entanto, a identificação dessas doenças era difícil, tendo em vista o fato de vários dos sintomas serem parecidos com os de outras doenças, pelo menos em seu início.

Ainda que haja problemas para a obtenção de dados mais concretos a partir das fontes do século XIX, as doenças venéreas eram endêmicas entre a população escrava, sobretudo por haver muitas trocas de parceiros, decorrentes de maior número de homens do que de mulheres, como nas charqueadas, por exemplo. Nas cidades também ocorria o fenômeno das ligações casuais e não definitivas, por parte de parceiros sexuais. Somem-se a isso os males advindos da prostituição, da inexistência de políticas profiláticas para essas doenças, além do desconhecimento das formas de infecção pelas mesmas, o que acarretava a existência de pessoas enfermas de mais de uma doença sexualmente transmissível.

Ao se considerar o pequeno número de mulheres nas fazendas e nas charqueadas, deve-se pensar que tal fato tenha provocado uma mudança nos hábitos sexuais e de casamento seguidos pelos africanos. Kátia Mattoso (1982, p.127) nos auxilia a pensar sobre as transformações que se processaram na vida sexual dos africanos no Brasil:

Nas fazendas, os dormitórios de homens e de mulheres são separados, e os encontros de casais, mesmo legalmente casados, são realizados furtivamente, durante a noite. A política dos senhores é tornar os contatos sexuais difíceis, mas não impossíveis. Assim foi que a poligamia africana foi substituída no Brasil por uma sucessão de ligações passageiras.

Outro quadro comum inclui os traumas, representados por contusões, ferimentos e fraturas ocasionados durante a rotina de trabalho, assim como casos de reumatismo, que promoviam restrições graves aos movimentos. Se a eles somarmos o tétano e a gangrena, 14,8% dos enfermos foram internados, possivelmente, por motivações relacionadas à exaustiva rotina de trabalho. Por exemplo, o pardo Tibúrcio, escravo de Antonio Roiz Cordeiro, necessitou de cuidados médicos em quatro oportunidades no período de julho de 1874 a fevereiro de 1879, a partir dos 19 anos de idade. Os cuidados duraram em média quatro dias, relacionados a dores reumáticas por duas vezes, contusões e constipação, nas demais ocasiões. Alguns dos internamentos reportam outra situação comum na vida do cativo: os castigos. Antônio, escravo de Manoel Baptista, natural de Pernambuco, 50 anos, morreu em 1872, depois de seis dias de internamento devido à gangrena nas pernas, motivada por surra no tronco. Aqui temos mais uma consequência nefasta dos castigos aos escravos: a possibilidade de infecção causada pelo próprio instrumento de castigo não limpo, pelas péssimas condições de higiene em que os escravos viviam, ou ainda, pelos locais em que eram colocados para curar suas feridas. É sabido que, para evitar esse tipo de infecção, alguns senhores, de São Paulo ou do Nordeste do Brasil, costumavam esfregar pimenta ou sal nas feridas (o que potencializava ainda mais os tormentos do punido), aparentemente visando prevenir o risco de infecções (Machado, 1987). Contudo, não há relatos do emprego desse recurso, seja nas charqueadas, seja na própria cidade.

Ao analisar as mortes de escravos na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Moreira (2010) aponta 8,11% de mortes classificadas como violentas e acidentais entre 1850 e 1885. O cruzamento desses dados com notícias de jornais da capital, nas quais o assunto é recorrente, problematiza a questão de se pensar se os senhores, podendo responder crimi-nalmente pelos maus-tratos, não teriam obtido, eventualmente, a proteção dos médicos. O autor lembra que "os médicos possuíam uma certa dependência dos senhores, já que boa parte de seus rendimentos era fruto do tratamento das famílias das casas grandes e suas senzalas" (p.88).

O Correio Mercantil (8 nov. 1877) noticia o caso de um escravo que se supunha sofrer de vitiligo, embora o periódico o descrevesse como 'albino'. Na verdade, havia completo desconhecimento da condição médica do escravo e, para o redator, esse caso, em especial beirava o milagre. O tom da matéria é sensacionalista ao se referir ao 'negro branco' "como uma coisa que, se não é fenomenal, torna-se digna da admiração dos curiosos". Em nenhum momento, o redator chama o escravo pelo nome, mas estabelece um julgamento sobre a sua 'sorte': "Passar de negro retinto a branco perfeito é felicidade que não está reservada a todos os descendentes da Etiópia. Pior seria o inverso. O negro branco pensa ter encontrado a suprema ventura nessa importante metamorfose" (Um negro..., 8 nov. 1877, p.2). Para o dia 14 daquele mesmo mês era anunciada uma exposição do 'negro branco' pelo preço de 400 réis por pessoa, valor que seria usado para a aquisição de sua liberdade.

A tabela a seguir demonstra, de forma geral quais moléstias provocaram a internação de escravos na Santa Casa de Misericórdia de Pelotas:

Os registros eram pouco precisos, embora tentassem ser minuciosos, prevendo o nome do paciente e sua filiação (no caso do escravo, o nome do senhor), a idade, a naturalidade, o estado civil, a profissão, as datas de entrada e de saída da entidade, a moléstia, o valor pago pelo período de internamento, além de observações referentes ao tratamento e à condição da pessoa quando da saída do hospital. Contudo, vários desses registros não eram preenchidos de forma integral e havia heterogeneidade de dados, relacionada ora a mudanças nos campos de dados dos livros, ora à substituição do escrivão.

Além disso, grande parte dos adoentados não chegava a ser atendida pelos hospitais, sendo cuidada no ambiente em que vivia e não isolada em um universo hospitalar, problemática também apontada por pesquisadores responsáveis pelo estudo dos óbitos, já que muitos eram aqueles enterrados sem nenhum registro.

Manuais e dicionários de medicina popular, como o Chernoviz (1870) e o Langgaard (1873), publicados durante o século XIX, possuem linguagem acessível e pedagógica, facilitando aos leigos o entendimento das principais moléstias que perturbavam os enfer-mos, ao caracterizar seus sintomas e recomendar meios de apaziguá-los e/ou preveni-los. Witter (2007) esclarece que, em algumas circunstâncias, o próprio senhor poderia utilizar esses manuais de medicina popular, visando curar seu escravo. Segundo a autora, em algumas situações, não era prestado socorro ao adoentado

por razões múltiplas: ódios recolhidos, julgar que o escravo simulava, ou achar que sua cura não valia o investimento. Nestes casos, a alforria aparecia como uma das soluções possíveis para os senhores que queriam livrar-se de gastos e incômodos que consideravam inúteis ou das sanções da 'boa sociedade' por não cumprir com a 'obrigação moral' de tratar das mazelas daqueles sob seu jugo (p.108; grifos do original).

Os senhores deveriam pagar pelos dias de internamento de seus escravos, salvo aqueles que fossem pobres. No artigo nono do Regimento da Santa Casa (1872) consta que "o escravo de família pobre, que seus senhores não possuam outro que lhes preste serviço, nada pagará por seu tratamento", como demonstra o caso de Romana, escrava brasileira de 39 anos, internada por oito dias por sofrer de boubas. Nesse caso, sua senhora, Maria Benvinda, "por ser pobre não pagou", conforme o relatório da Santa Casa. Por vezes, os escravos muito adoentados eram abandonados à própria sorte, embora de acordo com a medida sancionada pelo barão de Cotegipe, em 1854, esse fato não pudesse acontecer, uma vez que o texto legal determinava "punição aos senhores que alforriem ou abandonem seus escravos por motivo de doença ou de incapacidade para o trabalho" (Porto, 2007, p.7). De toda maneira, no Livro de contabilidade, receita e despesa da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas (1847-1868), no dia 31 de outubro de 1868, encontra-se uma anotação sobre o pagamento das despesas de Luis, escravo de José Antonio Moreira na qual se pode ler: "dando-lhe a carta de liberdade para não pagar mais" (p.344).

Ângela Porto (2006) acredita que alguns 'mitos' atrapalham a análise referente à saúde dos escravos, como a ideia do senhor benevolente ou absolutamente negligente. Outra questão a ser pensada é a concepção de total dependência dos escravos em relação aos senhores em termos do que hoje consideramos saúde. Segundo a autora, deve ser igualmente considerada a manutenção da cultura africana e seus possíveis métodos de cura, o meio em que viviam e o relacionamento entre senhor e escravo.

A maioria das pessoas não procurava os hospitais. As estatísticas apresentadas em rela-tórios oficiais indicam que cerca de 90% das pessoas morriam em casa naqueles anos. Documentos da Provedoria da Santa Casa enfatizam a dificuldade de os doentes buscarem o ambiente hospitalar, no qual poderiam receber algum tipo de auxílio enquanto ainda havia tempo para a cura.

Verificareis ... que foram tratados 932 enfermos, dos quais, saíram curados 718, faleceram 154 e continuam em tratamento, 60. Parecer-vos-á sem dúvida, exagerada a porcentagem da mortalidade superior a 16%, mas uma simples consideração vos demonstrará que o fato não é de tal modo surpreendente, atendendo-se a que muitos e muitos acodem a reclamar auxílios da Santa Casa quando o seu mal já não tem mais remédio, e que outros entram para o hospital apenas com horas de vida (Costa, 1889, p.2).

Michel Foucault (1998) considera que o hospital, como instrumento de cura, é invenção bastante recente, datada do final do século XVIII. De acordo com o autor, antes desse período, cabia às casas de saúde assistir aos pobres, em função caritativa, própria ainda da fase medieval. Nesse espaço, dificilmente se obtinha melhora, razão pela qual não era muito procurado. A salvação da alma era imaginada e sonhada por aqueles que ministravam os cuidados aos doentes, na maioria das vezes, pessoas vinculadas à causa religiosa.

Os hospitais não configuravam ambiente propício para a cura nem o médico era preparado para atuar em seu interior. "A experiência hospitalar estava excluída da formação ritual do médico. O que o qualificava era a transmissão de receitas e não o campo de experiências que ele teria atravessado, assimilado e integrado" (Foucault, 1998, p.102).

Segundo o autor, a transformação deu-se, em primeiro lugar, na tentativa de alteração dos fatores negativos presentes na rotina hospitalar, lugar de profunda desordem, no qual era mais fácil disseminar doenças do que promover a saúde, devido ao perigo de contágio. Foucault afirma que o novo hospital, surgido em fins do século XVIII, tinha preocupação especial com a distribuição de seus pacientes e com o lugar onde o próprio prédio hospitalar deveria se localizar. "É preciso que o espaço em que está situado o hospital esteja ajustado ao esquadrinhamento sanitário da cidade. É no interior da medicina do espaço urbano que deve ser calculada a localização do hospital" (Foucault, 1998, p.108).

Outra transformação significativa refere-se ao exercício do poder. Cada vez mais as pessoas vinculadas a ordens religiosas perdiam o domínio, sobressaindo o médico como articulador da organização hospitalar que, a partir desse momento, passou a ambicionar a cura do doente. Por fim, o hospital passou igualmente a estimular as anotações sobre tudo o que dizia respeito ao enfermo, o que constitui documentação antes inexistente.

A Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, fundada em 20 de junho de 1847, surgiu com o espírito de caridade e assistência aos pobres, própria de sua organização no período medieval, mas com postura que, algumas vezes, pode ser relacionada ao paradigma antigo e, em outras ocasiões, ao paradigma do novo hospital. No Brasil daquele momento, assistia-se a uma mudança de mentalidade em relação à morte e às enfermidades, de modo que o tratamento nesse hospital combinava características dos dois paradigmas.

Entre 1870 e 1880, foram atendidos pela Santa Casa 5.985 enfermos, sendo que 1.509 escravos, ou seja, 20% do total. Deve-se lembrar que, nessas décadas, os negros perfaziam 33,23% da população de Pelotas, entre escravos e livres ou libertos, sendo esse um valor adequado a seu número entre os internados, embora, como já visto, haja motivos para desconfiarmos de que o número de moléstias existentes entre eles fosse maior, considerando-se o conjunto da população.

A média de dias de internamento girava entre um e cinco (31%). A lógica que presidia as altas e as admissões do enfermo ainda era a de que, posto que a internação poderia não curar, o espaço servia para a realização de exames; para o fortalecimento do organismo, por meio de uma alimentação melhor, e para proporcionar um pouco de descanso a corpos fragilizados pelo trabalho. No caso dos cativos, no entanto, a intenção não era apenas a de apaziguar corpos. Como constituíam propriedade, com a qual se obtinha lucro, havia a perspectiva de curar as moléstias, de modo que o escravo pudesse continuar exercendo suas atividades laborais. Quando não havia possibilidade de melhora, ou assim se considerava, era comum que o escravizado não fosse enviado ao hospital, aguardando a morte junto aos seus, ou no trabalho.

O Relatório da Provedoria da Santa Casa, período de 1879-1880 (Assumpção, 1889), informa que, dos 727 internos durante o ano, 163 eram escravos, tendo só 13 morrido no hospital. Dados sobre os enterramentos, nesse mesmo relatório, apontam que 61 escravos haviam falecido no período, o que significa que, do total de óbitos de escravos, cerca de 80% ocorreram em domicílios. Dessa forma, a taxa de falecimento de escravos na Santa Casa não era alta, como se pode observar na Tabela 4, a seguir.

Havia constância de reinternações. Muitos dos cativos retornavam ao hospital por motivos diferentes, como é o caso de Joana, escrava de Santiago Iriart, parda de 44 anos, internada três vezes, no período de 9 de março a 10 de abril de 1875. Em sua primeira inter-nação, consta no registro cancro veneris, e ela permaneceu no hospital 12 dias; na segunda, o motivo foi disenteria (oito dias), já na última vez, a causa anotada relacionava-se a gas-trite simples, da qual foi tratada apenas dois dias. Nesse caso, nota-se que houve o empenho de seu dono para que ela fosse cuidada, pois mesmo uma moléstia simples como a gastrite havia levado à internação, o que talvez indicasse que outros fatores, não apenas pecuniários, haviam pesado nesses cuidados: aos 44 anos, seguramente, Joana não valeria bom preço no mercado de escravos. Talvez esse fosse o mesmo caso de Saul, africano, 60 anos, escravo de Antônio José da Silva Maia, internado entre 2 e 16 de junho de 1880 por conta de bronquite e entre os dias 20 e 22 de agosto, pelo mesmo motivo, ocasião na qual veio a falecer. A combinação de sua doença com a idade não augurava bons prognósticos a seu tratamento, o que de fato ocorreu.

Ainda que as charqueadas funcionassem entre novembro e maio, período mais quente do ano, não foi possível verificar grande oscilação de internações por mês, apesar de dezembro e janeiro terem em média 10%, enquanto os outros meses variavam entre 6,8 e 9%. O percentual de internações possivelmente vinculadas a esforços físicos, no último mês da safra, chegou a 12%, enquanto nos meses da entressafra, a média foi de 7%. Contudo, não devemos esquecer que, quando os escravos não estavam trabalhando na safra do charque, tarefa profundamente penosa que os exauria fisicamente, exerciam outras atividades, tais como a confecção de tijolos e a construção civil, também debilitantes, já que os expunham ao vento, ao frio e à chuva durante o outono e o inverno.

Dos internados, 81% eram homens, e 19% mulheres, oscilando suas idades entre 11 e 20 anos (15%), 21 e 30 (31%), 31 e 40 (21%), 41 e 50 (18%), 51 e 60 (11%) e 61 e 70 (2%), no total do período analisado. A disparidade entre os gêneros é compreensível, uma vez que o tráfico negreiro internacional era majoritariamente de homens, o que se refletia no total da população escrava. Quanto à idade, note-se que a maioria dos internos encontrava-se em seu período mais produtivo para o sistema escravista.

O número de crianças hospitalizadas foi muito pequeno (2%), embora seja preciso levar em conta que desde 1871 já não nasciam mais crianças escravas, em virtude da Lei do Ventre Livre. Foi possível encontrar, no entanto, casos como o de Rita, filha de Jacintho, escravos de Thomaz Bento. Filha e pai, ambos pardos, tinham quatro e trinta anos, respecti-vamente, sendo naturais de Jaguarão, cidade na fronteira do Brasil com o Uruguai, no momento em que deram entrada na Santa Casa, em 3 de setembro de 1880. A menina faleceu no dia 7, por conta de uma pneumonia; o pai, acometido de constipação, teve alta no dia 16 de outubro. Comparando-se esses dados com outros coletados por Alberto Coelho da Cunha (1869-1881), as crianças sepultadas nos cemitérios da cidade correspondem a 46% do total de enterramentos no período. Percebe-se grande discrepância, o que indica que os filhos de escravos dificilmente chegavam ao hospital. Considerando 6.506 registros de óbitos nos quais consta a idade, nos relatórios da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (1850 a 1884), Moreira (2010) percebe que 36% deles ocorreram entre o nascimento e os sete anos de idade. Além disso, deve-se levar em conta que, nesse período, os senhores teriam ainda menos interesse pecuniário na sobrevivência das crianças, uma vez que eram consideradas livres.

Note-se que, em termos de local de nascimento, 21% dos cativos declararam ter nascido na África, 12% em Pelotas, e 38% em outras cidades do estado, especialmente em Porto Alegre, Camaquã, Piratini, Rio Grande e Jaguarão, assim como havia 19% provenientes de outros estados, como Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. O restante dos 10% abrange outros países do Prata, ou dados imprecisos. Tal fato situa-se dentro do esperado, tendo em vista que o tráfico negreiro colapsou em 1850 e, portanto, duas décadas mais tarde, era natural haver percentual relativamente baixo de escravos africanos.

Considerações finais

Para concluir, pode-se dizer que embora naquela época o conjunto da população pelo-tense estivesse muito desprotegido diante de doenças das quais não se sabia nem mesmo as causas, muito menos o tratamento, os trabalhadores cativos constituíam segmento de alto risco, o que se deve basicamente ao fato de que as decisões principais em relação a seus corpos, sobretudo concernentes aos esforços físicos despendidos, quantidade de alimentação e abrigo, não eram tomadas por eles e sim por seus senhores, que nem sempre tinham como interesse maior o bem-estar de seus trabalhadores. Por outro lado, estando mais expostos à vida das ruas e das manufaturas, como as próprias charqueadas, eles eram mais facilmente acometidos de doenças epidêmicas e endemias, como tuberculose, febre tifoide, varíola, disenteria e boubas.

O artigo demonstra que os dados oficiais da Santa Casa podem não refletir diretamente a realidade, tendo em vista que, tanto a finalidade maior da instituição de caridade (acolher enfermos) quanto o interesse pecuniário dos patrões poderiam confluir para mascarar os dados do real impacto das doenças sobre os escravizados. Entretanto, considera-se que, apesar dessas limitações, essas fontes permitem estabelecer, ainda que relativamente, algumas das principais moléstias que recaíam sobre esse grupo, além de facilitar o entendimento da própria lógica senhorial em relação aos cuidados com seus escravizados.

NOTAS

Recebido para publicação em abril de 2011.

Aprovado para publicação em dezembro de 2011.

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  • 1
    Em 1890, havia apenas 18 charqueadas, e seu número decresceu rapidamente com a República (Loner, 2001).
  • 2
    Trata-se de Alberto Coelho da Cunha, filho do charqueador Felisberto Inácio da Cunha que, com menos de vinte anos, escreveu esse conto publicado na revista do Partenon Literário, em 1874, números dois e três, sob o pseudônimo de Vitor Valpírio. Seu perfeito conhecimento do tema revela-se no uso da terminologia própria da charqueada e nos detalhes do trabalho cotidiano.
  • 3
    Mary Karasch (2000) demonstra também a alta incidência de doenças pulmonares, como a tuberculose, em escravos internados na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Paulo Moreira (2010) cita a tuberculose entre as principais causas das mortes dos escravos na capital gaúcha.
  • 4
    As moléstias agrupadas como "Diversas" foram as que não se enquadraram nos grupos estipulados. Destaca-se dentre elas as de maior incidência: constipação (5%); supressão de transpiração (4%) e úlceras (3,5%). As demais ficaram abaixo de 2% sobre o total.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Mar 2013
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      Abr 2011
    • Aceito
      Dez 2011
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